Mário Domingues – A Afirmação Negra e a Questão Colonial. Textos 1919-1928 | José Luís Garcia

Composta por dois grandes núcleos – um primeiro de cunho ensaístico e um outro de compilação de textos originais dados à estampa em títulos da imprensa portuguesa nos primeiros decénios do século XX – Mário Domingues – A Afirmação Negra e a Questão Colonial. Textos 1919-1928 (Lisboa: Tinta da China, 2022) é a mais recente obra de José Luís Garcia, concluída depois de duas décadas de estudo e de construção e análise de um vasto arquivo documental sobre Mário Domingues e sobre o movimento negro português do princípio do século XX. Quando se contabilizam 100 anos sobre a publicação de alguns dos mais arrojados e infamados artigos de Mário Domingues, como “O ideal da independência” (A BATALHA, 05/07/1922, p. 1), primeiro registo escrito impresso de defesa explícita da independência para a África colonizada, José Luís Garcia (JLG) apresenta-nos neste livro Mário Domingues como o precursor da afirmação negra em Portugal e como expoente, durante a Primeira República, da oposição política, moral e cívica ao imperialismo e ao colonialismo português. A tarefa maior que se impunha – e que esta edição concretiza – era a de recolher os artigos de Mário Domingues em circulação nos meios de grande difusão e ir em busca dos demais que pudessem ter sido publicados noutros periódicos, perceber se há neles algo de assaz notável para serem objeto de antologia, deslindar um significado comum a essa constelação de textos, construir, como diz o autor, “um facto histórico a partir de interrogações que esses documentos permitiam formular” (2022, p. 20). Este livro não se limita a recuperar e a fazer arquivo dos textos de Mário Domingues, injustamente esquecido – o que, por si só, já não seria de menos; bem mais do que isso, JLG reuniu todos esses escritos, colocou-os em diálogo com a situação colonial do seu tempo e com o ativismo do movimento negro por todo o mundo, articulou-os com aspetos biográficos de Mário Domingues, e apreendeu nessas crônicas, para lá da sua individualidade, o sentido global de uma emergência histórica, o surgimento de um símbolo, a origem de uma obra de rebelião negra. Leia Mais

Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX | Fabio Wasserman

Fabi Wasserman Foto Rodrigo LorettPerfil
Fabi Wasserman | Foto: Rodrigo Lorett/Perfil

Se durante boa parte de sua história o tempo foi considerado apenas como uma das premissas implícitas ao ofício da historiografia, capaz de evidenciar por si próprio suas formas de recortá-lo, periodizá-lo e datá- -lo, nesta última metade de século a situação é outra. Uma breve vista aos índices das principais revistas acadêmicas dedicadas à teoria e prática historiográfica revela que nas últimas décadas a problemática das temporalidades tem ganhado espaço cada vez mais relevante nas discussões sobre a história e suas formas de escrevê-la. Vivemos uma crise temporal.3

Evidencia essa tendência não só o fator quantitativo, mas também o qualitativo, expresso nos debates que vêm sendo travados, em escala global, acerca das formas de conceituar e abordar o tempo como elemento central para qualquer narrativa histórica. Mesmo com o recente crescimento no número de estudos que elegem a temporalidade enquanto objeto de análise, ainda não se foi capaz de sanar a escassez de diálogo que afasta dois tipos de história: uma mais voltada à investigação dos eventos e das estruturas sociais, que por vezes considera o tempo simplesmente como dado ou data; e outra, intelectual, que encara a temporalidade como problemática final de sua investigação (por vezes desencarnada). Encontrar meios de aproximação e cruzamento entre as duas tem sido um dos desafios de nossa geração. Leia Mais

Brasil em projetos: História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba

Jurandir Malerba Imagem Cafe Historia 2
Jurandir Malerba | Imagem: Café História

Num momento tão difícil da conjuntura nacional, em que a lenta construção da democracia brasileira após 1985 é ameaçada por distintas forças, a compreensão desse processo passa não somente pela análise do contexto atual, como pelo estudo dos diferentes projetos propostos para a construção do Brasil a partir de sua Independência, em 1822. Neste sentido, só podemos saudar com entusiasmo a iniciativa da Editora da Fundação Getúlio Vargas com o lançamento da coleção Uma outra história do Brasil, que pretende apresentar os projetos políticos de distintos grupos sociais que atuaram no Brasil nos últimos dois séculos.

O primeiro volume dessa ambiciosa empreitada, Brasil em projetos, é da lavra de Jurandir Malerba e abrange o período que vai do último quartel do século XVIII às duas primeiras décadas do seguinte. Trata-se, como sabemos, de um período chave da história do Brasil, marcado na economia por um significativo crescimento baseado na produção agropecuária de base escravista e, em termos sociais, pela consolidação de uma poderosa elite mercantil, responsável pelos vínculos tanto internos quanto externos da América portuguesa. É no campo político que temos algumas das principais transformações. Da chegada da família real ao Brasil até a abdicação de Dom Pedro I, temos décadas de grande agitação, abrangendo da transferência dos órgãos da corte portuguesa para a América à construção de uma nova nação e de um Estado independente. Tudo isso num ambiente intelectual marcado pelo influxo das ideias iluministas e do liberalismo. Leia Mais

Portugueses no Rio de Janeiro: negócios, trajetórias e cenografias urbanas (séc. XIX-XXI) | Lená Menezes de Medeiros

Lena Menezes de Medeiros Imagem
Lená Menezes de Medeiros | Imagem: Extra

Portugueses no Rio de Janeiro. Negócios, trajetórias e cenografias urbanas, livro de autoria da historiadora Lená Medeiros de Menezes, publicado pela editora Ayran no segundo semestre de 2021, constitui, a um só tempo, um trabalho afetivo e acadêmico. Talvez isso desperte a curiosidade do leitor em geral, talvez, ainda, suscite a desconfiança do acadêmico, uma vez que afetividade e a abordagem objetiva próprias do ofício do historiador não costumam a se entrelaçar. Não costumam, mas podem sim conviver sem nenhum prejuízo à qualidade da obra. E é isso o que vemos aqui nesse livro, e sem nenhum desdoiro nem a sua dimensão acadêmica, nem à expressão dos seus afetos.

É bem verdade que a equação que une a cientificidade e a afeição manifesta para com o objeto de análise não é algo fácil de ser alcançado, podendo facilmente resvalar em incoerências, mascaramentos, excessos, ou mesmo em imprecisões. Mas aviso desde já aos leitores que nada disso se verifica nessa obra. E isso não se dá sem motivo. A razão principal para essa harmoniosa conjugação de fatores que tradicionalmente são tão distintos e excludentes é a maturidade da autora do livro. Lená Menezes é uma historiadora talhada pelo cinzel de uma longa caminhada acadêmica. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde o final da década de 60, passando por vários cargos e funções nessa instituição, entre eles a Pró-reitoria de graduação, além de ter fundado um dos mais importantes laboratórios de pesquisa sobre a imigração do Brasil, o LABIMI, que se destaca pela sua internacionalização, justamente, com o meio acadêmico português. É exatamente essa maturidade como pesquisadora que sustenta a delicada equação que aludimos e, mais ainda, a nosso ver, a torna fator de engrandecimento do livro. Tanto os leitores médios afeitos às coisas de Portugal podem lê-lo sem o temor da maçada que uma obra acadêmica pode inspirar, como aqueles que se debruçam academicamente no tema da imigração portuguesa podem o fazer sem o temor de qualquer desalinho com os bons padrões da pesquisa universitária. Leia Mais

Êxitos e fracassos: a circulação de pessoas, práticas e conhecimentos nos mundos ibéricos, séculos XVI-XVIII | Tempo | 2022

Rendicao de Granada 1492. Cena retratada na obra de Francisco Pradilla y Ortiz 1882. Imagem Pinterest
Rendição de Granada (1492). Cena retratada na obra de Francisco Pradilla y Ortiz, 1882. | Imagem: Pinterest

Nas últimas décadas, os estudos sobre a circulação de pessoas, conhecimentos, modelos jurídicos, políticos e valores econômicos têm sido um dos principais eixos da transformação da história moderna e colonial, incluindo os americanismos e hispanismos europeus e anglófonos. As contribuições fundamentais centraram-se em questões sobre a circulação de pessoas no contexto da expulsão de grupos marcados pela sua confissão e raça, a migração de escravos e cativos (Vincent, 200420082010Kagan e Morgan, 2009Martínez Montiel, 20042012Seijas, 2014Valenzuela, 2015Ruiz Ibáñez e Vincent, 2018Oropeza, 2020Schaub e Sebastiani, 2021), a lógica financeira e social das diásporas (Smallwood, 2007Kagan e Morgan, 2009Vincent, 2015Trivellato, 2019Sousa, 2019), a mobilidade do pessoal administrativo das monarquias europeias e os seus efeitos sociais e econômicos (Dedieu, 2005Schaub, 2014Esteban Estríngana, 2012Pardo Molero e Lomas Cortés, 2012), as delegações territoriais nas cortes régias (La Monarquía…, 1998Mazín, 20072017Álvarez-Ossorio, 2016Herrero Sánchez, 2019Mauro, 2021Gaudin, 2017b), a itinerância como fundamento da nova nobreza (Muto, 2015Yun Casalilla, 2009). De forma quase simultânea, multiplicaram-se os estudos sobre informação e comunicação política (Brendecke, 2016Fragoso e Monteiro, 2017), circulação da lei e da justiça (Barriera, 20172019Cunill, 2015), formação de modelos culturais transregionais ou transoceânicos (Heywood e Thornton, 2007Brook, 2009Gerritsen e Riello, 2021), assim como a reinterpretação de missões e missionários como conectores de mundos distantes (Palomo, 2016Romano, 2016Sachsenmaier, 2018; para citar alguns dos exemplos mais interessantes). Leia Mais

Las derechas iberoamericanas. Desde el final de la Primera Guerra hasta la Gran Depresión | Ernesto Bohoslavsky, David Jorge e Clara E. Lida

En 1999 se publicó Las Derechas. The extreme Right in Argentina, Brazil, and Chile, 1890-1939 de la historiadora estadounidense Sandra McGee,1 obra que sintetizó una larga etapa de investigación y cuya sólida propuesta funcionaría como referente para trabajos subsecuentes, en especial porque no se centró en las izquierdas, resistencias o perseguidos, sino en sus contrapartes, se inclinó por el uso de los términos “derecha” y “extrema derecha” en lugar del ambiguo “fascismo latinoamericano”, se alejó del esencialismo mediante el análisis de las coordenadas históricas que permitieran ubicar a los actores, sus ideas y prácticas en contextos específicos y, a contrapunto de las tendencias historiográficas del momento, comparó tres casos nacionales.

Esta interpretación fue obteniendo carta de naturalización entre algunos investigadores latinoamericanos,2 cuya curiosidad académica adquirió tonos de preocupación política en buena medida por la emergencia de opositores -cada vez más radicales- a la llamada “oleada rosa” de gobiernos izquierdistas. Con el tiempo, la emergencia académica ha derivado en la conformación de grupos, redes y espacios de análisis que han promovido interpretaciones históricas con una agenda original y creciente: nuevos actores, mayor heterogeneidad y conflictividad, intercambios y préstamos ideológicos, circulación de ideas y sujetos, espacios de acción otrora desatendidos y el uso de categorías como culturas políticas, memorias e identidades,3 así como una incipiente conciencia historiográfica sobre trabajos precedentes y los que conforman este nuevo “campo de estudio histórico por agregación”.4 Por supuesto, tanto el crecimiento del fenómeno como los análisis no han sido privativos de América Latina, multiplicándose en otras latitudes y fomentando mayores redes de estudiosos y otros tantos trabajos trasnacionales y comparativos. Leia Mais

Porto de Esperança: A emigração do Porto para o Brasil entre o final da Primeira Guerra Mundial e a Crise Capitalista de 1929 | Diogo Ferreira

Detalhe de capa de A Junta da Emigracao
Detalhe de capa de A Junta da Emigração: Os discursos sobre a emigração e os emigrantes no Estado Novo do Pós-Guerra (1947-1970), de Marina Simões Galvanese (2013)

Diogo Teixeira Guedes Ferreira possui licenciatura em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada do Porto. Em 2011 concluiu o Doutorado em História Política Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, como tema “A Emigração a partir do Distrito do Porto para o Brasil: do final da Primeira Guerra Mundial à Grande Crise Capitalista (1918-1931)” sob orientação de Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira. Atualmente é investigador do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (CEPESE). Em suas obras aborda as relações entre Brasil e Portugal, como em “As Relações Portugal-Brasil e a emigração portuguesa. O impacto da legislação nacionalista de Getúlio Vargas” (2017), Além de analisar aspectos do governo português, através das obras: “Os Presidentes do Parlamento Português – III República (1974-2015)”, “Há Cem Anos – A República, Vitorino Magalhães Godinho (2018)”; “A Associação de Futebol do Porto. Uma Instituição Centenária (2018)”; “O noticiário internacional no jornal oficial do Estado português (1715- 1716 e 1868) – uma fonte para a História das Relações Internacionais” (2019).

Analisando a estrutura do livro a ser resenhado, se trata de uma obra da CEPESE, que tem como objetivo publicar pesquisas acerca da presença dos portugueses na Europa. A obra é composta por Resumo, Introdução e mais Cinco Capítulos. Desta forma, o livro a ser analisado trata-se da tese de Doutorado de Diogo Ferreira defendida no ano de 2011. Leia Mais

Historia conceptual en el Atlántico ibérico: lenguaje, tiempos, revoluciones | Javier Fernández Sebastián

Javier Fernandez Sebastian Imagem Web UNSAM
Javier Fernández Sebastián | Imagem: Web UNSAM

En las últimas dos décadas, el campo de la historia intelectual en el mundo iberoamericano ha sufrido una renovación disciplinar impresionante. La recepción de una serie de novedosas metodologías para el estudio del pensamiento, conceptos y lenguajes políticos, como la escuela alemana de historia conceptual (Begriffsgeschichte), el enfoque contextualista de la llamada “Escuela de Cambridge” y la vertiente francesa de historia conceptual de lo político han sido claves en este sentido. En el ambiente académico iberoamericano, el historiador español Javier Fernández Sebastián ha desempeñado un rol decisivo en dicho proceso, especialmente a través del liderazgo de la red Iberconceptos (Proyecto Iberoamericano de Historia Conceptual), que aglutina a más de un centenar de investigadores e investigadoras y que ha sido el responsable de una obra de referencia clave en la disciplina: el monumental Diccionario político y social del mundo iberoamericano, publicado entre 2009 y 2014, donde se abordan en distintos ámbitos nacionales y comparados una veintena de conceptos políticos claves de la modernidad, tales como democracia, pueblo, nación, constitución, libertad, civilización, soberanía, etc. Dicha actividad, sumada a su diálogo permanente con proyectos y asociaciones europeas, le ha permitido construir una visión amplia de los problemas político-intelectuales del mundo iberoamericano en el tránsito del siglo XVIII al XIX, abordando patrones comunes y diferencias con el resto de Europa. Leia Mais

Political Thought in Portugal and Its Empire/ c. 1500-1800 | Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro

Pedro Cardim e Nuno Goncalo Monteiro Imagens Goodreads Goodreads
Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro | Imagens: Goodreads Goodreads

1A publicação deste livro é, sem dúvida, um acontecimento editorial que merece ser assinalado. Trata-se de uma seleção criteriosa de textos fundadores do pensamento político em Portugal na era moderna (c. 1500-1800), precedida de uma cuidada e esclarecedora introdução de enquadramento interpretativo que também serve para justificar a razão e a oportunidade da sua tradução e publicação em língua inglesa. A introdução e organização editorial do livro são de autoria de Pedro Cardim e Nuno Gonçalo Monteiro que, deste modo, acrescentam às suas importantes contribuições de análise histórica do período em apreço um relevante serviço de divulgação de fontes primárias que apenas têm estado acessíveis, na sua quase generalidade, a leitores de língua portuguesa. A tradução e edição crítica de tais textos fundadores possibilita, a um público internacional alargado, o conhecimento de alguns dos principais protagonistas do debate político em Portugal nos séculos XVI a XVIII, da sua articulação ou diálogo (implícito ou explícito) com autores de referência no quadro europeu e da especificidade dos problemas de ordem institucional, social e política que emergem no contexto da monarquia portuguesa e do seu espaço imperial.
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The First World Empire: Portugal/ War and Military Revolution | Heler Carvalhal, André Murteira e Roger Lee de Jesus

Croquis do sitio e ordem de batalha de Alcantara diante de Lisboa por mar e terra. Detalhe de capa de The First World Empire Portugal War and Military Revolution Imagem Wikipedia
Croquis do sítio e ordem de batalha de Alcântara diante de Lisboa, por mar e terra. Detalhe de capa de “The First World Empire: Portugal, War and Military Revolution” | Imagem: Wikipedia
1The theory that Early Modern Europe underwent a sort of “military revolution”1 has sparked debate amongst historians of the period ever since it was proposed.2 The military revolution has been proposed as an explanation both for changes in state-formation processes within Europe itself, and subsequently as an explanation for why European states controlled roughly one-third of the land surface of the world even before the onset of industrialization. Yet it is exactly in the role of the military revolution in the process of European expansion – and indeed the debate whether European states and non-state actors did indeed enjoy a military advantage over non-Europeans – that we encounter some strange lacunae in the (Anglophone) scholarship.3 The case of Portugal must perhaps be the most striking of these. Portugal was not only the first European state to engage in colonial expansion and trade, it was the last state to decolonize. Portuguese ships, soldiers and forts were present in Africa, the Americas and throughout littoral Asia, giving it a global footprint. In the case of Asia especially, the presence of Portuguese fleets and fortifications in India and beyond from the very start of the sixteenth century onwards, as the bastion-trace fortification was spreading through Europe, should give historians ample material to work with to test the thesis that European fortifications and siegecraft were superior and enabled European states to maintain a presence throughout the area.

Liberalismo, constitucionalismo e Parlamento: a revolução de 1820 | Almanack | 2022

O juramento de obediencia a Constituicao pelo principe D. Pedro no Real Teatro Sao Joao atual Joao Caetano no Rio de Janeiro Desenho aquarelado de Felix Emile Taunay. Museu Hisorico Nacional
O juramento de obediência à Constituição pelo príncipe D. Pedro, no Real Teatro São João (atual João Caetano), no Rio de Janeiro | Desenho aquarelado de Félix-Émile Taunay. Museu Hisórico Nacional

Repensar a memória dos acontecimentos marcantes da História constitui um exercício de rever os “lugares”, onde ela efetivamente se materializou, por meio de indivíduos, processos e práticas que se compuseram como seus símbolos e representações mais marcantes.7 Portanto, todas as datas que definem grandes comemorações devem ser pensadas não apenas como a celebração de uma efeméride, mas como a possibilidade de um novo desafio para a sua revisitação à luz dos estudos historiográficos do presente, possibilitando o surgimento de novas abordagens e perspectivas de análise.

Nesse sentido, insere-se o dossiê Liberalismo, constitucionalismo e Parlamento: a revolução de 1820, trazendo à tona temas que possibilitem analisar um período que foi fundamental para a entrada do Império português na política moderna.8 Justifica-se tal afirmativa porque foi naquele contexto da revolução liberal, iniciada no Porto em agosto de 1820,, continuada em Lisboa em setembro e propagada no Brasil em 1821, que se produziu uma grande mudança política, conhecida pela historiografia ibero-americana como Triênio Liberal (1820-1823)9 . Apesar de não ser uma conjuntura plenamente vitoriosa, ela possibilitou o surgimento de novas linguagens, novos vocabulários e imaginários que anunciavam um tempo de rutura e de aceleração10, indicando a proposta de uma ordem liberal e constitucional, legitimada na vontade e na soberania da nação e dos povos e, não mais, na “figura simbólica do rei” ou em uma ordem imemorial sancionada por Deus11. Os atores históricos, que vivenciavam aquele momento, preocupavam-se com um imaginário político e social que não se ancorava nas experiências e nos ensinamentos do passado, que davam sentido ao seu mundo, mas vislumbravam a possibilidade de uma perfectibilidade do homem e de uma crença no progresso. Leia Mais

Capital científica: práticas da ciência em Lisboa e a história contemporânea de Portugal | Marta Macedo e Tiago Saraiva

Observatorio Astronomico de Lisboa Imagem OALWiki
Observatório Astronômico de Lisboa | Imagem: OAL/Wiki

Este volume colectivo explora a dimensão urbana das práticas científicas em Lisboa entre meados do século XIX e meados do século XX, assim como a sua relevância para a história de Portugal. O livro apresenta dez casos de estudo divididos em três partes com uma periodização política canónica (Regeneração, República e Estado Novo). O objetivo dessa organização é duplo: por um lado, os editores procuram estabelecer diálogo com a historiografia contemporânea de Portugal e, por outro, vêm problematizar as continuidades e discontinuidades da ação de cientistas e engenheiros entre esses diferentes regimes políticos.

Capital CientificaNa primeira parte (“Ciência e Regeneração”), Marta Macedo estuda a forma como as práticas epistemologicamente renovadas do ensino “politécnico”, a par das operações de crédito que financiaram as infraestruturas projetadas pela elite de engenheiros regeneradores saint-simonianos, construíram a cidade em diferentes níveis, desde a arquitetura da Escola Politécnica e da Escola do Exército até a expansão urbana da avenida da Liberdade. Pedro Raposo trata do Observatório Astronómico de Lisboa na Tapada da Ajuda e de como a construção de um tempo estandarizado por meio da determinação astronómica da hora oficial e a sua transmissão telegráfica (porto, comboios, faróis) possibilitou uma gestão coordenada dos crescentes fluxos materiais do capitalismo. Teresa Salomé Mota, Ana Carneiro e Vanda Leitão olham para os espaços e as práticas científicas dos serviços geológicos, analisando o papel das cartas geológicas como instrumentos de construção do Estado liberal, por meio da sua capacidade de reestruturação territorial (caminhos de ferro, recursos minerais, florestação etc.). Finalmente, Tiago Saraiva e Ana Cardoso de Matos mobilizam elementos aparentemente heterogéneos, como os sistemas de iluminação a gás, a noite dos proletários (Jacques Rancière), as fábricas do bairro de Boavista, o ensino técnico no Instituto Industrial de Lisboa, os poetas flâneurs da modernidade lisboeta (Cesário Verde), os cafés e as óperas da sociabilidade burguesa, ou a estética do sublime tecnológico, para reescrever a história do romantismo português a partir da tecnologia, das ideologias liberais e da transformação urbana de Lisboa. Leia Mais

Ecos do Atlântico Sul | Omar Ribeiro

Em 1993 participei de uma reunião social na qual estavam presentes: um padre jesuíta do Timor, um professor de história da Universidade de Lisboa (nascido em Moçambique), um professor de literatura luso-americano judeu e eu, socióloga brasileira, carioca. Sentados na sala de uma casa de estilo new-england, em Providence, Rhode Island, conversávamos em português. De repente fui tomada pelo ineditismo daquela situação e pelo sentimento de espanto diante da extensão e da sobrevivência do que fora o império português. Aquilo se chocava com o imaginário do senso comum brasileiro, e meu também, que pensava Portugal como a “terra do avozinho”, bonitinha, atrasadinha, sem importância, uma peça da memória folclórica… Foi então, com esse novo registro, que assisti a algumas apresentações da pesquisa de Omar Ribeiro Thomaz e li, com o maior interesse, o seu livro Ecos do Atlântico Sul.

A área de pesquisa de Omar, seu saber sobre Portugal e África, é maior do que o tamanho desse livro. Penso que deve ter havido um enorme esforço para encaixar na narrativa a história portuguesa, a trajetória da antropologia, as múltiplas preocupações relativas aos Estados nacionais remanescentes do antigo império português e às culturas de seus povos. Ao dizer isso não quero diminuir o valor do livro, e sim aguçar nosso interesse por outros textos que certamente o autor irá publicar. Leia Mais

Museus Pedagógicos: diálogos ibero-americanos 1 | Cadernos de História da Educação | 2022

A circulação de ideias pedagógicas que contribuíram para edificar projetos de escolarização da infância, acompanhando a consolidação dos Estados-nação, teve alguns sustentáculos. Destacamos aqui o aparato legislativo, que compreende um conjunto de prescrições que apoiaram o desenho da composição administrativa, entre elas a obrigatoriedade escolar; as Exposições Universais como espaços de difusão de modelos, ideias, circulação de mercadorias direcionadas ao provimento da escola – especialmente a primária – e à promoção de um nicho de mercado; e a organização de Museus Pedagógicos, os quais assumem, neste Dossiê, lugar central.

Numa caracterização mais ampla, os Museus Pedagógicos2 podem ser descritos “como um centro de formação para professores, onde seriam desenvolvidos, testados, apresentados e difundidos novos métodos, mobiliários e instrumentos didáticos” (Petry; Gaspar da Silva, 2013, p. 82). Ou, como o propunha Bartolomé Cossío (1886), um órgão que serviria para a introdução dos avanços referentes à educação primária presentes em países considerados referência (in: García del Dujo, 1985). Para Pedro Moreno Martínez, Leia Mais

Arquitectura e instrução. O projeto moderno do Liceu (1836-1936) | Gonçalo Canto Muniz

Como ocorreu a trajetória arquitetônica dos liceus portugueses no período entre o século 19 e o Século 20? Gonçalo Moniz, que é referência no tema da arquitetura escolar, amplia essa questão além dos aspectos espaciais, trazendo uma articulação com o contexto político e as legislações educacionais no período analisado, considerando que o programa arquitetônico dos liceus sofreu transformações a partir de exigências pedagógicas, higiênicas e construtivas.

O recorte temporal escolhido pelo autor destaca os dois marcos relevantes na história do ensino secundário: o ano de 1836, com a reforma educacional que criou o Liceu e o ano de 1936, com a vinculação dos Liceus à ideologia do Estado Novo, definindo uma nova arquitetura nacionalista. Nessa arco temporal de cem anos, são identificados os diversos agentes que atuaram nessas transformações, estabelecendo uma relação entre as reformas de ensino e a sociedade. O conceito de modernidade e de classicismo das obras são aplicados nos diversos contextos, evoluindo no tempo e no espaço. O percurso histórico e arquitetônico dos liceus portugueses expressaram uma cultura racionalista moderna, associada a um caráter clássico, permitindo-se criar uma conexão entre as Belas-Artes e o Movimento Moderno. Leia Mais

O Rio de Janeiro nas notícias da Gazeta de Lisboa/1751-1800 | Carlos Francisco Moura

Desde a década de 1990, a história do Rio de Janeiro foi renovada pela exploração de fontes de época que noutros tempos se mantinham inexploradas na historiografia carioca e fluminense. Em relação aos estudos do período colonial, não há dúvida de que o Projeto Resgate Barão do Rio Branco, iniciado pela Biblioteca Nacional brasileira no contexto das iniciativas comemorativas do quinto centenário do Descobrimento do Brasil, foi decisivo para tornar acessível as fontes da administração colonial lusitana referentes ao Brasil, por meio da sua microfilmagem, digitalização e difusão por meio eletrônico. Nesse conjunto, interessa destacar especialmente que a difusão dos numerosos documentos manuscritos referentes à capitania do Rio de Janeiro permitiu que a pesquisa histórica renovasse seus temas e aprofundasse a suas análises. Esse quadro geral evidenciou como a história colonial do Rio de Janeiro não pode prescindir do conhecimento dos acervos de origem portuguesa. Leia Mais

Ações militares e instituições marítimas brasileiras: da transmigração da corte lusitana à Independência | Navigator | 2021

Brigadada Real da Marinha Portuguesa
Brigada Real da Marinha Portuguesa | Imagem: Área Militar

Faltando menos de um ano para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, a Revista Navigator lança em seu novo número o dossiê intitulado “Ações militares e instituições marítimas brasileiras: da transmigração da corte lusitana à Independência”, organizado pelo professor doutor Fernando da Silva Rodrigues e pela professora doutora Mary Del Priore, ambos do quadro docente permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira.

