Complicidad económica con la dictadura: un país desigual a la fuerza | Juan Pablo Bohoslavsky, Karinna Fernández e Sebastián Smart

Marc Bloch afirma que comparar, em História, é “escolher, em um ou v|rios meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras”.2 As pesquisas desenvolvidas com o método comparativo entre os historiadores têm demonstrado a fertilidade dessa ferramenta. Se levarmos em consideração as indicações feitas por Bloch, vamos verificar que a América Latina é um ambiente altamente propício para comparações de situações históricas vividas entre os diferentes países da região, tendo em vista a convergência das trajetórias e marca do processo colonial, da dependência, da desigualdade e dos reincidentes governos ditatoriais no subcontinente.

Dentro da farta tradição de estudos comparados na América Latina, um campo que apresenta bastante potencial e que tem visto as pesquisas florescerem nos últimos anos diz respeito à colaboração do empresariado com os regimes de exceção dos países da região durante a Guerra Fria. Muitas investigações foram feitas recentemente sobre o ativismo dos empresários nas ditaduras do Cone Sul e como esses agentes ajudaram a desferir golpes de Estado, dar suporte, participar e se beneficiar dos governos autoritários impostos nos anos 60 e 70. São particularmente dignos de nota os esforços editoriais liderados por Juan Pablo Bohoslavsky, que teve início com o hoje já clássico estudo sobre os cúmplices da ditadura argentina, em livro lançado no ano de 2013, e que foi seguido de estudos congêneres no Brasil, Uruguai e, agora, no Chile.3

O livro organizado por Juan Pablo Bohoslavsky, Karinna Fernández e Sebastián Smart dá sequência a essa agenda de trabalho analisando a cumplicidade empresarial com a ditadura de Pinochet no Chile, instituída com o golpe de 1973. Trata-se de uma coletânea de fôlego, com um total de quase 500 páginas e 26 capítulos que abordam assuntos diversos. A formação dos 28 autores das seções da obra denota uma característica do trabalho: apesar das trajetórias distintas, 12 dos autores que assinam os capítulos possuem formação em Direito, sendo seis historiadores/as, além de outros em menor número formados em outras áreas das Humanidades Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Economia, Arquitetura, Comunicação e Ciências Sociais. Os três organizadores da obra também são oriundos da área jurídica, sendo que Bohoslavsky é argentino e já foi assessor da Unctad (Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento), ao passo que Fernández e Smart são docentes de universidades no Chile. Assim, trata- se de uma obra que tem certa predominância do debate e instrumental teórico e conceitual das ciências jurídicas.

Isso fica visível no caráter prático e voltado para a ação do livro, que aponta para um processo de reparação envolvendo a atuação das empresas na ditadura chilena. A estrutura da obra, com suas seções, indica isso, havendo uma parte prévia com estudos e levantamento de casos, seguida por propostas para o acionamento judicial das empresas que cooperaram com o regime. A coletânea guarda, dessa forma, a característica de uma ferramenta de trabalho. Mais do que um horizonte compreensivo sobre a colaboração das empresas com o regime, o livro busca ser base para a montagem de ações nos tribunais contra grupos econômicos que cooperaram com o terror no Chile.

Uma citação parece ser bastante expressiva da proposta do trabalho:

El golpe militar de 1973, la consolidación del gobierno dictatorial y las atrocidades que este cometió tuvieron como principal propósito crear las condiciones necesarias para la implementación de políticas económicas que beneficiarían a uma minoría en el país y en el extranjero y que, consecuentemente, serían rechazadas por gran parte de la población1. La racionalidad de la dictadura fue eminentemente económica. La fuerte puja redistributiva que comenzó en los setenta en un gran número de países, exacerbada por las implicaciones de la Guerra Fría en la región, se hizo carne en Chile.4

O trecho parece indicativo da tese do livro, de que a ditadura mudou o Chile, transformando-o em um país mais desigual, injusto, autoritário e violento. Nos termos colocados na obra, um paraíso empresarial. Os autores dos capítulos demonstram como as novidades institucionais impostas pelo regime forjaram um ambiente extremamente fértil e propício para as empresas explorarem significativamente a força de trabalho no país e obterem altas taxas de lucro. Se Dreifuss indicou que o golpe de 1964 implementou uma ordem empresarial no Brasil,5 no país andino teria se formado um paraíso para as atividades dos grupos econômicos transnacionais e domésticos.

A ditadura chilena foi uma das mais violentas do Cone Sul. O governo inaugurado em 11 de setembro foi responsável oficialmente por 3.216 vítimas de homicídio e desaparição forçada, além de outras 38.254 pessoas torturadas. A agressividade do regime se combinou com o neoliberalismo, dado que o país se tornou desde meados dos anos 70 em um laboratório das ideias dos autores neoclássicos da escola de Chicago, como Milton Friedman e outros. Essas políticas se fizeram expressar não só nas ações econômicas do governo, mas nas políticas estatais como um todo.

