Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido – MELLO E SOUZA (RBH)

MELLO e SOUZA, Laura de. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 240p. FERREIRA, Cristina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.63, 2012.

A biografia de Cláudio Manuel da Costa, escrita pela historiadora Laura de Mello e Souza, integra a Coleção “Perfis Brasileiros”, editada pela Companhia das Letras sob a coordenação do jornalista Elio Gaspari e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, portanto, cabe pensá-la no âmbito desses pressupostos editoriais, do contrário, correria o risco de praticar um equivocado isolamento e ignorar a simbiose entre o perfil editorial e as escolhas metodológicas feitas pela autora. A coleção destina-se tanto aos leitores em geral quanto aos especialistas no assunto, e contempla a vida de personalidades brasileiras, com destaque para estadistas, artistas e intelectuais. Os biógrafos, em sua maioria, são historiadores ou profissionais ligados às Ciências Humanas e se dedicam a trabalhar a história de personagens por meio de um texto conciso e pesquisa documental diversificada.

Esses parâmetros definem a linha editorial, o formato da obra e a opção da historiadora em escrever um texto com o mínimo possível de interrupções e citações. Laura de Mello e Souza faz um trabalho pautado em uma vasta bibliografia e alguns dados documentais inéditos. A citação das fontes de pesquisa consta em um dos itens finais da obra, sob a denominação “Indicações e comentários sobre bibliografia e fontes primárias”, com uma breve descrição da aplicabilidade e do uso das fontes, sistematizadas por temáticas no decorrer da obra. A obra contém imagens que retratam lugares – Rio de Janeiro e interior de Minas Gerais – e retratos atribuídos ao biografado, bem como personagens ‘ilustres’ contemporâneas a ele, sua assinatura e reproduções de trechos do principal documento original utilizado pela autora – o inventário de João Gonçalves da Costa, pai de Cláudio Manuel da Costa. Todas as imagens estão legendadas e referenciadas quanto aos acervos de origem, mas reunidas no centro do livro, característica editorial que não permite a sua integração com o texto.

Cláudio Manuel da Costa, poeta e advogado, homem de grande prestígio, viveu entre 1729 e 1789, a maior parte do tempo em Ouro Preto, na época Vila Rica, a capital das Minas Gerais. Sua educação formal aconteceu no colégio jesuíta do Rio de Janeiro, e a formação de bacharel foi obtida na Universidade de Coimbra. Morreu solteiro, mas viveu por trinta anos com Francisca Arcângela de Sousa, nascida escrava e alforriada quando deu à luz o primeiro filho de Cláudio. Foi a companheira de sua vida toda e mãe de seus cinco filhos, um indelével indicativo de que o costume suplantou a legislação, mas não na íntegra, porque segundo a letra da lei, os bacharéis a serviço do Império não podiam casar-se com mulheres ‘da terra’. Cláudio Manuel da Costa não era português, mas sim luso-brasileiro, e não conseguiu superar sua formação jesuítica e escolástica, que de certo modo o aprisionava às leis, para de fato desenvolver coragem suficiente e assumir publicamente sua relação com uma negra.

A dupla atuação como homem de lei e de governo permitiu a Cláudio Manuel da Costa tornar-se um exemplo típico do que foi a promoção social em Minas, passados entre 25 e 30 anos do início da mineração, porque diferentemente das regiões do litoral, Minas era uma região nova, aberta no final do século XVII, e a consolidação das elites locais acontece apenas ao longo do século XVIII. A poesia fez dele um homem de letras, que “nunca abandonou os livros e as musas da história”, mas seus conflitos internos o dilaceravam e dividiam entre direitos políticos e comércio ilícito, liberdade e valores do Antigo Regime, corroído pela delação que fez de seus amigos e envolto em uma morte conflituosa e controversa.

Laura de Mello e Souza faz uso da personagem para definir vários elementos que compõem a biografia, desde temas e periodização até a definição dos espaços de análise. Um aspecto evidente na obra é a opção da autora em deixar a personagem garantir o tom de originalidade à pesquisa, situação que se exemplifica por meio da divisão dos capítulos em temas como: significado do nome, pais, infância, formação, poesia, profissão, amizades, prisão e morte. Ainda assim, a autora não cai na armadilha de se deixar enredar por privilegiar a temática da Inconfidência, sua firme decisão de historiadora-biógrafa está originalmente pautada na personagem, em seus conflitos, sua poesia e os sentidos de sua vida. Laura de Mello e Souza dialoga, de fato, com a vasta tradição historiográfica sobre a Inconfidência Mineira, amplia o debate sobre as incongruências e conflitos dos indivíduos envolvidos nesse processo histórico e investiga também os problemas relacionados à documentação e aos laudos inconsistentes que constituem os autos da Devassa.

