Correio Para Mulheres | Clarice Lispector

O histórico meramente tradicionalista em vista das mulheres da elite brasileira entre as décadas de 1950 e 1960 era descrito por Clarice Lispector em colunas de aconselhamento feminino para os jornais Comício, Correio da Manhã e Diário da Noite. Desta maneira, a autora produziu colunas que eram direcionadas exclusivamente para as mulheres sob a perspectiva de três pseudônimos diferentes: Tereza Quadros, na coluna “Entre Mulheres”, pelo jornal Comício, em 1952; Helen Palmer, na coluna “Feira de Utilidades”, pelo jornal Correio da Manhã, em 1959; e Ilka Soares, na coluna “Nossa Conversa”, pelo jornal Diário da Noite, em 1960. No decorrer destas colunas, Lispector apresentava dicas, diálogos, inquietações e questionamentos antes muito proveitosos para as mulheres e que representavam perfeitamente as experiências femininas pertencentes à classe média alta da sociedade burguesa daquela época, nunca deixando para trás o seu estilo literário inconfundível e o senso de humor ácido clariciano.

Assim, em uma junção dos livros Só Para Mulheres: Conselhos, Receitas e Segredos (2008) e Correio Feminino (2006), a Editora Rocco reuniu as colunas que foram escritas por Clarice Lispector e publicou postumamente o livro de crônicas Correio Para Mulheres (2006). Esta obra, em especial, nos apresenta uma realidade diferenciada dos padrões de escrita que foram apresentados pelas novelas, contos, ensaios e romances da autora. Ao invés de ser produzido apenas pela Clarice Lispector escritora, este livro também nos apresenta parte do que era a Clarice Lispector jornalista, aquela que poucos conhecem.

A partir das crônicas, Lispector escrevia sobre conteúdos da atualidade e dava conselhos que muitas mulheres da época gostavam de acompanhar e receber. Sob esta perspectiva, é considerável entender o porquê dessa notabilidade, de que forma as crônicas da autora ajudavam essas mulheres e qual era o conteúdo que elas traziam. Em vista disso, Nícea Nogueira (2007) aponta que a mulher escritora, na maioria das vezes, tende a considerar o seu cotidiano para representar e determinar um momento, e as crônicas jornalísticas são um dos principais exemplos disso, uma vez que elas privilegiam questões do cotidiano e as experiências do próprio autor a partir de uma perspectiva atual.

Pelas páginas do jornal Comício, por exemplo, Lispector assinou os seus textos com o nome Tereza Quadros, visto que a autora apenas aceitou o emprego “com a condição de poder trabalhar sob o pseudônimo, presumivelmente para evitar manchar sua reputação literária” (MOSER, 2009, p. 195). Essa foi a forma que a jornalista encontrou para separar os seus textos com “propriedades literárias maiores” quando comparados às suas outras produções.

Tereza Quadros, a colunista do jornal Comício e pseudônimo de Clarice Lispector, era uma mulher de classe média que viveu entre as décadas de 1950 e 1960 e era extremamente ligada ao lar e à família. Além disso, ela também utilizava o tempo para preservar a sua própria aparência e desfrutar dos seus conhecimentos estéticos para deixar conselhos em suas colunas. É possível perceber esse detalhe durante a leitura das próprias crônicas, no momento em que a autora apresenta a maquiagem como um produto de embelezamento muito útil e necessário para as mulheres, mas que danifica a pele. Assim, como um cuidado “extra” para a pele do rosto, ela propõe para as suas leitoras uma receita rápida e prática de máscara de beleza (LISPECTOR, 2006).

Dessa forma, é importante ressaltar que muitas das mulheres que liam as crônicas de Tereza Quadros eram donas de casa, mães e esposas sobremaneira vaidosas, mas que, devido às rotinas corridas que elas levavam em casa, não tinham tanto tempo para cuidar de si mesmas. A cronista, como forma de encontrar uma solução para essas questões, trazia receitas que, segundo ela, faziam milagres em pouco tempo.

Para se aproximar ainda mais das suas leitoras, Tereza Quadros se interessava em assumir um tom mais íntimo e bem-humorado em certas ocasiões. A colunista realizava perguntas, prolongava e retomava diálogos e respondia, quando necessário, às suas próprias indagações, como em uma verdadeira conversa com quem está lendo.

Como Lispector também era uma mulher, ela buscava compreender os desejos das suas leitoras e produzia as suas crônicas com base no que elas queriam ler e tomar conhecimento, trazendo assuntos que variam desde cuidados com a pele até os momentos mais íntimos da sua vida. Dessa maneira, ainda que ela estivesse escrevendo sob o pseudônimo de Tereza Quadros, tanto ela quanto o seu público se sentiriam ainda mais próximos um do outro e manteriam a sincronia entre leitor-escritor.

Com os seus livros no limbo e obrigada pela necessidade econômica de trabalhar regularmente como jornalista, entre os anos de 1959 e 1961, no jornal Correio da Manhã, Clarice Lispector criou a colunista Helen Palmer, que escreveu 128 edições para a coluna “Correio Feminino – Feira de Utilidades”, e cedeu espaço para uma nova aventura profissional.