Como disse Ortega y Gasset, “O passado é o único arsenal onde podemos encontrar os meios para tornar o nosso futuro eficaz”. Não nos lembramos do passado apenas por causa dele, e muito menos por um desejo de permanecer nele, por uma ânsia de imitá-lo. Foi assim que no ano de 2008 tiveram início as reflexões sobre o bicentenário de independência dos países latino-americanos, quando intelectuais de Espanha, Portugal e da América Latina voltaram ao passado procurando uma forma de interpretar o seu futuro imediato. Leia Mais

Os impérios ibéricos e a globalização da Europa (séculos XV a XVII) | BartoloméYun Casalilla

1 El autor, que desde hace varias décadas ha investigado sobre la historia del Imperio español, aborda ahora una comparación entre los dos primeros poderes globales: los imperios español y portugués. El libro está basado en ideas expuestas en su Marte contra Minerva (Madrid: Crítica, 2004), a las que se añaden discusiones teóricas más recientes. Esta edición en portugués es una traducción de una versión en inglés publicada en 2019. Esta historia global de los imperios ibéricos gira en torno a tres temas principales: (i) una evaluación de la leyenda negra; (ii) una crítica de recientes explicaciones neoinstitucionales; (3) la globalización vista desde los mundos ibéricos. Estos tres temas guían al autor en su interpretación del ascenso de los estados ibéricos a la preeminencia global, y las consecuencias que este proceso desencadenó en los equilibrios domésticos. El autor examina algunas narrativas que atribuyen a España y Portugal una imagen de atraso económico. Además, busca explicar el ascenso de las potencias ibéricas no como casos excepcionales, sino como vías alternativas a la modernidad. En esta línea, Yun ofrece explicaciones alternativas sobre los procesos de construcción del Estado desde la perspectiva del sur de Europa. Leia Mais

Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas | Ler História | 2021

1 Desde o início da história da imagem em movimento esta, à semelhança do que sucedeu com as performances teatrais, foi alvo de censura, não apenas em Portugal e Espanha mas em todos os países que a exibiam. A censura ao cinema existiu desde a origem do próprio cinema e, como argumenta Annette Kuhn (1988, 127) no seu estudo sobre a censura aos filmes no início do século XX, é um fenómeno complexo que deve ser entendido enquanto processo, na medida em que alia e resulta de diversas forças censórias que acabam por convergir. Neste sentido, e este é um aspecto comum a todos os países onde existiu censura ao cinema, e como os três artigos deste dossier concretamente demonstram, a censura não se pode reduzir a um conjunto de instituições e actividades institucionais predefinidas, mas está sujeita a constantes mudanças nos discursos, leis e práticas institucionais. Sue Curry Jansen (1991, 221) vai ao encontro destas reflexões definindo censura como um conceito que engloba todas as prescrições socialmente estruturadas que inibem ou proíbem a disseminação de ideias, imagens, informações, etc., obstruções estas que podem ser asseguradas por qualquer sistema de autoridade. Leia Mais

Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812) | Nivia Pombo

Para o início dessa narrativa tomemos como ponto inicial o título da obra em questão, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812), da historiadora Nívia Pombo, publicado em 2015, fruto da pesquisa de mestrado. Retirando por um momento todo conteúdo escriturário, de outro modo, todo fazer historiográfico que ordena o caos, o nome Dom Rodrigo de Sousa Coutinho marca um tempo. Para historiografia colonial, sobretudo a que se debruça sobre a virada do século XVIII para o XIX, o nome Dom Rodrigo remete a uma série de acontecimentos. Os códigos alfabéticos, amontoados uns aos outros formando o nome de um sujeito, uma sonoridade ímpar, transfere sorrateiramente quem o ler a um tempo histórico acelerado; de rupturas e continuidades de uma determinada ordem. Leia Mais

A Igreja Católica e o Estado Novo salazarista | Duncan Simpson

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira intensificou as relações com a historiografia portuguesa no âmbito da contemporaneidade do século XX. Inúmeros intercâmbios foram estabelecidos, e investigadores passaram com frequência a cruzar o Atlântico. No Brasil, nomes como António Costa Pinto, Fernando Rosas, Álvaro Garrido, Maria Inácia Rezola e Fernando Catroga começaram a fazer parte da discussão acadêmica e intelectual. Redes de pesquisa, como a rede Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em Português3, foram criadas com o propósito de apresentar, com maior dinamismo, resultados de pesquisas que buscam reflexões acerca do mundo lusófono.

Entre esses pesquisadores, destaco Duncan Simpson como um historiador necessário para o Brasil. Com uma vasta pesquisa sobre a história política e religiosa do Estado Novo salazarista, possui um sólido conhecimento e é um dos grandes nomes da historiografia, não apenas portuguesa, visto que está inserido em uma perspectiva transnacional. Leia Mais

Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa | Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva

Em edição revista e ampliada, a editora Imaginário lança A Bibliografia Libertária – O Anarquismo em Língua Portuguesa, de Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva, trabalho que sintetiza informações acerca da atividade editorial voltada para o pensamento e prática anarquistas em Portugal e no Brasil, constituindo um importante guia para leituras e estudos sobre o tema.

Buscando contemplar a atividade editorial libertária lusófona desde a década final do século XIX, a catalogação corrige e amplia consideravelmente àquela da primeira edição, que incluía apenas livros publicados em Portugal após 1974 e, no Brasil, a partir de 1980, datas que marcaram o ocaso das ditaduras que assolaram os dois países. A listagem, desta forma, inclui também as edições feitas no período de maior visibilidade do movimento anarquista, a fase de seu surgimento e propagação como movimento socialmente representativo, que vai da última metade do século XIX até meados dos anos 30 do século XX. Leia Mais

Pactos políticos en Iberoamérica| Almanack| 2021

Agua forte gravada por I Cruikshand 1808
“Bonaparte louco de raiva ou mais navios, colónias e comércio” | Água-forte gravada por I. Cruikshand, 1808, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga

La invasión de Napoleón a la península ibérica y los sucesos que siguieron fueron coyunturas propicias para instalar en el escenario peninsular e iberoamericano un novedoso re­pertorio de soluciones políticas. La crisis abierta en 1808 impulsó cambios inusitados. Como es conocido y ha sido profusamente estu­diado la necesidad de reformular los pactos entre los monarcas, sus reinos y sus súbditos, estuvo asociada a las posibilidades y alcance de la gobernabilidad de sus territorios. En el caso lusitano, la corona decidió cambiar la localización de su centro político desplazándolo al continente americano, concretamente a la ciudad de Rio de Janeiro en el Brasil. El caso español fue diferente. El ingreso de las tropas fran­cesas a España dio lugar a la vatio regis, un hecho insólito que obligó a replantear las bases de sustentación de la monarquía. Leia Mais

Os Governos do Império: Vice-reis, governadores e capitães-mores no mundo português (séculos XVI-XIX) – Trajetórias | Revista Ágora | 2021

Referências desta apresentação

[Os Governos do Império: Vice-reis, governadores e capitães-mores no mundo português (séculos XVI-XIX) – Trajetórias]. Revista Ágora. Vitória, v. 32, n. 2, 2021. Acessar dossiê [DR]

Lexico de termos technicos e scientificos ainda não apontados nos diccionarios da língua portuguesa | A Terminologia Zoologica e Scientifica em geral e a deficiencia dos grandes Diccionarios Portuguezes | Inopia scientifica e vocabular dos grandes diccionarios portugueses | Afonso d’Escragnolle Taunay

Introdução: Afonso d’Escragnolle Taunay

O professor, historiador, tradutor e lexicógrafo Afonso d’Escragnolle Taunay (Florianópolis, 11-06-1876 – São Paulo, 20-03-1958) era filho de Alfredo d’Escragnolle Taunay, Visconde de Taunay, e Cristina Teixeira Leite Taunay. Cursou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde se formou em Engenharia Civil em 1900. Tornou-se professor auxiliar de física e química da Escola Politécnica de São Paulo em 1904 e professor catedrático na mesma Escola a partir de 1910, onde lecionou Física Experimental, acumulando a docência acadêmica com aulas de ciências no Colégio São Bento. Exerceu vários cargos públicos, tais como diretor do Museu Paulista de 1917 a 1946, gestão na qual foi feita a transição do que incluía a seção de História Natural para o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, permanecendo o Museu Paulista como o atual museu histórico com esse nome.1 Organizou ainda o Museu Republicano de Itu, também pertencente à USP.

Foi também diretor dos Museus do Estado de São Paulo desde 1923, encarregado do Governo Federal para reorganizar a Biblioteca e o Arquivo do Ministério das Relações Exteriores em 1930, professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo entre 1934 e 1937. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto Histórico de São Paulo, da Academia Paulista de Letras, da Academia Brasileira de Letras (1929) e da Academia Portuguesa de História. Leia Mais

Miradas sobre os Centenários Portugueses (1940-2020) | Anais do Museu Histórico Nacional | 2021

Bandeira de Portugal 1248
Colagem. Bandeira do Estado Português de 1248 | Imagem: Wikipédia

No ano de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, Portugal promoveu a Exposição do Mundo Português, em comemoração do que ficou conhecido como Duplo Centenário: os 800 anos da fundação do Estado (1140) e os 300 anos da Restauração do trono com o fim da União Ibérica (1640). O evento celebrou o passado e, principalmente, o usou em favor da construção de uma imagem positiva e grandiosa para o Estado Novo Português (1933-1974). O Brasil foi o único país convidado, sendo apresentado como um exemplo de nação independente, mas que teria mantido seus laços com a antiga metrópole ao dar continuidade ao “processo civilizador” iniciado com a colonização. Esta mensagem deveria justificar e dar sentido ao imperialismo português para além-mar, garantido pela manutenção de suas colônias na África e na Ásia. Leia Mais

Pactos políticos en Iberoamérica | Almanack | 2021

La invasión de Napoleón a la península ibérica y los sucesos que siguieron fueron coyunturas propicias para instalar en el escenario peninsular e iberoamericano un novedoso repertorio de soluciones políticas. La crisis abierta en 1808 impulsó cambios inusitados. Como es conocido y ha sido profusamente estudiado la necesidad de reformular los pactos entre los monarcas, sus reinos y sus súbditos, estuvo asociada a las posibilidades y alcance de la gobernabilidad de sus territorios. En el caso lusitano, la corona decidió cambiar la localización de su centro político desplazándolo al continente americano, concretamente a la ciudad de Rio de Janeiro en el Brasil. El caso español fue diferente. El ingreso de las tropas francesas a España dio lugar a la vatio regis, un hecho insólito que obligó a replantear las bases de sustentación de la monarquía.

Los acontecimientos referidos produjeron amplios movimientos en el seno de las sociedades iberoamericanas que comenzaron a cuestionar las nuevas bases de los poderes instituidos. A partir de formatos conocidos, aunque reformulados en el marco extraordinario de principios del siglo XIX, los cabildos abiertos, las proclamas o las peticiones, por citar algunos ejemplos, fueron recurrentes. En el espacio hispanoamericano, las novedosas experiencias políticas que habían inaugurado las revoluciones de finales del siglo XVIII se replicaron, al mismo tiempo que aparecieron nuevas prácticas como es el caso del pronunciamiento cuyos contenidos y formalización fueron muy diversos.5 Aunque su marco legal puede ser cuestionado, el estudio de estas prácticas, del vocabulario utilizado y de la sociabilidad que generaron permite mostrar su papel real en el debate político. Leia Mais

Oração, penitência e trabalho: o Recolhimento de Santa Maria Madalena e São Gonçalo de Braga (1720-1834) | Maria Marta Lobo de Araújo

Recolhimento Santa Matalena Braga
Recolhimento de Santa Maria Madalena, Braga | Foto: aspa35anos.blogspot.com

ARAUJO M Oracao PenitenciaProfessora associada do Departamento de História da Universidade do Minho, há muitos anos Maria Marta Lobo de Araújo vem se dedicando ao estudo de diferentes tipos de instituições religiosas existentes na região noroeste de Portugal, durante a Época Moderna. As pesquisas da autora se inserem no âmbito de recentes tendências historiográficas que renovaram a História Social: o estudo das práticas e das crenças religiosas dos fiéis, o estudo da assistência à pobreza e à orfandade, o estudo da reclusão das mulheres e dos valores que a norteavam, entre outros temas de importância. O material empírico principal utilizado no livro é constituído pelo fundo do Recolhimento de Santa Maria Madalena, depositado no Arquivo Distrital de Braga. Paralelamente, outros fundos documentais pertencentes ao mesmo Arquivo foram também utilizados na pesquisa.

A obra abrange desde o período de fundação e entrada das primeiras recolhidas até 1834, quando o Recolhimento se revestiu de outras finalidades, em sintonia com os decretos liberais da época, que afetaram diretamente a existência de ordens religiosas masculinas e femininas em Portugal. O diálogo com a historiografia é profícuo, destacando-se os trabalhos dedicados a conventos e a recolhimentos femininos no Minho, mas sem descuidar da historiografia relativa aos referidos estabelecimentos que foi produzida em outras partes da Europa e nos antigos domínios portugueses. No esforço aqui empreendido para apresentar a obra aos leitores interessados, serão exploradas conexões com a literatura produzida a respeito do tema, particularmente aquela que tomou a América Portuguesa como pano de fundo. Leia Mais

O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na Primeira República | Gladys Sabina Ribeiro

Elaborei esse texto com o objetivo de discutir e analisar algumas questões presentes no livro O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na primeira república, de autoria de Gladys Sabina Ribeiro, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de longa data, o currículo de Gladys é extenso, possui graduação em história pela UFRJ (1979), especialização (1984) e mestrado (1987) pela UFF e doutorado pela UNICAMP (1997). Grande parte da sua produção é voltada para temas relacionados ao antilusitanismo, cidadania, direito, nação e identidade nacional, com ênfase na história do Brasil Império e Primeira República.

Quando avistamos um livro, a primeira coisa que nos chama atenção é a capa. A foto escolhida para a capa do livro analisado é de autoria do fotógrafo Augusto Malta e datada de 1920. A imagem nos remete ao Rio de Janeiro urbano. Na fotografia percebemos seis homens ao redor de um quiosque, alguns encarando a câmera e outros distraídos. A imagem tem uma linguagem que fala por si só, ao segurar o livro logo nos remetemos ao Rio de Janeiro da Primeira República, quando a modernidade buscava apagar e mascarar alguns hábitos tidos como indesejáveis pela elite dominante (como é o caso dos tragos de paraty e as cusparadas que compunham o ambiente dos quiosques). Já o título “O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas” nos remete à um outro ambiente e quem julga o livro pelo título pode entender que a obra aborda o aspecto cultural que permeia a música portuguesa e os costumes portugueses, mas não é essa a proposta da autora. Em nenhum momento do texto é abordada a questão das festas portuguesas ou mesmo da música e creio que a palavra “Fado” só é citada no título do livro, bem como “Minhoto” e “Alfacinha”. No entanto, o subtítulo é muito preciso “o antilusitanismo na primeira república”. A obra trata disso. Leia Mais

Cartografia da promessa. Potosi e o Brasil num continente chamado Peruana

1 Certos livros, passadas décadas de sua publicação, continuam seminais. Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, é um desses casos. O texto de titularidade do historiador é denso, erudito, com uma tese instigante que continua a movimentar a leitura e o debate mesmo 60 e poucos anos depois de seu surgimento.

2 Em Visão, Sérgio Buarque afirma que lhe interessava fazer a “biografia de uma ideia”, de como se forjou uma visão do Brasil como terra edênica. No longo e sinuoso percurso para construir seu argumento, ele advoga que os portugueses, no Brasil, deixaram a maravilha de lado em nome da experiência, da concretude de uma terra sem os achados de riqueza dos vizinhos espanhóis. Por antítese, os espanhóis, pródigos em minas de ouro e prata, abraçaram o discurso do maravilhoso. Ademais, ele constatou que, nos mapas portugueses, o Brasil aparece não como uma separata, mas como um complemento à montanha de prata de Potosí. Leia Mais

Jesuítas e Modernidade | Antíteses | 2021

Além da missionação, aspecto que, por muito tempo, mais atenção recebeu da historiografia – para exaltar as atividades dos religiosos, numa primeira vertente, e para rever os resultados dos encontros e tensões culturais entre eles e os “nativos” ou povos originários, num outro movimento –, os jesuítas se envolveram em discussões teológicas, com a manutenção de fazendas, de hospitais e de enfermarias, com a investigação e utilização da natureza, com o sistema escravista (sua justificação e sua participação), com a sistematização de línguas até então desconhecidas dos europeus, com a instrução formal, básica e universitária (de indígenas, de colonos e de reinóis), com a política em seus mais diferentes níveis – vide, por exemplo, as querelas com Marquês de Pombal que desencadearam na expulsão desses religiosos dos domínios lusos –, enfim, com uma gama ampla de camadas que envolviam o cotidiano moderno, muito além da atribuição primeva de zelar pelas almas. É sobre essa múltipla atuação da Companhia de Jesus, uma das ordens religiosas mais presentes – senão a mais – no Brasil ao longo do chamado período colonial, nas então colônias da Coroa espanhola na América e em diversos territórios à leste, como em Macau e Goa, além da própria Península Ibérica, que os estudos aqui reunidos se debruçam. Leia Mais

Guerras de papel: comunicação escrita, política e comércio na monarquia ultramarina portuguesa | Romulo Valle Salvino

O livro de Romulo Valle Salvino, adaptação de sua tese de doutorado (SALVINO, 2018), se propõe a analisar a história de um projeto fracassado: a tentativa de atuação de representantes do Correio-mor na América portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. As guerras de papel, aludidas no título, se referem aos dissensos e disputas, políticas e judiciais, travadas em diferentes instâncias da monarquia portuguesa pelos grupos e indivíduos envolvidos nesse processo que se estendeu entre meados de 1650 até, aproximadamente, 1750.

A abordagem se estrutura ao redor de três eixos principais, com envergaduras cronológicas distintas e naturezas específicas. Primeiro, o deslocamento de uma concepção jurisdicionalista do poder e da administração da economia para uma economia política. Em segundo lugar, o ofício de Correio-mor é tomado como um indício da lógica patrimonial de gestão administrativa da monarquia que passa a receber profundas críticas. Por fim, o terceiro eixo consiste nas estratégias específicas das coletividades e agentes engajados na instalação, ou oposição, do Correio-mor nos domínios portugueses na América completando, assim, a unidade de análise esboçada pelo autor. Leia Mais

Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822) | José Luís Cardoso

1 “Ele foi talvez o primeiro que soube achar a época, e o termo preciso, em que o direito de insurreição contra a tirania, é não só uma virtude digna de aplauso dos presentes, da comemoração dos vindouros, e mesmo de apoteose, mas também o exercício de um direito político”.[1] Manuel Fernandes Tomás e o movimento revolucionário de 1820 estão indissoluvelmente ligados. Jurista consagrado, oriundo da Figueira da Foz, concluídos os estudos na Universidade de Coimbra, após o desempenho de diferentes cargos, em 1820 encontrava-se a exercer funções de desembargador no Porto há três anos. Foi um dos membros do Sinédrio, ministro do Interior e da Fazenda da Junta Provisional do Reino, deputado às Cortes Constituintes, reeleito em 1822, ano em pereceu. O seu papel em momentos-chave da implantação do regime vintista foi essencial, a ele se devem textos fundadores, responsabilidades decisivas como a organização das primeiras eleições dentro do quadro liberal, e intervenções parlamentares decisivas. Na memória democrática, ficou consagrado como uma figura impoluta, corajosa, um político competente e um grande orador. Columbano e Veloso Salgado atribuíram-lhe espaço destacado nas duas principais representações pictóricas do edifício da Assembleia da República. “A primeira revolução liberal portuguesa tem a sua personificação em Fernandes Tomás”, escreveu José Arriaga.[2]

2 Contudo, até recentemente não se dispunha de nenhuma ampla antologia dos seus textos, em contraste com outros políticos, como Almeida Garrett ou Passos Manuel, que em vida reuniram os seus discursos parlamentares em livro. As únicas obras dele impressas em vida foram duas notáveis contribuições para a história do direito do Antigo Regime, um estudo sobre a propriedade e um repertório legislativo. O seu precoce desaparecimento, no início da segunda legislatura do regime vintista, e o apagamento da memória do vintismo durante as longas décadas de cartismo e do Estado Novo explicam-no. A recolha dos textos da sua autoria organizada por José Luís Cardoso veio preencher o vazio existente, sendo o livro em boa hora editado no ano do bicentenário da revolução de 1820, seguindo-se a outro seu livro sobre a revolução, com excelente fundamentação e bem organizado, numa linguagem acessível e de grande qualidade gráfica.[3]

3 Manuel Fernandes Tomás e a revolução de 1820 constituem alicerces fundamentais da memória e da história do liberalismo português. Foi valorizada pela corrente republicana, como o comprova a monumental História da Revolução de 1820 de José Arriaga (1886-89), onde Manuel Fernandes Tomas ocupa um lugar destacado. Também Luís Augusto Rebelo da Silva o incluiu em Varões ilustres das três épocas constitucionais (1870). Com o advento do Estado Novo, esta época esteve marginalizada, excluída da história oficial ensinada nas escolas ou difundida publicamente, onde ainda não ocupa o lugar merecido. O século XIX e o primeiro quartel do século XX eram considerados em bloco como um período negro, sobre o qual incidiu um pesado silêncio oficial.

4 Alguns historiadores isolados da oposição democrática principiaram a debruçar-se sobre esta época a partir da década de 1940. Com o restabelecimento de um regime liberal em Portugal, democrático, principiou-se um estudo mais sistemático da história do liberalismo monárquico e republicano. Manuel Fernandes Tomás foi desde logo objeto de um estudo de José Manuel Tengarrinha, acompanhado da publicação de alguns dos mais importantes documentos produzidos por ele e de várias intervenções parlamentares sobre temas fundamentais como a liberdade de imprensa ou o âmbito do sufrágio. Alguns anos decorridos, José Luís Cardoso viria a dedicar-lhe uma biografia (1983), recentemente reeditada (Manuel Fernandes Tomás. Ensaio histórico-biográfico. Coimbra: Almedina, 2020). Deve-se a Cecília Honório a primeira tese de doutoramento que lhe foi dedicada, e que é a biografia política mais completa a seu respeito. Nela são analisadas pela primeira vez as principais intervenções parlamentares e os outros textos da sua autoria (Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República, 2009).

5 A antologia de textos agora publicada por José Luís Cardoso é precedida de um longo estudo introdutório de cerca de 40 páginas. Nele se faz uma análise abrangente das questões abordadas por Manuel Fernandes Tomás e da sua contextualização, em introduções específicas relativas a cada um dos blocos de textos. Este trabalho analítico é entremeado de útil bibliografia da época acerca de questões similares, um instrumento de trabalho estimulante de futura abordagem comparativa aqui iniciada. De salientar uma contribuição para o estudo das influências ideológicas no meio político, mediante um quadro quantificando as citações de diferentes autores estrangeiros nos trabalhos parlamentares.

6 Os textos selecionados foram agrupados em cinco blocos. No primeiro reúnem-se os manifestos e proclamações, textos anónimos cuja atribuição a MFT é indubitável e que constituem textos emblemáticos do vintismo, a que se juntaram os discursos oficiais e ofícios. Estas páginas permitem-nos acompanhar o processo de implantação do novo regime desde os seus primeiros momentos. O discurso da sala do Risco do Arsenal conduz-nos ao universo das sociedades patrióticas, uma nova forma de sociabilidade característica desta época. Os principais políticos cruzavam-se nessas sociedades, foi o caso de José Xavier Mouzinho da Silveira e Manuel Fernandes Tomás, tendo o primeiro presidido e discursado no jantar comemorativo do 1º aniversário do 24 de Agosto, promovido pela Sociedade Constitucional,[4] e que agora ficamos a saber ter estado igualmente presente na cerimónia comemorativa do 1º aniversário do 15 de Setembro promovida por esta sociedade, na qual discursou Fernandes Tomás (Cardoso, op. cit., 35 e 98-100). Dois textos com estilos e metáforas muito diferentes, mas onde se expressa o mesmo repúdio por uma sociedade baseada nos privilégios e o elogio da liberdade, no caso de Mouzinho associada ao fim da escravatura e à “união em liberdade dos dois separados hemisférios”, uma questão fundamental para a definição do espaço nacional. Tal união viria a ser por ele referida já como periclitante no mesmo círculo, decorrido um ano, a dois meses da independência do Brasil. Em 1823 consideraria urgente dá-la por encerrada para delinear nova orientação do governo.

7 As intervenções parlamentares de M. F. Tomás a respeito da questão brasileira permitem acompanhar a evolução da sua atitude e situá-la na gestão deste problema pelos constituintes neste período de transição, em si já bem estudada.[5] Admitindo a inevitabilidade da independência a longo prazo, considerava que no imediato o novo regime de liberdade permitiria o desenvolvimento conjunto das duas regiões intercontinentais da coroa portuguesa, no interesse recíproco. A “Proclamação aos habitantes do Brasil”, datada de julho de 1821, expressa essa posição de forma convicta num texto dirigido à população, posição retomada no folheto “Lutero, o padre José Agostinho de Macedo e a Gazeta Universal” (1822), incluído na secção III (pp. 190-192). Face às resistências brasileiras, esta posição alterna com a admissão de mau grado da separação do Brasil, excluindo sempre qualquer intervenção militar.

8 O segundo bloco, intitulado “Ação governativa”, é constituído por um único documento, o famoso relatório sobre o estado e administração do reino, fruto da sua própria experiência como ministro do interior e a da fazenda na Junta Provisional, apresentado às Cortes logo no seu início. O terceiro e quarto blocos constituem as partes mais inesperadas para um leitor menos conhecedor desta época. Que um ministro e depois deputado prestigiado tenha publicado anonimamente as Cartas do Compadre de Belém e um pouco mais tarde um jornal juntamente com Ferreira de Moura, deputado com quem estava em alguma sintonia, testemunha de profunda osmose entre a ação política e as novas formas de comunicação impressa. Folhetos e jornais tornam-se, de 1820 em diante, o instrumento novo e inebriante do debate de ideias e de difusão de notícias. Mais de uma centena de jornais são editados no período vintista, com formato, dimensão e duração muito variáveis.

9 A iniciativa de lançar o jornal O Independente (publicado de novembro de 1821 a março de 1822) inseria-se neste movimento descrito de forma entusiástica no editorial do primeiro número: “a variedade de assuntos, a rapidez, com que são tratados; […] a facilidade de se obterem estes escritos e a brevidade com que se leem […]”. Desde os primórdios da imprensa periódica que a desinformação e a invocação errática da “opinião pública” não tardaram a aparecer, como se alerta logo no terceiro artigo, “Testemunhos falsos que se costumam levantar à opinião pública”. Esta iniciativa explica-se também pela ausência de partidos políticos nesta época. O jornal é um instrumento de difusão alargada dos debates parlamentares e uma forma de fortalecer as posições de ambos os deputados nesses debates, por isso se caracteriza por um número elevado de artigos de opinião. José Luís Cardoso agrupou-os em quatro secções temáticas: Cidadania Constitucional, Reformas institucionais, Economia e Finanças, e Segurança pública.

