Como Shakespeare se tornou Shakespeare | Stephen Greenblatt

Stephen Greenblatt em Como Shakespeare se tornou Shakespeare realiza uma biografia bem particular. Ele não segue, como nas biografias tradicionais, a simples evolução da vida de seu personagem. Greenblatt, que comprova ser um bom conhecedor da Inglaterra de fins do século XVI, vai até as obras do dramaturgo inglês em busca de provas daquilo que mostrou ao leitor através da pesquisa histórica. Esse é um método interessante e que, a princípio, mostra como Shakespeare utilizou, na criação de suas peças, os elementos primordiais da vida social ao seu redor. Mas como em todo gênio do drama, Shakespeare não reproduz de forma direta os acontecimentos (históricos) que lhe tocaram de forma mais intensa.

Aqui, percebe-se o trabalho de Greenblatt: ele preenche esse hiato entre história concreta e criação cultural. Neste ponto, a obra Como Shakespeare se tornou Shakespeare é de grande valor. Isto porque prova que em Shakespeare não há só o gênio da criação cultural, mas também o atento observador do universo social de uma Inglaterra pré-revolução burguesa. Neste caso, vamos dar dois exemplos. Greenblatt explica dessa forma a criação de Hamlet:

Se Hamlet foi escrita não em 1600, e sim no início de 1601, então, como acreditam alguns especialistas, um desses choques pode ter sido a insurreição – para usar a palavra empregada por Brutus em Júlio César – que levou à execução do conde de Essex e, mais importante, à prisão do patrono de Shakespeare, amigo e talvez amante, o conde de Southampton (GREENBLATT, 2011: 315).

Assim, a execução do conde de Essex e a prisão do conde de Southampton motivaram a criação de Hamlet. Os homens ligados a Essex assediaram a companhia teatral de Shakespeare, os Homens do Lorde Camerlengo, para que encenassem a peça Henrique V, onde aparece (no final) um general que provoca uma comoção popular: “Quanta gente deixaria a cidade em paz, para recebê-lo”, dizia uma das personagens. Greenblatt afirma que esses acontecimentos de 1601 “com certeza deram um susto em Shakespeare”. De forma mais direta, a insurreição liderada por Laertes em Hamlet pode ter sido influenciada pelos acontecimentos que descrevemos acima. Mas a essência de Hamlet, Greenblatt não consegue descobrir: “Alguma coisa mais profunda devia estar acontecendo com Shakespeare, alguma coisa poderosa o bastante para evocar a representação sem precedentes de tormento interior” (Ibid.: 318).

O segundo exemplo é Macbeth. Em relação às bruxas que aparecem logo no início da peça, Greenblatt faz um estudo interessante da relação do rei Jaime I com o tema. Assim, Shakespeare queria despertar a atenção de seu protetor (o rei) para um tema que lhe era caro. Quanto ao enredo, Greenblatt afirma que Shakespeare quis associar o rei Jaime I a Banquo, o personagem honesto e decente. Como sabemos, a tentativa de Macbeth e sua maquiavélica esposa, fracassa. Na visão de Greenblatt, Shakespeare quis passar a seguinte mensagem ao seu rei:

(…) Jaime é louvado não por sua sabedoria, sua cultura ou seus dotes de estadista, mas pelo lugar que ocupa numa linha de legítima descendência que começa em seu nobre ancestral no passado distante e chega a seus filhos, que são a promessa de uma sucessão ininterrupta. Para dar destaque a esse ponto, Shakespeare precisou distorcer a verdade histórica. O pageant de Gwinn provavelmente tomou o seu Banquo da Crônica de Raphael Holinshed, livro que Shakespeare usou muito em suas peças históricas (Ibid.: 343).

Eis o estilo investigativo de Greenblatt. Neste caso, sua obra é de grande valor, não só porque mostra a interação do dramaturgo inglês com seu tempo histórico, mas também em relação à criação de suas obras.

Greenblatt divide sua biografia em temas. “O sonho de reabilitação”, no segundo capítulo, mostra a crise econômica que se abateu sobre a família dos Shakespeare e sua tentativa (com sucesso) de William se tornar um “cavalheiro”; “A vida nos subúrbios”, no sexto capítulo, mostra o universo das classes populares – que Shakespeare conhecia tão bem – na periferia de Londres, com suas casas de espetáculos, comércio, etc.

No terceiro capítulo, “O grande medo”, Greenblatt aborda o tema da religião na Inglaterra da época. É um capítulo importante porque nos joga no âmago dos conflitos ideológicos do período. Greenblatt mostra com propriedade o rígido modelo punitivo no reinado de Elizabeth. Neste ambiente de “medo” (segundo as próprias palavras do autor), investiga-se a opção religiosa de Shakespeare. E convenhamos: isto não é uma tarefa fácil. Através de Greenblatt, sabemos que a mãe do dramaturgo provinha de uma família intimamente ligada ao catolicismo; já seu pai, John Shakespeare, por motivos de adesão ao sistema político-religioso – já que tinha sido bailio, uma espécie de “prefeito” da pequena Stratford – tendia para o protestantismo anglicano. As investigações de Greenblatt o levaram à hipótese de que na juventude, Shakespeare professava o catolicismo: ao ser indicado como preceptor na residência do católico Cottam, o jovem era tido “como inteligente, razoavelmente culto, discreto e com certeza católico” (Ibid.: 103). Mas quando Greenblatt vai até as peças de Shakespeare, constata:

As peças de Shakespeare dão muitos indícios de duplicidade e ainda mais: em certos momentos – Hamlet é o maior exemplo disso –, o autor parece ser ao mesmo tempo católico, protestante e profundamente cético em relação a ambas as correntes (Ibid.: 102).