Outra marca da ditadura chilena explorada pela obra diz respeito à Constituição imposta em 1980, que não foi objeto de revisão por mais de 40 anos. Apenas com as grandes manifestações populares no país no ano de 2019, foram dadas as condições para a modificação da carta constitucional, por força de um plebiscito popular, no qual o povo demandou a convocação de uma Constituinte para mudar a carta aprovada no período Pinochet, de modo a reverter o Estado neoliberal vigente no país desde então.

Para além dessas questões e que, em si, já constituem um convite à leitura, deve-se destacar um aspecto interessante e que permite uma agenda de trabalho a ser realizada por pesquisadores do Brasil e países da região. A obra, em seus capítulos, trata de uma série de questões que guardam analogia com o que ocorreu no Brasil e outros países sul-americanos durante as suas ditaduras. O livro permite estudos comparativos problematizando a interface entre empresariado e ditadura nos países da região. Abre-se uma fronteira de possibilidades para pesquisas e parcerias entre investigadores para assinalar semelhanças e diferenças em relação aos processos ditatoriais vividos em cada realidade nacional, com a possibilidade de hipóteses acerca do porquê dessas aproximações e distanciamentos. Essa nos parece uma grande potencialidade da obra.

A ditadura chilena guarda acusações de crimes de corrupção e favorecimento ilegal de integrantes da família Pinochet e membros da cúpula do regime. Isso aparece em capítulos da obra e também pode ser objeto de comparação entre os diferentes regimes ditatoriais na região. Particularmente o capítulo de Sebastián Smart sobre os processos de privatização durante o período de exceção trata de denúncias de desvio de recursos públicos, tendo entre os beneficiários integrantes da família do ditador. Por mais que a ditadura brasileira tenha sido imposta lastreada em um discurso anti-corrupção, denúncias várias indicam como o fechamento do regime forjou um ambiente propício para a proliferação da escalada dos interesses empresariais sobre o Estado, muitas vezes através de práticas ilícitas e irregulares.

De forma similar às outras ditaduras na região, o governo Pinochet promoveu a redução dos gastos sociais e a ampliação dos dispêndios com segurança e defesa. Segundo dados do livro, o orçamento militar e policial pulou de 14,9 para 23,3% dos gastos públicos entre 1969 e 1982. Apesar das semelhanças, notam-se também as singularidades do processo no Chile. Além do desmantelamento do Estado social, houve naquele país a privatização da previdência, com imposição de um regime de capitalização, elevação da idade mínima para aposentadoria e ampliação da contribuição dos trabalhadores. Já no Brasil foi aplicada uma reforma que, de certa forma, ampliou e reforçou o sistema, incorporando os trabalhadores rurais ao sistema, por exemplo.

O livro traz capítulos sobre o apoio das organizações empresariais e da imprensa comercial ao regime, o que pode ser visto na seção escrita por Rodrigo Ayara Gómez sobre o apoio das câmaras empresariais à ditadura, no texto de Carla Moscoso sobre a cumplicidade e o benefício econômico dos meios de comunicação pelo governo de exceção e no artigo de Nancy Guzmán sobre a família Edwards, donos do periódico El Mercurio, que aderiu intensamente ao terror de Estado. Trata-se de outro tópico que permite a analogia entre os casos nacionais. É analisada na obra a trajetória de alguns grupos econômicos do setor de comunicação. No Brasil, boa parte da mídia empresarial apoiou o golpe de 1964 e deu suporte à ditadura, havendo, no entanto, tensões e favorecimentos direcionados a certos grupos com prejuízo de outros.

Uma questão trabalhada na obra e que pode ser objeto de reflexão e comparação diz respeito à relação entre políticas liberais e elevação do encarceramento da população. O Estado neoliberal se apresenta na crescente defesa da propriedade privada, reforçando o aparato de segurança e defesa dos bens particulares, além de ampliar a população destituída de liberdade. Trata-se de um tópico que merece estudos e análises comparativas, tendo em vista que no Brasil e outros países da região também houve elevação da população carcerária, seja de presos políticos como de “presos comuns”, pressionados para a criminalidade com a intensificação da questão social no período.