10 O quinto e último bloco de textos, o mais extenso, contém uma ampla seleção dos discursos parlamentares, ultrapassando as duas centenas de páginas. MFT teve intensa participação parlamentar, intervindo como orador em 281 sessões ao longo de 21 meses e 7 dias, em regra com mais de uma intervenção em cada sessão, como nos informa J. Luís Cardoso. O total de registos do seu nome como orador eleva-se a 580. Compreende-se que a obra de Cecília Honório, já mencionada, tenha sido incluída na Colecção Grandes Oradores, dirigida por Zília Osório de Castro. Naturalmente, as intervenções tiveram dimensão e significado muito variável. Para esta antologia foram selecionados 119 discursos, utilmente agregados em dez grupos, de que é impossível dar uma súmula aqui, sendo cada um deles objeto de análise cuidada no estudo introdutório.

11 Pode questionar-se a sua sequência, seria porventura mais lógico que os grupos das intervenções sobre princípios constitucionais, soberania e a divisão de poderes antecedessem o grupo sobre a justiça e a sua organização. Agregar os textos segundo o tema dominante, nem sempre o único, não foi fácil, como releva o autor. Poderia preferir-se que o debate sobre os jurados e a lei de imprensa fosse inserido no grupo acerca deste tema e não no da justiça, ou pelo menos fosse ali referido. Também pode lamentar-se que não se tenha indicado a que projeto-lei se refere cada intervenção ou grupo de intervenções, ou quem é o “preopinante” referido aqui e ali – e uma pequena nota sobre o significado desta palavra caída em desuso podia também ser útil. Sendo possível hoje a consulta on-line do Diário das Cortes, é certo que o leitor poderá fazer essa pesquisa, com maior facilidade do que anteriormente. Nada disto diminui o mérito do trabalho realizado, a seleção e organização temática dos principais discursos parlamentares constitui uma obra da maior utilidade e é porventura a contribuição mais valiosa desta antologia, no seu conjunto com grande interesse histórico.

12 As intervenções parlamentares de Fernandes Tomás foram com grande frequência decisivas, conhecê-las permite compreender o que esteve em jogo e a mentalidade da época, e a capacidade de MFT encontrar a mudança possível, adequada ao momento. Veemente na defesa da abolição da Inquisição, da censura prévia da imprensa ou a favor do sufrágio alargado, foi também conciliador em relação à liberdade religiosa e à reforma dos forais. A sua posição política tem sido assim classificada de gradualista, pontuada de escolhas radicais. A igualdade perante a justiça tornava inadiável a reforma da justiça e J. Luís Cardoso acentua justamente a relevância das reflexões e propostas sobre o sistema de justiça, cuja dimensão passara desapercebida até agora. Também Borges Carneiro, de cujas propostas discordava frequentemente, apontara a prioridade devida à reforma do código penal existente (Portugal Regenerado, 1820).

13 Esta obra ora publicada representa uma contribuição valiosa para o pensamento e a ação de um dos principais políticos do vintismo e abre o caminho à abordagem comparativa entre os diferentes políticos liberais numa base mais consistente, permitindo um conhecimento mais completo acerca desta época.

Notas

1. Ferreira Moura, DCC, 4/1/1823, p. 347, in Cecília Honório, Manuel Fernandes Tomás, 1771-1822. Lisboa: Assembleia da República/Texto, 2009, p. 26.

2. José Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820. Porto: Livraria Portuense, 1886-1889, t. III, p. 632, in Honório, op. cit., p. 15.

3. José Luís Cardoso, A Revolução Liberal de 1820. Lisboa: Clube do Colecionador dos Correios, 2019.

4. Ver M. H. Pereira et al. (eds), Obras de Mouzinho da Silveira. Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, 1989, v. I, p. 53 n. 83 e v. II, pp. 1917-20.

5. Ver Valentim Alexandre, “Nacionalismo vintista e a questão brasileira”, in M. H. Pereira et al. (org), O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982, v. 1, pp. 287-307; Zília Osório de Castro, Portugal e Brasil. Lisboa: Assembleia da República, 2002.

Miriam Halpern Pereira – CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]


CARDOSO, José Luís Cardoso (org). Manuel Fernandes Tomás. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020. 538p. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História. Lisboa, n.78, p.296-300. Acessar publicação original [IF]

La península ibérica entre la Antigüedad Tardía y la Alta Edad Media (siglos VI-XI) | Intus-Legere Historia | 2021

El presente número monográfico, titulado La península ibérica entre la Antigüedad Tardía y la Alta Edad Media (siglos VI-XI), lo integran un total de doce trabajos elaborados por catorce especialistas en la historia de la Antigüedad Tardía y el período medieval en la península ibérica. Los perfiles de los autores se caracterizan por una notable diversidad, tanto por sus procedencias (mayoría de españoles, junto con investigadores de Alemania, Portugal, México y Marruecos), como por sus especialidades académicas (expertos en la Antigüedad, medievalistas, arabistas, historiadores del Arte, arqueólogos) y sus propias trayectorias, ya que junto a veteranos investigadores con amplia experiencia figuran también otros más jóvenes que se encuentran en etapas más iniciales de sus respectivas carreras. En conjunto, creo que este grupo, que aúna juventud y experiencia, constituye una buena representación del panorama actual de los estudios hispánicos medievales durante la etapa analizada.

La combinación de un panel de autores tan diverso ha sido un objetivo buscado de manera consciente, con la intención de ofrecer una muestra amplia y representativa de algunos de los temas principales que, en la actualidad, se están trabajando sobre los períodos tardoantiguo y altomedieval en la Península. Esta extensa fase histórica comprendida entre la consolidación del reino visigodo de Toledo durante el reinado de Leovigildo (569-586) y la conversión al catolicismo de Recaredo (589) y la caída del Califato Omeya de Córdoba (1031), representa una de las etapas más importantes y, a la vez, peor conocidas de la historia peninsular. Sin duda, la escasez de fuentes escritas ha sido el obstáculo más importante que ha lastrado de forma tradicional el desarrollo de esta fase respecto a la que, sin embargo, la Arqueología viene realizando contribuciones decisivas durante las últimas décadas, haciendo posible, así una profunda renovación de estudios de la que algunos de los autores que colaboran en este volumen han sido protagonistas directos. Leia Mais

Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos | Revista Ágora | 2020

No ano do bicentenário da Revolução de 1820, organizamos junto à Revista Ágora o dossiê “Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos”. O decênio de 1820 foi marcado por diversos movimentos revolucionários em Portugal e no Brasil. A Revolução do Porto inaugurou a agenda de sublevações no mundo português, configurando-se acontecimento que influenciaria nos rumos políticos nos dois lados do Atlântico.

Inspirada em princípios liberais, o movimento iniciado na cidade de Porto, em poucas semanas alcançaria Lisboa e não tardaria a ser notícia também no Brasil. Verdadeira guerra literária fora travada na imprensa no Brasil e em Portugal. Periódicos e folhetos difundiam nova pauta política, ressignificando conceitos e divulgando novo vocabulário constitucional. Leia Mais

El mundo en movimiento. El concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico Norte (siglos XVII-XX) | Fabio Wasserman

Fabio Wasserman presenta esta obra con un párrafo de la Gaceta de Lima de 1793 que evidencia la centralidad que tuvo la Revolución francesa en el área atlántica. Centralidad que los autores/as retoman como inicio de la nueva trayectoria del término revolución, siguiendo el análisis de Reinhart Koselleck. Así, desde 1789 la palabra revolución pasó de su sentido natural y cíclico, a un significado nuevo que designa una ruptura, constituyéndose como uno de los conceptos clave de la modernidad, orientado al futuro y portador de una experiencia inédita de aceleración del tiempo histórico. Leia Mais

Religiões e religiosidades: dinâmicas institucionais e práticas devocionais (Brasil e Portugal, séculos XVIII e XIX) | Temporalidades | 2021

Basta lermos o jornal ou assistirmos ao noticiário na TV para percebermos que a temática da religião é recorrente em nosso dia a dia. Quem nunca ouviu a expressão bancada evangélica ou escutou que grupos políticos alteraram seus discursos para não desagradar a determinados segmentos religiosos? Quem, nos últimos 20 anos, não se deparou com o conceito de fundamentalismo ou de guerra santa? Não há como negarmos a influência cultural das religiões ainda hoje. Além disso, percebemos uma constante tensão entre diferentes crenças no Brasil. Basta uma busca rápida no Google para localizarmos diversas informações sobre a violência e a intolerância religiosa. O jornal Correio Brasiliense divulgou, no ano de 2019, que as religiões afro-brasileiras são alvos de 59% dos crimes de intolerância no Distrito Federal [1]. O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015) analisou a crescente violência noticiada na imprensa. Segundo os dados, 53% dos agredidos são de religiões afro-brasileiras [2]. O que explicaria toda essa violência? Por que as religiões afro-brasileiras sãos as que sofrem mais ataques? Não são questões simples de serem respondidas, mas são possíveis de serem analisadas à luz da História das Religiões. Marcelo Massenzio, ao analisar a obra de Angelo Brelich, lembra-nos que os fenômenos que atribuímos ao plano da religião podem ser percebidos em distintas sociedades, mas o conceito religião não. Este é uma construção própria do ocidente cristão (MASSENZIO, 2005, p. 179). Leia Mais

Em defesa da liberdade. Libertos/coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa/1720-1819) | Fernanda Domingos Pinheiro

Os estudos sobre alforrias e sobre o acesso de libertos e livres de cor à Justiça, a fim de assegurar a liberdade contra investidas de herdeiros, de testamenteiros, de credores e, até mesmo, de senhores arrependidos, já é um campo consagrado na historiografia brasileira. O livro de Fernanda Pinheiro insere-se nesse campo. Porém, não se trata apenas de mais uma contribuição ao tema. Em defesa da liberdade estabelece uma nova forma de abordagem do assunto no universo da pesquisa sobre o acesso de forros, crioulos e africanos aos tribunais. Logo de início, os arranjos de liberdade, reconstruídos por Fernanda Pinheiro, por sua variedade, surpreendem a leitora e o leitor. Ela confere originalidade e força aos estudos sobre o tema e o faz por, pelo menos, três caminhos. Leia Mais

Tribunal do Santo Ofício Português, 200 anos após extinção: história e historiografia | Politeia: História e Sociedade | 2021

SOBRE A TRAJETÓRIA DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS

Por meio da bula Cum ad nihil magis, assinada em 23 de maio de 1536, o papa Paulo III atendeu à solicitação do rei de Portugal, Dom João III, que realizava investidas no sentido de conseguir a autorização para implantação do Santo Ofício português. 1 Tentativas ocorriam desde o reinado de Dom Manuel I, mais precisamente desde o ano de 1515, quando este monarca escreveu ao embaixador de Roma, Dom Miguel da Silva, pedindo que fosse enviada uma solicitação ao Papa Leão X, para que o pontífice criasse para Portugal um Tribunal da Inquisição, nos moldes de seu congênere espanhol. Diante das tensões entre os cristãos novos portugueses e espanhóis e, também, dos conflitos entre a população cristã e os conversos, Dom Manuel pretendia “tutelar a autonomia jurisdicional dos seus territórios, recusando as invasivas pretensões dos inquisidores castelhanos” (MARCOCCI, 2011, p. 23). Durante duas décadas, muitas foram as iniciativas, tanto da coroa portuguesa quanto de setores eclesiásticos no sentido de alcançar esse objetivo.2

Embora a bula papal tenha sido assinada em maio de 1536, apenas cinco meses depois, mais precisamente em 22 de outubro, ocorreu a cerimonia de publicação, na Catedral de Évora, cidade de habitação, na época, da corte portuguesa, na presença do inquisidor-geral, do rei, do cardeal, do cabido e todo o restante do clero e da população da cidade e arredores. A leitura da bula tornava públicos, aos ouvintes, o ato de criação da instituição, esclarecimentos sobre o caráter da Inquisição, bem como sobre os delitos de sua alçada. Conforme Marcocci e Paiva (2013), o Santo Ofício português começou a funcionar no dia 22 de novembro de 1536, na pousada do Inquisidor-geral, Dom Diogo da Silva, espaço no qual foram ouvidas “testemunhas contra a cortesã cristã-nova Madalena de Oliveira. Em janeiro do ano seguinte, desencadearam-se os primeiros processos” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 35).

Ainda no ritual do estabelecimento, foi feita a leitura do Édito da Graça, que estabeleceu o prazo de 30 dias para que as pessoas que tivessem cometido crimes de heresia pudessem se apresentar diante do Santo Ofício, demostrando arrependimento. Ao término do tempo da Graça, “em 19 de novembro o inquisidor-geral publicou um monitório com descrição pormenorizada dos crimes sob jurisdição inquisitorial que deveriam ser denunciados ao tribunal” (BETHENCOURT, 2000, p. 25).

Desde o início, a alegação utilizada para o estabelecimento da Inquisição portuguesa era o crescimento das heresias junto aos cristãos novos portugueses. Embora a alçada da Inquisição diga respeito a uma variedade de crimes contra a fé (judaísmo, maometismo, protestantismo, molinismo, deísmo, críticas aos dogmas etc), e estivessem contemplados, também, entre os delitos previstos, práticas que atentassem contra a moral cristã e os bons costumes (bigamia, sodomia, feitiçaria, solicitação etc), o objetivo principal da Inquisição portuguesa era, mesmo, perseguir e punir práticas de judaísmo em meio aos neófitos do cristianismo. Até a primeira década do seiscentos, o Santo Ofício português também se preocupou com desviantes identificados com os erasmianos, com luteranos e calvinistas e com o avanço das ideias reformadas, como esclarece Elisete da Silva (2020, p. 38). A tentativa de controle por meio de leituras proibidas está em destaque nesse período, como nos séculos seguintes.

O crescimento do judaísmo em Portugal esteve associado à conversão forçada dos judeus, banidos da Espanha pelos reis católicos. Em dezembro de 1496, Dom Manuel publicou um decreto de expulsão, estabelecendo um prazo de dez meses para que judeus e mouros deixassem Portugal, como esclarecem Marcocci e Paiva (2013, p. 25):

4 de dezembro de 1496, em Muge, onde se encontrava a corte de D. Manuel I, fora anunciada a expulsão dos judeus e muçulmanos residentes em Portugal, sem que a sua coexistência com a maioria cristã tivesse provocado, no século XV, tensões semelhantes às ocorridas em Castela e Aragão. Ali, em 1492, os Reis católicos, Fernando e Isabel os judeus (mas não os muçulmanos).

A medida adotada por D. Manoel, atendia ao disposto no contrato de casamento entre o rei português e Isabel de Aragão, filha dos reis espanhóis. Contudo, ao término do prazo previsto, em fins de outubro do ano seguinte, os judeus que ainda estavam em Portugal foram proibidos de sair do país:

Em fins de outubro de 1497 expirou o prazo para que os judeus deixassem Portugal. Milhares deles, que se dirigiram para o porto, receberam o comunicado de que, uma vez que já havia se findado o prazo, eles seriam considerados, a partir de então, escravos do rei. A ordem foi revogada logo em seguida, mas o rei ordenou que todos fossem batizados à força. Esse episódio justifica, em parte, o grau elevado de criptojudeus em Portugal e seus domínios (SOUZA, 2008, p. 90).

O presente texto, de caráter introdutório, panorâmico e de apresentação não tem por objetivo trazer minúcias da história de quase trezentos anos de existência do Santo Ofício português, não só pela longevidade da instituição, mas também pela extensão geográfica de sua atuação: a Inquisição lusa foi atuante não apenas em Portugal, mas em todo o território ultramarino do reino, nos continentes americano, africano e asiático. Durante o período de existência do Santo Ofício português, existiram três tribunais, com sedes em Lisboa (1536-1821), Évora (1536-1821) e Coimbra (1541-1821). 3 O primeiro tinha por jurisdição, além de regiões do reino, também o Brasil, ilhas do Atlântico e posições portuguesas na costa ocidental da África. O único tribunal fora de Portugal foi o de Goa, na Índia, instituído em 1560, que tinha também sob sua jurisdição a costa oriental africana.

Restrições impostas pelo papa, na primeira década de existência da Inquisição portuguesa, não agradavam D. João III, pois feria a sua autonomia. Como destaca Antônio José Saraiva (1994), dos quatro inquisidores, três eram nomeados diretamente pelo papa e ao monarca era autorizado escolher apenas um. Outros indicativos de cerceamento de autonomia da monarquia portuguesa pelo papado são elencados pelo autor:

Além disso, determinava que durante três anos os nomes das testemunhas de acusação não fossem secretos, e que durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados. Os bispos teriam os mesmos poderes que os inquisidores no conhecimento das heresias. Por intermédio do seu núncio em Lisboa, o Papa reservava-se o direito de fiscalizar o cumprimento da bula, de conhecer os processos quando o entendesse e de decidir em última instância (SARAIVA, 1994, p. 50).

O controle do sumo-pontífice sobre a Inquisição portuguesa, sobretudo no que se refere à condução dos processos contra cristãos novos, foi superado apenas com a bula Meditatio Cordis, publicada em julho de 1547, que dotou o Santo Ofício português “das faculdades ambicionadas, sobretudo maior autonomia face a Roma e possibilidade de realizar processos secretos anulando ainda os poderes da bula de 1536 que tinha dado a vários bispos inquisidores, agora todos exclusivamente concentrados em D. Henrique” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 38). 4

Na década de 1540, marcada por conflitos, várias bulas e breves foram publicados e revogados: “Chegou-se mesmo a levantar a possibilidade de um rompimento […] com Roma. A última cartada de Paulo III foi a promulgação de um breve datado de 8 de janeiro de 1549, em que abolia o segredo das testemunhas, porém nunca entrou em vigor em terras lusitanas” (SOUZA, 2014, p. 56).5

O tribunal do Santo ofício português foi, ao mesmo tempo, régio e eclesiástico e, desde o momento de seu nascimento, foi de fundamental importância para a política de centralização do poder monárquico. Mas, apesar de ter conseguido consolidar a tão sonhada autonomia, a Inquisição portuguesa e as suas ações contra os cristãos novos permaneceram, até princípio do século XVII, sob o controle de Roma. Exemplo disso é Perdão Geral de 1605, concedido pelo papa Clemente VIII, o quarto perdão emitido por esse mesmo papa, segundo Elias Lipiner (1977). Por meio desse breve, foram beneficiados 70 homens e 85 mulheres que se encontravam presos nos cárceres do Santo Ofício.6 Dentre as mulheres que alcançaram a liberdade por força desse ato, estavam três moradoras da Bahia todas da família Antunes, sendo duas filhas – Beatriz e Leonor – e uma neta – Ana Alcoforada – do casal Ana Rodrigues e Heitor Antunes. 7

Ainda referente ao Perdão de 1605, em um livro de correspondência da Inquisição de Lisboa encontramos anotações de uma carta enviada para a Bahia, datada de 16 de março de 1605, informando que foi remetido um maço com documentação destinada ao bispo do Brasil, Dom Constantino Barradas, com uma missiva do “Senhor Inquisidor Geral” – na época, D. Pedro de Castilho – e da Mesa inquisitorial avisando “que as pessoas que estivessem lá presas por ordem do Santo Ofício, as mandasse soltar” e tornar seus bens, pagando somente o que tinham custado com suas pessoas. 8

No reinado de Dom João IV, tiveram lugar vários conflitos entre a coroa e poder inquisitorial, relacionados à guerra com a Espanha, ao reconhecimento da restauração da monarquia portuguesa e, ainda, por conta das ações frente aos cristãos novos envolvendo o padre Antônio Vieira. Esclarece Novinsky (1978, p. 13):

Durante o reinado de D. João IV, quando atrás do monarca soprava a voz do padre Antonio Vieira, a Inquisição se viu seriamente ameaçada e privada de seus lucros. Os desentendimentos entre Coroa e Inquisição alcançaram então seus extremos. Apesar da indignação dos Inquisidores com a formação da Companhia de Comércio para o Brasil (1649) e o Alvará que isentou do confisco os mercadores cristãos novos acionistas da Companhia, D. João IV teve a coragem de desafiar a Inquisição e mandou retirar desta a autoridade administrativa do Fisco, ordenando que passasse para o Conselho da Fazenda, alegando ainda que não era conveniente que os Inquisidores se “distraíssem” com negócios alheios a sua função principal, visto haver pessoas que atrevidamente punham em dúvida o escrúpulo usado no manejo dos seqüestros (1655).

No bojo da relação entre monarquia portuguesa e o tribunal do Santo Ofício, foi revelado, em 1641, um complô articulado pelo então inquisidor geral, D. Francisco de Castro, com o intuito de assassinar o rei. Para Saraiva, essa conspiração tinha por objetivo reestabelecer a união ibérica. O episódio insere-se na luta por poderes entre o rei e papa, do qual o Inquisidor geral era o representante:

O Inquisidor-Geral tinha a qualidade e os poderes de delegado do Papa, podendo inclusive lançar excomunhões reservadas à Santa Sé. Era, no entanto, designado pelo Rei, limitando-se o Papa a confirmar essa designação. Uma vez nomeado e confirmado, o Rei não tinha mais qualquer poder ou controlo sobre este seu súbdito que assumia dentro do Reino os poderes e a autoridade do mesmo Papa em matéria de Fé. Embora nomeasse o Inquisidor-Geral, o Rei não podia destituí-lo, fossem quais fossem as circunstâncias (SARAIVA, 1994, p. 159).

Outro episódio decisivo relativo às ações inquisitoriais diz respeito à suspensão dos processos da Inquisição portuguesa, em 1674, por meio do breve Cum dilecti, do Papa Clemente X. O poder só foi restituído ao Santo Ofício português em 1681, já no pontificado de Inocência XI. Segundo Marcocci e Paiva (2013, p. 204), depois “do perdão geral de 1604-1605, a suspensão dos processos e cessação dos autos de fé foi a maior derrota da inquisição”.

Para uma melhor compreensão sobre os afazeres inquisitoriais, sobretudo no que se refere às atividades repressivas, trazemos um quadro geral baseado na análise de documentos e em informações presentes na historiografia referente aos tribunais de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa. No período que se estende de 1536 a 1605, desde a instalação do tribunal em Portugal até a concessão do Perdão Geral, foram processados mais de 10 mil indivíduos, sendo que aproximadamente 7,4% foram condenados à morte. 9 De 1606 a 1674, período que começa no ano seguinte à concessão do Perdão Geral e termina com a suspensão da Inquisição pelo papa, foram sentenciados pelo Santo Ofício português mais que o dobro do período anterior: 22.481 pessoas, das quais 863 foram relaxadas. 10 Após o retorno das atividades inquisitoriais, em 1681, até 1750 – início do reinado de D. José I e da ascensão do Marquês de Pombal à condição de secretário de Estado – foram computadas 10.551 pessoas processadas, com 3,7% condenadas à morte. Embora, nesse último período o número de processados tenha ficado próximo ao da primeira etapa de funcionamento da Inquisição, o percentual de relaxação foi bem menor, cerca da metade. A partir da década de sessenta dos setecentos, ocorreu uma queda acentuada no número de condenados pela Inquisição. Tomando como base os dados fornecidos por Bethencourt (2000), entre os anos de 1751 a 1767, o Santo Oficio português sentenciou pouco mais de 1590 pessoas, das quais foram relaxadas 3,6 %.

A média anual de processos correspondente aos quatro tribunais, em cada um desses quatro períodos, foi consolidada por Bethencourt (200, p. 312): “37 entre 1536 e 1605, 81 entre 1606 e 1674, 35 entre 1675 e 1750, e 23 entre 1751 e 1767”. Comparando esses números com os de sentenciados das inquisições Espanhola e Italiana, o autor conclui que “as médias anuais dos processos portugueses são sempre superiores, em todos os períodos, à medias espanholas e italianas, embora se deva atentar às enormes lacunas de fontes verificadas nesses últimos casos” (BETHENCOURT, 2000, p. 321).

A maior parte dos delitos apontados nos processos do Santo Ofício português dizia respeito às práticas judaizantes, contudo cada localidade do império deve ser examinada em suas particularidades, como pode ser observado nos artigos que compõem o dossiê que ora apresentamos.

A partir da década de setenta do século XVIII, as atividades repressivas do Santo Ofício português reduziram significativamente e várias são as razões. Em 25 de maio de 1773, foi publicado um decreto régio pondo fim à distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. No ano seguinte, entrou em vigor o último regimento da Inquisição, que incorporou os anseios de reforma administrativa do Estado português e das suas relações com a Igreja. 11

O novo regimento trouxe elementos que julgamos importante destacar aqui. Ele contribuiu para a redução das atividades inquisitoriais e, consequentemente, para o arrefecimento do medo em relação ao que se entendia como marca do horrendum tribunale: o uso de tortura. Outras modificações importantes foram: o fim do segredo processual e a modificação no tratamento de alguns crimes, a exemplo das “chamadas práticas mágicas, feitiçarias, superstição, adivinhadores, proporcionadores ‘racionais’ de malefícios e astrologia judiciária de feitiçaria” (SOUZA, 2014, p. 242).

A prática de tortura era já tratada, naquele momento, como “estranha dos pios e misericordiosos sentimento da Igreja Mãe”, e era condenada por alguns por levar a falsas confissões. Porém, ela continuou a ser admitida “nos casos de heresiarcas ou dogmatista negativos e que ocultavam os nomes das pessoas que com eles prevaricaram, mantendo o que estava prescrito no Regimento anterior quanto ao modo de sua aplicação” (MARCOCCI; PAIVA, 2013, p. 354-355). 12

Em relação ao fim do segredo processual, é importante ressaltar que, desde o início das atividades inquisitoriais, o segredo, juntamente com o confisco de bens que impedia o acesso à herança por parte dos filhos menores dos condenados, foi alvo de severas críticas e pesados argumentos daqueles que se opuseram às práticas da instituição. Segundo Bethencourt (2000, p. 340), o segredo do processo “é o que distingue mais claramente o processo inquisitorial das práticas processuais da época: os acusados não podiam conhecer os nomes de seus denunciantes ou testemunhas de acusação, nem sequer as circunstâncias de tempo e lugar dos crimes imputados”. O indivíduo, quando era preso, não sabia o motivo da denúncia, quais pessoas o denunciaram e nem mesmo o delito que havia cometido. A falta completa de informações levava o réu ao desespero e, instado a dizer o que os inquisidores queriam ouvir, em muitos momentos entregavam amigos e familiares. Uma parte considerável das denúncias por práticas de judaísmo tiveram origem dentro dos cárceres do Santo Ofício. Analisando o processo de Alexandre Henriques – bem como a história de vida de sua mãe e irmãos –, enviado preso de Salvador para Lisboa em 1734, verificamos que as denúncias contra sua família foram todas feitas de dentro dos Estaus. 13 Ele próprio, quando tinha 16 anos de idade, em 1706, procurou a Mesa Inquisitorial, juntamente com sua irmã, Maria Nunes, para confessar que judaizavam e que havia sido iniciado na religião judaica por sua mãe, Clara Rodrigues, e por sua madrinha, Leonor Rodrigues, ambas sentenciadas pelo Tribunal. 14 Além dele e da mãe, foram presos, também, duas irmãs e um tia.

