Corporeidades em Luta: Feminismos e Corpos de Resistências ao Sul Global | Ofícios de Clio | 2021

A proposta deste dossiê nasceu pela recente conquista ao outro lado da fronteira, a da legalização do aborto na Argentina, em dezembro de 2020. Uma luta histórica que marca, não somente o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, mas o reconhecimento do direito à vida das mulheres, dos homens transgêneros e de outros corpos que engravidaram (ou foram engravidados) sem interesse ou condições para gestar. Tendo o corpo como foco, as pesquisas analisadas partem das corporeidades enquanto processo histórico de resistência, de disputa e de opressão, para os diferentes períodos, seja no Brasil ou no restante do sul global – região dos países em desenvolvimento. Para além das ações feministas coletivas e individuais, o dossiê trata de pesquisas atentas aos usos políticos dos corpos; à interferência do Estado, da Medicina, do Judiciário e da Igreja no dizer-fazer-saber dessas corporeidades; à precariedade diferenciada entre as vidas, à performatividade, às generificações e às resistências a essas generificações, às formas repressivas e produtivas de enunciar os corpos. Além disso, os textos protagonizam corpos marcados pela raça, gênero, classe, território, sexualidade e geração, ou seja, que consideram a interseccionalidade.

O dossiê não engloba somente os estudos procedentes da área da História, mas contempla trabalhos oriundos das Ciências Sociais e Artes, demonstrando o caráter interdisciplinar que as temáticas vinculadas aos feminismos abrangem. Sendo assim, são notórias as múltiplas possibilidades de fontes de pesquisas, assim como os conceitos aplicados pelos artigos aqui reunidos. Ressaltamos que em todos os trabalhos a corporeidade esteve tensionada, sobretudo, interseccionada com outros marcadores sociais da diferença, além do gênero. Contudo, a diferença é analisada tanto pelo prisma da exclusão ou da ausência, quanto pelo da resistência e da luta pela transformação social.

A abertura deste dossiê é feita por uma interessante discussão teórica, a partir do pensamento de duas filósofas e feministas estadunidenses, a respeito dos conceitos de exclusão e de reconhecimento. Os autores Eduarda Borges da Silva e Guilherme Nicolini Pires Masi, doutoranda e mestre em História, respectivamente, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Corpos em condição de exclusão e/ou de reconhecimento: dialogando Nancy Fraser e Judith Butler, buscam aprofundar e aproximar o debate entre Fraser e Butler, a partir de diferentes trabalhos dessas autoras, que tiveram o corpo como fio condutor de suas preocupações. Através das contribuições sobre redistribuição, reconhecimento e justiça, os autores inserem as propostas de Nancy Fraser; em relação à Judith Butler, a análise se detém sobre as normas de reconhecibilidade e na ação de autoconhecimento, assim como transpassa as noções de violência e ética para pensar sobre a precariedade da vida humana. A autora e o autor reconhecem que, apesar dos pontos de divergência entre os pensamentos de Fraser e Butler, ambas se dedicam, ao longo de suas obras, a tratar de aspectos que visam superar as velhas e as novas formas de dominação, responsáveis pela exclusão de sujeitos e de grupos dissidentes, sendo que estes buscam o reconhecimento uma vez que estejam em desvantagem social, marcados pela raça, gênero, classe, geração, etnia, nacionalidade, religião, etc. Além disso, a potência do texto se insere com as inferências argumentativas realizadas, as quais partem de exemplos da realidade brasileira, para demonstrar como os quadros de poder e os corpos estão dispostos num sistema de exclusão.

Em Olhos D’Água de Conceição Evaristo e o Feminismo decolonial, a autora é doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Esdra Basílio, dedica-se a análise do conto Quantos filhos Natalina teve?, a partir da perspectiva do feminismo decolonial e da colonialidade de gênero. O artigo busca não somente a investigação literária em si, mas contribuir para a promoção de escritoras negras, como é o caso de Conceição Evaristo, da margem para o centro. Com isso, a autora ressalta a importância da escritora brasileira para uma história feminista decolonial. Em relação ao conto, a personagem protagonista Natalina é analisada pelo viés das relações de gênero, das emoções e das subjetividades, destacando que embora seja uma ficção, a escrita de Conceição Evaristo é marcada pela prática da escrevivência que coloca em evidência, mulheres negras que vivem, muitas vezes, em comunidades periféricas. Portanto, o artigo oferece um incitante estudo analítico a partir da literatura de Conceição Evaristo, cruzado com os aportes teórico-metodológicos dos feminismos decoloniais que buscam a revisão teórica do feminismo hegemônico ocidental, branco, classista e do Norte Global. É pelo olhar e pela percepção crítica que a autora adentra as dinâmicas e as desigualdades sociais que condicionam, sobretudo, mulheres negras e latinas, tendo como temáticas principais, a maternidade e o corpo feminino. Sendo assim, as noções de ser mãe e de corpo feminino são questionadas e pela narrativa de Natalina são reinterpretadas e fogem de ideias essencialistas e universais.