Nas peças anedóticas de Helen Palmer, apesar de fugir totalmente do estilo de escrita dos romances de Clarice Lispector, ainda eram aparentes características inconfundíveis da autora, como, por exemplo, os seus eternos monólogos e diálogos que descrevem abertamente a pessoa que estava por trás da colunista daquele jornal. Dessa vez, a autora passou a tratar mais abertamente sobre o seu processo de escrita além das crônicas, ressaltando as produções literárias que ela costumava escrever e publicar habitualmente como Clarice Lispector. Na crônica “Me dá licença, minha senhora”, por exemplo, há muitas características de Helen Palmer que nos remetem a Clarice Lispector. Nela, a autora registra que escrever é uma maldição que a obriga e arrasta como um vício penoso, mas que também pode salvá-la, pois, àquela altura, a sua vida só podia ser entendida a menos que estivesse escrita (LISPECTOR, 2006).

As mulheres descritas nas crônicas de Helen Palmer também eram, antes de tudo, grandes damas com uma notável estética social e doméstica. A questão principal dessas produções era baseada na compreensão do processo de que as mulheres viviam apenas para manter o modelo de “mulher ideal” imposto pela cultura de promessas da época. Em resumo, era perceptível que as mulheres se comportavam da maneira que elas eram apresentadas para a mídia e para o mundo, tal como um mero reflexo do que elas deveriam ou não deveriam ser, falar e fazer, e as crônicas são uma ótima maneira de nos fazer compreender isso.

Ao contrário de Teresa Quadros e Helen Palmer, Ilka Soares, o pseudônimo utilizado pela autora para atuar como ghost-writer na coluna “Só Para Mulheres”, do jornal Diário da Noite, era uma pessoa de verdade. Clarice Lispector havia se inspirado em uma atriz e modelo brasileira que morava a apenas um prédio de distância do dela para criar a sua nova personalidade: “Ilka morava a um prédio de distância de Clarice, no Leme. O contato entre as duas foi mínimo: ela encontrou Clarice uma vez, em seu apartamento, onde Clarice foi ‘muito reservada, fumou um bocado’” (MOSER, 2009, p. 240).

A falta de encontros entre Clarice Lispector e Ilka Soares não impediu a jornalista de criar uma voz para a sua coluna. Como o público-alvo das suas crônicas era normalmente formado por donas de casa de lares burgueses, Ilka Soares tratava sobre questões necessárias e importantes para essa classe de mulheres. As colunas apresentavam informações sobre como manter a casa, preparar refeições, cuidar das crianças, ajudar com a lição de casa e ser a esposa ideal enquanto permanece elegante e com o cabelo bem arrumado. Na crônica “Ser elegante”, a autora discorre sobre a elegância presente nas mulheres que não se arrumam de maneira exagerada e vulgar, e ainda destaca que uma mulher realmente elegante deve ser descoberta, e não destacada (LISPECTOR, 2006).

Para Ilka Soares, as mulheres ideais eram pessoas naturalmente “femininas”. As mulheres que, embora estivessem em um cenário completamente doméstico e conservador, mantinham o olhar crítico para o mundo e pretendiam se “desvincular da lógica binária masculino/feminino e forte/fraco: a desconstrução do discurso homem-algoz/mulher-vítima” (PAJOLLA, 2010, p. 61), espelhando, então, a personalidade forte e destemida encontrada na figura de Ilka Soares.

Portanto, este livro é destinado a todos aqueles que desejam conhecer Clarice Lispector além da sua conceituada ficção. Atualmente, a sua imagem parece estar concentrada apenas nos seus romances e novelas de renome, traduzindo a personalidade literária da autora somente aos seus livros mais conhecidos e celebrados. Em contrapartida a isso, a leitura de Correio Para Mulheres surge como uma nova maneira de interpretar Clarice Lispector, pois, sendo ela uma das escritoras mais importantes e populares do cânone literário brasileiro, também é interessante prestigiar outros dos seus trabalhos.

Deste modo, podemos perceber que Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares eram três pseudônimos diferentes que, apesar de só terem existido nas colunas de Clarice Lispector, ainda tinham os seus próprios desejos, vontades, opiniões e características. Elas foram capazes de apresentar personagens literárias que descreviam a realidade e a necessidade de mulheres reais para com a sociedade, cujas descrições exemplificam a carência de reconhecimento e ativismo, provando que existe um lugar para o diálogo e que uma fala própria beneficia não apenas as mulheres, mas a tradição literária como um todo. No livro Correio Para Mulheres, Lispector nos apresentou uma espécie de espelho literário e nos permitiu refletir sobre a realidade de não apenas uma época, mas também de várias outras épocas importantes para as mulheres.

Referências

LISPECTOR, Clarice. Correio Para Mulheres. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

MOSER, Benjamin. Clarice,. 2. ed. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

NOGUEIRA, Nícea. A crônica de Clarice Lispector em diálogo com sua obra literária. Verbo de Minas: Letras, Juiz de Fora, v. 6, n. 11/12, p. 87-99, jan./dez. 2007.

PAJOLLA, Alessandra Dalva de Souza. Identidades femininas múltiplas em crônicas de Clarice Lispector. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2010.


Resenhista

Stephanie Miranda dos Santos – Possui licenciatura plena em Letras— Português e Inglês pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Pós-graduanda em Metodologias do ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica pela Universidade Unopar. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LISPECTOR, Clarice. Correio Para Mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Resenha de: SANTOS, Stephanie Miranda dos. A construção da representação social do feminino na produção literária de Clarice Lispector. Resenhando. Alfenas, v.3, n.3, 2021. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.