Cultura visual e construções de gênero | História Debates e Tendências | 2021

Mas, para sabê-lo, para senti-lo, é preciso atrever- se, é preciso acercar o rosto à cinza. E soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo. Como se, da imagem cinza, elevara-se uma voz: “Não vês que ardo?”

Georges Didi-Huberman

Neste número da revista História: debates e tendências, apresentamos o dossiê “Cultura visual e construções de gênero”, reunindo artigos que contemplam a intersecção entre estudos de gênero e visualidades em diferentes contextos de historicidades. Laçando mão de inúmeras tipologias de indícios (BURKE, 2004) visuais, especialistas abordam o tema a partir da fotografia, da história em quadrinhos, do cinema e das fontes literárias como meios para entender processos sociais pretéritos e contemporâneos, problematizando as formas como se inscrevem, se materializam e se naturalizam os indicadores de gêneros e sexualidades na cultura visual.

Com base em múltiplos suportes de representação, hábitos e costumes relativos ao campo das visualidades são problematizados, localizando este campo como um lugar desafiante e privilegiado de leitura de narrativas a partir da decodificação de símbolos e signos, refletindo sobre a forma como fundam valores estéticos, estereótipos e relações de poder dentro da cultura. A análise das relações entre visualidade, visibilidade e poder, direciona a compreensão de como as imagens exercem influências na construção das identidades, contribuindo para pensar a desnaturalização de certas imposições e apontando as formas como as categorias relativas a gênero e sexualidade são social e culturalmente construídas, bem como questionando a hegemonia heteronormativa.

Abrimos, assim, este dossiê com o artigo Construcción sígnica de masculinidad y lazos de homosociabilidad en las historietas, de Mariela Alejandra Acevedo. A autora debruça-se sobre as imagens da Revista Fierro – publicação argentina em atividade desde 1984, que apontam para relações masculinas de homossociabilidade. Os quadrinhos são problematizados não só pelos personagens masculinos que engendram amizades apaixonadas na narrativa, mas também pela presença de um olhar masculino – o leitor imaginário – a quem a história é dirigida.

No artigo A pequena história da mulher que foi para a casa da morte e sobreviveu para contar as suas memórias, Ivo dos Santos Canabarro em parceria com Bianca Strücker, nos apresenta Inês Etienne Romeu, uma testemunha ocular dos horrores da tortura na Ditadura Militar Brasileira. A recuperação de dimensões significativas da memória subterrânea, diante da violência de gênero, dá-se na conjugação de fotografias e de relatórios produzidos pela Comissão Nacional da Verdade, aproximando o leitor da experiência de uma atriz social individual e suas práticas, que diferiram de um regime de normalidade e uniformidade em seu contexto de atuação.

Entre os anos 1970 e 1990, em âmbito latino-americano, foram muitas as experiências que tentaram gerar ações de transformação social. Mariana Esteves de Oliveira, em seu artigo, refere-se aos Movimentos sociais de mulheres: memórias, redes e imagens, tendo como eixo os documentos por eles produzidos. O texto contempla o Movimento de Mulheres de Andradina – entidade católica progressista – da periferia do município entre os anos 1970 e 1996. O acervo documental do movimento (IAJES) permite perceber as redes construídas com outros grupos populares periféricos e o papel dos documentos recebidos e produzidos nas experiências de lutas. A autora contempla as imagens disponíveis no acervo documental visando as expectativas sociais, de potência e radicalidade do movimento de mulheres.

O cinema, como interpretação imagética de um texto literário em “Desmundo”, é a base da análise do proposta por Gustavo Batista Gregio e Sandra de Cássia Araújo Pelegrini em A construção histórica do gênero feminino na narrativa filmica de “Desmundo”. A trama em que está envolta a personagem central da narrativa dialoga com a história das mulheres, representando a trajetória de dominação sobre a mulher que se implanta com a submissão do gênero feminino na História do Brasil.

Com “Por que me fust’ enganar, Santa María, pois en ti fïava”?: casamento, corpo e virgindade em um relato castelhano medieval, de Guilherme Antunes Junior, adentramos na literatura como produto e produtora de visualidades. O relato medieval da dama que foi obrigada por seus pais a se casar, mesmo tendo “prometido seu corpo à Virgem Maria”, é, entre inúmeras fontes históricas que o apresentam, explorado nas Cantigas de Santa Maria, atribuídas a Alfonso X. Guilherme propõe uma leitura comparativa, entre o texto poético e as miniaturas do códice historiado, ou Códice Rico, elaborado no século XIII, travando discussões entre gênero, matrimônio e corpo. Encerra o dossiê o artigo Contextos, histórias e mulheres: a formação dos cânones literários no Brasil, de Carlos Eduardo Millen Grosso. O autor debruça- se sobre a relação dos mecanismos de regulação literária e as condições de atuação das mulheres escritoras. Perpassa, para tanto, a formação dos cânones literários no Brasil do último quartel do século XIX às primeiras décadas do século XX, avaliando, por fim, a relação da crítica especializada com a produção de autoria feminina.

