Ciência, História e Natureza: objetos e possibilidades | Temporalidades | 2019
“Todas as ciências são humanas!”
“Todas as ciências são humanas!”. Esta frase deu a tônica nas manifestações contra os cortes financeiros na área da educação brasileira no dia 30 de maio de 2019. Para além do sentido inclusivo, – por fazer referência explícita ao apoio à educação pública, gratuita, de qualidade e para todos – a frase carrega outros sentidos e um deles diz respeito a quem pratica a ciência. Se a ciência é praticada por humanos e a História se encarrega de estudar as ações do homem no tempo, logo as práticas científicas são objetos do campo disciplinar da História. De maneira semelhante à história tout court, a narrativa sobre a história das ciências por muito tempo esteve eivada pelo mito fundador e por escritas laudatórias, mas que em determinado momento serviu aos interesses de conformar uma visão específica dos acontecimentos. Na segunda metade do século XX e início do século XXI, o cenário acadêmico vem amadurecendo análises críticas dos processos de produção do conhecimento considerando os aspectos sociais no fazer científico. Os artigos que abordam recortes espaciais e temporais distintos neste dossiê fazem emergir essas questões a partir de pesquisas empíricas e teóricas, mas principalmente apontando diferentes perspectivas interpretativas.
Em 1862, o escocês Daniel Wilson publicou a obra Prehistoric Man: Researches into the origin of civilisation in the old and the new world, que, ao classificar a “humanidade intocada” pela lente eurocêntrica, construiu umas das mais emblemáticas narrativas sobre o conceito de pré-história ao segregar o homem da natureza com base nas concepções da ciência moderna. A percepção de Wilson impulsionou comparações entre populações não europeias e as populações europeias no debate da alteridade, “gerando um estatuto de selvageria aos grupos não europeus”. Marília Oliveira Calazans recorreu a essa obra para demonstrar que o desenvolvimento da arqueologia brasileira esteve em consonância com os paradigmas científicos do século XIX, a partir do estudo dos sambaquis como fato científico.
Neste dossiê, de modo complementar ao debate sobre a ideia de temporalidade “préhistórica”, o artigo “O tempo e a arqueologia: uma narrativa científica sobre o passado indígena na Amazônia por meio das coisas arqueológicas ao final do século XIX”, Queiton Carmo dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais, argumenta que, para o naturalista Emílio Goeldi, a criação de coleções de materiais arqueológicos funcionava como uma outra forma de acessar o passado e de provar ideias sobre a antiguidade indígena amazônica. Ou seja, a mediação entre presente e passado poderia ser feita de forma direta pela junção de objetos materiais, vestígios legítimos que podem ser acessados em salões de exposições. Santos sustenta que a argumentação do naturalista suíço, no final do século XIX, em relação a ideia de tempo “préhistórico” se aproxima mais dos debates elaborados por Reinhart Koselleck sobre espaço de experiência e horizonte de expectativas, e menos aos debates contemporâneos da arqueologia de pensar os povos indígenas em sua longa duração.
Seguindo a perspectiva da alteridade, menos de um século após as publicações de Goeldi, Michael de Certeau publicaria uma série de livros, hoje emblemáticos para os historiadores contemporâneos, sobre um “olhar etnográfico” que, mirado na temporalidade, alcançaria a heterologia, o modo de conhecer o “outro”. Robson Freitas de Miranda Junior, da Universidade Federal de Minas Gerais, explora como o pensador francês Michel de Certeau concebeu a narrativa da história como uma fabricação, de forma a associar a escrita da história com o lugar de produção. Embora propusesse um logos do outro, seu projeto de alteridade é ambivalente, uma vez que denota a diferença e a identificação entre o que produz a história e o sujeito histórico.
O artigo de Jéssica Santana de Assis Alves, mestranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, dedicado às possibilidades de estudos microanalíticos, analisa algumas “noções referentes à micro-história que remetem ao estudo do indivíduo”. Debatendo a metodologia da história pelo viés da trajetória, Jéssica Alves aponta para as possibilidades de deslindar questões gerais a partir de um fragmento estudado sem cair na excepcionalidade dos casos.
Breno Ferraz Leal Ferreira, doutor em História pela Universidade de São Paulo, inicia o seu artigo com o estudo da trajetória de Frei José Mariano da Conceição Veloso e sua relação com a política colonial do ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho para compreender melhor as ideias de conservação da natureza na América portuguesa. Veloso defendia que os métodos de produção agrícola, em especial ao do cultivo de cana-de-açúcar, eram atrasadas e que possivelmente poderia ter causado a seca em Pernambuco. Ao trazer à tona a trajetória de formação do Frei Veloso, Breno Ferreira esboça um cenário maior sobre a influência do pensamento ilustrado naquele contexto e a aproximação das ideias de Veloso com o que José Augusto Pádua chamou de “tradição intelectual esquecida”, movimento de discussão sobre a devastação da natureza colonial.
Analisando um caso mineiro, a natureza ganha outro estatuto de análise. Rute Guimarães Torres chama a atenção para os usos de uma formação geomofológica na composição da ideia de paisagem e de identidade mineira. A autora demonstra como o Pico do Itacolomi foi alocado no processo de reorganização socioeconômica de Minas Gerais no final do século XIX, momento em que a natureza assumiu um papel mediador na tensão entre a “tradição” e a “modernização”, tão emblemática com a construção da nova capital mineira como símbolo da República.
É sobre o tema do campo emergente da história empresarial que trata o texto de Marlon Rodrigues Marques, mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no qual o autor debate os limites e as possibilidades de estudos sobre tal campo disciplinar. Pensar a história dos negócios para além das empresas, levando-se em consideração aspectos das atuações empresariais na esfera social e política é apresentada como uma possibilidade ainda tímida dentro do escopo da historiografia recente.
Para fechar este dossiê temático, Luiza Lima Dias, da Universidade Federal de Minas Gerais, lança luz aos debates sobre as drogas no Brasil e a importância do olhar das humanidades sobre temas em que as perspectivas médica-científicas ainda dominam as discussões intra e extramuros acadêmicas. O artigo problematiza o conceito de “drogas”, pontua e desloca o seu caráter pejorativo ao longo do tempo, assim como destaca o fracasso das políticas proibicionistas em relação ao consumo de entorpecentes.
Este dossiê nos leva a refletir sobre a importância da pesquisa em temas interdisciplinares, espinhosos e que compõe um arsenal de objetos localizados na fronteira entre “Ciência, História e Natureza”, mesmo em períodos mais longínquos da pré-história indígena, até os mais recentes como a problemática da proibição da comercialização de drogas. A eleição de Jair Messias Bolsonaro no Brasil, que trouxe a reboque movimentos de deslegitimar toda a política indigenista brasileira e o fortalecimento de uma agenda de ataque à ciência e aos direitos das minorias justifica a atualidade dos temas tratados nos artigos. A História das Ciências e da Natureza assume, neste sentido, uma importância estratégica, pois o olhar histórico sobre os usos políticos de tais categorias denota, como aponta o professor da USP Ivã Gurgel, “que os valores que estamos perdendo não são apenas os financeiros” (GURGEL, 2017).[1]
Nota
1. GURGEL, Ivã. Sobre a Importância da História das Ciências. Jornal da USP, São Paulo, 01 nov. 2017.
Paloma Porto – Professora Substituta do Departamento de História | FAFICH-UFMG. E-mail: palomaporto@gmail.com
PORTO, Paloma. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.11, n.1, Jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]