O último regimento do Santo Ofício português, que entrou em vigência em 14 de agosto de 1774, era, também, resultado do reformismo ilustrado pombalino e pretendia “dar uma roupagem diferenciada à Instituição, torná-la instrumento em defesa do Estado, coerente com o momento histórico e tipo de governo que Portugal vivenciava, embora a manutenção de tal Instituição no ‘século das luzes’ não deixava de ser contraditória” (SOUZA, 2014, p. 242). 15 No novo regimento, a crença em práticas de feitiçaria passou a ser atribuída à ignorância, ao fanatismo, estimulada por textos e autores que estimulavam o obscurantismo, dentre os quais o Malleus Maleficarum, manual escrito pelos dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger, no século XV; uma obra atribuída ao Fr. Jeronimo Savanarola; além de escritos de padre Antônio Vieira e do frei Thomas Campanela. O regimento de 1774 traz um arrazoado sobre a impossibilidade do pacto demoníaco, por não ser verossímil e não condizente com a razão:

Porquanto pela dedução e combinação de tudo o referido, se concluiu teológica, jurídica e geometricamente, que os feitiços, sortilégios, adivinhações, encantamentos e malefícios, depois da redenção do mundo foram manifestamente imposturas maquinadas: ou por pessoas poderosas que para santificarem, ou fazerem formidáveis as suas cobiçosas tiranias, e lisonjearem as suas depravadas paixões se serviram dos magos ou mágicos, e dos sacerdotes gentis, como de instrumentos próprios para estabelecerem, sobre a ignorância e fanatismo dos povos, a cega sujeição as suas cureis atrocidades.16

A incredulidade na existência das práticas mágicas conduz à admissão de que os réus que insistissem na veracidade dos efeitos dessas ações deveriam ser tratados com insanos, alienados:

Só pode ser miseráveis efeitos de uma crassa ignorância, e de uma furiosa loucura, agitadas por um daqueles ardentes fanatismos, que intemperado as cabeças dos homens, ou deixam cegos à luz da verdade, e indisposto para ouvirem as vozes da razão: Ordenamos: que os réus que se acharem nos referidos casos, sejam definitivamente julgados por loucos, sem necessidade de outra prova ou exame: Que sejam como tais remetidos ao Hospital Real de todos os santos; Que nele fiquem reclusos nos Cárceres dos doidos enquanto o Conselho Geral não mandar o Contrário. 17

O estudo da legislação inquisitorial é de grande valia para compreender a dinâmica legal de funcionamento da instituição.18 Os regimentos da Inquisição portuguesa, em particular, são também fundamentais ao estudo do Santo Ofício em sua trajetória de quase três séculos de existência, período de grandes mudanças nas mentalidades. São fartos os registros sobre processos inquisitoriais, processos de habilitação, instruções a ministros e outros, o que nos leva a identificar como essa legislação foi colocada em prática. Também, por meio dessa mesma documentação, percebemos as diversas maneiras como as suas determinações eram burladas, seja pela população em geral ou pelos próprios agentes habilitados. Enfim, o conjunto documental que compõe o fundo do Santo Ofício, incluindo os regimentos, nos revela muito da trajetória dessa instituição, desde o princípio até a sua extinção.

UMA REDE DE AGENTES INQUISITORIAIS

Fora dos tribunais de distrito, as ações inquisitoriais estiveram ao encargo de uma rede de agentes, constituída principalmente por Comissários e Familiares. Essa rede começou a se formar nos últimos anos do século XVI e a sua presença se intensificou a partir do XVII. Em algumas localidades do império só veio a se consolidar no final dos seiscentos e princípio dos setecentos. Sendo assim, no primeiro meio século de funcionamento do Santo Ofício português, suas ações fora do reino ocorreram por meio de agentes delegados e, de maneira mais efetiva, quando da realização das visitações autorizadas pelo Conselho Geral (CG). Órgão máximo da hierarquia inquisitorial, o Conselho Geral era presidido pelo Inquisidor-mor e composto por deputados. Foi instituído em meados de 1569 pelo Cardeal Dom Henrique e pelo Regimento elaborado em 1570. A criação do CG objetivava manter um controle maior dos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra sobre o funcionamento do corpo de agentes. 19 Com a finalidade de fiscalizar e controlar o mundo luso, dentro e fora de Portugal, o Conselho organizou as diversas visitações do final do século XVI, intenção já registrada em 1588, quando foi externado o interesse na realização de visitas nas ilhas da Madeira, Açores, Brasil, Cabo Verde e São Tomé. Foi como parte desse projeto que ocorreu a primeira visitação da inquisição às terras da América portuguesa, no ano de 1591, com a chegada do primeiro visitador Heitor Furtado de Mendonça. 20 Sobre o momento do desembarque do Heitor Furtado de Mendonça em Salvador, expõe Luiz Mott (2010, p. 19):

Salvador, 50 anos depois de fundada, possuía por volta de 800 vizinhos brancos e três vezes mais negros e índios, quando no ano do Senhor de 1591 desembarca em seu porto inesperado visitante: o Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição. A notícia de tão temível visita deve ter-se alastrado a trote de cavalo pelos mais de 40 engenhos espalhados pelo Recôncavo, deixando a população em palpos de aranha.

No mesmo ano de 1591, parte para as ilhas dos Açores e da Madeira o visitador Jerônimo Teixeira; em 1596, foi a vez do padre Jorge Pereira visitar Angola. No Brasil, ocorreram mais três visitas: a segunda, restrita à Bahia (Salvador e Recôncavo), ocorreu entre 1618 e 1620; outra, nas capitanias do sul, aconteceu entre 1627 e 1628. Já no século XVIII, entre 1763 e 1769, foi realizada a visitação do Grão-Pará. 21

Contudo a presença mais efetiva da Inquisição nas terras de ultramar se deu, mesmo, por meio da formação de uma rede de agentes. A historiografia portuguesa e brasileira sobre Inquisição é rica em detalhes sobre a ação desses agentes, tanto a partir de uma perspectiva mais geral, no que refere ao processo de estabelecimento, estrutura e procedimentos da rede, quanto em uma perspectiva mais específica, em escala de regiões, cidades ou pequenas localidades. 22 No universo mais restrito, os agentes locais fizeram a ponte, foram os “pontas de lança” dos tribunais aos quais estavam subordinados.

ACESSO À DOCUMENTAÇÃO INQUISITORIAL E NOVAS PESQUISAS

A documentação resultante das ações inquisitoriais é de grande valia para os estudos da história colonial, sobretudo com relação às primeiras décadas de colonização efetiva, cujas fontes são mais escassas. Essa documentação nos permite analisar não apenas as questões de ordem religiosa, mas também as relacionadas ao poder e à dominação econômica, à sociabilidade e à vida cotidiana. Com base nessas fontes, já no início da década de setenta do século XX, temos os primeiros trabalhos publicados, com destaque para a produção de Sonia Siqueira e Eduardo d’Oliveira França. Foram eles, conforme Ângelo Adriano, que lançaram as bases da historiografia brasileira sobre a Inquisição.

Siqueira e França foram os responsáveis pela publicação – precedida de um vasto e importante texto introdutório acerca do papel e presença dos cristãos-novos nos domínios portugueses e além, em especial o luso trópico, durante a Modernidade – das confissões referentes à segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil, iniciada em 1618 e que duraria cerca de dois anos, com raio de ação sobre a cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos e o seu Recôncavo, sob a responsabilidade do visitador Marcos Teixeira (ASSIS, 2015, p. 12). 23

Nas décadas seguintes as pesquisas de Anita Novinsky, Luiz Mott, Laura de Melo e Souza e Ronaldo Vainfas produziram excelentes obras “impulsionadas pela riqueza das fontes e pelas correntes historiográficas ligada à história cultural e à história das ideias” (FEITLER, 2007, p. 11), influenciando toda uma geração posterior, não só na perspectiva de funcionamento da máquina inquisitorial, mas principalmente nos estudos dos crimes da alçada do Santo Ofício: judaísmo, feitiçaria, sodomia, solicitação, bigamia, “protestantismo”, dentre outros. Pelas características da vasta produção historiográfica e para não cometermos injustiças é impossível elencarmos todas as valiosas contribuições dos investigadores brasileiros para os estudos inquisitoriais.

A atual geração de investigadores tem se beneficiado das novas tecnologias que, por meio do Projeto Inquisição on-line do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que, em 2007, deu início ao processo de digitalização e posterior disponibilização da documentação produzida pelo tribunal lisboeta, segundo Calainho (2019, p. 182), “o maior dos tribunais regionais, e que tinha, sob sua jurisdição, no ultramar, o Brasil, as ilhas dos Açores e Madeira, Angola e regiões do Oriente, e portanto o mais procurado pelos pesquisadores dado o volume de territórios que abarcava”.

Da Inquisição de Lisboa (IL) se encontram disponíveis em meio digital mais de 19 mil documentos, sendo 90% de processos inquisitoriais. A partir de 2011, a digitalização foi ampliada para o subfundo do Conselho Geral do Santo Ofício, com as diligências de habilitandos a diversos cargos do Tribunal do Santo Ofício (Comissário, Qualificador, Notário, Visitador de nau e, predominantemente, Familiar). Esta série documental, compostas por mais de 30 mil processos, inclui também as habilitações incompletas, que calculamos um pouco mais de 5 mil documentos.

A documentação online do Tribunal do Santo Ofício português hoje permite ampliar as pesquisas, mediante a democratização do acesso as fontes inquisitoriais, e a dinamização da produção historiográfica, visto que os investigadores têm a possibilidade de principiar suas investigações ainda no início da vida acadêmica, em trabalhos de iniciação cientifica, trabalhos de conclusão de cursos e pós-graduação. Hoje já temos uma geração de pesquisadores que começam, dessa maneira, a labutar no site do Arquivo Nacional da Torre do tombo online.

SOBRE O DOSSIÊ “TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS, 200 ANOS APÓS EXTINÇÃO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA”

O dossiê “Tribunal do Santo Ofício português, 200 anos após extinção: História e Historiografia” foi projetado com o objetivo de contribuir com os estudos inquisitoriais, sobretudo nesse momento em que investigadores de diversas partes do mundo têm discutido a história do tribunal e colaborado para enriquecer, ainda mais, a historiografia relativa à instituição. Os artigos aqui apresentados – dispostos na ordem cronológicas e da temática mais ampla para os estudos de caso – mostram a presença da inquisição portuguesa nos continentes americano, africano e asiático.

Começamos, então, pelo texto de Eduardo Borges de Carvalho Nogueira, “Homens profanos: fluidez identitária entre renegados ‘portugueses’ na Índia”. O autor trabalha com estudo da trajetória de três homens, naturais do reino, que foram condenados por apostasia. O primeiro estudo diz respeito a Antônio Camacho, natural de Lisboa, mestre-escola de profissão, que foi para Goa no início da segunda metade do século XVI. O crime cometido foi o de bigamia, pois, já casado em Lisboa, o homem contraiu segundo matrimônio com uma mestiça nas terras luso-indianas. Os outros dois indivíduos estudados por Borges são Jorge Cardoso de Mendonça e Gonçalo Toscano, ambos também apostatas aos olhos da Igreja. O primeiro “tornou-se mouro, inclusive sofrendo a circuncisão”, vestindo-se à mourisco, realizando cerimonias islâmicas e, mesmo depois de ter se apresentado ao tribunal em 1590, abjurado em auto-de-fé na Sé de Goa e absolvido pelo Santo Ofício, novamente se tornou um mouro. Gonçalo Toscano não conseguiu sucesso nem mesmo nos seus intentos de apóstata, pois não conseguiu ser visto como pessoa de confiança entre os islâmicos, tendo sido preso como suspeito de ser cristão. Destacamos algumas semelhanças entre os casos estudados: primeiro, o fato de os três homens terem indicado como motivo para a apostasia a necessidade de sobreviver no mundo islâmico, já que, como católicos, estavam fadados a morrer de fome; em segundo lugar, o fato de que os três homens tiveram seus nomes “alterados aquando de sua passagem ao Islã”, além de andarem com indumentária “à mourisca”. Tanto Mendonça como Toscano serviram à força islâmica. Enfim, o texto traz elementos importantes não só para pensar questões relativas à ortodoxia como é rico em informações acerca das tensões entre cristãos e muçulmanos na índia e, também, no mediterrâneo.

“Sodomia faeminarum: a Inquisição e a alforria do lesbianismo no mundo” é o segundo artigo, mais uma importante colaboração de Luiz Mott para os estudos inquisitoriais, contribuição que foi iniciada nos primeiros anos da década de oitenta do século XX, com a publicações de artigos e livros resultantes das consultas da documentação do Santo Ofício português. O texto aqui publicado, que tem como objetivo central levantar questões sobre a perseguição e penalização à homossexualidade feminina, parte da análise de um documento escrito pelo Tribunal de Goa, em 1646 e dos debates, entre os inquisidores, sobre o caráter da sodomia feminina. Como suporte para a discussão do tema, o autor visita uma vasta produção de textos dos séculos XVI e XVII, nomeadamente a literatura galega e os cancioneiros populares, com destaque para um poema de Gregório de Matos intitulado “Nise: A uma dama que macheava outras mulheres’’. Rica também é a incursão que Mott faz pela legislação que entra em vigência no império português até meados dos seiscentos, tanto as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) como os regimentos inquisitoriais (até o penúltimo, que entrou em vigor em 1640), destacando a importância de cada um desses documentos para a qualificação dos inquisidores no que se refere às relações sexuais entre mulheres. O autor conclui que relações entre as “filhas de Eva” não pertenciam à condição de “sodomia perfeita”, estando, portanto, excluídas do delito da pena capital, ou seja, da morte na fogueira. Além do aporte jurídico, o autor – que também é organizador do dossiê – relaciona um conjunto de obras de teólogos que alimentam a discussão sobre o “homoerotismo lésbico”.

Ainda sobre o século XVII, apresentamos o texto “Mulheres africanas nas redes dos agentes da Inquisição de Lisboa: o caso de Crispina Peres, em Cacheu”, de Vanicléia Silva Santos. Por meio de processos inquisitoriais e relatos de viajantes, autora aborda a trajetória de vida e o papel de uma mulher comerciante em Cacheu, cidade considerada a mais portuguesa da Guiné, com intensas relações comerciais com África, Europa e Brasil. Crispina Peres e seu marido possuíam “estalagem de estrangeiros”, casas de aluguel, navio mercante e “muitos homens e mulheres feitos cativos para serem exportados”. Além disso, ela era uma pessoa muito influente na região. Essa influência ficou bem demostrada quando as pessoas da nação Papel ameaçaram invadir Cacheu na noite de sua prisão. Conforme Vanicleia Santos, o processo contra Crispina foi um subterfugio, com objetivo de eliminá-la como concorrente comercial, tendo em vista que foram 21 pessoas denunciadas, mas apenas ela foi presa, enviada para Lisboa e condenada pelos crimes de feitiçaria, uso de ritos de gentilidade e de bolsas de mandingas. A história dessa mulher é um elemento importante para a compreensão das relações comerciais estabelecidas no período de expansão do tráfico transatlântico de escravizados, bem como para os estudos de gênero, raça e religião.

O quarto artigo que compõe o dossiê, “A família cristã-nova Bernal Nunes de Miranda: entre fronteiras, religiosidades e a Inquisição na Bahia” foi escrito por Ademir Schetini Júnior e trata da perseguição da Inquisição portuguesa a uma família cristã-nova que chega na Bahia na passagem do século XVII para o XVIII. Por meio dos processos dos Bernal Nunes de Miranda, o autor levanta questões relacionadas ao criptojudaísmo na Bahia, mesmo tendo passado mais de dois séculos desde a conversão forçada, bem como sobre o discurso da Inquisição contra as práticas judaizantes. A abordagem acerca do estatuto de pureza de sangue, que vigorou nas sociedades ibéricas como pré-requisito para o acesso as instituições do Antigo Regime, também tem lugar de destaque no artigo, assim como os estudos do médico Francisco Bernal, em Salamanca, e a sua aproximação com Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do Brasil de 1702 a 1722. Enfim, mediante o cotejamento de informações coletadas em fontes inquisitoriais, o autor demonstra como o ensinamento das cerimonias judaicas eram passadas, discute o papel da mulher na orientação religiosa e na organização cerimonial e ritualística, além de apresentar informações sobre as experiências dos acusados no interior do cárcere, onde eram submetidos a tormentos. O texto é rico em discussões e informações sobre relações familiares e fenômeno migratório, atividades econômicas, sociabilidade e poder na América portuguesa.

Voltada para o universo mineiro setecentista, por meio da documentação inquisitorial, a autora do artigo seguinte, Leticia Maia Dias, apresenta a história de um português que chegou ao Brasil em 1719 e, alguns anos depois, ocupou o cargo de escrivão da Casa de Moeda de Vila Rica. O texto, intitulado “Um bígamo nas Minas Gerais: a trajetória de Antônio José Cogominho”, conta a trajetória desse reinol processado por crime de bigamia no final da primeira metade do século XVIII, uma vez que, já sendo casado no reino, casou-se novamente na capitania de Minas Gerais. Ao analisar o processo de Cogominho, a autora coloca em evidência características importantes da colônia e de sua relação com as instituições do Império Ultramarino. Além disso, a autora trabalha muito bem com a legislação referente ao crime de bigamia, transitando pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, pelas Ordenações do Reino e pelos Regimentos da Inquisição Portuguesa. A autora conclui que o delito de bigamia deve ser visto por dentro “da própria estrutura dos casamentos coloniais, uma vez que o ato de casar de novo evidenciava brechas inerentes aos processos matrimoniais que podem ter sido estrategicamente usadas pelos bígamos”.

O artigo intitulado “Contestação e memória do Tribunal do Santo Ofício: uma perspectiva protestante”, escrito por Elizete da Silva, é muito oportuno para a conclusão da seção de artigos do dossiê. Ao analisar fontes escritas contra as práticas inquisitoriais do século XVIII, a autora traz à discussão, na perspectiva das ideias iluministas, a noção de liberdade de consciência e põe em evidência a trajetória do escritor Francisco Xavier de Oliveyra – de alcunha Cavaleiro de Oliveira –, feito réu e sentenciado em 1761 pelo Tribunal de Lisboa. Com esse estudo, a autora dá uma excelente contribuição para o estudo do protestantismo europeu, desde a sua origem, com o surgimento do luteranismo, perpassa a discussão sobre a extinção do Santo Ofício português e conclui com o nascimento de igrejas protestantes no Brasil, na segunda metade dos oitocentos. Para falar do protestantismo europeu e do discurso referente ao terror e à tirania da Inquisição, Elizete chama a atenção sobre a estratégia discursiva de disputa entre protestantismo e catolicismo, afirmando que a intolerância ocorreu dos dois lados.

O dossiê se encerra com a entrevista, realizada pela equipe do Laboratório de Estudos, Documentação Inquisitorial e Sociedade de Antigo Regime (LEDISAR), com sede na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, com a historiadora Patrícia Souza de Faria. Na entrevista, são abordados temas relativos às possiblidades e potencializados de desenvolvimento de pesquisas e projetos de ensino com base na documentação inquisitorial. Com ampla experiência na identificação e exploração de fontes relativas à presença da Inquisição no Oriente português, Patrícia Faria expõe sua trajetória acadêmica e fornece orientações para aqueles que queiram se aventurar nos estudos inquisitoriais.

A título de conclusão, submeto à reflexão dos leitores da Politeia dois documentos produzidos no apagar das luzes da Inquisição portuguesa, os quais são importantes para pensar a atuação desta instituição no mundo liberal. O primeiro é o processo de Hipólito José da Costa – redator do jornal Correio Braziliense, impresso entre 1808 e 1822 em Londres. O personagem foi preso nos cárceres da inquisição de Lisboa, em janeiro de 1803, por acusação de ser pedreiro-livre (maçom), mas fugiu em 1805. 24 Conforme consta em seu processo, o crime tornou-se mais grave pelo fato de o indivíduo ter “graus superiores na Ordem Maçónica” e ter sido enviado como plenipotenciário pelo supremo Conselho Maçônico de Portugal ao Grande Oriente de Londres. Após a fuga dos Estaus, Hipólito foi para a Inglaterra, onde viveu até a sua morte, ocorrida em 1823. O segundo documento trata de uma anotação no último livro de Correspondências Expedida do tribunal de Lisboa. Os registros começaram a ser feitos em 7 de janeiro de 1802, enumerados e rubricados pelo inquisidor Manuel Estanislau Fragoso. A última anotação foi feita em 28 de fevereiro de 1821, portanto, a um mês da extinção do Santo Ofício Português.25 O teor de uma carta enviada para Évora fornece informação sobre a soltura do réu Francisco de Almeida Nogueira, no dia 28 daquele mesmo mês. O primeiro individuo era o que se poderia chamar à época de “famoso”; o segundo nem tanto. Os processos aos quais eles foram submetidos revelam muito sobre os últimos lampejos do Santo Ofício.

Notas

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Bulas, Maço 9, número 15, Bula Cum ad nihil magis do papa Paulo III dirigida aos bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta pela qual os constitui seus comissários e inquisidores no reino de Portugal como também outra pessoa eclesiástica que o rei d. João III nomeasse para procederem contra os cristãos novos e mais pessoas que incorressem em crimes de heresia, com as penas declaradas. Para acesso online ao documento: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=3908041

2 A historiografia portuguesa é rica em autores que se debruçaram sobre a trajetória de ações de setores do clero e da coroa portuguesa no sentido do estabelecimento do Santo Ofício português, bem como da resistência papal a essas iniciativas. O tema está presente em publicações do século XIX e princípio do século XX, de autoria de Antônio Joaquim Moreira, Alexandre Herculano e António Baião; nos estudos de Francisco Bethencourt (2000) sobre a História das inquisições em Portugal, Espanha e Itália; e na História da Inquisição Portuguesa (1536-18210, de Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva (2013). Sobre a trajetória da historiografia do Santo Ofício português, cf. Souza (2014, p. 25-35).

3 Foram também estabelecidos mais três tribunais, porém todos eles tiveram vida curta: o do Porto, criado em 1536 e extinto em 1545; o de Lamego (1541-1546) e o de Tomar (1541-1544).

4 Em 1539, D. Diogo da Silva renunciou à carga de inquisidor geral e em seu lugar foi nomeado o Cardeal Dom Henrique – irmão do rei D. João II, arcebispo de Braga e eleito cardeal de 1545, que tomou posse em 3 de julho de 1539. D. Henrique sucedeu a D. Sebastião e foi coroado como Rei Henrique I, permanecendo no trono até a sua morte, ocorrida em janeiro de 1580. Esse ano marca o início do período de União das Coroas Ibérica, sob o comando do rei Felipe II da Espanha e I de Portugal.

5 “[Os] conflitos, internos e externos, relacionados ao Tribunal continuam por longo tempo, e somente na segunda metade do século XVIII, no período pombalino, a Inquisição Portuguesa parece ter sido completamente dominada pelo Estado” (SOUZA, 2014, p. 56).

6 Coleccão de Listas impressas e manuscritas dos Autos de Fé públicos e particulares da Inquisição de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa. Corrigida e anotada por Joaquim Antonio Moreira, 1863. 4 v. (613 f.; 428 f.; 365 f.; 308 f.). Disponível em: https://purl.pt/15393

7 A história dessa família é conhecida pelos registros da primeira visitação do Santo Ofício em terras brasileiras, ocorrida entre 1591 a 1595, tendo como visitador foi Heitor Furtado de Mendonça. Muitos membros da família foram denunciados e quatro mulheres foram enviadas presas para Lisboa, sendo que a matriarca, já octogenária, não resistiu aos suplicio e morreu nos cárceres dos Estaus, em Lisboa. Além dos filhos, sete netos também foram à mesa inquisitorial para testemunhar: Ana Alcanforada, Valentim de Faria, Felipa de Faria, Custódia de Faria, Isabel Antunes, Lucas de Escobar e Beatriz Teles. O historiador Angelo Adriano de Farias Assis, em seu livro Macabéias da Colônia (2012) apresenta, com riqueza de detalhes, a trajetória dessa família nas malhas da Inquisição.

8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Tribunal do Santo Ofício (TSO), Inquisição de Lisboa (IL0, Livro 18, fl. 254.

9 Segundo Bethencourt (2000), nesse período 755 indivíduos foram relaxados à justiça secular.

10 Dados fornecidos por Francisco Bethencourt (2000). O autor informa que, no momento da realização da pesquisa, não foi possível computar o número de relaxados da Inquisição de Goa referentes ao período de 1606 a 1684.

11 O regimento anterior esteve em vigência por 134 anos, desde 1640. Foi elaborado no final do período da união das coroas ibéricas. Antes dele, a Inquisição portuguesa teve dois outros: o de 1552 e o de 1603.

12 A referência feita acima pode ser observado no Livro II (Da ordem do judicial do Santo Ofício), e Capítulo XIV, pelo qual ficou determinado de “como há de proceder com os réus, que houveram de ser postos a tormento, e na execução dele. Marcocci e Paiva (2013, p. 255) acrescentam outras mudanças importantes, como a “suspensão da inabilitação dos condenados e dos seus descendentes; condenação da impossibilidade de recursos para o Tribunal Superior da Coroa, agora admitido”.

13 O palácio dos Estaus (ou Estaos) foi a sede do Conselho Geral do Santo Ofício e da Inquisição de Lisboa até a extinção do Santo Ofício. Localizado na praça do Rossio (atual praça Dom Pedro IV), foi construído em meados do século XV para servir como albergue para pessoas da corte portuguesa sem residência e estrangeiros representes de outros reinos.

14 ANTT, TSO, IL, Processo 3432.

15 Sobre o contexto político no qual se insere a publicação do Regimento de 1774, cf. Falcon (1992).

16 REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, 1774, Livro III, Título XI.

17 REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, 1774, Livro III, Título XI, Capítulo II.

18 Para mais informações, cf. Siqueira (1996) e Mott (1990).

19 O controle do Conselho Geral em relação ao corpo de funcionários é perceptível quando analisamos a troca de correspondência entre esse órgão e os tribunais de distrito. Essas correspondências fazem parte de dois conjuntos documentais identificados como correspondências expedidas (1575-1819) e correspondências recebidas (1562-1770), além de documentos avulsos que fazem parte dos acervos dos tribunais.

20 Já na primeira década do século XX, Capistrano de Abreu (1922) dedicou-se a organizar uma importante publicação sobre a primeira visitação. Sobre o tema cf, também, Vainfas (1997).

21 Muitos são os estudos sobre as visitações do Santo Ofício em terras brasileiras. Deixamos aqui algumas leituras indispensáveis para um melhor conhecimento do tema: Pereira (2011); França e Siqueira (1963), além de Lapa (1978).

22 Cf. Mott (2010); Wadsworth (2007); Calainho (2006); Feittler (2007); Souza (2014); Vaquinhas (2010); Rodrigues (2011).

23 Sobre a historiografia referente ao Santo Ofício português, cf., também, Souza (2014, p. 25-35) e Assis (2015).

24 ANTT, TSO, IL, Processo 17981.

25 IANTT, IL, Livro 69.

Referências

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WADSWORTH, J. E. Agents of Orthodoxy: Honor, Status, and the Inquisition in Colonial Pernambuco, Brazil. Lanham, MD: Rowman & Littlefield. 2007.