Portanto, Greenblatt não ousa lançar uma hipótese mais decisiva. Só sabe afirmar que há uma espécie de fé nas obras de Shakespeare, “porém certamente não era uma fé ligada à Igreja Católica ou à Igreja anglicana”.

No último capítulo, “O triunfo do cotidiano”, temos o retorno de Shakespeare a Stratford. É nesta época que ele escreve sua última peça, A tempestade (1611), já que Os dois nobres parentes, É tudo verdade e Cardênio foram compostas em parceria com John Fletcher. O que preocupa Greenblatt é saber como Shakespeare se sentia ao abandonar os palcos. Por isso ele vai até A tempestade sondar o que se passava no íntimo do dramaturgo. O que constata – principalmente ao seguir as pegadas de Próspero – é que na proximidade de sua aposentadoria, Shakespeare indicava “um sentimento de perda e de evolução pessoal ao mesmo tempo” (Ibid.: 383). Mas o que se evidencia neste capítulo é o fato de que Shakespeare termina seus últimos dias de vida como um “homem rico”. Mais do que ninguém – isto em relação ao mundo artístico – ele soube utilizar-se de seu talento para se tornar um homem de posses. Mas sua vida particular, o universo de seu relacionamento familiar em Stratford não era bom. Em seu testamento fica claro que ele amava muito sua filha Susanna; já sua esposa e sua outra filha, Judith, parecem não contar com muita simpatia do artista.

Nesta época uma grande decepção abalou a vida de Shakespeare. Thomas Quiney, esposo de Judith, engravida uma moça da cidade. O caso ganha fama; Quiney “confessou-se responsável ante o tribunal eclesiástico e foi condenado a um castigo público humilhante, que só conseguiu evitar mediante uma doação de cinco xelins aos pobres” (Ibid.: 393). Greenblatt afirma que este caso causou um grande impacto na vida do dramaturgo, já que após a queda de notoriedade de seu pai, ele fizera de tudo para ascender na escala social da pequena Stratford. É nesse sentido que na proximidade de sua morte, em abril de 1616, Shakespeare compartilhava de “uma sensação de tristeza e perda”.

Mas duas observações de ordem crítica podem ser endereçadas à obra de Greenblatt. A primeira se refere à análise das peças. Ele toma só como ponto de referência os elementos que afetaram a vida particular do gênio dramático. Greenblatt não supõe que o grande gênio apresenta uma visão mais ampla, um horizonte mais extenso da história. A título de exemplo, essa forma (positiva) de análise pode ser encontrada em Lukács. Vejamos o que o pensador húngaro nos diz de Shakespeare:

[Shakespeare] vê a vitória do humanismo, mas vê ao mesmo tempo que o novo mundo será o do domínio do dinheiro, da opressão e da exploração das massas, do egoísmo desenfreado, da ganância inescrupulosa, etc. (…) Shakespeare tem uma viva simpatia pessoal (…) pelos tipos da antiga nobreza, internamente ainda não problemática nem corrompida (LUKÀCS, 2011: 190).

Lukács percebe o fato de que todo gênio cultural possui uma intuição histórica refinada, profunda. Vale observar o fato de que Shakespeare não estava tão longe (ele morre em 1616) daquilo que Christopher Hill descreve:

Mais ou menos entre 1645 e 1653 procedeu-se na Inglaterra a uma enorme contestação, questionamento e reavaliação de tudo. Foram questionadas velhas instituições, velhas crenças, assim como velhos valores (HILL, 1991: 31).

A segunda observação crítica é a quase ausência de Nicolau Maquiavel na obra de Greenblatt. Nota-se que no Índice remissivo, o italiano aparece uma única vez, mesmo assim para mostrar que Shakespeare não tinha uma repulsa ante as classes populares, como ocorre em Maquiavel. Nesse sentido, podemos interrogar: Shakespeare conhecia a obra de Maquiavel? Como conceber a obra Macbeth sem uma leitura atenta de Maquiavel? Quando a esposa de Macbeth lhe diz, induzindo-o ao crime, que é impossível um gato comer um peixe sem sujar as patas, logo lembramos em Maquiavel: o mal pode ser o caminho para o bem (a formação de uma nova ordem civil).

Com certeza, essas duas observações acima não tiram o grande mérito de Greenblatt. Sua pesquisa é exaustiva. Ele nos apresenta em suas notas bibliográficas todo um balanço da extensa lista de biografias sobre Shakespeare; neste sentido, Greenblatt quis realizar uma espécie de biografia diversificada – assim como afirmamos no início dessa resenha – que jogasse luz tanto na vida, quanto na obra do gênio inglês.

A tradução de Donaldson Garschagen e Renata Guerra é boa, ao preservar o estilo fácil, coloquial, da escrita de Greenblatt. Além disso, os tradutores mantiveram o original em inglês (em nota de rodapé) de todas as citações das peças de Shakespeare.

Na obra Como Shakespeare se tornou Shakespeare notamos uma nova forma de biografia, onde a vida cultural do autor nos auxilia na compreensão de sua obra.

Referências

GREENBLATT, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. Tradução Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução Renato J. Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.

Dagmar Manieri – Graduado em História pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É Prof. Adjunto no Colegiado de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus de Araguaína.


GREENBLATT, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. Trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MANIERI, Dagmar. Shakespeare: biografia e criação cultural. Escritas. Palmas, v.5, n.1, p. 145-150, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

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