Abre a seção de artigos livres João Gabriel Nascimento Nganga, com Harlem Renaissance: “Morrer para nascer e escrever a partir de si”. O estudo trata do movimento cultural surgido na década de 1920, por professores/as, pesquisadores/as, escritores/as e artistas negros/as nos Estados Unidos, com mais intensidade no bairro do Harlem da cidade de Nova Iorque. Metodologicamente, o autor pensa o fenômeno por meio do conceito de “auto-escrita”, no qual negros e negras utilizaram da literatura, música, pintura e teatro para falarem de si próprios em primeira pessoa, expondo suas subjetividades e repercutindo na maneira da sociedade norte-americana de conceber o “negro”, estimulando uma transição da condição de coadjuvante para protagonista.

Elisangela da Silva Machieski, com Quem acolhe o menor, a mim acolhe: a campanha da fraternidade de 1987 e a mobilização da igreja católica em prol da infância pobre e abandonada, tem como foco central de análise desta narrativa histórica, as redes que resultaram o menor como foco da Campanha da Fraternidade Nacional e, como consequência desse processo, a criação das pastorais do menor, a implantação do artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e na construção do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Completando o âmbito de abordagens que exploram aspectos históricos das reivindicações sociais, temos o artigo El Contratista de Viñas y Frutales en Mendoza, Argentina: La lucha por el reconocimiento de la identidad trabajadora, de Juan Manuel Cerdá e Eunice Sueli Nodari. Nele nos é apresentado o “contratista de viñas”, figura central no desenvolvimento da vinificação de Mendoza no final do século XIX e atuante ainda hoje. As particularidades do contrato de trabalho desse sujeito, numa perspectiva histórica, assinalam o processo de construção de identidade e legado do contratista no âmbito rural. Utilizando bibliografias de líderes políticos e sociais da época, discussões parlamentares e jornais, a luta dos trabalhadores e a participação do Estado na conjuntura é revelado em meio a construção de uma consciência de classe.

Encerra esta publicação a fonte comentada de Luiz Fernando R. Lopes, Estigmas à imagem pública: registros da violência de gênero nos papeis da Inquisição portuguesa. Contribuindo com o dossiê, o texto apresenta como os estudos de gênero voltados ao período da Inquisição portuguesa têm se renovado e ampliado seu escopo de interesse nas últimas décadas. O autor apresenta um processo de habilitação oriundo da subsérie documental Habilitações Incompletas, pertencente ao fundo documental do Tribunal do Santo Ofício, sob guarda patrimonial do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.

A visualidade, como nos lembra Mirzoeff (2016), referindo-se aos regimes de visualização na história, tem sido fundamental para a legitimação da hegemonia ocidental. Escravizados, mulheres, oponentes das múltiplas guerras, grupos e indivíduos inseridos no movimento dinâmico das posições de gênero, queers, trans, proclamam sua autonomia, reivindicando o direito a olhar – tanto como a se mostrar – de uma maneira subversiva da ordem (BUTLER, 2016). Perceber as visualidades e suas posições políticas, transgredindo a função vital do olhar para um espaço de agenciamento esta no escopo das ciências humanas. Neste caminho, um desafio interessante pode ser pensar sobre o poder das imagens (FREEDBERG, 1992), as múltiplas funções delas (SCHMITT, 1997) e, também, considerar certas imagens como documentos performativos, analisando as estratégias da representação e as possibilidades de transformação social, assim como DE LAURETIS (2000) propus representar a mulher (ou, a uma identidade genérica específica, nos agregamos) como um sujeito complexo e múltiplo, longe dos parâmetros de um olhar patriarcal.

Para o(a) historiador(a), em específico, isto supõe primeiro, “ver nas imagens o lugar de onde sofre, o lugar de onde se expressam os sintomas” (DIDI-HUBERMANN, 2012). Com esse espirito convidamos os leitores a leitura desse pertinente número, mais do que isso, convidamos-vos a desnaturalizar olhares colonizados e pré-formatados, para ações além da leitura e da escrita na folha impressa ou virtual. Antes de seguir com a leitura, gostaríamos de agradecer à colega Giulia Cittolin que nos presenteou com a imagem que ilustra a capa desta edição. Queremos, por fim, agradecer a participação dos pesquisadores e pesquisadoras brasileiros e argentinos, enquanto uma demonstração da integração de diálogos na América Meridional.

Boa leitura!

Referências

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

BUTLER, Judith. El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidad. Buenos Aires: Paidós Estudio, 2016 [1990].

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, [S. l.], p. 206–219, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/15454.

DE LAURETIS, Teresa. “Tecnologías del género”, In: Diferencias. Madrid: Horas y Horas, 2000 [1987].

MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 18, n. 4, p. 745–768, 2016. DOI: 10.20396/etd.v18i4.8646472 .Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472.

FREEDBERG, David. El poder de las imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta. Madrid: Cátedra, 1992 [1989].

SCHMITT, Jean-Claude. “L’ historien et les images”, In  Oexle, Otto Gerhard. Der Blick auf die Bilder. Kunstgeschichte und Geschichte im Gespräch. Göttingen: Walltein Verlag, 1997.


Organizadores

Patricia A. Fogelman – Professora Doutora. CONICET, Argentina.

Jacqueline Ahlert – Professora Doutora. Universidade de Passo Fundo


Referências desta apresentação

FOGELMAN, Patricia A.; AHLERT, Jacqueline. Editorial. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 21, n. 2, p. 4 -8, maio/jul. 2021. Acessar publicação original [DR]

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