Organizadores

Grayce Mayre Bonfim Souza – Professora de História Moderna da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutora pela Universidade de Évora. Coordenadora do Laboratório de Estudos, Documentação Inquisitorial e Sociedade de Antigo Regime (LEDISAR).

Luiz Mott – Professor Titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorado em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-doutorado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

SOUZA, Grayce Mayre Bonfim; MOTT, Luiz. Apresentação. Notas sobre A Inquisição portuguesa: história e historiografia. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 20, n. 1, p. 8-22, jan.-jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI) | Mário Jorge Motta Bastos

O professor Mário Jorge da Motta Bastos tem atuado no estudo da doença (a peste1), tema que o move desde sua graduação no ano de 1989 até o termino de seu doutorado e também hoje como professor associado II na Universidade Federal Fluminense onde atua desde 1992. Em seus estudos juntamente com seus alunos nos laboratórios de pesquisa que integra, procurou desenvolver conhecimentos sobre a sociedade do medievo, principalmente nas sociedades ibéricas, acerca dos impactos das levas epidêmicas tiveram sobre as populações, seu imaginário e as produções artísticas sobre o tema, e sobre a atuação do poder monárquico junto aos súditos a fim de deter as epidemias, seus efeitos danosos ao corpo social e como meio e desculpa para acelerar o processo de unificação do poder na figura do suserano. Todos estes estudos resultaram em dois livros sendo o primeiro e nosso objeto de estudo O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI)2 de 2009. O volume começa com o prefácio do celebre historiador marxista Ciro Flamarion Cardoso cujo autor fora aluno e que faz questão de ressaltar que apesar de focar massivamente na questão do discurso régio – construído para legitimação das ações de combate ao contágio e a sucessivas investidas de centralização do poder sob a figura real- o professor Mário não agiria à maneira dos pós-modernos que creem ser o discurso que constitui a realidade e não o contrário. Que buscaria “… estabelecer nexos.” “… entre a perspectiva cristã relativa à doença e à peste em particular…”. O prefaciador ressalta também que não se detendo somente no discurso, mas que estariam embasados em dados estatísticos e demográficos demonstrando a articulação entre o discurso e a materialidade a que ele representa. Leia Mais

Isabel de Castilla y Aragón. Princesa y reina de Portugal (1470-1498) | Ruth Martínez Alcorlo

Los estudios que, desde diferentes vertientes, se dedican a la corte de los Reyes Católicos y sus principales actores han cobrado una gran intensidad en el último tiempo, destacándose de un modo especial el enfoque histórico gracias al análisis de nuevas fuentes documentales. Isabel la Católica es la figura que ocupa un lugar predominante dentro de estas investigaciones, tras la poderosa imagen que la historiografía ha forjado de ella, eclipsando a muchas otras mujeres, entre ellas, sus propias hijas. Leia Mais

Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599): Regime Escolar e Plano de Estudos

“Tem valor a publicação de um texto educativo do século XVI quando, em pleno século XXI nos encontramos com diversos aportes pedagógicos mais variados e entrelaçados com as ciências humanas”? Esta é a pergunta que Luiz Fernando Klein faz ao prefaciar a obra Ratio Studiorum da Companhia de Jesus: Regime Escolar e Planos de Estudos, publicada recentemente em Portugal, pela professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Margarida Miranda. A esta questão, o próprio Klein responde que o lugar da Ratio Studiorum é insubstituível na história da pedagogia, pois foi a primeira sistematização de estudos que se fez no mundo moderno e possui lugar assegurado nos currículos dos cursos de formação em educação na maioria das instituições educativas de nível superior.

A única publicação da Ratio Studiorum em língua portuguesa era a do padre Leonel Franca, em 1952, por meio da Editora Agir, no Rio de Janeiro, sob o título de O método pedagógico dos jesuítas, porém, há muito tempo esgotada. Depois dessa publicação, somente em 2019 a Editora Kírion fez uma nova republicação dessa mesma tradução. De modo que, a publicação realizada pela professora Margarida, em 2018, veio atender a uma necessidade da comunidade acadêmica de língua portuguesa. Leia Mais

A nova direita anti-sistema: o caso do Chega | Riccardo Marchi

O livro A nova direita anti-sistema: o caso Chega, de autoria de Riccardo Marchi é um estudo do partido que retirou Portugal da pequena lista de países europeus que não tinham representação parlamentar de partidos enquadrados como de extrema direita. Isto se deu com a eleição do deputado único do Chega, André Ventura, para a Assembleia da República nas eleições legislativas de 2019. Ventura se desponta não apenas como deputado único, mas também como principal liderança de seu partido, passando a ocupar importante parcela do debate público português, assim como da grande mídia de seu país.

Riccardo Marchi parte da história de vida de Ventura, iniciando o livro ao falar de sua infância e adolescência em Algueirão, no concelho de Sintra, uma freguesia de classe média baixa, marcada por construções decadentes, uma grande população de origem imigrante, e como tal cenário influenciou seu futuro posicionamento político. A criação católica e sua vivência na Faculdade de Direito também são elementos de destaque na parte inicial do livro. Ainda na adolescência, André Ventura deu início a suas atividades políticas, fazendo parte da seção juvenil do Partido Social Democrático (PSD), quando era aluno do Liceu. Leia Mais

Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares | Laurentino Gomes

Laurentino Gomes, autor de 1808, 1822 e 1889, lançou em 2019 seu novo trabalho: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia, fruto de uma pesquisa de seis anos que passou por três continentes (África, América e Europa). Seu objetivo é narrar a história da escravidão pelo viés de longa duração, apresentando diferentes perspectivas historiográficas, a pluralidade de sujeitos históricos e polêmicas. A narrativa de Gomes é marcada pela comunhão de revisão bibliográfica temática com escrita jornalística, conectando apontamentos fundamentais do tempo historiográfico à fluidez narrativa. O foco territorial passa pelas histórias do continente africano (enfatizando Angola), Brasil e Portugal. Seu ponto de partida é o primeiro leilão de escravos em Portugal, em 1444, e finaliza com a mudança de ênfase do trabalho escravo no Brasil no século XVIII, o qual passou do cenário da lida com cana-de-açúcar para a mineração de ouro. Leia Mais

Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos | Revista Ágora | 2020

No ano do bicentenário da Revolução de 1820, organizamos junto à Revista Ágora o dossiê “Revoluções no Atlântico: Brasil e Portugal na década de 20 do Oitocentos”. O decênio de 1820 foi marcado por diversos movimentos revolucionários em Portugal e no Brasil. A Revolução do Porto inaugurou a agenda de sublevações no mundo português, configurando-se acontecimento que influenciaria nos rumos políticos nos dois lados do Atlântico.

Inspirada em princípios liberais, o movimento iniciado na cidade de Porto, em poucas semanas alcançaria Lisboa e não tardaria a ser notícia também no Brasil. Verdadeira guerra literária fora travada na imprensa no Brasil e em Portugal. Periódicos e folhetos difundiam nova pauta política, ressignificando conceitos e divulgando novo vocabulário constitucional. Leia Mais

Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca” | Mary Del Priore

Quem nunca ouviu falar e/ou leu sobre Maria I, a rainha louca? A memória e a historiografia de modo geral tenderam, durante muitos anos, a classificar a rainha portuguesa como louca e dotada de um fanatismo religioso sem limites. Diversos escritos, muitas vezes como forma de atrair público leitor e/ou inseridos em contextos historiográficos comprometidos em construir uma legenda negativa da monarquia portuguesa, encobriram uma multiplicidade de elementos históricos sobre uma mulher que vivenciou, entre os séculos XVIII e XIX, um dos momentos mais turbulentos da história moderna: a ruína do absolutismo monárquico.

Diante de tais aspectos, a obra Maria I: as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca”, da historiadora Mary Del Priore, autora de outras obras sobre a história das mulheres, demonstra que era preciso se debruçar para além de uma simples assertiva de loucura dada à Maria I pela memória e pela historiografia. Dividido em nove capítulos, o livro procura apresentar a trajetória de rainha, desde seu nascimento em 1734, momento em que, segundo a autora, “[…] Portugal vivia uma época esplendorosa” (DEL PRIORE, 2019, p. 13), aos seus últimos dias na cidade do Rio de Janeiro, em 1816, quando a corte portuguesa se encontrava no exílio. O objetivo de Del Priore (2019) é, ao percorrer a trajetória de D. Maria, buscar respostas para uma mudança comportamental na rainha a partir da década de 1780, sem incorrer em explicações automáticas e/ou simplistas. Leia Mais

Arroz, tráfico e escravidão: repensando a importância da contribuição africana no mundo Atlântico | Judith Carney

Os grandes historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch, em diversos momentos, na primeira metade do século XX, já tinham postulado a importância da interdisciplinaridade e diálogos entre as diversas ciências com a História. Já é deveras conhecida a recomendação de Febvre de que para ser historiador era preciso ser geógrafo, sociólogo e assim por diante. Bloch, por sua vez, não discordaria, pelo contrário. A geógrafa Judith Carney, vindo ao encontro da História, da Sociologia, da Agronomia, da Linguística, da Arqueologia, da Biologia e da Botânica, fazendo de certa forma o caminho inverso ao proposto pelos já citados fundadores da Escola dos Annales, publicou um excelente e instigante livro, resultado de um trabalho minucioso e competente de pesquisas documentais e bibliográficas: Black Rice. The African Origins of Rice Cultivation in the Americas (Massachussets: Havard University Press, 2001).

Black Rice, posteriormente, foi traduzido para o português por José Filipe Fonseca, com a colaboração de Gaston Fonseca, Ernesto Fonseca e Nivaldina Fonseca, sendo publicado em Bissau, na Guiné Bissau, pelo Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas/IBAP, com patrocínio do banco da África Ocidental/BAO. Publicado em 2018, assim suponho, com prefácio à edição portuguesa datado de novembro/dezembro de 2017, escrito pelo historiador Leopoldo Amado, manteve em português o título traduzido do inglês: Arroz Negro. As origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Neste momento cabe dizer que, sendo o livro escrito com afetividade, não menos apaixonada e comprometida com a história do protagonismo africano, apesar do tráfico e da escravidão, foi a edição guineense. Gosto de livros com marcas de afetividade, sem a aridez impessoal de alguns trabalhos acadêmicos ainda que competentes. Leia Mais

El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, siglos XIX y XX | Fabio Kolar e Ulrich Mücke

El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, siglos XIX y XX, el libro compilado por Fabio Kolar y Ulrich Mücke, asume el desafío de analizar los conservadurismos y derechas en América Latina y la península Ibérica en el extenso período que abarca dos siglos, lo que implica estudiar procesos y actores muy diversos. Las dificultades del cometido están señaladas en la muy sugerente introducción que realizan los editores, quienes plantean que hasta las décadas finales del siglo XX las sociedades iberoamericanas eran consideradas comunidades atrasadas, estancadas en el pasado y ajenas a toda forma de revolución. Las transiciones democráticas y la renovación historiográfica que se produjo en torno a los cambios políticos, trajo una nueva perspectiva sobre los procesos históricos y se comenzó a atender la implantación del orden constitucional, los procesos electorales y la constitución de la ciudadanía. Hoy, existe un consenso en que las independencias introdujeron cambios políticos radicales e incluso revolucionarios. Sin embargo, se ha producido un desequilibrio entre los numerosos estudios acerca del liberalismo y los más escasos análisis sobre los conservadurismos y las derechas. Solo en las dos últimas décadas se empezó a consolidar un campo de estudios que aborde esos idearios y sus prácticas. Kolar y Mücke entienden que se trata de estudios todavía muy limitados a las fronteras nacionales. Si bien, en principio no deja de ser cierto, la afirmación debería matizarse, pues como se puede ver en el propio libro y en los encuentros, simposios y dossiers, cada vez son más los investigadores y las investigadoras que apuntan a trabajos comparativos y enfoques trasnacionales.

Por otro lado, los compiladores señalan las dificultades que generan la ambigüedad, el uso confuso y hasta arbitrario de los términos derecha y conservador. Como solución reclaman conceptos analíticos viables, que superen lo etimológico, las determinaciones clasistas y se enmarquen en su origen y en su propio contexto histórico. El término conservadurismo, tal como lo muestran los artículos del libro fue predominante en el siglo XIX, en tanto que en el siglo XX se impuso el concepto derecha (condicionado relacionalmente con el término izquierda). La derecha se definirá por su contrariedad con las formas igualitaristas, ya que conciben que la desigualdad es natural e inmutable. Conservadurismos y derechas se relacionan en el respeto a las tradiciones. No obstante, reconocen que resulta muy difícil, sino imposible, formular una definición universal para todas las variantes históricas y geográficas. Los editores entienden que las nuevas derechas fueron y son herederas del pensamiento conservador del siglo XIX, pero al mismo tiempo son creaciones del siglo XX, con sus propias características (pp. 7-36). Leia Mais

Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal | Cybelle Salvador Miranda

Por um vasto oceano uniram-se dois continentes, com uma língua e um passado partilhados. Entre as viagens, sobreveio um profícuo e interessante linguajar oitocentista entre vários actores e instituições portugueses e brasileiros. Essas “conversas”, influenciadas por uma Europa de referência elitista, por um maior poder económico e um rápido incremento de estatuto social, foram cruciais para a apropriação e a utilização de conceitos na arquitetura da época. Cybelle Salvador Miranda e Renato da Gama-Rosa Costa, no livro Hospitais e saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal , publicado em 2018, pela Editora Fiocruz, organizam relatos históricos de uma viagem icónica entre esses dois mundos que, aparentemente diferentes, beberam da mesma fonte.

Os diversos poderes imperiais e não imperiais que, nesse arco cronológico, sofreram metamorfoses são, também, agentes produtores de registos cruciais, pois, em última análise, a decisão é um poder executivo. Nessa obra, não são apenas os detalhes históricos centrados em sistemas governativos, mas também as visões dos doentes para com os seus decisores, invertendo a narrativa para ilustrar a importância da doença e do tratamento – o relato pelas elites resulta, normalmente, numa linha histórica rapidamente solúvel. As diversas peças do puzzle são extensivamente analisadas nos textos, entre as quais a questão da mudança da direcção médica das instituições, a consolidação científica, a título de exemplo. A arquitetura é um “espelho de Alice” que, além de refletir imagens da sua realidade, revela, por detrás, um mundo desconhecido de premissas e locuções – as mesmas que, também, o livro desvenda. Leia Mais

Cooperação Sul-Sul/ Democracia e Decolonialidade: estudos sobre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2020

O presente Dossiê surgiu a partir do contato dos organizadores com a discussão sobre a realidade social, cultural, econômica e política dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, os PALOPs, no âmbito da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que completou dez anos em 2020, e cujo projeto se relaciona à cooperação solidária para o desenvolvimento entre o Brasil países de África e Ásia através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A pluralidade cultural e social destes países, suas trajetórias políticas de independência e transição democrática, somada aos laços históricos e políticos de cooperação cultural, educacional e econômica com a sociedade brasileira vem alimentando uma rede de estudos, de pesquisas e de mobilidade que consolidam o destaque destas sociedades na área de Estudos Africanos no Brasil.

Com base nesta experiência, pautamos a necessidade de congregar reflexões teóricas e estudos empíricos considerando dois aspectos: 1. as diversas disciplinas das Humanidades (Antropologia, Ciência Política, História, Relações Internacionais e Sociologia, Geografia, Filosofia), em uma perspectiva que relacione Cooperação Sul-Sul, Democracia e Decolonialidade, no sentido de um fazer acadêmico crítico e de qualidade, tendo em vista um desenvolvimento emancipatório; 2. a maior diversidade possível de nacionalidade, etnia/raça e gênero nas contribuições recebidas. Nesse sentido, embora não tenhamos conseguido contemplar todos os PALOPs, o presente número reúne reflexões e estudos de brasileiros(as) e africanos(as) de/sobre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, sem perder de vista possibilidades de comparações com o Brasil e visadas mais amplas sobre o conhecimento produzido sobre África. Leia Mais

Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819) | Fernanda Pinheiro Domingos

Desde a década de 1980, o estudo das chamadas “ações de liberdade” se consolidou na historiografia da escravidão brasileira. Muitos foram os trabalhos publicados sobre a luta judicial pela liberdade e também foram recorrentes estudos sobre crime, família escrava, tráfico e outras questões que se valeram desses processos judiciais como fontes fundamentais para a análise do cotidiano e da agência de escravos, libertos e pessoas livres de cor. O livro de Fernanda Domingos Pinheiro, Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819), insere-se nesse campo já consolidado da história da escravidão, apresentando inúmeras informações que ainda não eram de amplo conhecimento dos pesquisadores do campo e levantando novas questões e perspectivas de análise sobre as relações entre direito, liberdade e escravidão. O livro apresenta uma pesquisa rigorosa e minuciosa sobre os significados e a precarização da liberdade no Império português, baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais ajuizados em Mariana e Lisboa. Nessa análise, a autora não deixa de lado nem os argumentos e formas jurídicas específicas que constituíram esses documentos, nem o debate acerca da vivência das pessoas de cor em sociedades escravistas em um sentido mais amplo. Leia Mais

Salazar e Franco. La alianza del fascismo Ibérico contra la España republicana: diplomacia, prensa y progaganda | Alberto Pena Rdríguez

No sentido político, as coleções históricas contemporâneas produzidas em Espanha e Portugal mantiveram-se isoladas. As questões relacionadas a Portugal são muito subdesenvolvidas na historiografia española, assim como os estudos sobre as relações bilaterais entre os dois países. Felizmente, esta tendência está sendo revertida em decorrência da geração de estruturas comuns de pesquisa, de novas relações acadêmicas e do surgimento de múltiplas publicações históricas. O livro do Dr. Alberto Pena Rodríguez é, neste contexto, uma contribuição fundamental à abordagem dos desenvolvimentos político-econômicos e das interações socioculturais entre Espanha e Portugal nas décadas centrais do século XX. O livro Salazar e Franco. A aliança do fascismo ibérico contra a Espanha republicana: diplomacia, imprensa e propaganda é composto por dez capítulos, distribuídos em três blocos temáticos, e abriga uma extensa seção de fontes documentais.

O livro destaca a importância das ações políticas de Salazar no sentido de solapar o projeto político da Segunda República Espanhola (1931-1939), ações que podem explicar a similaridade de direitos nos países ibéricos durante os duros anos de isolamento espanhol, sob a ditadura de Franco. A investigação aponta para a existência de desenvolvimentos semelhantes e paralelos entre Espanha e Portugal e, ao mesmo tempo, chama a atenção para os elementos de rejeição e para as principais diferenças culturais e funcionais entre os dois países. Leia Mais

Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975 | Leandro Pereira Gonçalves

Desde os trabalhos pioneiros de Hélgio Trindade (19742007) na década de 1970 a respeito do Integralismo brasileiro, diversos outros estudos procuraram apresentar novas abordagens sobre o tema (CHASIN, 1999CHAUÍ, 1985VASCONCELOS, 1979). Também a produção acadêmica comparativa dos autoritarismos português e brasileiro, iniciada no trabalho organizado por José Luiz Werneck da Silva (1991), prosperou em análises diversas, fortalecendo aos poucos este campo de investigação (PINTO; MARTINHO, 2007).

O trabalho de Leandro Pereira Gonçalves, Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975), vem, portanto, contribuir com uma tradição importante e já consolidada de pesquisas a respeito do integralismo e das direitas radicais. O livro tem, como objeto de análise, o pensamento e a produção intelectual do mais importante político do movimento integralista brasileiro: Plínio Salgado. Ao mesmo tempo, o autor lança luz sobre as possibilidades de investigações acadêmicas comparativas acerca de Portugal e do Brasil. Longe, entretanto, da mera repetição, seu estudo acrescenta novidades ao complexo universo das direitas no século XX, não só no Brasil como também na Europa. Leia Mais

As voltas do passado. A Guerra Colonial e as lutas de libertação | Miguel Cardina

Existem livros que surpreendem pela originalidade do título; outros surpreendem pela qualidade do conteúdo ou pela lógica de organização dos textos. A obra organizada por Miguel Cardina e Bruno Sena Martins surpreende nos três aspectos. Na obra intitulada “As voltas do passado: a Guerra Colonial as lutas de libertação”, Cardina e Martins reúnem um expressivo conjunto de 51 pesquisadores de diferentes nacionalidades e apresentam aos leitores um livro fracionado em 46 textos. Acionando uma ampla rede de pesquisadores e de instituições acadêmicas da África e da Europa, os organizadores apresentam ao leitor uma amostra qualificada das interpretações que a Guerra Colonial produziu na historiografia portuguesa e na historiografia dos países africanos que outrora foram colônias de Portugal.

Neste sentido, o livro pode ser considerado um projeto editorial ousado, por dois motivos: primeiro porque buscou incorporar os significados da Guerra Colonial para Portugal e para os povos africanos que desafiaram a política colonial lusitana; e, segundo, porque transitou entre os fatos da Guerra Colonial e as memórias construídas a partir destes fatos. Na Introdução os organizadores ressaltam que a problematização da memória é um dos objetivos da obra e afirmam que As voltas do passado é um livro que se preocupa com “o regresso da guerra aos sucessivos presentes, em combinações irregulares entre a evocação de um passado constitutivo e os usos seletivos da memória.” Leia Mais

Tempos conservadores. Estudos críticos sobre as direitas. Volume 2: Direitas no Cone Sul. | Rodrigo Jurecê Mattos Gonçalves

El libro es la segunda entrega del equipo de trabajo también denominado Tiempos conservadores, conformado principalmente por investigadores brasileños.1 Los integrantes comparten una militancia marxista lo que los llevó a emprender un trabajo conjunto a partir de los años 2015 y 2016 para analizar críticamente el ascenso de las derechas brasileñas y latinoamericanas. Los compiladores identifican un auge de lo que denominan “ola conservadora”, con acontecimientos como la destitución de Dilma Rousseff, el encarcelamiento de “Lula” Da Silva y el aumento de la popularidad y aceptación entre los electores de Jair Bolsonaro, quien finalmente llegaría a la presidencia en el año 2018.

Enmarcado en el crecimiento del campo historiográfico sobre las derechas en América Latina, el segundo volumen de Tempos conservadores nace en buena medida de la preocupación por emprender un estudio crítico de las derechas, sus instituciones, proyectos, intelectuales y conexiones que permitieron su ascenso y, según declaran los compiladores, del peligro que representan como destructoras de los derechos de los trabajadores. En este tomo, se sumó la participación de investigadores de Argentina y Uruguay, cuyos aportes resultan fundamentales para mirar el fenómeno a escala regional. Si bien, el libro propone recorrer el siglo XX y la primera década del XXI para identificar a sujetos o grupos vinculados a las derechas, las investigaciones presentadas se concentran en la segunda mitad del siglo pasado. El libro se compone de ocho artículos, los cuales propongo leer a partir de tres ejes temáticos que pueden brindar al lector una guía sobre qué o quiénes son las derechas para los editores. Leia Mais

Contra o vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)

Investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (Portugal), Valentim Alexandre é autor de um conjunto de livros e artigos fundamentais sobre o fim do Império luso-brasileiro, a viagem de Portugal para África ao longo de oitocentos e o colonialismo português nos séculos XIX e XX nas suas vertentes política, ideológica e econômica. Depois de se aposentar, dedicou vários anos à pesquisa e elaboração deste livro sobre a evolução do sistema colonial português entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1960 (e de outro, em preparação, centrado no período da Guerra Colonial). A obra é monumental a vários títulos. Não me refiro à dimensão que se traduz em número de páginas, mas à investigação histórica que lhe subjaz e ao contributo decisivo que traz à compreensão da durabilidade do Império, fenômeno que andou a par da durabilidade do Estado Novo português (1933-1974).

É sabido que a escrita da história requer a consulta, mais exaustiva e sistemática possível, de fontes primárias e secundárias. Ciente da quantidade e diversidade de fontes disponíveis para o estudo da questão colonial no pós-Guerra, Alexandre escolheu privilegiar o arquivo Oliveira Salazar, “que reúne uma amplíssima documentação com interesse” para o tema e serve de “filtro, concentrando os materiais que subiam à Presidência do Conselho pela especial relevância que […] lhes era reconhecida” (ALEXANDRE, 2017, p.24). Tendo como principal ponto de observação esse fundo documental, não deixou de recorrer a outras fontes primárias (documentos oficiais impressos, periódicos e publicações da época) e de confrontar a bibliografia que vem sendo publicada em Portugal e noutros países. Cumpre assim enfatizar que um dos grandes méritos deste livro reside precisamente no trabalho com as fontes, um trabalho minucioso, exigente, rigoroso e necessariamente demorado, resultado de uma postura livre e ética, na contramão da exigência académica de pesquisa e publicação rápidas sob o jugo dos fatores de impacto. Leia Mais

Manuais disciplinares, discursos pedagógicos e formação de professores (Séculos XIX e XX) | História da Educação | 2019

Neste dossiê estão reunidos artigos em que os autores envidaram esforços para compreender os aspectos instituintes presentes nos diferentes discursos pedagógicos que fundamentaram a ideia de renovação educacional desde o final do Século XIX e durante o Século XX. Para tanto, tomam como fonte privilegiada diferentes manuais disciplinares que foram muito utilizados nos processos de formação de professores internacionalmente, ainda que a análise recaia particularmente naqueles em circulação no Brasil e em Portugal, o que ocorreu, destacadamente em Escolas Normais, mas, também, em cursos superiores de formação de professores. Nessa direção, os manuais disciplinares elencados como fonte nos diferentes artigos propostos para integrar o presente dossiê incluem os de História da Educação, Psicologia Educacional, Didática, Pedagogia e Metodologias e Práticas de Ensino.

Assim, pode-se perceber que parte considerável dos manuais disciplinares publicados em uma primeira fase, que se estende até meados do Século XX comportava um ideário cientificista, evolucionista e higienista que estava acompanhado do estabelecimento e da disseminação de um código moral laico eminentemente cívico, considerado fundamental para o progresso das diferentes nações e para o alcance dos fins gerais da Humanidade. Em um segundo momento, a ênfase recaiu na dimensão científica e crítica, o que se estende até os tempos atuais. Com certeza este esforço discursivo e formativo contido nos manuais disciplinares encontrou forte ressonância, mas também resistência, o que se espera deixar evidenciado com o presente dossiê. Leia Mais

A Ilustração (1884-1892): Circulação de Textos e Imagens entre Paris, Lisboa e Rio De Janeiro | Tania Regina de Luca

A Nova História Cultural tem proposto abordagens com foco na mediação e nas trocas culturais e simbólicas, ocorridas desde o século XVI até os dias atuais, entre a Europa e o continente americano, sobretudo na região do cone sul. Neste sentido está a obra A Ilustração (1884-1892): circulação de textos e imagens, entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro que expõe a intensa relação estabelecida entre Paris, Lisboa e Rio de Janeiro a partir do entendimento da difusão cultural cujo polo irradiador era a França, país mundialmente conhecido por manter refinados modos, costumes e progressos técnicos. O objetivo do livro é analisar sistematicamente o periódico e demonstrar a lógica da circulação através do Atlântico, além dos projetos culturais e políticos que envolveram a revista e seu principal responsável, Mariano Pina (1860-1899).

