Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson

Faz quinze anos desde a publicação de um texto fundamental para os estudos da relação cinema-história no Brasil, “Apologia da relação cinema-história”, escrito pelo professor Jorge Nóvoa, e publicado no primeiro número da Revista de História Contemporânea O Olho da História. O texto é, como o próprio título sugere, uma defesa da importância do cinema para a História e para os historiadores, por sua condição de documento histórico, por seu valor enquanto fonte de conhecimento histórico e como agente da história. Diante do preconceito, do ceticismo e até do despreparo de muitos profissionais do métier, o texto configurou-se como um instrumento de combate em torno da idéia de que os filmes podem e devem ser tratados como documentos para a investigação historiográfica, prenhes de significados, sentidos e informações sobre diversos processos sócio-humanos. Quem optou por arriscar-se nesse tipo de estudo, sempre teve em Apologia um apoio mais do que necessário para justificar o interesse por compreender os impactos da sétima arte sobre a elaboração de conhecimentos, comportamentos e afetos na contemporaneidade.

A situação parece ser outra em Cinematógrafo: um olhar sobre a história, também organizado pelo professor Jorge Nóvoa, dessa vez em parceria com Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson, e lançado pelas editoras da Universidade Estadual Paulista – Unesp, e da Universidade Federal da Bahia – Ufba. Embora uma certa postura de defesa da viabilidade do estudo da relação cinema-história ainda permaneça, o livro destaca-se por delinear um percurso teórico-metodológico bastante fundamentado e um diálogo fecundo entre pesquisadores brasileiros, europeus e norte americanos sobre diversas possibilidades de abordagem do cinema e outros meios audiovisuais pela História. De maneira que o esforço agora é menos o de advogar a importância do filme para os estudos históricos – cuja compreensão aparentemente encontra-se mais assentada – do que o de aprofundar as investigações sobre esse campo e sobre as questões epistemológicas que o cercam, demonstrando o lugar do cinema, prioritariamente, mas também da televisão e, mais recentemente, das mídias digitais, como modalidades de pensamento e conhecimento da e sobre as sociedades.

Por sua abrangência na vida social, tanto por seu poderio econômico quanto por sua força cultural, o cinema e outras manifestações audiovisuais constituem-se em experiências históricas que disparam perguntas em muitas direções. Para debater sobre algumas dessas questões, Cinematógrafo está organizado em três eixos principais: o primeiro aborda os fundamentos teóricos da História e das Ciências Sociais e as representações dos processos históricos, entre elas, aquelas dispostas nos meios audiovisuais; o segundo gira em torno da construção e reconstrução do passado no cinema; e o terceiro discute os filmes como lugares de memórias e identidades. Os três eixos caminham paralelamente rumo à definição de uma teoria cinema-história, apontando para o crescente aprofundamento desse campo de estudo, desde que ele foi gestado pelo historiador francês Marc Ferro, na década de 1970, no contexto das transformações historiográficas postas em marcha pela Nova História. O livro traz também para os leitores brasileiros reflexões sobre outros suportes audiovisuais que ainda carecem de sistematizações no âmbito dos estudos históricos. As considerações apresentadas deixam entrever a especificidade do cinema e demais meios audiovisuais e a complexidade sócio-histórica que os envolvem.

O prólogo do livro é de Marc Ferro, que comparece não apenas como um pioneiro, mas como uma espécie de guru das pesquisas em cinema-história realizadas em diversos centros acadêmicos na Europa e em outros lugares do mundo. Prova disso é que parte importante dos estudiosos que participam da coletânea desenvolveu trabalhos sob a direção do historiador francês ou sofreu forte impacto de suas teorizações sobre tal binômio. No texto publicado em Cinematógrafo, Ferro realiza uma análise sobre o problema existente em torno da propriedade da imagem e de sua apresentação. Com um tema que excede o que está na tela – ou em uma fotografia ou em qualquer outro suporte imagético – a análise sobre a questão de a quem pertence o direito sobre a imagem revela também como o historiador se mantém atento aos assuntos em funcionamento na atualidade, pois a difusão impressionante das possibilidades técnicas de produção e veiculação de imagens torna a propriedade delas ainda mais complexa. A partir dessa questão específica, Ferro demonstra a intricada teia de relações que envolvem a apropriação da imagem ao mobilizar tanto as pessoas ou objetos de quem foram feitas as filmagens, fotografias ou desenhos quanto o capital, o Estado e outros atores sociais.