No artigo O Movimento de Mulheres #EleNão: Reflexões sobre Feminismos na Era Digital, Marluce Dias Fagundes, doutoranda do PPGH da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), busca compreender o movimento de mulheres ocorrido no Brasil em 2018 – o #EleNão. Um evento marcante que levou milhares de mulheres às ruas em mais de cem cidades do país, organizadas a partir de redes sociais para repudiar declarações machistas, sexistas e racistas do, na época, candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro, de extrema direita. Com perspicácia, a autora evidencia a importância dos/as sujeitos/as fazerem política colocando seus “corpos em aliança” – no dizer da filósofa Judith Butler (2019) – tanto nas redes sociais, quanto nas ruas, e discute a possibilidade de uma quarta onda dos feminismos, marcada pela possibilidade de denúncia e mobilização via Internet, como reação ao avanço da extrema direita na América Latina e demais conservadorismos. Dando foco à experiência política brasileira e a análise das fontes digitais, se debruça sobre as postagens do grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro com um alcance de milhões de participantes no Facebook. O grupo, apesar de se manter em “assembleia”, como uma força política reunida, prezou sua pluralidade, mantendo um caráter suprapartidário. De acordo com a autora, o mesmo permanece ativo e se denomina Mulheres unidas pela democracia, tendo por foco em suas postagens as decisões do atual governo de Bolsonaro, que venceu a última eleição presidencial.

Outro importante estudo sobre movimentos que são mobilizados digitalmente e nas ruas é o de Gabriela Traple Wieczorek, mestranda em História, Teoria e Crítica da Arte pela UFRGS, intitulado: O coletivo LASTESIS, o estallido social chileno e a mobilização em rede nos espaços urbanos e digitais. A autora conta que o coletivo feminista chileno LASTESIS foi criado para teatralizar a produção intelectual feminista e ganhou notoriedade com a performance Un violador en tu camino, difundida de forma viral nas redes sociais durante a onda de protestos por uma nova Constituição no Chile. O grupo recebeu um convite para participar de uma intervenção nas ruas de Valparaíso, em novembro de 2019, a qual foi filmada e em seguida chegaram novos convites para fazer a performance em outras cidades chilenas. Já no dia 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, Un Violador en tu camino foi performada por centenas de pessoas nos arredores da Plaza Dignidad, em Santiago, capital chilena. Wieczorek observa em detalhes a rapidez da difusão dos vídeos com a performance, sendo executada em diversos países como Argentina, Colômbia, Espanha, França, México e Turquia, inicialmente e, mais tarde, foi teatralizada também no Brasil. Com o isolamento social em função da pandemia da Covid-19, o governo chileno intensificou os toques de recolher, bem como a violência policial, e a autora observou que os “carabineiros” do Chile iniciaram um processo judicial contra o LASTESIS, acusando o grupo de incitar atos de violência contrários à corporação policial. A autora relata que as integrantes do grupo feminista passaram a conviver com as ameaças de morte e os ataques de hackers, na tentativa de desarticulá-las. De modo sagaz, Wieczorek evidencia que os espaços digitais, da mesma forma em que servem à mobilização feminista, facilitam a articulação de grupos contrários ao movimento e criminosos, ou seja, em seu texto a Internet é percebida como um espaço simultâneo de resistência e violência. Por fim, salienta que mesmo com a eficiência das mobilizações virtuais, não há como lutar pela democracia e pela cultura se restringindo a este espaço e defende a necessidade da mescla entre iniciativas online e presenciais, de corpos em luta nas redes e nas ruas.

