Cultura luso-brasileira | ArtCultura | 2017

O dossiê que ora se apresenta ao leitor tem como temática a cultura luso-brasileira. Os artigos nele enfeixados, apesar das diferenças de abordagens, podem ser agrupados em torno das questões inerentes à escrita e às imagens no universo cultural do Brasil e de Portugal.

As obras de caráter literário, histórico, científico, bem como aquelas que transitavam entre diversos gêneros, como os pasquins e folhetos, constituem fonte de distintas pesquisas na historiografia. Estas pressupõem distintas abordagens, que contemplam tanto os aspectos formais relativos aos textos, quanto os usos e apropriações nos contextos onde se inserem. Nesse sentido, estão em discussão tanto o estudo dos gêneros textuais, as tópicas e o campo da retórica, como as apropriações e usos possibilitados pelas múltiplas leituras que os impressos e imagens encerram.1

No âmbito da expansão ultramarina lusitana e das relações que se constituíram com a América portuguesa, sabe-se que a escrita tornou-se um elemento fundamental, ora como forma de obter reconhecimento e mercês por parte dos vassalos, ora como modo de confrontar autoridades e reivindicar determinadas tradições.2 É dessa temática que trata o artigo de Adriana Romeiro, buscando compreender os significados que os folhetos e os pasquins assumiram no contexto luso-brasileiro, entre os séculos XVII e XVIII. Além de se deter sobre aspectos da tradição desses manuscritos na Europa na época moderna, e em particular na cultura ibérica, a autora sinaliza o lugar que esses escritos, em sua maior parte anônimos, desempenharam nos arraiais e vilas colonais. Conforme ela chama atenção, além da palavra escrita, alguns desses papeis recorriam a imagens gráficas ou desenhos e a estratégias de composição que visavam facilitar a sua leitura em voz alta e a memorização por parte do público. Na América portuguesa, esses papeis insidiciosos foram utilizados em diversas manifestações de contestação e conformaram um importante traço da cultura política, dialongando com a realidade político e social na qual se inseriam.

As relações entre as especificidades da política e economia coloniais podem ser observadas igualmente na tradição letrada, em especial na adequação das formas poéticas à leitura da sociedade, como demonstra o texto de Marcos Rogério Cordeiro sobre a poética de Cláudio Manuel da Costa, ao enfocar as suas determinações históricas e o modo como elas são incorporadas à fatura de sua poesia. Dessa maneira, procura-se mostrar como a “figuração da realidade sensível promove uma diferenciação no âmbito da forma”. Em outras palavras, sem pressupor uma relação mecânica entre o contexto e a poesia de Manuel da Costa, o autor busca evidenciar como aspectos do mundo colonial, a exemplo da exploração aurífera e suas vicissitudes, flexibilizam as convenções estéticas.

A literatura produzida em meio à expansão ultramarina é ainda tema do artigo de Cleber Vinicius do Amaral Felipe. Nele se destaca, mais especificamente, a figura do Velho do Restelo em Os lusíadas. Além de retomar os pareceres da fortuna crítica em torno da personagem, ao autor interessa reconstituir “os códigos linguísticos da época, avaliando a mobilização (ou imitação) de lugares-comuns presentes na tradição ou no costume do gênero épico”. O que está em questão são as tópicas retóricas mobilizadas por Camões, tais como a valorização da experiência, a censura à cobiça e o elogio à prudência, e as imbricações relativas à empresa ultramarina.

Deslocando o olhar para outro tipo de impressos, Palmira Fontes da Costa e Hélio Pinto examinam as controvérsias em torno da passagem dos cometas expressas em obras literárias produzidas em Portugal no decorrer do século XVIII, notadamente no período posterior ao terremoto de 1755. O texto problematiza como o debate desencadeado quanto ao papel da providência divina versus fenômenos naturais foi um catalizador de mudanças; fator que contribuiu para a difusão do Iluminismo naquela sociedade. A afirmação dos autores modernos e dos argumentos que naturalizavam os elementos naturais esteve atrelada também a uma maior circulação das obras, disponibilizadas a preços mais acessíveis. Além de atentar para a circulação das ideias, o artigo não deixa de refletir sobre os sentidos políticos que assumiam esses impressos na consolidação do Reformismo Ilustrado em Portugal.

A questão da Ilustração marcou igualmente as disputas pela história literária lusitana pelos letrados Robert Southey e João Guilherme Cristiano Müller, relativas à tradução do texto Extratos em português e em inglês, com as palavras propriamente acentuadas para facilitar o estudo daquela língua, conforme analisa André da Silva Ramos. A partir de um caso específico, ele se propõe o exame de como as traduções concorreram para a modernização da experiência na virada do século XVIII para o XIX. Ressalta ainda a multiplicidade de perspectivas de leitura que os impressos possibilitam, colocando em evidência as diferentes demandas de seus públicos.

O último artigo, assinado por Aziz José de Oliveira Pedrosa, direciona-se à compreensão de outro tipo de linguagem, a artística. Aborda a trajetória do entalhador lisboeta Manuel de Brito, no contexto da talha em Minas Gerais, bem como faz uma leitura dos retábulos atribuídos ao entalhador. Diante do caráter lacunar de outros registros históricos, são as imagens que fornecem ao autor elementos que permitem apontar Manuel de Brito como precursor do estilo joanino na talha colonial luso-brasileira, principalmente na Capitania de Minas, ao longo do século XVIII. Dessa forma, o estudo de Aziz revela-se importante para o entendimento da difusão de determinados modelos lusitanos, aclimatados na América portuguesa.

Apesar de se voltarem para objetos distintos, as contribuições aqui reunidas indicam a proficuidade das fontes – sejam elas manuscritas, impressas ou iconográficas – para a compreensão do universo cultural luso-brasileiro, assim como apontam para as multiplicidade de abordagens acerca do tema. Como organizador do dossiê, agradeço à acolhida da proposta pelos editores da ArtCultura e àqueles que, com suas pesquisas, colaboraram para sua feitura.

Notas

1 Como exemplo das abordagens que buscam compreender os “gêneros” e seus usos no mundo colonial, ver, dentre outros, PECORA, Alcir e HANSEN, João Adolfo. Categorias retóricas e teológico-políticas das letras seiscentistas na Bahia. Desígnio, v. 5, São Paulo, 2006. A respeito dos usos dos livros, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações.

  1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. 2 Ver, dentre outros: RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. Rio de Janeiro: Alameda, 2008; FIGUEIREDO, Luciano R. A. Narrativas das rebeliões – linguagem política e idéias radicais na América portuguesa moderna. Revista da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 111, mar.- maio 2003.

Organizador

Jean Luiz Neves Abreu – Componente da editoria da ArtCultura. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em História da UFU.


Referências desta apresentação

ABREU, Jean Luiz Neves. Das ideias às formas: circulação de impressos e imagens no contexto luso-brasileiro. ArtCultura. Uberlândia, v. 19, n. 35, p. 83-84,  jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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