A partir daí, o que observamos em Cinematógrafo é uma variedade de abordagens que tem como denominador comum a importância das imagens em movimento nas vivências de homens e mulheres de diversas camadas e sociedades ao interferir nas formas de ver e conhecer o mundo. Angel Luis Hueso Montón chama a atenção, no artigo “O homem e o mundo midiático no princípio de um novo século”, exatamente para o protagonismo assumido pelas imagens a partir das invenções técnicas surgidas no século XIX e aperfeiçoadas ao longo do século XX. Tal protagonismo, reforçado pela convergência dos meios técnicos, pressiona a sociedade a pensar sobre a posição do espectador diante da presença maciça da imagem na vida contemporânea e nas maneiras como os meios audiovisuais, entre eles o cinema, participam das dinâmicas de produção e reprodução das sociedades. Pierre Sorlin, outro importante teórico dedicado aos estudos sobre o cinema e outras formas de imagem, comparece na coletânea com uma reflexão sobre a televisão e as características de suas narrativas, alertando sobre o raso interesse manifestado pelos pesquisadores sobre esta instituição, ainda que, na contrapartida, ela seja um dos meios audiovisuais mais populares de nosso tempo.

Ao trazer discussões sobre o tema da recepção, como no artigo de Daniel Dayan; sobre a relação entre o cinema e a indústria cultural e a cultura de massa, como no texto de Soleni Biscouto; ou, ainda, sobre História, filmes e ensino, como propõe Marcos Silva, o conjunto dos trabalhos publicados em Cinematógrafo contribui para demonstrar que a sétima arte, resultado da combinação de um longo processo histórico que alia invenções técnicas e manifestação artística, instaurou determinados fluxos de relações entre as pessoas e modalidades diferenciadas de produção e consumo de saberes e fazeres para os quais é preciso prestar atenção. Nesses termos, as pesquisas realizadas no âmbito da relação cinema-história têm sido essenciais para apresentar o cinema e os audiovisuais como importantes lugares de reflexão sobre a produção de sentido e de significação social, participando da difusão de conhecimentos, da formação de comportamentos, vivências e lembranças e da constituição de memórias sociais, contribuindo para o aparecimento, manutenção ou a transformação de discursos, gostos, condutas e afetos. Desde aí, as dinâmicas do cinema estão habilitadas para informar sobre os imaginários coletivos e sobre as condições históricas que constituem o fundo de conhecimento produzido e reproduzido socialmente.

O excelente artigo de Michèle Lagny, intitulado “O cinema como fonte de história”, nos propõe uma chave teórica extremamente interessante para refletir sobre a crescente presença das imagens em movimento na vida contemporânea: ultrapassar a problemática mais conhecida, que pensa o cinema como fonte da história, para supor a existência de um fazer histórico que estará de forma irreversível sob a influência do cinema e outros meios audiovisuais ou, dito de outro modo, indicar que a produção do conhecimento histórico estará, cada vez mais, animada por essa outra escrita propiciada pelas imagens em movimento. Em uma passagem, Lagny afirma que “o cinema é fonte de história, não somente ao construir representações da realidade, específicas e datadas, mas fazendo emergir maneiras de ver, de pensar, de fazer e de sentir” (p. 10). Nessa reflexão, a autora reforça a atenção para a dupla função do cinema no que diz respeito aos estudos históricos. A primeira, como fonte para a história, diz respeito à sua condição de documento histórico, ainda que por maneiras mediadas; a segunda, como fonte sobre a história, que se faz segundo uma gramática específica, a da escrita cinematográfica, constituída por temporalidades, representações e narrativas singulares.