O estudo da publicação esteve circunscrito num projeto maior de pesquisa, intitulado “Circulação Transatlântica dos Impressos – a globalização da cultura no século XIX”, coordenado por Jean-Yves Mollier (Université Saint-Quentin Yvelines) e por Márcia Abreu (UNICAMP), com objetivo em investigar impressos que circularam entre Inglaterra, França, Portugal e Brasil no período de 1789 a 1914, recorte inspirado no clássico livro de Eric Hobsbawm (1917-2012), A Era dos Impérios (Editora Paz e Terra, 2012). O livro de Tania Regina de Luca (Unesp – Câmpus de Assis) abordou o periódico a partir da perspectiva de fonte e objeto, ou seja, as análises são realizadas levando em conta o aspecto diacrônico, que assenta o periódico na ótica da história da imprensa, e sincrônico, extraindo evidências e diálogos entre os agentes dos impressos e as publicações contemporâneas. Ademais, a mobilização de A Ilustração contribuiu ricamente para demonstrar novo e instigante modo de manuseio das fontes periódicas: ambos os eixos puderam ser vistos sob o ponto de vista transnacional, de forma a demonstrar como a revista estabeleceu relações culturais e econômicas com outras publicações do Brasil e de países europeus, ponto, aliás, destacado por Márcia Abreu no prefácio. Leia Mais

Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo | Joana Gorjão Henriques

Entre os séculos XVIII e XIX, vários viajantes estrangeiros que passaram por Lisboa descreveram, frequentemente com grande incômodo, o que lhes parecia uma característica extravagante da capital do Reino de Portugal: uma presença considerável de gente negra. Só para destacar um, entre tantos registros expressivos, o italiano Giuseppe Barreti, que esteve em Lisboa em 1760, não escondeu sua perturbação diante da quantidade de negros e mulatos que “formigavam em todo canto” da cidade. A multidão de gente de cor permanecia numericamente expressiva no início do século XIX. Segundo cálculos coevos, em 1801, os negros eram cerca de 15.000, de um total de 220.000 moradores da cidade de Lisboa. Isso de fato particularizava a capital de Portugal em comparação com outras grandes cidades e capitais da Europa, cuja presença negra não alcançava proporções semelhantes.1 O fenômeno, menos expressivo em termos demográficos, também podia ser observado em outras cidades do reino, como Porto, Faro e Évora. Entretanto, a história dos descendentes de africanos no sul da Europa em geral, e particularmente em Portugal, começa muitos séculos antes. Embora, em termos cronológicos e geográficos, as pesquisas sobre o tráfico de escravos e a escravidão em Portugal2 ainda sejam modestas e circunscritas, investigações recentes têm demonstrado que, já no início do século XVI, algo entre 15% e 20% da população de Lisboa “tinha nascido na África ou era de origem africana”.3 Leia Mais

Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes | António Manuel Hespanha (R)

O contexto e a intencionalidade da produção dos discursos devem ser levados em conta para que não haja interpretações que fujam das possibilidades apresentadas pela documentação. Mesmo uma leitura feita a contrapelo possui limites interpretativos. A sensibilidade do pesquisador costuma ser bom guia para evitar enganos, mas não pode ser o único. Associar um corpo teórico e metodológico à sensibilidade de pesquisa ajuda na execução de uma obra mais coesa.

Iniciamos o texto com essa reflexão por uma dupla razão. António Manuel Hespanha mesmo se propondo a fazer um livro mais focado na exposição das tradições jurídicas portuguesas e não na análise dessas tradições, não se permite escapar da teoria e do método que caracterizam o trabalho do historiador. A segunda razão é o próprio Hespanha quem introduz. Ele diz que os historiadores ainda esperam encontrar as coisas como elas realmente aconteceram, mesmo que duvidem das narrativas que lhes chegam como fontes. E duvidam ainda mais daquelas que “são muito senhoras de si”. Problema que se agrava quando as narrativas em questão são as jurídicas.

O autor resgata a ideia de “uma sociedade construída sobre o direito”, consoante o medievalista russo Aaron Gurevič, para demonstrar o nível de abrangência desses textos. Bem como fica expresso no título do livro, “direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes”, eram todos campos cobertos pela Justiça. E, para cada um desses campos, havia subdivisões. A intenção dos juristas letrados era produzir uma legislação que pudesse dar conta de aspectos muito gerais e, ao mesmo tempo, capaz de arbitrar sobre casos extremamente específicos. A literatura jurídica tendia a fazer uma exposição pormenorizada da organização e do funcionamento social. “Ou seja, os juristas descrevem muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo” (posição 79-81). O que, por vezes, pode conduzir o historiador ao engano de pensar na sociedade portuguesa de Antigo Regime como um corpo homogêneo e seguidor das leis. Mas, havia nuances como a tradição, o prestígio dos sujeitos, as regionalidades, as distâncias, entre outros aspectos que interferiam na forma de dispensar a Justiça. E como bem apontou António Manuel Hespanha no trecho acima citado, o texto jurídico recaia na intencionalidade dos homens responsáveis pela sua produção.

O direito das mulheres pode nos servir de modelo para mostrar como a lei buscava circunscrever do quadro mais geral aos mais específicos. O Antigo Regime português apresenta as mulheres como seres frágeis e facilmente coagidos. O feminino era considerado praticamente inexistente diante do masculino. No entanto,

[…] quando a imagem da sua particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o saber jurídico amplifica e projeta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos – fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade (posição 7471- 7473).

Essa avaliação tornava as mulheres juridicamente menos responsáveis pelos seus atos. Elas não poderiam, assim como os rústicos e idiotas, responder pelo crime de falso testemunho, pois lhes seria difícil distinguir a verdade do erro. Porém, em determinados casos a “imprudência” e “fragilidade” feminina eram desconsideradas. As mulheres comerciantes são bons exemplos disso. A prática do comércio seria suficiente para garantir faculdades mais amplas para as mulheres, ainda que não comparáveis às masculinas. A legislação, como é possível notar, não apenas inferiorizava as mulheres como também lhes fechava qualquer possibilidade de obter um posto de mando. Preceito que apenas o monarca tinha poder para constranger.

Conforme alerta Hespanha, o conteúdo do texto jurídico sobre as mulheres no Antigo Regime é dos mais suscetíveis a avaliações feitas de acordo com o entendimento que temos hoje do Direito (e, principalmente, do feminino). A estranheza provocada é normal. Reflete as diferenças entre o presente e o universo social do tempo estudado. Atualmente, no mínimo nos pareceria risível – para citar outro detalhe dentro de atribuições mais amplas – incluir entre as cláusulas de um contrato de locação de imóvel a previsão de realocar o inquilino caso a propriedade fosse assombrada por almas penadas. Não obstante, para uma sociedade imersa no pensamento religioso, esta era uma prática possível. Resguardar as diferenças entre os períodos, ou melhor, localizar no tempo determinadas práticas jurídicas é um dos pontos fortes de “Como os juristas viam o mundo (1550-1750)”.

Outro ponto forte da obra é não ter preocupações quanto à extensão dos capítulos e muito menos do livro como um todo. O que permite descrições longas sobre os campos cobertos pelo saber jurídico. Isso foi possível porque, ao contrário das suas obras anteriores, o pesquisador realizou a publicação de forma independente. É provável que uma editora aconselhasse o autor a retirar algumas partes para tornar o livro mais “enxuto”. Sem essas barreiras, o trabalho surge como uma leitura que também pode ser feita em forma de consulta. Por duas razões. Primeiro devido ao fato de apenas a introdução (capítulo 1) e o epílogo (capítulo 9) adiantarem e reforçarem as ideias apresentadas nos demais capítulos. Os outros sete capítulos são independentes entre si. E, quando a argumentação exige questões já trabalhadas, Hespanha as repete. As argumentações e conceitos só não são repetidos quando um tópico é exatamente igual ao outro em termos interpretativos.

A segunda razão diz respeito à corriqueira dificuldade que os historiadores têm com o universo de escrita dos oficiais da justiça, comumente, carregados de termos técnicos. E, quando os historiadores tentam sanar seus déficits de informação auxiliados por livros de direito atual, “é o pior dos remédios, pois os leva a aprisionar o passado nas categorias do direito de hoje” (posição 131-132). Hespanha prefere o “desconforto” da leitura dos textos clássicos, ao usar compreensões jurídicas que atualmente estão superadas, do que cair no anacronismo. Esse tipo de resguardo metodológico, ele diz ser positivo tanto para os historiadores que lerem a obra, como também para os juristas. Afinal, a aproximação que se busca é com o universo dos magistrados de então.

Para evitar enganos, Hespanha aconselha a leitura de alguns interpretes das leis portuguesas. Sugere aos seus leitores o mesmo que sugere aos seus alunos, a leitura de “Institutiones iuris civilis lusitani”, de Pascoal José de Melo Freire dos Reis, publicado em finais do século XVIII, e a obra de Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, “Notas de uso practico, e criticas, addições, illustrações e remissões”, datada do início do século XIX. Mas o conselho é seguido por uma ressalva. Por ter sido Pascoal de Melo um reformista e Lobão um conservador, as interpretações de um podem ser facilmente balanceadas pelas do outro. O que não exclui o compromisso que deve ter o profissional da História com a leitura de interpretações feitas para reforçar, reconstruir ou até mesmo extinguir conceitos.

Se com os autores mencionados no parágrafo anterior é possível ter melhores explicações sobre leis pontuais, o que o livro de António Manuel Hespanha oferece é uma visão melhor sobre a tradição jurídica portuguesa. Dito de outra forma, o livro pode ser consultado para tirar dúvidas sobre as formas de pensar e executar o Direito entre 1550 e 1750. As peças jurídicas eram “uma sofisticada construção de juristas letrados, a partir da qual se estabeleciam regras para a vida de todos os dias. Mas também de uma imagem consistente do homem e da sociedade” (posição 34-35).

Como forma de reprodução social a cultura letrada ajudava a aprofundar as categorias sociais. Os letrados, por dominarem o código de escrita e leitura, não poderiam ser vistos, socialmente, como os que não dominavam o mesmo código. Ainda que o objetivo final da legislação fosse conhecido pela maior parte da população, segundo Hespanha, conhecer as especificidades da lei e ter poder para executá-las era o grande diferencial.

Seja como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni) (posição 1148- 1153).

A manutenção dos textos jurídicos em latim ou com expressões latinas, por exemplo, ainda que a maior parte estivesse em vernáculo, aparece como “projeto de poder”. Não apenas por afastar das pessoas o entendimento fino do texto, como dito acima, mas ajudava igualmente a associar as peças jurídicas do mundo sacro (dos saberes religiosos). Servia ainda para a manutenção das hierarquias profissionais no campo do Direito. Os juízes não letrados seguiam mais o direito natural e comum do que os compêndios universitários. E por isso, eram tratados pelos juízes letrados como executores do “direito dos rústicos” ou dos “direitos próprios” (consuetudinário).

Apesar disso, os livros de direito tinham boa circulação. Eram encontrados nas periferias do Reino e do Império, garantindo assim, “o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existirem juristas” (posição 365-366). Nos centros urbanos eram ainda mais comuns. O que não significa dizer que os juristas dispunham de grandes bibliotecas pessoais. Hespanha diz que a lista de livros referência para o trabalho dos juristas e juízes era curta e, ainda menor era o número de títulos de fato utilizados. Na maioria das vezes, o acesso a essas obras só era possível em instituições com boas bibliotecas. A posse pessoal passava pelas dificuldades do valor, transporte e fragilidade das obras.

Ao passar a tradição jurídica portuguesa em revista António Manuel Hespanha explora os campos civil e eclesiástico; o que era válido e inválido para nobres e não nobres; versa sobre os compromissos dos reis com a execução da Justiça e etc. Inclusive, de como as penalidades foram se tornando mais brandas com o passar do tempo. Discorre ainda sobre as gentes e as coisas. Aqueles que não gozavam de nenhuma personalidade ou status, como os escravos, não eram considerados como pessoas, senão como coisas. E, objetos inanimados poderiam aparecer como titulares de direitos, ou seja, personificados. Por exemplo, “um prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a ‘adscrição’, vinculação de certas pessoas a trabalhar certa terra)” (posição 6391-6393). Havia então, sob a avaliação contemporânea, coisas tratadas como gentes e gentes tratadas como coisas. Ainda assim, ambos poderiam ser requalificados, a depender da situação, e enquadrados em outros campos do Direito

Além do que já foi mencionado e de tantos outros temas que ficaram de fora desse comentário, há uma ideia central que perpassa toda a obra. Neste trabalho, António Manuel Hespanha não apenas reforça a sua famosa tese sobre a distribuição dos poderes por diversos polos, como também introduz uma nova tese (ou provocação historiográfica). Trata a visão jurídica exposta como típica da Europa “latina”. O autor reconhece a ousadia da sua afirmação e trata de apresentar algumas razões que o conduzem a tal pensamento. Diz não acreditar em um “espírito latino” ou em uma “cultura latina”. Tampouco considera que esse fenômeno possa ser atribuído aos diferentes panoramas religiosos entre “Sul” e “Norte” da Europa após a reforma protestante.

Para Hespanha, o cerne da questão estava de fato no uso e comunicação do corpus literário. Mesmo antes da cisão religiosa, os juristas do “Sul” discutiam entre si, enquanto os do “Norte” (leia-se alemães, holandeses e ingleses) não tinham uma literatura jurídica muito expressiva. Sendo assim, havia um corpus literário comum entre os juristas ibéricos, italianos e até mesmo franceses, na primeira época moderna. “A identidade ‘do Sul’ é antes uma identidade induzida por um círculo de comunicação” (posição 19801). O que facilita para que parte da historiografia as classifique como corporativas e repletas de falhas de rigor na aplicação das leis. Quem sabe até possa o “sabor latino” do direito comum entre essas sociedades revelar as raízes de parte daquilo que somos hoje.

Notas

1 A obra é vendida exclusivamente pela Amazon. No site da empresa é possível ter acesso ao livro em dois formatos: o físico, com 732 páginas e impresso pela CreateSpace; e digital, com 36.362 posições.

Paulo Fillipy de Souza Conti – Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH – UFPE). E-mail: [email protected]


HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: CreateSpace Independent Publishing Platform (Amazon), 2015.1 Resenha de: CONTI, Paulo Fillipy de Souza. O mundo dos juristas pelos olhos do historiador. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.1, p.296-300, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

Cultura luso-brasileira | ArtCultura | 2017

O dossiê que ora se apresenta ao leitor tem como temática a cultura luso-brasileira. Os artigos nele enfeixados, apesar das diferenças de abordagens, podem ser agrupados em torno das questões inerentes à escrita e às imagens no universo cultural do Brasil e de Portugal.

As obras de caráter literário, histórico, científico, bem como aquelas que transitavam entre diversos gêneros, como os pasquins e folhetos, constituem fonte de distintas pesquisas na historiografia. Estas pressupõem distintas abordagens, que contemplam tanto os aspectos formais relativos aos textos, quanto os usos e apropriações nos contextos onde se inserem. Nesse sentido, estão em discussão tanto o estudo dos gêneros textuais, as tópicas e o campo da retórica, como as apropriações e usos possibilitados pelas múltiplas leituras que os impressos e imagens encerram.1 Leia Mais

A cavalaria medieval ibérica | Signum – Revista da ABREM | 2017

Planejamos esse dossiê temático pretendendo reunir estudos sobre as cavalarias ibéricas, em suas múltiplas formas de interação social e política, sem esquecer das Ordens de cavalaria que apareceram em solo peninsular ou que a ela se referiam. Ao pensarmos em cavalaria na Península Ibérica, entre tantas fontes, chamam a nossa atenção as informações que podemos extrair da obra de Alfonso X, o sábio (1252-1284), dentre elas, aquela que ficou conhecida como Las Siete Partidas 2.

O Título XXI da Segunda Partida trata da cavalaria, especificando, na primeira lei, que ser cavaleiro não é uma condição de nascimento e sim, o reconhecimento de uma série de características que fazem com que seu portador possa ser escolhido para pertencer a esse estamento. Leia Mais

500 anos do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente | Signum – Revista da ABREM | 2017

Como já nos ensinou Ítalo Calvino, “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”1. Por isso, novos leitores e leituras de um texto dito clássico estão sempre em demanda daquilo que ainda não foi dito, numa busca intensa e renovada por atualizações e ressignificações. Como comprova este Dossiê, o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, é uma obra clássica da dramaturgia em língua portuguesa, e, somando-se ao que já foi dito por sua longa fortuna crítica, vários foram os colegas que aceitaram nosso chamado em demanda do ainda não dito ou de renovação do já dito sobre Inferno. Alinhado à tradição do teatro produzido na Idade Média europeia, constituindo-se como Moralidade, gênero dos mais frutíferos da dramaturgia medieval, renovando e ressignificando a representação do momento de passagem da vida para a morte, a partir da cristianização do tema proveniente da Antiguidade da travessia do Lette, rio do Esquecimento, e encenando um assunto caro a sua época, o julgamento final a que toda alma terrestre deve se submeter no pós-morte, Inferno é um clássico extremamente atual. As inquietações que movem suas personagens são ainda nossas, pois como nos lembram, ao final do auto, os Cavaleiros de Cristo, “na vida perdida/ se perde a barca da vida”. Leia Mais

A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668) | Emília Savado Borges

Mestre em História Moderna e pós-graduada em História Regional e Local pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Emília Salvado Borges desenvolve, fundamentalmente, investigação sobre a história da região Alentejana, no período correspondente ao Antigo Regime. Nascida na Vila de Cuba, em Portugal (Alentejo), dedicou boa parte dos seus esforços investigativos às histórias que envolviam a sua municipalidade e o seu entorno. Neste livro, a autora procura desvendar uma realidade pouco explorada por uma historiografia muito extensa e de debates acalorados, produzida principalmente pelos historiadores portugueses.

A produção acerca da Restauração é extremamente ampla e prolixa. Segundo Torgal, em artigo publicado poucos anos após a Revolução dos Cravos, a Restauração foi a grande vítima em Portugal, pois se prestava muito mais a justificar as ideologias que vicejavam em terras lusas do que a apresentar ao leitor um trabalho assentado em bases plenamente verificáveis [1]. Se isso prejudicou a objetividade, certamente não afetou a quantidade de textos produzidos, pois tanto durante o movimento, como séculos após, muito se publicou a respeito dos acontecimentos que colocaram a dinastia Brigantina à frente do governo lusitano.

Essa situação começou a mudar quando nos anos 1990, a historiografia sobre a Restauração se alargou consideravelmente, graças à contribuição de uma geração de historiadores tributários, em boa parte, dos trabalhos de António Manuel Hespanha [2], Fernando Bouzas Alvares [3], Rafael Valladares [4], entre outros. Estes trouxeram à baila uma série de questões, até então, pouco abordada por esta historiografia. Temas relativos à governança, à diplomacia, à cultura, entre outros, passaram a estar no foco das lentes desses pesquisadores.

O estado atual das investigações sobre a Restauração permite identificar, primeiro o desaparecimento das grandes sínteses sobre o movimento, e em segundo, a tendência de abordagens de questões relativas aos impressos, à religião, à guerra em seus diversos palcos e à diplomacia. E é nesse sentido que podemos inscrever este trabalho de Emília Salvado Borges, que revela nas suas primeiras páginas a forte influência dos estudos de Antônio Manuel Hespanha, principalmente no que tange à obra “As vésperas do Leviatan”.[5]

Esses novos objetos permitiram uma variação temática maior que vem sendo explorada em suas mais variadas vertentes. Essa mudança de foco revelou novas questões e este livro é fruto disso. Com uma descrição geográfica muito precisa, que tenta trazer o leitor para a região do Baixo Alentejo, Emília Salvado apresenta a fronteira hispano-portuguesa com todas as suas cores. Nessa obra, o leitor, mesmo que tenha tido pouco ou nenhum contato com o tema Restauração, consegue perceber que a região foi marcada por tensões permanentes. Tendo sido por este caminho que, em 1580, Felipe II mandou o Duque de Alba iniciar a ocupação de Portugal.

Profundas inimizades, ódios, rancores, saques, cercos, entre outros, são retratados em profusão, sempre muito bem documentados e ancorados nas fontes. Aliás, vale destacar que a pesquisa realizada pela autora, nos diversos arquivos distritais da região, é um dos grandes diferenciais do trabalho. Pois, além dos tradicionais arquivos portugueses, sai dos grandes centros decisórios de Portugal buscando nas periferias novas fontes de estudo, inserindo novos interlocutores nesse cenário, até então desconhecidos dos estudos tradicionais.

Sempre bem distante dos centros políticos, tanto de um lado como de outro da fronteira, mas sempre muito próximo dos efeitos que cabem em uma guerra, foi ali que as decisões de Lisboa e Madri tiveram o seu efeito prático. Consequências que conduziram ao despovoamento e à ruína do homem comum que sofreu com a guerra tanto na hora em que era convocado para defender a Coroa, quanto nos momentos em que ocorreriam ataques das hostes inimigas, são os assuntos abordados ao longo do livro.

Parte muito significativa do trabalho de Emília Borges tem sua base comprobatória, além das fontes impressas, em registros manuscritos. Esse cabedal muito rico e multifacetado de textos reflete as realidades vivenciadas naquela região, demonstrando a incidência dos “pequenos” fatos no cotidiano das pequenas povoações. Precedido de um detalhado índice e uma breve introdução, a autora divide seu extenso trabalho em três partes, onde cada parte possui seções e subseções muito bem definidas ao longo de 550 páginas. Ao fim, a obra ainda conta com três anexos em que o leitor, ao longo do texto, é constantemente convidado à consulta.

A primeira parte é distribuída em quatro seções e estas em muitas subseções. Sob o título de Cenário e actores, a autora aborda temas como A terra, que curiosamente não possui nenhuma subseção, Os homens, que em sua primeira subseção estuda as diversas tipologias dos integrantes do Exército Restauracionista. Continuando os estudos sobre os homens de guerra e os alentejanos a próxima subseção gira em torno de como eram pesadas as pressões sofridas pelas povoações locais quando estas tinham que ceder seus paisanos às levas e alistamentos no Baixo Alentejo.

A invocação de privilégios é frequente, tanto nos clamores contra as levas como na resistência dos homens ao recrutamento. O quadro geográfico do Baixo Alentejo, com suas extensas planícies forçam a ação da guerra, sendo um lugar propício ao ataque e à defesa. Os atores são obrigados a protagonizar combates bélicos mesmo contra a sua vontade. Esta realidade conduz à terceira seção dos estudos do Exército alentejano, o qual a autora qualifica como sendo um Exército de papel, diferenciando entre os que andam ausentes daqueles que protagonizaram a deserção e os que andam vadios e calaceiros na Corte. Por fim, centra a sua atenção no estudo das opções estratégicas do Exército de D. João IV, e sua forma peculiar de guerra ofensiva que privilegia as entradas e a pilhagem sobre o território inimigo.

A quarta seção enumera diversos incidentes em que se exemplificam estas entradas em território inimigo. Centrando os estudos nos protagonistas, no caso, as tropas de ambos os lados, seu enfoque se coloca dentro de quatro marcos temporais (1641-1646; 1647-1656; 1657-1666 e 1661-1668). Assim, aparecem situações de elevada violência como é o caso do O arrasamento de Barrancos (1641); O assalto Português a Valencia de Mombuey (1641) e etc.

Contributo dos Povos, a segunda parte de seu livro, se subdivide em três seções e variadas subseções. Em Despesas com a defesa, a autora se dedica a estudar aspectos diversos, como por exemplo, o peso dos impostos nas comarcas alentejanas, a complexa problemática ligada aos alojamentos dos soldados nas povoações e as despesas com as obras de fortificação nas comarcas de Campo de Ourique e Beja. Seguindo, em Carros, carretas e cavalgaduras para a guerra, Salvado aprofunda a questão da exigência de se ter eficientes meios de locomoção como forma de defesa e ataque. Finaliza essa parte com a sessão que aborda o abastecimento do exército.

No que tange ao terceiro trecho da obra, o destaque é direcionado para a Conflitualidade, decadência e morte. Tratando da pressão militar: prepotência e conflitualidade, diferencia o confronto entre o poder militar e o poder civil no espaço dos conselhos, assim como traça as difíceis relações entre os povos e os militares. A prepotência dos poderosos, não é deixada de lado, e nesse sentido, apresenta diversas e interessantes provas de uma situação de guerra que se registra e se padece em ambos os lados da Fronteira. Em O fim da prosperidade, destaca os assuntos demográficos, concluindo com um interessante aprofundamento das atitudes e comportamentos das pessoas comuns, paisanos e soldados perante a guerra.

Reafirmamos a ideia de que esta é uma obra que aborda de forma muito completa a problemática da Guerra da Restauração sob uma ótica muito peculiar. Como destaca Salvado Borges, grande parte dos trabalhos e publicações anteriores sobre este período de guerra peninsular ou está centrado exclusivamente na ótica militar, contendo uma análise de forte conteúdo estratégico ou se limita a destacar suas implicações políticas com particulares visões sobre as decisões tomadas ao nível central do Estado.

A autora, ao atrelar a diversidade de orientações, relacionando de forma causal as informações políticas, sociais e econômicas com outras de alcance mais local, consegue prender a atenção do leitor desvendando novas e instigantes situações desse cativante tema. No entanto, ao utilizar um marco espacial bem definido e delimitado com os métodos e teorias comuns da História, realiza além de um texto direcionado a todo e qualquer tipo de leitor, um excelente trabalho historiográfico.

Notas

1. TORGAL, Luís Manuel Soares dos Reis. A Restauração. Revista de História das Ideias, Coimbra, n. 1, p. 23-40, 1977. p. 23.

2. HESPANHA, António Manuel de. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

3. ALVAREZ, Fernando Bouza. Papeles y opinión: políticas de publicación en el Siglo de Oro. Madrid: Editorial CSIC, 2008.

4. VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal, Guerra e Restauração (1640-1680). Lisboa: A esfera dos livros, 2006.

5. A proximidade com a obra de Hespanha está na abordagem geográfica, descrevendo a paisagem com detalhes muito precisos que tentam transportar o leitor para o ambiente estudado.

Luiz Felipe Vieira Ferrão – Mestre em História Política pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ e possui especialização em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente é Doutorando em História Social do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, onde é orientado pelo Prof.º Dr. Carlos Ziller Camenietzki. O foco de seu trabalho tem como pano de fundo a Restauração Portuguesa. E-mail: [email protected]


BORGES, Emília Salvado. A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668). Lisboa: Edições Colibri, 2015. Resenha de: FERRÃO, Luiz Felipe Vieira. A guerra vista de longe: o Baixo Alentejo e a Restauração. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 238-241, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]

 

Do Pacto e Seus Rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos | Fátima Regina Fernandes

O princípio da territorialidade começa a ser delineado na Baixa Idade Média, ainda que a experiência jurídica medieval, segundo Paolo Grossi (2014), possa ser caracterizada pela existência de um pluralismo no âmbito do direito. “Pluralidade de tradições e de fontes de produção no interior de um mesmo ordenamento jurídico” (GROSSI, 2014, p. 65). Ciente desta complexidade de tradições e de interpretações jurídicas coexistentes, é que Fátima Fernandes se propõe a discutir a condição de degredados e de traidores em um contexto específico, ou seja, durante as guerras entre Portugal e Castela, iniciadas em 1369. Após o assassinato do legítimo rei de Castela, Pedro I (23 de Março de 1369), por seu irmão bastardo, Enrique de Trastâmara (Henrique II), o rei português D. Fernando apoiado por várias cidades da Galiza e por partidários de Pedro, o Cruel, reivindica a coroa castelhana alegando ter-lhe direito por ser bisneto de Sancho IV. Essas guerras representavam, portanto, quadros da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), pois Pedro de Castela era partidário dos ingleses e seu meio-irmão Enrique, inicialmente dos franceses (NASCIMENTO, 2011). Leia Mais

Império Português em Perspectiva: Sociedade, Cultura e Administração (XVI-XIX) | Ars Historica | 2016

Para um pesquisador da história do império português é difícil imaginar um prazer maior do que fazer a apresentação de um dossiê de uma revista discente sobre o tema. E isso porque a própria existência desse dossiê é a comprovação cabal de como o estudo do “Mundo Português” se espraiou na academia, um quadro quase inimaginável há pouco mais de duas décadas atrás, quando surgiram os primeiros trabalhos realizados no Brasil. O próprio termo “império”, hoje absolutamente consolidado em nossa historiografia, foi por muito tempo objeto de questionamento.