O texto que encerra esse dossiê e que traz uma grande contribuição ao debate proposto é Políticas de Resistência Feminista: evangélicas em luta por direitos, cuja autora é Gabriela Luiz Scapini, doutoranda em Sociologia pela UFRGS. A estudiosa se dedica a atuação do coletivo feminista Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), fundado em 2015 e inspirado na ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Relacionando religião, feminismo e gênero, desafia a considerada incompatibilidade entre a autonomia das mulheres e suas manifestações religiosas ou a assertiva de que a religião seja a raiz da submissão feminina. Para isso, utiliza como fonte materiais divulgados nas páginas oficiais de web da EIG e uma entrevista com uma de suas fundadoras. Observa que mulheres evangélicas têm formado coletivos feministas, percebendo os feminismos como múltiplos, do mesmo modo que são as mulheres que professam uma religião, e que dentro das igrejas evangélicas podem existir espaços de resistência que disputam as interpretações bíblicas, os espaços de poder e alertam as mulheres sobre seus direitos, sobretudo quando estes são violados. Analisa no site da EIG o endereçamento de críticas às autoridades religiosas, à falta de autonomia e desigualdades sofridas pelas mulheres e inclusive o posicionamento do coletivo ao se somar a “maré verde” pela legalização do aborto, tendo ainda tratado do combate ao racismo e temas LGBTQIA+ entre suas pautas. Contudo, Scapini alerta que nas duas últimas décadas o neoconservadorismo tem avançado, sobretudo nas instâncias representativas e os políticos evangélicos, formando a chamada “bancada evangélica”, tem assumido um protagonismo nas pautas sobre o corpo e a autonomia feminina, barrando agendas e lutas feministas, bem como os direitos da população LGBTQIA+. Seu artigo, portanto, defende a importância da construção de redes de ação feminista em todos os lugares, para que mulheres e meninas possam ter seus direitos humanos assegurados, e em sua pesquisa, considera de modo especial as feministas evangélicas, que ao mesmo tempo em que constroem um ativismo político no interior de suas igrejas, também clamam pelo reconhecimento de suas ações e sua aliança ao movimento feminista.

Com a breve apresentação dos textos reunidos neste dossiê, destacamos algumas potencialidades que cada estudo oferta, ainda que outras análises possam ser realizadas. Assim sendo, os trabalhos estão concentrados numa história dos feminismos recentes, embora não deixem de apontar os processos históricos perpassados. Fica evidente que as articulações dos movimentos vêm sendo feitas pelas ferramentas disponíveis na Internet, seja por meio das redes sociais, como o Facebook, seja pela publicação em sites e blogs. Esse fato demonstra como a História, enquanto disciplina, está se aproximando cada vez mais das discussões recentes a respeito do digital. Contudo, não só as lutas coletivas foram privilegiadas, sujeitos com os corpos marcados pela diferença, pela exclusão, pela precariedade são trazidos da margem ao centro, como assinalado por bell hooks (2019) e, assim, protagonizam suas próprias histórias e movimentam, ou ao menos balançam as estruturas colonizadoras que sustentam as sociedades latino-americanas. Desse modo, esperamos que o dossiê contribua para o debate historiográfico e das humanidades recentes, assim como motive para que novos estudos sejam feitos a partir das discussões aqui trazidas. Afinal, como nos ensina Butler (2019), um corpo vivo deve ter o direito de persistir vivo, de florescer e de poder se unir em assembleia, sem medo de censura política ou violência policial. Um corpo em luta contra a precariedade encontra múltiplas formas de resistir, de manifestar sua indignação e de construir alianças, tal como a deste dossiê.

Referências

hooks, bell. Teoria Feminista: Da Margem ao Centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019


Organizadores

Eduarda Borges da Silva – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestra em História pela UFPel (2017), integrante do Grupo de Estudos/Pesquisa GENHI – Grupo de estudos e pesquisa sobre Gênero e História IFCH UFRGS/CNPq.

Marluce Dias Fagundes – Doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Mestra em História pela UFRGS (2018), integrante do Grupo de Estudos/Pesquisa GENHI – IFCH UFRGS/CNPq.


Referências desta apresentação

SILVA, Eduarda Borges da; FAGUNDES, Marluce Dias. Apresentação. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 6, n. 11, p.12-17, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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