Essa condição multifacetada do cinema encontra na proposição do professor Jorge Nóvoa outro caminho interessante para pensar a experiência da sétima arte: a de que as práticas de cinema podem ser consideradas laboratórios de processos sociais. O termo laboratório é, aliás, o que une os três eixos de análise enunciados em Cinematógrafo e aparece como uma alternativa para pensar as diversas possibilidades de teorização sobre os filmes e suas dinâmicas. Nóvoa propõe, ao seu turno, pensar no cinema como laboratório da razão poética e, desde aí, abre a possibilidade de incorporação da afetividade e da criatividade social como temas de reflexão que, uma vez conjugados com a noção de razão, permitem um tratamento amplo sobre os variados aspectos envolvendo a experiência do cinema que, na condição mesma de entretenimento e espetáculo, dá lugar para significações de vida e concepções de mundo. Acreditamos pertinente destacar a seguinte passagem:

Por conseguinte, a oscilação entre um pensamento mais especulativo, geométrico, matemático, abstrato, filosófico, mais dedutivo ou racional e outro mais empírico, sensitivo, emocional, material, experimental, imediato, indutivo, mais direto, é a expressão mesma da unidade de contrários que compõe o pensamento, como fenômeno biológico e psíquico, neurofisiológico e químico-orgânico, no seu processo de constituição (p. 167).

Tal assertiva dá uma pista da complexidade da chave teórica proposta por Nóvoa que, ao sublinhar uma associação entre corpo e mente, entre o material e o subjetivo ou, ainda, entre as dimensões cognitivas e afetivas de indivíduos e grupos, demonstra os diversos cruzamentos nos quais se inscrevem as dinâmicas existentes em torno dos filmes. Nesse sentido, falar no cinema enquanto laboratório é mobilizar uma certa perspectiva sobre a sétima arte enquanto modo de escrita sobre a sociedade que se instala nos planos afetivos e valorativos dos indivíduos, produzindo narrativas, sentidos, e imagens de mundo que conectam atos e sentidos e que estão, dessa forma, na condição de participar das experiências e das tramas sociais. O artigo faz pensar ainda que, ao fazer parte da organização das vivências humanas na contemporaneidade, por meio da produção e reprodução de imagens “reais” e “ficcionais”, o cinema, no que diz respeito ao domínio cinema-história, apresenta-se como uma espécie de plataforma para a elaboração, síntese e transmissão dos saberes sócio-históricos referentes a diferentes tempos e espaços.

Parece-nos que o ponto forte de Cinematógrafo está situado exatamente na primeira parte da coletânea, pois, ao apresentar a idéia do cinema enquanto laboratório teórico, os artigos fornecem aos estudiosos da relação cinema-história um instrumental válido para investigar muitos temas situados em tal domínio. Isso é importante porque propicia, principalmente aos pesquisadores que estão se iniciando na prática de pesquisa, ferramentas para superar as abordagens predominantemente empíricas, fornecendo então o suporte indispensável para reflexões mais apuradas sobre os objetos de investigação e para a seleção de caminhos metodológicos que viabilizem a verificação de hipóteses e objetivos de trabalho. O esforço para o aprofundamento teórico dos estudos sobre cinema-história revela as enormes possibilidades que se abrem para a análise das dinâmicas do cinema e do audiovisual, até mesmo de objetos e temáticas que, embora já conhecidos, ainda oferecem muito sobre o que examinar a depender do itinerário intelectual escolhido. Nesses termos, a noção de laboratório é bastante adequada, pois tornam visíveis os exercícios de pensamento que estão sendo realizados por diversos estudiosos e que indicam a construção de parâmetros teórico-metodológicos nesse âmbito de investigação.