A concepção de tempo adotada na obra remete a uma espécie de fluidez, pois as fases da vida do biografado não estão encerradas em si mesmas, muito menos aparecem como rígidas e imóveis, portanto, há constantes retomadas a diferentes momentos, seja no passado ou no futuro de Cláudio Manuel da Costa. É nítida a recusa da historiadora à forma tradicional, linear e factual na composição biográfica, pois o tempo comporta rupturas e não há como conceber a constituição de modelos de racionalidade que estabeleçam personalidades estáveis ou coerentes aos seres humanos. A autora demonstra que a vida do biografado não cessa com sua morte, o que leva a um ponto de vista interessante: escrever a vida é um trabalho inacabado e infindável, porque sempre se abrem pistas novas que podem arrebatar o pesquisador para outros caminhos epistemológicos, com uma única certeza: dificilmente o biógrafo ficará livre das incertezas, por mais que circunscreva sua pesquisa em fontes e documentos.

A autora não cita as leituras específicas que realizou sobre os ‘usos da biografia’, porém, faz referência aos importantes textos sobre o assunto cedidos pela historiadora Vavy Pacheco Borges, a quem a biógrafa dedica o livro. Arrisco dizer que sua escolha metodológica remete à proposta de Giovanni Levi, que relaciona Biografia e Contexto também no sentido de preencher lacunas documentais em relação ao biografado, por intermédio de comparações com outras personagens com as quais ele conviveu.

Cláudio Manuel da Costa é dado a conhecer, em geral, por meio do contexto que, por sua vez, elucida aspectos relacionados à Minas Gerais setecentista. A autora utiliza a biografia para se aproximar do contexto, não com o propósito de reconstituí-lo, mas com a intenção de estabelecer uma relação de reciprocidade entre a personagem e seu campo de atuação. A historiografia brasileira acerca do período colonial em Minas Gerais, consolidada e em constante renovação, é o alicerce da autora e gera uma combinação que demonstra sua familiaridade com as fontes e arquivos relacionados às temáticas e ao período histórico analisado.

O problema mais emblemático com o qual a biógrafa lida na pesquisa é a escassez de documentos que relacionem, em um sentido direto, o biografado. A estratégia de Laura de Mello e Souza para apresentar novidades em torno da vida de ‘seu’ biografado consiste na valorização do Inventário de João Gonçalves da Costa (pai de Cláudio); dos processos de habilitação para o hábito de Cristo de dois de seus irmãos e, em especial, alguns documentos autógrafos de Cláudio Manuel da Costa. Mas, parte do ofício de historiador consiste em viver “às voltas com os limites fluidos entre a verdade e a mentira, o fato e a ficção, a narrativa e a ciência” (p.190) e deixar-se dominar pela vontade de compreender a personagem em seus aspectos conflitantes e notáveis.

O poeta foi biografado por conta de algumas inquietações da autora em relação a aspectos de sua vida que se relacionam diretamente com o espaço e lugar do vivido. Cláudio era considerado um poeta obsessivo, um cultor da forma perfeita, mas um dado instigante é o fato de que sua poesia conquista pouco espaço na lírica brasileira e, embora seus sonetos sejam belíssimos, não têm uma característica de universalidade, pelo contrário, apresentam uma linguagem muito marcada por sua época.

Toda a vida do poeta foi estigmatizada pela ambiguidade e pela contradição, e sua morte permanece até hoje sob o signo da incerteza, tendo se tornado um dos objetos mais controvertidos da historiografia brasileira, criando-se verdadeiras facções que, ou defendem o assassinato, ou sustentam o suicídio. Laura de Mello e Souza, ao referendar os riscos e necessidades que a compreensão impõe ao historiador, não se esquiva em se posicionar: “se entendi o homem que foi Cláudio Manuel da Costa, sou levada a afirmar que decidiu pôr um termo a sua vida. Nunca se saberá se o fez por desespero ou excesso de razão. Se porque viveu dividido e nunca se encontrou, ou porque, dividido que era, resolveu, afinal, juntar os pedaços. A seu modo” (p.190).

Essa é uma clara indicação de que a biógrafa não está obcecada por uma ‘verdade histórica’ irrevogável sobre sua personagem, mas sim em busca de uma concebível integração entre realidade e possibilidade, plausível ou verossímil. Os impedimentos naturais para recorrer a uma vasta documentação ‘direta’ permitiram à autora a legitimação do uso de conjecturas e inferências. Em vários momentos a biógrafa faz um exercício de imaginação histórica e aplica, na dosagem certa, uma espécie de imaginação ‘controlada’, amplamente referenciada nas fontes. Essa opção metodológica é garantia de uma narrativa elegante e instigante, por isso, a obra merece ser lida e relida por todos que se interessam em descobrir as sutilezas e incongruências da vida humana.

Cristina Ferreira – Doutoranda em História Social na Unicamp. Departamento de História – Universidade Regional de Blumenau. Rua Antônio da Veiga, 140. 89012-900 Blumenau – SC – Brasil, E-mail: [email protected].

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