Outro aspecto interessante e que abre margem para sugestivas analogias com os países da região diz respeito ao processo de desenvolvimento urbano durante a ditadura. Em capítulo específico, analisa-se a política habitacional e o desenvolvimento de Santiago durante o governo Pinochet, indicando-se a ampliação da segregação social do espaço, a relocalização das periferias e o crescimento da mercantilização da produção das casas e moradias, com a financeirização do mercado imobiliário. A política é passível de paralelo com a ditadura brasileira, que teve a formação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e ações para redução do déficit de moradias, que serviram para ampliar a contratação de força de trabalho, fornecer infraestrutura urbana e construir casas populares e para a classe média, favorecendo o capital que atuava no setor.

A obra trata também das novas políticas em relação à exploração mineral, ambiental e do regime de águas, com as ações privatizantes que permitiram avanço do extrativismo e da monocultura no Chile, com danos para povos originários e tradicionais, expropriados da sua terra e das suas condições de existência. Esse avanço do capital sobre regiões inóspitas do país guarda semelhança com o que ocorreu na Amazônia durante a ditadura brasileira e na Patagônia em meio à ditadura argentina.

O livro trata também de empresas específicas que colaboraram com o sistema repressivo, como foi a pesquera Arauco, que monitorou, vigiou e repassou dados ao sistema repressivo da DINA (Dirección de Inteligencia Nacional) e do governo Pinochet. Novamente o caso guarda paralelos com a atuação da Volkswagen no Brasil e a Ford na Argentina, dentre outras empresas.

Por fim, um aspecto interessante tratado na coletânea diz respeito às singularidades do processo de transição chileno, que não coincidiu com uma revisão do Estado neoliberal, da Constituição ditatorial e outras marcas do regime. Pelo contrário, o regime democrático que sucedeu ao governo Pinochet não só manteve, como aprofundou práticas cultivadas durante a ditadura, tornando o Chile um país mais desigual, competitivo e individualista. Trata-se de uma transição com diferenças em relação à vigente na Argentina, Brasil e Uruguai, o que é um bom tema para análise.

A comparação entre as realidades vividas nos países sul-americanos permite verificar marcas comuns, padrões, assimetrias e particularidades das ditaduras. Estudos comparativos podem ajudar a identificar semelhanças e diferenças no empenho empresarial nesses regimes, desnudando o seu conteúdo social, o que abre margem para uma melhor compreensão dos governos autoritários e de como os empresários apoiaram e se beneficiaram dos mesmos, permitindo inclusive que eles sejam denunciados e responsabilizados pela sua contribuição ao terror de Estado aplicado no período.

Notas

2 BLOCH, M. História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998. p. 120-121.

3 Cf. VERBITSKY, Horacio; BOHOSLAVSKY, Juan Pablo. Cuentas Pendientes: los cómplices económicos de la dictadura. Buenos Aires: Siglo Ventiuno, 2013; BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; TORELLY, Marcelo (org.). Dossiê: Cooperação econômica com a ditadura brasileira. Revista Anistia: política e justiça de transição. n. 10, 2013; BOHOSLAVSKY, Juan Pablo (org.). El Negocio del Terrorismo de Estado: los cómplices económicos de la dictadura uruguaya. Montevidéo: Penguin, 2016. Sobre o tema no Brasil, Cf. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta; LEMOS, Renato Luis do Couto Neto e (org.). Empresariado e Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.

4 BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; FERNÁNDEZ, Karinna; SMART, Sebastián (org.). Complicidad económica con la dictadura: un país desigual a la fuerza. Santiago: LOM, 2019. p. 25.

5 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981.

Referências

BLOCH, M. História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1998.

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo (org.). El Negocio del Terrorismo de Estado: los cómplices económicos de la dictadura uruguaya. Montevidéo: Penguin, 2016.

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta; LEMOS, Renato Luis do Couto Neto e (org.). Empresariado e Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; FERNÁNDEZ, Karinna; SMART, Sebastián (org.). Complicidad económica con la dictadura: un país desigual a la fuerza. Santiago: LOM, 2019.

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981.

VERBITSKY, Horacio; BOHOSLAVSKY, Juan Pablo. Cuentas Pendientes: los cómplices económicos de la dictadura. Buenos Aires: Siglo Ventiuno, 2013.

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; TORELLY, Marcelo (org.). Dossiê: Cooperação econômica com a ditadura brasileira. Revista Anistia: política e justiça de transição. n. 10, 2013.


Resenhista

Pedro Henrique Pedreira Campos – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Email: [email protected]


Referências desta Resenha

BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; FERNÁNDEZ, Karinna; SMART, Sebastián (Orgs.). Complicidad económica con la dictadura: un país desigual a la fuerza. Santiago: LOM, 2019. Resenha de: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Empresariado e ditadura no Chile, no Brasil e no Cone Sul um chamado a estudos comparativos entre os regimes de exceção na região. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.15, n.2, p. 262-268, 2021. Acessar publicação original [DR}

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