Nas segunda e terceira partes de Cinematográfo, denominadas, respectivamente, como “Laboratório de re-escrita da história” e “Laboratórios cruzados”, aparecem temas mais familiares para os leitores dos estudos da relação cinema-história, pois já publicados em outros espaços, a exemplo da revista O Olho da História, e discutidos em encontros promovidos pela Oficina Cinema-História, da Universidade Federal da Bahia e por outras universidades. Trata-se das representações da Segunda Guerra Mundial no cinema, principalmente aquelas ligadas ao fascismo, ao nazismo e ao holocausto. Ao todo, são cinco artigos na segunda parte da coletânea, sendo que apenas um é de uma historiadora brasileira, Sheila Schvarzman, que foi orientanda de Marc Ferro no Seminário Cinéma et Histoire na École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Autora de diversos trabalhos importantes sobre Elia Kazan, Humberto Mauro e na área de história e historiografia do cinema no Brasil, a professora Sheila Schvarzman apresenta em Cinematográfo um artigo sobre “O nazismo e o holocausto vistos do Brasil”.

Já a terceira parte traz nove artigos que abrangem desde análises de autores de cinema, como é o caso do texto de Robert Rosenstone, sobre Oliver Stone, até um estudo situado na triangulação entre cartazes, fotografia e cinema para fazer pensar a transição sócio-política ocorrida na Espanha após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, da pesquisadora espanhola Beatriz de las Hera. Tais reflexões estão, cada uma ao seu modo, a mostrar a condição multimodal que o cinema e outros meios audiovisuais assumem quando são tratados como objetos de investigação não apenas no âmbito do estudos históricos, mas também de outras ciências. Essa multimodalidade é perceptível na medida em que os diferentes artigos revelam diversos saberes sobre as imagens em movimento, suas dinâmicas e objetivações na vida social. Essa característica multifacetada das investigações sobre a sétima arte e outros suportes imagéticos exige, ainda, o apoio de um conjunto multidisciplinar de olhares e pensamentos, e de percursos teórico-metodológicos que admitam a flexibilidade e a experimentação, algo que encontra, mais uma vez, no termo laboratório, norteador da coletânea, uma noção chave para refletir sobre o lugar do cinema e do audiovisual nos processos de significação da vida das sociedades contemporâneas. Robusto, Cinematógrafo ainda conta com um epílogo, de Jorge Nóvoa e Soleni Biscouto Fressato, e um post-scriptum, de Isabella Veyrat-Masson.

Além desse leque de artigos, oscilando entre reflexões mais teóricas e outras que partem de recortes específicos, a obra ainda se destaca pelo seu estilo, por ser acessível a um público amplo e, por isso, capaz de levar as discussões sobre a relação cinema-história para além do circuito de estudantes, professores e pesquisadores de História. Nesse sentido, ela é recomendada não apenas para estudiosos de outras áreas, a exemplo de Comunicação Social e Ciências Sociais, mas também para pessoas que, embora fora da academia, estão interessadas em cinema e atentas às potencialidades inscritas na produção e no consumo dos meios audiovisuais. No momento em que as redes digitais avançam e que as imagens em movimento ganham, conforme teoriza Angel Luis Hueso Montón, em profundidade e extensão, penetrando cada vez mais a experiência social de indivíduos e grupos nos quatro cantos do planeta, é importante remontar ao cinematógrafo, que primeiro conseguiu sintetizar os desejos e tentativas de muitas gerações de pessoas dedicadas a ‘reproduzir o real’, para perseguir, de um lado, o lugar que o cinema ainda ocupa em um mundo cada vez mais mediatizado e tecnológico e, de outro, para pensar sobre os impactos das diversas telas, da televisão ao celular, na conformação de modos de ser e estar no mundo.


Resenhista

Veruska Anacirema S. da Silva – Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian (Orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: Edufba; São Paulo: Editora da Unesp, 2009. Resenha de: SILVA, Veruska Anacirema S. da. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 9, n. 1, p. 305-311, 2009. Acessar publicação original [DR]

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