Nesse número de Ars Histórica encontramos uma produção historiográfica extremamente diversificada, tanto em termos temáticos quanto geográficos e temporais, sinal inequívoco da vitalidade dessa área de pesquisa. Leia Mais

Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades | Arlindo Barbeitos

Resenhar um livro com essa densidade e pormenorização é tão difícil quanto traçar o perfil do autor pois este assume diversas facetas: o intelectual, o professor, o investigador, o nacionalista, o politico, o cidadão, que se resume numa única característica: o profissional. E é com profissionalismo, mas igualmente com muito empenho, dedicação e persistência que Arlindo Barbeitos escreveu a presente obra, pois de outro modo não seria possível empreender essa tarefa com tal densidade de pormenorização. Abordar temas ainda muito sensíveis para a sociedade angolana e portuguesa, como a raça, a miscigenação e todas as conotações daí resultantes, analisar obras essencialmente portuguesas, mas que representam os angolanos da altura (período colonial), parece-nos à partida, uma missão inglória, na medida em que se torna fundamental ter um excelente domínio da história dos dois países, assim como da relação entre os diferentes acontecimentos ocorridos nos dois lados do Atlântico. Leia Mais

Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos | Fátima Regina Fernandes

A obra Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos é fruto do longo trajeto investigativo de Fátima Regina Fernandes, professora de História Medieval da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Enquanto medievalista, lança seu olhar sobre a Idade Média portuguesa, seus atores sociais e relações políticas no âmbito do Ocidente Medieval, com maior relevância para temas que giram em torno da dinâmica entre os poderes régio e nobiliárquico no espaço da Península Ibérica.

Antes de propriamente adentrar na resenha daquela obra, é preciso um esclarecimento. Toda publicação demarca um ponto no trajeto de pesquisa do historiador, seja ele graduando, pós-graduando ou historiador de carreira consolidada. Contudo, Do pacto e seus rompimentos se constitui por excelência como posição de chegada do percurso investigativo de Fátima Regina Fernandes, pois se trata da tese apresentada pela autora para obtenção do grau de professor titular do magistério superior, portanto, voltado à comprovação dos méritos da pesquisadora em ocupar tal posição, demonstrados por via da pesquisa que compõe as páginas do livro em questão. Assim sendo, foi a partir desta peculiaridade intrínseca a pesquisa que originou essa obra de onde partiu a análise contida nas linhas abaixo.

O livro objeto dessa resenha apresenta uma divisão em dois capítulos de desenvolvimento da problemática, aos quais se soma uma terceira sessão composta pelos anexos, que não devem ser menosprezados ou tratados como mero apêndice, tanto por oferecerem esquemas visuais – árvores genealógicas e mapas – facilitadores da compreensão do dinâmico contexto abordado por Fátima Regina Fernandes, quanto por conter a transcrição dos tratados2 utilizados pela autora para construir a argumentação central de sua tese, além de proporcionar o acesso a documentos por vezes difíceis de serem obtidos ao historiador brasileiro.

O primeiro capítulo é dedicado à abordagem contextual da segunda metade do século XIV, período marcado por fluidas relações políticas, rapidamente remodeladas pelo estabelecimento de pactos e tratados entre os monarcas ibéricos, franceses e ingleses; jogo de interesses que não poupou os nobres, dentre eles aqueles que acompanharam Fernando de Castro – os chamados emperegilados – ao reino de Portugal após a morte de Pedro I de Castela, também conhecido como o Cruel, pelas mães de Henrique de Trastâmara, seu meio irmão – pois bastardo –, tomando para si o trono castelhano.

Recebidos em Portugal, os Castros Galegos passaram à condição de vassalos do rei Fernando I, apoiando-o em suas ambições de domínio sobre o reino de Castela. Contudo, os planos dos nobres castelhanos foram malogrados pela aproximação entre o rei português e o aragonês – por meio de acordo que previa a divisão do território castelhano entre ambos –, mas principalmente pelo avanço da Guerra dos Cem Anos, que fez da Península Ibérica um palco de disputas políticas entre Inglaterra e França.

O objetivo de Fátima Regina Fernandes não é fazer uma revisão bibliográfica acerca dos pormenores que marcaram o irromper da Guerra dos Cem Anos e o desenvolvimento desse conflito a partir de uma narrativa centrada nas ações entre França e Inglaterra. Busca, antes, demonstrar como essa contenda se alastrou para além das disputas entre reino insular e o de além-Pirineus fazendo da Península Ibérica um ambiente sobre o qual se estenderam os interesses dos reis franceses e ingleses. Dessa maneira, a medievalista brasileira rompe com a centralidade de abordagens historiográficas focadas tão somente nos embates sustentados por França e Inglaterra ao longo da Guerra dos Cem anos e logra oferecer uma perspectiva de análise que enquadra esse fenômeno histórico enquanto pano de fundo capaz de envolver atores sociais inseridos no âmbito peninsular e os tencionar a tomadas de posição no campo político ibérico.

O ambiente de relações sócio-políticas da segunda metade do século XIV não é novidade nos trabalhos de Fátima Regina Fernandes, intimidade contextual que possibilita à autora o estabelecimento de vinculações de interesses entre o poder régio e o nobiliárquico, exercício facilitado por sua larga experiência no emprego do método prosopográfico – cujo uso se faz patente em sua tese de doutoramento (FERNANDES, 2003) e em tantos outros artigos, com destaque para as abordagens da trajetória de Nuno Alvares Pereira (FERNANDES, 2006; 2009) –, e que se revela, em Do pacto e seus rompimentos, no mapeamento das alterações experimentadas pelas relações políticas entre os Castros Galegos e os reis de Portugal e Castela, mas também entre esses últimos e os monarcas de Aragão, França e Inglaterra.

No que toca o tratamento dispensado por Fátima Regina Fernandes aos Castros Galegos, deve-se considerar que a autora os analisa enquanto grupo, nomeando tão somente a figura de Fernando Peres de Castro, enquanto os demais aparecem sob a sombra deste e escondidos sob o anonimato de seus nomes. A ausência do tratamento acerca da linhagem de Castro deve ser entendida sob a perspectiva de oferecer uma tese vertical, objetivando acima de tudo o debate em torno do estatuto social, político e jurídico experimento pelos emperegilados ao longo das vicissitudes que marcaram os finais da década de sessenta do século XIV e o início do decênio seguinte, compreendendo-os a partir da cultura política nobiliárquica castelhana, sustentada por uma nobreza cindida em dois perfis: a velha e a nova, conforme tipologia defendida por MOXÓ (2000) – importante referencial adotado por Fernandes. A supressão do processo de formação linhagística dos de Castro nessa tese deve sem entendido, para além do imperativo da almejada objetivo, pelo fato de que o tema já foi foco de pesquisas anteriormente publicadas pela medievalista (FERNANDES, 2000; 2008).

A abordagem do labirinto de relações sócio-políticas que marca o primeiro capítulo de Do pacto e seus rompimentos, característica que faz com que a leitura dessa primeira sessão da obra seja uma prática por vezes truncada e exigente de uma profunda acuidade por parte do leitor – a fim de que não se perda entre os nomes e as rápidas mudanças na direção dos pactos políticos –, oferece as referências contextuais necessárias para a devida compreensão do debate concernente ao segundo capítulo da obra, ao longo do qual a autora desenvolve o cerne de sua argumentação: o debate em torno da condição de traidores e, posteriormente, de degredados, imputada sobre o grupo de nobres castelhanos abrigados em Portugal.

Para atingir seu objetivo, Fernandes recupera os pactos e rompimentos políticos abordados no primeiro capítulo da obra para analisá-los a partir dos tratados firmados no desenvolvimento das relações entre França, Inglaterra, Aragão, Castela e Portugal, sendo o Tratado de Santarém, estabelecido entre os monarcas desses dois últimos reinos em 1373, crucial para o entendimento da condição sócio-política e jurídica dos Castros Galegos em território português.

Assim, a medievalista recorre ao exercício de crítica documental, heurística e diplomática para analisar o Tratado de Santarém, por meio do qual se estabeleceu a vassalidade de Fernando I de Portugal a Henrique II de Castela, o Trastâmara, lançando Fernando de Castro e os nobres que o acompanhavam no reino português na condição de traidores. Gozando desse estatuto, foram expulsos pelo rei português, rumando para Aragão e depois para a Inglaterra, onde passaram a viver como degredados sob a proteção do rei inglês.

Dessa maneira, “[…] a condição de traidor seria vista à luz da relação vassálica e identificada com o infiel, o que rompe unilateral e ilegitimamente o laço com o seu senhor” (FERNANDES, 2016, p. 85), rompimento este que deve ser entendido sob a perspectiva da natureza, compreendida enquanto “[…] relação artificial estabelecida voluntariamente entre os homens a fim de manter o bem comum, o consenso universal, a concordia ordinem” (FERNANDES, 2016, p. 97). Sob o imperativo de elucidar esses dois estatutos sociais – traidor e natureza –, Fátima Regina Fernandes recorre a um debate jurídico – traço também característico da autora e já demonstrado desde sua dissertação de mestrado acerca da legislação de Afonso III de Portugal (FERNANDES, 2001) –, problemática transpassada pelo do avanço das concepções do Direito emanadas a partir de Bolonha e do fortalecimento da ideia das fronteiras, fenômenos históricos que exerceram influência determinante no ideário político da Baixa Idade Média.

Ao enveredar pela discussão em torno da natureza e da noção de pertencimento à terra – questões atreladas à definição dos limites fronteiriços dos reinos medievais –, Fernandes toca no debate historiográfico concernente ao tema que pode ser sintetizado pelo título da obra de Joseph Strayer, As origens medievais do Estado Moderno, viés interpretativo que, tomando o Estado como ponto de chegada, relegou a Idade Média o lugar de berço, momento de gestação das instituições que posteriormente chegariam a sua maturidade no período histórico posterior ao da Idade Média.

Rompendo com as explicações teleológicas, característica da escrita de STRAYER (1969), Do pacto e seus rompimentos tem o mérito de inserir a análise acerca das instituições medievais no contexto próprio de sua dinâmica, fazendo perceber que o sentimento de pertencimento ao reino nutrido por aquelas pessoas surgiu a partir da base municipal, assim como instituições cujo funcionamento se pautava em uma relação mais impessoal entre o poder régio e o local; diferentemente da vinculação entre reis e nobres, haja vista que estes, preocupados com a manutenção de seu poder nobiliárquico, negligenciavam os limites fronteiriços, transitando mais livremente entre os reinos ao sabor das possibilidades oferecidas pelos pactos políticos – problemática que a autora já havia apontado ao estudar a trajetória de Gil Fernandes, um homem de fronteira (FERNANDES, 2013).

Os méritos da obra de Fátima Regina Fernandes podem ser estendidos para além da perspectiva de análise das problemáticas medievais supracitadas. Duas guerras mundiais. Conflitos armados no Leste Europeu e Oriente Médio – ainda hoje em chamas. Governos ditatoriais na América Latina. Todos esses embates político-militares impeliram, e seguem obrigando, extensa quantidade de pessoas ao abandono sua terra natal em pronta fuga aos horrores gerados pela violência daqueles embates. A proximidade temporal que envolve o observador contemporâneo a esses fatos pode levá-lo a concluir de maneira apressada que o exílio foi fenômeno nascido no século XX e vivo ainda na segunda década do XXI, entendimento equivocado que também se deve a escassez que a problemática experimenta no espaço dos debates historiográficas dos medievalistas.

Embora a circulação de nobres entre os reinos ibéricos possa ser largamente constatada ao longo da medievalidade ibérica, os medievalistas tendem a se ater ao contexto social e a equação de forças políticas que atuaram para a mobilidade nobiliárquica, muitas vezes dedicando pouca atenção aos conceitos que definem a extraterritorialidade desses atores sociais. A tese de Fátima Regina Fernandes alcança esse espaço de discussão pouco explorado, sem deixar de lado o rigor no trato contextual próprio desse período histórico, contribuindo não apenas para a compreensão da Idade Média, assim como o de nossa contemporaneidade, lembrando-nos que não apenas os indivíduos do século XX e XXI estavam sujeitos à necessidade do exílio, mas também os viventes do medievo.

Expostas essas ponderações, tem-se uma visão geral que torna possível a compreensão geral dessa obra. Enquanto tese de professora titular, a publicação cumpre a função de demonstrar o ponto de chegada das pesquisas desenvolvidas por Fátima Regina Fernandes ao longo de sua carreira de professora e pesquisadora no campo da História Medieval, motivo pelo qual estão presentes nessa obra, problemáticas pertinentes ao percurso dessa medievalista brasileira e que aparecem sintetizadas nas no desenvolvimento de suas interpretações em Do pacto e seus rompimentos.

Este não é, contudo, um trabalho de síntese do fim de um caminho de pesquisa. Ora, ainda há muito a ser feito! É antes um ponto de chegada, de onde partem outras problemáticas a serem elucidadas, como fica demonstrado por Fátima Regina Fernandes ao avançar com o debate acerca da condição de traidor e degredado no âmbito da Baixa Idade Média, cumprindo assim com o objetivo central dessa tese. A pesquisa que gerou a publicação de Do pacto e seus rompimentos ainda confirma o mérito que levou a medievalista a obtenção do grau de titular, elogiosamente reconhecido pelos membros que formaram a banca examinadora e registrado em prefácios preenchem as primeiras páginas de Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos.

Notas

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

2 Os documentos contidos no sessão de anexos são: Tratado luso-aragonês (1370), Tratado de Alcoutim (1371), Tratado de Tuy (1372), Tratado de Tagilde (1372) e o Tratado de Santarém (1373).

Referências

FERNANDES, Fátima Regina. A construção da sociedade política de Avis à luz da trajetória de Nuno Álvares Pereira. A guerra e a sociedade na Idade Média: Actas das VI Jornadas Luso-Espanholas de Estudos Medievais, s.l., p. 421-446, 2009.

FERNANDES, Fátima Regina. A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na construção de uma identidade portuguesa. In: FERNANDES, Fátima Regina (Coord.) Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2013. p. 13- 47.

FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à legislação medieval portuguesa de Afonso III. Curitiba: Juruá, 2000.

FERNANDES, Fátima Regina. Estratégias de legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV. Revista da Faculdade de Letras-História, Porto, v. 7 (série III), p. 263- 284, 2006.

FERNANDES, Fátima Regina. Os Castro galegos em Portugal: um perfil de nobreza itinerante. Actas de las Primeras Jornadas de Historia de España, Buenos Aires, v. II, p. 135-154, 2000.

FERNANDES, Fátima Regina. Os exílios da linhagem dos Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações aos Castro (segunda metade do século XIV). Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v. LXXXII, p. 31-54, 2008.

FERNANDES, Fátima Regina. Sociedade portuguesa e poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Dos Azevedo aos Vilhena: as famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba: Editora UFPR, 2003.

MOXÓ, Salvador. De la nobleza vieja a la nobleza nueva. In: MOXÓ, Salvador. Feudalismo, senorío y nobleza en la Castilla medieval. Madrid: Real Academia de la Historia, 2000. p. 311-345.

STRAYER, J.R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, 1969.

Carlos Eduardo Zlatic – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


FERNANDES, Fátima Regina. Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos. Curitiba: Editora Prismas, 2016. Resenha de: ZLATIC, Carlos Eduardo. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.6, n.1, p. 279 – 284, 2016. Acessar publicação original [DR]

 

A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) | Yllan Mattos

[…] Passar um homem infortúnios Ruínas, perdas, naufrágios, por acaso, ou por desastre no mundo é ordinário. Mas não há maior desgraça, nem mais lastimoso caso, do que um triste nascer, por herança, desgraçado. Que um morgado de misérias, É mui triste morgado, ainda mal, ainda negro, que por seu mal vêm tantos! Como estou de posse dele, de dor e de pena estalo. E o coração me faz dentro do peito pedaços […].1

O Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi criado em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica dando início a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias, na qual os cristãos-novos seriam suas principais vítimas. Em um segundo momento, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e feiticeiros (em menor número), se tornaram alvos constantes por parte do Tribunal. Leia Mais

Dinâmica Imperial no antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes e legados: séculos XVII-XIX | Roberto Guedes

Nesta obra, Roberto Guedes organiza textos acerca do Antigo Regime Português, em especial, de suas práticas políticas, econômicas, religiosas e culturais, entre outras, ligadas à escravidão na América portuguesa e em outras colônias do Império Português. A coletânea se depara com o contexto “pluricontinental” da administração imperial portuguesa e propõe uma visão de interdependência da colônia face à metrópole.

O livro “Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português” desdobra-se em cinco partes que enfatizam: escravidão, governos, fronteiras, poderes e legados. Esses cinco conceitos nos instigam a pesquisar a América portuguesa, convidando-nos a um caminho de descobertas da história do não dito e dos pequenos feitos nesse universo da Colônia. Leia Mais

Inquisição Colonial | Revista Ultramares | 2015

Introdução: A Inquisição, da colônia ao que somos no hoje

O que significou a existência do Santo Ofício? Qual o seu alcance na Europa e nos Novos Mundos? Até que ponto a Inquisição remodelou o quadro de sociabilidades existentes na colônia? Como a Inquisição ajudou a gestar o que agora somos e quanto dela há em nosso mundo como resquício? “Lenda Negra”, “Lenda Branca”, interpretações que permeiam as raias de visões nem sempre neutras sobre o metamorfoseado “polvo de mil braços”, como já foi adjetivado o Tribunal que agiu durante a Modernidade Ibérica como baluarte da pureza cristã, à busca de hereges que ameaçavam o monopólio e os interesses católicos em seus domínios…

Estas, de certeza, não são questões de simples resposta, nem tampouco resolvem o quebra-cabeças infinitamente mais complexo da criação, lógica e funcionamento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição português, das vítimas que fez e da atmosfera de controle e de intolerância que espalhou nos espaços onde tinha abrangência, ao longo dos quase três séculos em que teve vida, de 1536 a 1821. Leia Mais

Economia colonial | Revista Ultramares | 2014

A possibilidade de coordenar e apresentar um dossiê sobre economia em uma revista dedicada aos estudos coloniais é motivo de grande alegria. Nas duas últimas décadas a historiografia relativa à América portuguesa tem passado por transformações extremamente significativas. Em 1990, Ciro Cardoso já saudava os novos rumos historiográficos, ressaltando o que ele denominava de passagem do “esquematismo excessivo à relativa complexidade”1. Referia-se, então, à visão simplificadora do que seria a sociedade escravista brasileira, dividida entre senhores e escravos e caracterizada pelo trinômio latifúndio, monocultura e escravidão. Uma sociedade exteriorizada, sem qualquer dinâmica interna considerável. Naquele momento, as pesquisas que se contrapunham a essa perspectiva buscavam ressaltar a complexidade da sociedade brasileira e de suas dinâmicas internas, diminuindo ou negando a importância dos laços exteriores como elementos explicativos do devir colonial.

Estava-se ainda, no entanto, dentro do que nós poderíamos denominar de paradigma historiográfico da relação metrópole – colônia. Em linhas gerais, boa parte dos debates referia-se ao peso maior ou menor que tais relações possuíam para explicar a história colonial. Não é esse o espaço para retomarmos esse debate, por si só riquíssimo e cheio de consequências. No entanto, e só podemos perceber isso hoje pelo distanciamento que o tempo impõe, esse também era um debate marcado por um esquematismo excessivo. Leia Mais

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

Renato Pinto Venâncio é doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, onde defendeu, em 1993, a tese intitulada “Casa da Roda: instituition d´assistance infantile au Brésil, XVIII – XIX siècles”. Atualmente é professor da Escola de Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais.

Em seu livro Cativos do Reino, o autor analisa casos em que escravos circulavam de uma região a outra, sendo responsáveis por transmitir valores e tradições nas diversas partes do reino português e suas colônias. Embora reconheça que esses casos não eram comuns, o autor consegue nos mostrar como essa circulação de cativos é importante para compreendermos a complexidade da escravidão da Idade Moderna, muitas vezes analisada de forma simplificada pela historiografia sobre o tema. Leia Mais

Instituições, poderes e magistrados no mundo luso-brasileiro. Séculos XVIII e XIX | Temporalidades | 2014

Iniciativa dos alunos do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, a revista Temporalidades chega ao seu 12º número, consolidando mais um espaço de debate acadêmico. Afinado com as mais novas tendências teórico-metodológicas, este número traz o dossiê “Instituições, poderes e magistrados no mundo luso-brasileiro. Séculos XVIII e XIX”. Depois de um longo ostracismo, relegado a um lugar secundário nos estudos históricos, o tema da administração conquistou definitivamente o centro das atenções dos estudiosos. Já não se trata mais de privilegiar a administração como mera descrição do funcionamento das instituições, consideradas de uma perspectiva funcionalista, mas, ao contrário, de problematizá-las como instâncias de reprodução do poder, fundamentais para o entendimento das relações políticas no âmbito do Império português. Se durante muito tempo, elas foram vistas como vetores-chave para a execução das políticas emanadas de Lisboa, curvando-se passivamente a elas, hoje, as instituições apresentam outra feição: a exemplo das câmaras municipais, tiveram um papel ativo no diálogo entre centro e periferia, expressando os interesses dos grupos locais, posicionando-se ativamente em favor desses interesses. Leia Mais

Olhares Cruzados: Brasil-Portugal | ArtCultura | 2014

O minidossiê Olhares Cruzados: Brasil-Portugal apresenta ao leitor três artigos marcados por espacialidades que se entrecruzam, talhando diferenças. História e arte se interpenetram produzindo “modos de fazer” singulares. Fotografia, gastronomia e escrita da história evocam a arte de bem fazer.

Assim, no artigo de Annateresa Fabris, o foco se volta para o artista luso-brasileiro Fernando Lemos, que, por intermédio do ato de fotografar o “real”, colocou para o mundo das artes, notadamente em Portugal , um modo específico no qual procurou destacar “o real maravilhoso”, expressão tão cara ao surrealismo. Como diz a autora, “e m relação ao panorama por – tuguês, Lemos é, sem dúvida, uma figura sui generis, uma vez que não tinha praticamente interlocutores no momento em que começa a interessar-se pela fotografia. A fotorreportagem, a fotografia de propaganda e a estética divulgada pelos salões fotográficos eram os exemplos correntes no país”. Em Portugal, a experiência política do salazarismo não via com bons olhos manifestações artísticas que destoassem do receituário estabelecido pelo cânone do “ser moderno” de António Ferro, que já vinha sendo questio – nado, mas prevalecia como valor simbólico da cultura política autoritária do governo de António de Oliveira Salazar, servindo para dentro e para fora de Portugal. E Lemos, como argumenta Annateresa Fabris, na sua maneira de fazer fotografia agia no cotidiano, fugia da fotografia realista documental, opondo-se à estética modernista vigente em Portugal. Por sinal, o preço que pagou por essa insubordinação foi alto, vendo-se obri – gado a transferir-se para o Brasil em 1953. Aqui, radicou-se em São Paulo, nacionalizou-se brasileiro e desenvolveu intensa atividade artística, sendo também professor da FAU/USP. Leia Mais

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

A obra “Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19”, de autoria do professor doutor Renato Pinto Venâncio, foi lançada em 2012 pela editora Alameda. Ao longo de oito capítulos, o autor leva os seus leitores a repensar a escravidão sob uma vertente diferenciada. A perspectiva que se tem é a da movimentação e circulação de escravos. Entendida como um fenômeno referente à transferência de cativos de uma região a outra, em áreas externas ao continente africano, esta circulação envolvia também fatores essencialmente humanos, como o trânsito de valores e as ideias.

Logo no primeiro capítulo Venâncio traça um dos itinerários que irá percorrer em suas reflexões: as rotas de circulação de cativos no interior do império português, especialmente nas Minas Gerais colonial. As Minas foram um lugar de intensa circulação de pessoas e mercadorias pós-descoberta do ouro, lugar em que senhores, acompanhados por seus escravos, vindos de partes distantes do império luso, fixaram residência e buscaram enriquecimento sob influência da quimera aurífera. Leia Mais

Costumbrismo, hispanismo e caráter nacional em Las Mujeres Españolas, Portuguesas y Americanas: imagens, textos e política nos anos 1870 | Edméia Ribeiro

As representações sobre as mulheres não constituem produtos culturais neutros, na medida em que são elaboradas no interior do jogo social e a partir de olhares matizados por múltiplos interesses, inclusive políticos, buscando legitimar situações sociais, resistir a processos de transformação e, entre outras possibilidades, prescrever condutas. O livro da historiadora Edméia Ribeiro insere-se nessa perspectiva, ao focar as relações entre discursos costumbristas, hispanistas e de caráter nacional, numa coleção intitulada Las mujeres españolas, portuguesas y americanas, publicada na Espanha, nos anos 1870.

A autora é, atualmente, professora de história da América do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e membro do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI). Ao longo de sua formação acadêmica, tem abordado questões sobre gênero e representações femininas. Publicou o livro Meninas ingênuas: uma espécie em extinção? A sexualidade feminina – entre práticas e representações – Maringá 1950-1980” (RIBEIRO, 2004), tendo escrito, também, artigos científicos voltados, sobretudo, para a história cultural e política do feminino, entre outras produções. Leia Mais

Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade | Carmem Schiavon, Adriana K. Senna e Rita de Cássia P. Silva

A população do arquipélago formado por nove ilhas e várias ilhotas de origem vulcânica foi batizada “açoriana” em reverência às aves da espécie falconídea (“açor”) que povoavam o lugar. Parte desses ilhéus que lá vivia imigrou para o extremo Sul do Brasil em meados do século XVIII, na esperança de conseguir melhores condições de vida e de alcançar um futuro próspero. O deslocamento para o Rio Grande de São Pedro configurou, desde o início, um grande desafio para aqueles que enfrentavam o percurso marítimo que os levaria às terras brasileiras. Ao longo das viagens, a carência de alimentos e a precariedade das condições de higiene fatalmente ocasionavam a emergência de enfermidades e mortes. O contingente que conseguiu sobreviver aos infortúnios da travessia teve um papel essencial na colonização e no desenvolvimento da região após 1752.

A partir desse enfoque, cada um dos autores do livro “Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade” investiga a historiografia rio-grandense e luso-açoriana, observando-as criticamente. Organizada por Carmem Schiavon, Adriana Senna e Rita de Cássia Portela, a obra apresenta os resultados de pesquisas sobre os aspectos da história e da cultura do Rio Grande 1, privilegiando as tradições açorianas que se enraizaram entre a população residente naquele lugarejo. Leia Mais

Pontes sobre o Atlântico: ensaios sobre relações intelectuais e editoriais luso-brasileiras (1870-1930) | Giselle Venancio Martins

Lançado no último ano pela editora carioca Vício de Leitura, Pontes sobre o Atlântico, de Giselle Venancio, revela sinteticamente o percurso de pesquisas realizado pela autora ao longo de seu período de pós-doutorado na UFMG e na Universidade de Évora.

A obra é composta de sete capítulos divididos em duas partes, Pilares de uma ponte ultramarina: Intelectuais portugueses e relações editoriais luso-brasileiras e O Tricentenário de Camões no Rio de Janeiro: Comemorações como pontes, respectivamente, que se propõem a tratar das práticas editoriais e intelectuais tecidas entre Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX. Por meio da análise de publicações compreendidas entre periódicos e coleções circulantes pelos anos de 1830 e 1930 foi possível evidenciar a existência dessas relações luso-brasileiras. Além disso, tal averiguação estabeleceu o desafio para a autora de buscar o surgimento e a constituição da ideia de uma comunidade cultural especificamente luso-brasileira através da existência de uma produção e circulação de impressos com expressiva periodicidade, como já citado, e ainda trouxe à luz as razões que justificam a difusão de conteúdos que procuravam reafirmar os laços de amizade existentes entre Portugal e Brasil em eventos de caráter comemorativo. Leia Mais

Poder e administração colonial | Revista Ultramares | 2012

Durante muito tempo Raymundo Faoro com seu clássico, Os Donos do Poder, reinou sozinho e absoluto (permita-me o trocadilho) nas interpretações sobre as estruturas políticas da América portuguesa. Mesmo que autores anteriores a esta obra clássica tenham esboçado flertes e interpretações superficiais sobre a experiência política (a exemplos de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Edmundo Zenha, só para citar alguns), foi com Faoro que a historiografia ganhava uma construção sistêmica sobre o Estado Brasileiro desde as suas origens até o início do século XX[1].

No que se refere à experiência colonial portuguesa na América, Os Donos do Poder apostava em um Estado Luso forte, poderoso e centralizador. Sem espaços para negociações, as leis e ordens eram aplicadas de cima para baixo e aceitas, sem muitos questionamentos, em todo o território do Atlântico. Assim, configurava-se o Absolutismo português na Época Moderna, com instituições administrativas com jurisdições bem delimitadas pouco replicadas nas conquistas (o que facilitaria o controle) e a opção do uso de agentes régios que fiscalizariam as ações e o cumprimento da lei nas conquistas ultramarinas. Enfim, podemos falar que a intepretação de Faoro complementava perfeitamente as teorias fundadas quase uma década antes por Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, especialmente em seu ensaio inicial, O Sentido da Colonização. Se Prado Jr. estruturou o pensamento econômico colonial, Faoro tentava buscar o mesmo caminho no que tange ao político. Leia Mais

Leitores de mapas: dois séculos de história da cartografia em Portugal | Francisco Roque de Oliveira

La edición de este libro, coordinado por Francisco Roque de Oliveira,1 forma parte de los trabajos del IV Simposio Iberoamericano de Historia de la Cartografía, llevado a cabo en la capital portuguesa del 11 al 14 de septiembre de 2012. Cada dos años, un grupo de especialistas se reúne para conocer experiencias particulares, actualizar las perspectivas de trabajo e intercambiar algunos materiales por parte de los organizadores.2 Esta organización, de acuerdo con cada grupo responsable de la sede anfitriona, ofrece diferentes actividades paralelas al evento. La de Lisboa es la cuarta sesión en torno a los mapas antiguos de Iberoamérica iniciada en Buenos Aires (Troncoso, 2006) y continuada en Ciudad de México (Oliveira, 2008) y São Paulo (Pedrosa, 2010).

Este libro es la base y una síntesis de una exposición que, con el mismo nombre, fue abierta al público el mismo día del foro y concluyó el 15 de octubre de 2012.3 Procedentes de los diversos fondos de la Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), se han presentado 80 piezas entre libros, artículos, manuscritos, fotografías, grabados, atlas y mapas ordenados en períodos específicos y en contextos culturales, científicos y políticos-diplomáticos. Con esto, los organizadores del evento han abierto las puertas, para traspasar un límite intelectual, hacia un espacio reservado de la cultura portuguesa, el de la emergencia y trayectoria del pensamiento e historia de la cartografía de Portugal.4 Leia Mais

Um Homem Bom | Rui Afonso

Nos últimos anos, pesquisadores de diferentes áreas vêm demonstrando um interesse cada vez maior na postura de diplomatas que se viram diante de perseguidos pelo nazismo na Europa, sobretudo na história daqueles que arriscaram suas vidas e carreiras para ajudar tais pessoas. No Brasil, livros como “Quixote nas Trevas” (2002), de Fábio Koifman, que conta a história de Luís Martins de Souza Dantas,1 e “Justa” (2011), de Monica Raisa Schpun, sobre Aracy de Carvalho, 2 ilustram bem esta problemática. “Um Homem Bom”, do escritor português Rui Afonso, lançado em 2011 no Brasil pela Casa da Palavra e objeto desta resenha, também pode ser visto como exemplo desta linha de investigação. Mas diferente dos personagens de Koifman e Schpun, ambos brasileiros, Rui Afonso se debruça sobre a história de um conterrâneo seu: Aristides de Sousa Mendes.

Um dos aspectos que mais chama a atenção em “Um Homem Bom” – que é uma de suas maiores virtudes – é a sua não opção por um manjado modelo teleológico de narrativa biográfica, isto é, aquela narrativa que destaca o crescimento exponencial do biografado, da infância até o épico episódio que inspirou seus biógrafos a escreverem sua história. No livro de Rui Afonso, nem sinal de hagiografias. Uma decisão bastante acertada, diga-se de passagem, não só pela artificialidade que este tipo de narrativa engendra, mas também por uma questão de justiça, pois, como a própria leitura do livro deixa bem claro, Aristides de Sousa Mendes foi um homem de “carne e osso”, um homem simples – além de bom – e imerso nas contradições e vicissitudes de quem está dado na vida. Leia Mais

O Estado em Portugal (séculos XII-XVI). Modernidades medievais | Judite A. Gonçalves de Freitas

Esta obra de Judite de Freitas constitui no atual universo historiográfico, cheio de histórias monográficas, um estudo de síntese. Somente por este aspecto, já mereceria atenção. Mas, soma-se a essa ‘dissonância’ a proposta de escrever sobre o Estado (com maiúscula, segundo sua opção) na Idade Média, em Portugal, numa perspectiva que cruza o histórico com o historiográfico. Para aqueles que acompanham a “biografia póstuma” do estado medieval, principalmente a partir dos anos sessenta do século passado, perturbada e transformada por uma plêiade de fenômenos interpretativos, desde as inspirações foucauldianas, passando pela virada linguística, pelas desconstruções da pós-modernidade, pelos olhares da nova história política conjugada à cultura (cultura política) e que reforça – outra vez! – os laços com a sociologia (redes sociais), o livro de Judite de Freitas é um desafio.

“O Estado em Portugal (séculos XII-XVI)” insere-se numa bibliografia publicada anteriormente pela autora, que versa sobre temas ligados à história do estado, das instituições centrais, das sociedades políticas e do poder régio. Destacam-se, por entre artigos e livros, “A Burocracia do “Eloquente” (1433-1438): os textos, as normas, as gentes”, de 1996, “Teemos por bem e mandamos. A Burocracia Régia e os seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460)”, de 2001, e “D. Branca de Vilhena: patrimônio e redes sociais de uma nobre senhora no século XV”, de 2008. Portanto, trata-se do resultado de um percurso intelectual dedicado a pensar os meandros do estado medieval e as formas pelas quais as instituições centrais se apresentam, se representam e agem. Leia Mais

Os donos de Portugal. Cem anos de poder econômico (1919-2010) | Jorge Costa

Um texto fluído e agradável que prende a atenção do leitor ao longo das suas quase 450 páginas. O levantamento foi primoroso e nos mostra a evolução da elite econômica portuguesa ao longo do século XX, seja no período da ditadura salazarista, caetanista, seja no período da Revolução dos Cravos, suas viradas à esquerda e o período pós adesão à Comunidade Econômica Europeia.

Escrita a cinco mãos, a obra é o trabalho conjunto de historiadores e economistas, professores da Universidade Nova de Lisboa, alguns deles deputados da Assembleia da República. O grupo é liderado por Jorge Costa, jornalista e estudioso de História Econômica do país, que exerce a direção do Bloco de Esquerda, um partido político formado em 1998, a partir da fusão da União Democrática Popular (de orientação marxista), do Partido Socialista Revolucionário (com ideologia trotskista) e da Política XXI, união de ex-militantes do Partido Comunista Português, e pensadores independentes. Leia Mais

Fremosos Cantares. Antologia da Lírica Medieval Galego-Portuguesa | Lênia Márcia Mongelli

Os trobadores e as molheres de vossos cantares

son nojados a ũa, porqu’eu pouco

daria pois mi dos outros fossem

loados, ca eles non sabem que xi van

fazer; queren bon son e bõo de dizere

os cantares fremosos e rimados.

Martim Soares

O verbete “antologia”, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa, como primeira acepção, “tratado sobre as flores”, cuja origem é a palavra grega anthos, flor. É à primeira significação que também o Houaiss eletrônico se refere, registrando que a palavra pertence à rubrica da botânica – estudo das flores. Parece, então, que a ligação entre “flor” e coleção de textos em prosa e/ou em versos de um ou vários autores (cujo primeiro uso remonta ao ano de 1858, segundo o mesmo Houaiss) fixa-se num conceito subjetivo de estética. Explicamos. Se por “flor” entendermos que forma e perfume são elementos essenciais ao prazer sensitivo da vista e do olfato, estamos no campo da estética, do belo como elemento essencial da flor. Dessa flor nasceu “florilégio” (-légio, do l. legere, “que colhe, recolhe”, ainda segundo o Aurélio), coleção de textos mais significativos de um autor, época, tema etc., recolhidos a partir de um conceito subjetivo de estética, como dissemos atrás2 . Há, é claro, aquelas coleções cujas recolhas não foram tão excelentes, daí não valer o conceito de estética; mas vale o de “subjetivo” – o resultado seria um amontoado de maus textos. Conformemo-nos, pois há flores que não são nem belas nem olorosas. Leia Mais

Entre mares: o Brasil dos portugueses | Maria de Nazaré Sarges

Brasil, berço dos imigrantes

Sua raça é mistura

Sem cessar Roberto Ribeiro e Jorge Lucas (Samba Enredo da Escola de Samba Império Serrano, 1977)

A idéia do Brasil como um berço de imigrantes não é mera licença poética, daquelas que o carnaval permite. Italianos, libaneses, espanhóis, húngaros, alemães, japoneses, chineses e poloneses, entre imigrantes de outras nacionalidades, alcançaram o país em diversos momentos, especialmente a partir da formulação de políticas de incentivo à imigração, do último quartel do século XIX em diante. A introdução desses imigrantes conformou definitivamente os rumos da vida brasileira, de modo que as correntes migratórias estabelecidas desde então e a imigração como processo constituíram-se em objetos de estudos especializados.[2]

Visto como aquarela, como cadinho no qual foram forjadas uma nacionalidade e uma identidade singulares, o país se pensa e é pensado a partir da mistura. Autores emblemáticos, constituintes da gênese da moderna historiografia brasileira, participaram da conformação dessa tese, enfatizando o lugar preponderante dos portugueses na conformação dos tipos sociais e da cultura brasileiras. Entre nós, que vivemos e produzimos história a partir da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis foi, certamente, o gestor dessa perspectiva. Suas obras repercutem aquela tese para a trajetória histórica da Amazônia. [3]

Os vínculos que unem Portugal e Brasil contribuíram para que o país se tornasse um dos destinos preferenciais de portugueses interessados em emigrar. Aqueles homens e mulheres trouxeram em sua bagagem mais que o interesse de mobilidade e ascensão social, de melhoria das condições materiais de existência; seus valores, tradições, códigos de conduta, vícios e virtudes também compuseram o rol de utensílios que os acompanharam.

As trajetórias percorridas por esses emigrantes têm sido pesquisadas sob diversos aspectos.[4] O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses participa da discussão sobre imigração no Brasil por meio da análise das correntes migratórias lusitanas para o Brasil. Nascido a partir do encontro de instituições brasileiras e portuguesas [5] em torno da temática da imigração lusa para o Brasil, o livro apresenta contribuições relevantes à temática, por meio dos artigos que o compõem, os quais resultam das reflexões apresentadas por seus autores no V Seminário Internacional sobre a migração portuguesa, ocorrido em Belém, no Pará, em setembro de 2009.

O livro está dividido em três partes: a primeira trata da presença portuguesa na Amazônia; a segunda aborda as experiências portuguesas em outras partes do Brasil; a terceira e última parte versa sobre aspectos diversos, como legislação, projetos políticos e registros de emigrados. Mais do que sugerem os títulos das partes, os artigos constituem um panorama revelador das possibilidades dos estudos sobre imigração.

Rafael I. Chambouleyron e Paulo C. Gonçalves, cada qual em seu artigo, analisam as motivações dos emigrantes. O primeiro considera a transferência de portugueses para o Estado do Maranhão no século XVII, o segundo sopesa a interferência dos interesses de Estado nos projetos de migrantes portugueses desejosos de se transferirem para o Brasil, ao longo do século XIX. A perspectiva adotada por esses dois trabalhos é complementada por outros que analisam aspectos quantitativos do fenômeno migratório, considerando a saída de portugueses das diversas localidades lusitanas. Maria da C. C. Salgado, Isilda B. da C. Monteiro, Ricardo Rocha, Susana S. Silva, Diogo Ferreira e Fernando de Sousa elaboram estudos que dão conta do perfil dos emigrantes, considerando faixa etária, gênero, funções exercidas e o que mais a documentação permitir, em áreas como a região do Douro e Trás os Montes, o universo insular açoriano e a parte Norte do país, desde o século XIX até bem entrado o século XX. Antonio O. de Souza Jr. e Daniel Barroso consideram o universo brasileiro por essa mesma perspectiva ao analisarem o fluxo de imigrantes portugueses para o Grão-Pará, no início do século XIX.

Outra dimensão dos estudos sobre imigração é satisfeita pelos trabalhos que analisam a experiência dos imigrantes no Brasil. É o caso da reflexão desenvolvida por Eliana R. Ferreira, que considera a presença portuguesa na Vila de Óbidos, no Pará do século XIX. Sênia Bastos analisa a distribuição dos diferentes estratos de imigrantes portugueses pela cidade de São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940. Nessa dimensão, destacam-se, particularmente, as pesquisas sobre formas de sociabilidade, estabelecimento de vínculos e estratégias de ascensão social forjadas pelos imigrantes lusos, desde meados do século XIX até a segunda metade do século XX. Roseli Boschilia, Celina Fiamoncini e Giseli C. Passos, Vitor M. M. da Fonseca, Maria A. F. Pereira e Maria S. G. Frutuoso, Andréa T. da Corte, Ismênia Martins, Maria de N. Sarges e Caue Morgado, Cristina D. Cancela e Daniel Barroso e Yvone D. Avelino são autores dos artigos que tratam dessa fração importantíssima do universo imigrante, desvendando a interferência das diversas comunidades portuguesas no mundo em que se inserem. Maria Izilda S. de Matos e Lená M. de Menezes, em artigos próprios, participam desse grupo de trabalhos verificando as estratégias de sobrevivência e inserção social formuladas por mulheres imigrantes.

Aspectos reveladores do fluxo migratório português para o Brasil são perscrutados por outros artigos. O posicionamento da classe política lusa sobre a emigração para o Brasil é analisado por Paula Barros. José S. R. Mendes faz percurso inverso, ao considerar as reflexões dos constituintes brasileiros, de 1946, sobre a participação portuguesa na formulação da cidadania brasileira. Ainda com relação às formulações das elites, Paula M. Santos, Pedro Leitão e Filipe Ramos consideram a legislação portuguesa, produzida durante o Estado Novo português, e Paulo M. dos Santos Jr. analisa a apropriação das teses raciológicas, do final do século XIX, pela imprensa amazonense do início do século XX. O trabalho de Magda Ricci configura contraponto a este conjunto de trabalhos, pois, além de considerar a participação da comunidade luso-paraense na conformação de identidades locais, sopesa a percepção das populações indígenas e negras sobre a emergência daquelas identidades.

Dois trabalhos sugerem um caminho promissor para os estudos sobre imigração ao debruçarem-se sobre trajetórias individuais de imigrantes. É o caso da pesquisa de Aldrin M. de Figueiredo sobre o interessantíssimo caso de um pajé português no Pará oitocentista e o trabalho de Alexandre Hecker sobre a participação de um militante português nos processos iniciais do socialismo no Brasil. Finalmente, o trabalho de José J. de A. Arruda propõe reflexão sobre a apropriação, pelas pesquisas sobre imigração portuguesa, das contribuições formuladas pelos trabalhos que tratam do novo regime de temporalidade.

O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses, especialmente pela diversidade dos temas que abarca e das perspectivas adotadas, oferece oportunidade para a reflexão sobre imigração no Brasil e, particularmente, para a consideração da participação portuguesa na conformação de nossas especificidades. Boa leitura!

Notas

2. Destaco os seguintes trabalhos, em os diversos estudos disponíveis: Boris FAUSTO. Negócios e ócios: histórias da imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Jeffrey LESSER. Negociando a Identidade Nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001; Giralda SEYFERTH; Helión POVOA NETO; Maria C. C. ZANINI. Mundos em Movimento: ensaios sobre migrações. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2007; Nelma BALDIN. Tão fortes quanto a vontade – história da imigração italiana para o Brasil: os vênetos em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999; Núncia Santoro de CONSTANTINO. Italiano na cidade: a imigração itálica nas cidades brasileiras. Passo Fundo/Porto Alegre: Editora da Universidade Federal de Passo Fundo/ACIRS, 2000; SEYFERTH, Giralda. A Colonização Alemã no Vale do Itajaí-mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Movimento, 1974; Maria Yume TAKEUCHI; Maria Luiza Tucci CARNEIRO (orgs.). Imigrantes Japoneses no Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; Hiroshi SAITO. A presença japonesa no Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

3. Arthur Cezar Ferreira REIS. A Amazônia que os portugueses revelaram. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1994; A política de Portugal no Vale Amazônico. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1993; A formação espiritual da Amazônia. São Paulo: SPVEA, 1964.

4. Destaco, aqui, os trabalhos que analisam os fluxos migratórios e os percursos de imigrantes portugueses, como os de: Eulália Maria Lahmeyer LOBO. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001; José Aurivaldo Sacheta Ramos MENDES. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil (1822-1945). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

5. CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, do Porto; Universidade do Porto, Universidade Lusíada; Universidade dos Açores; ISCTE: Universidade Federal do Pará: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Universidade de São Paulo: Universidade Federal Fluminenses: Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Universidade do Estado de São Paulo e Universidade Mackenzie.

Mauro Cezar Coelho – Professor Adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.


SARGES, Maria de Nazaré e outros (Org.). Entre mares: o Brasil dos portugueses.  Belém: Paka-Tatu, 2010. Resenha de: COELHO, Mauro Cezar. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.229-232, 2010. Acessar publicação original [DR]

 

A economia portuguesa 20 anos após a adesão | Antonio Romão

O ano de 2006 foi o marco das comemorações de 20 anos da entrada oficial de Portugal na Comunidade Econômica Europeia(CEE) e, como tal, foi palco de diversas celebrações, eventos e, também, reflexões sobre o significado da adesão portuguesa ao bloco europeu.

Nesse contexto, o professor doutor Antonio Romão, catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão(ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa(UTL), lançou o livro de análise da economia portuguesa nos vinte anos da adesão em obra conjunta com outros 15 especialistas – a maioria, professores colegas da mesma universidade, salvo duas exceções: o professor Manuel Cardoso Leal, assessor do conselho administrativo do Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pesca, do Ministério da Agricultura português, e o economista Carlos Correia da Fonseca, especialista na área de transportes. Leia Mais

Gobernar es ejercitar. Fragmentos históricos de la Educación Física en Iberoamérica | Pablo Scharagrodsky

El libro Gobernar es ejercitar. Fragmentos históricos de la Educación Física en Iberoamérica reúne un conjunto variado de historias acerca de la Educación Física y de las prácticas corporales en Argentina, Brasil, Uruguay, Colombia y España en diferentes períodos y desde una perspectiva crítica, a fin de identificar y analizar diversos aspectos de lo corporal que hacen a la salud, al poder, al género, a las políticas de exclusión, negación y omisión de otras alternativas posibles de vivir y experimentar la corporeidad. El texto recorre diferentes análisis sobre la Educación Física y las prácticas corporales en tanto “potentes formas de gobernar los cuerpos… Ejercitar los cuerpos se convirtió en una potente metáfora…” (Scharagrodsky, p. 14)

El historiador e investigador argentino en el campo de la Educación y de la Educación Física, Pablo Scharagrodsky, con lucidez, organizó el libro en tres secciones tituladas: fragmentos de una pedagogía corporal higiénico/moral; fragmentos de una pedagogía corporal en clave de género; y fragmentos de una pedagogía corporal en la historia reciente. El texto reúne diez brillantes investigadores/historiadores de los mencionados países, sumado a la distinción crítica y perspicaz de Estanislao Antelo quien, orientado por dos preguntas, prologa el libro interrogando la idea de cuerpo: ¿qué es un cuerpo físicamente educado? y ¿qué tipo de personas produce una escuela que dice intervenir metódicamente sobre los cuerpos de las nuevas generaciones, con el objetivo de mejorar su existencia? Antelo no alberga dudas: somos lo que nos ha sido enseñado corporalmente. Desmitificador de inocentes bondades de la Educación Física y de las prácticas corporales, especialmente en el territorio de la salud, propone una sugerente idea que, a la vez, oficia de síntesis “el libro que va a leer hace añicos la prosa bienintencionada y pueril, que promete bienestar en zapatillas.” (p. 11). Leia Mais

Portugueses no Brasil: migrantes em dois atos | Ismênia de Lima Martins

MARTINS, Ismênia de Lima; SOUSA, Fernando (Orgs.). Portugueses no Brasil: migrantes em dois atos.  Niterói: Muiraquitã, 2006. Resenha de: KUSHNIR, Beatriz. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.3, n.3, p. 183-184, 2007.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão | Gizlene Neder

Neste trabalho, Gizlene Neder centra suas atenções na história das idéias políticas e do poder na constituição do mundo moderno, tendo como referência a Península Ibérica. Procurando empreender uma análise que contemple a compreensão histórica e não uma explicação evolucionária, se propõe a deslindar uma série de aspectos que envolvem a trajetória histórica luso-brasileira.

Numa perspectiva dinamista de compreender o processo histórico, problematiza a modernidade trilhada pelos lusitanos, logo não fica presa à idéia de que as sociedades ibéricas são atrasadas ou inferiores em relação aos povos além-Pireneus. Aliás, para a autora, devemos é olhar a “escolha política” desses povos e, a partir daí, compreender os aspectos econômicos, sociais e jurídicos e suas possíveis implicações na contemporaneidade. Leia Mais

O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime | Ana Cristina Nogueira da Silva

Ana Cristina Nogueira da Silva integra um grupo de historiadores portugueses de inegável qualidade que, sob a coordenação de Antônio Manuel Hespanha, vem desenvolvendo importantes trabalhos acerca do Estado português, em especial dos séculos XVII e XVIII. Fruto de uma dissertação de mestrado apresentada em 1997, na Universidade de Lisboa, O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime, impressiona positivamente sob vários aspectos: problemática pertinente, rica pesquisa documental, ampla e atualizada bibliografia, análise simultaneamente particular e geral dos aspectos abordados. Nela, a autora propõe interessantes questões acerca da história portuguesa do Antigo Regime e induz à reflexão de pontos mais amplos que podem interessar também aos estudiosos de história do Brasil.

Trata-se de um estudo sobre a “Lei da reforma das comarcas” elaborada em 1790, durante o reinado de D. Maria I, o qual visava a uma racionalização administrativa e judicial do território do Reino. A partir daí, os objetivos de Silva consistem em “falar(…)das formas como essa entidade algo abstrata a que costumamos chamar de Estado moderno pensou o seu espaço num momento histórico determinado – os finais do século XVIII” (p.18), mais especificamente surpreender “a partir dos discursos produzidos pelos agentes de uma reforma territorial experimentada em Portugal(…), um novo imaginário político sobre o espaço que surge nesta época – o imaginário estadual -, bem como a forma como ele foi atuado e apropriado pelos diferentes discursos que se produziram no contexto da discussão desta reforma” para, finalmente, “descrever, com base nos mesmo discursos, as lógicas de organização espacial que tal reforma veio pôr em causa” (p.20). Leia Mais

Fruitless Trees – Portuguese Conservation and Brazil’s Colonial Timber | Shawn William Miller

Os usos e abusos das florestas tropicais brasileiras na era colonial são tema de mais um livro em língua inglesa. Este texto de Shawn William Miller, professor assistente de história da Brigham Young University (EUA), pode ser lido como complemento ao merecidamente famoso With Broadax and Firebrand, de Warren Dean (já traduzido para o português, com o título A Ferro e Fogo, pela Companhia das Letras, em 1996). Fruitless Trees, embora monográfico e menos ambicioso que o livro de Dean, é bem focalizado, ricamente documentado, bem escrito e fácil de ler. Além do mais, tem uma tese central que deverá gerar polêmica – a de que o monopólio real português sobre as “madeiras de lei” do Brasil foi o principal fator de destruição florestal no Brasil colonial. Ou seja, a “proteção” governamental causou a devastação. Leia Mais

Expressões da expansão Luso-Atlântica no Museu Histórico Nacional  | Anais do Museu Histórico Nacional | 2000

Referências desta apresentação

[Expressões da expansão Luso-Atlântica no Museu Histórico Nacional]. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.32, 2000.

Acessar dossiê [DR]

Depois das Caravelas. As relações entre Portugal e Brasil/ 1808-2000 | Amado Luiz Cervo e José Calvet de Magalhães

Depois das Caravelas, obra publicada na Coleção Relações Internacionais da Editora Universidade de Brasília, representa um trabalho de grande importância para as relações bilaterais entre Portugal e sua ex-colônia, o Brasil. Com seu enfoque nos últimos duzentos anos, o livro preenche uma grande lacuna na literatura acadêmica sobre as relações entre os dois países, que tende a focalizar, sobretudo no ano do V Centenário do Descobrimento do Brasil, o próprio descobrimento e o período colonial. O livro soma os esforços de scholars dos dois países, como que simbolicamente representando a nova qualidade das relações bilaterais. A obra contém duas partes. Na primeira (151 páginas) o historiador brasileiro Amado Luiz Cervo analisa as relações entre Portugal e Brasil no século XIX. Segue um capítulo sobre as relações culturais no século XIX, escrito pelas duas historiadoras cariocas Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, ambas especialistas em história cultural do Brasil (30 páginas). A segunda parte do livro trata das relações bilaterais do início do século XX até os tempos mais recentes (122 páginas). O autor, José Calvet de Magalhães, é diplomata português e especialista em história diplomática do seu país. O livro conta ainda com uma apresentação, escrita por Dário Moreira de Castro Alves, que oferece, em 50 páginas, um resumo de seu conteúdo. Finalmente, são reproduzidos em anexo os três mais importantes tratados entre Portugal e Brasil. Leia Mais