Curto-Circuito: o vírus e a volta do Estado | Laura Carvalho

O debate a respeito das funções do Estado não é algo novo. Ao longo dos séculos, a emergência e consolidação do Estado moderno foi conteúdo de bastante discussão, especialmente entre estudiosos interessados em temas históricos, políticos e econômicos. Apesar disso, o Estado pode ser visto como um organismo vivo constantemente sujeito a transformações, ao mesmo tempo em que é um importante agente na trajetória histórica, econômica e social dos povos. Tendo isso em vista, Laura Carvalho contribui substancialmente com o entendimento das funções do Estado em “Curto Circuito: o vírus e a volta do Estado”, lançado pela editoria Todavia em 2020. Mais do que o entendimento do Estado, Carvalho fornece uma análise rica e acessível do percurso histórico recente do Estado no mundo Ocidental e, especialmente, no Brasil, assim como os impactos advindos da crise do coronavírus na atuação do Estado. Trata-se, desse modo, de uma obra essencial para pensar o futuro do Estado e da democracia no Brasil.

O objetivo de Carvalho em Curto Circuito é fornecer, à luz do contexto brasileiro, uma leitura a respeito das cinco funções do Estado que a pandemia ajudou a revelar. Para tal, a autora organiza o livro em seis capítulos, dos quais os cinco primeiros são dedicados para a discussão das cinco funções do Estado, sendo elas: estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços à população e empreendedor. No capítulo final, Carvalho faz algumas considerações amplas a partir daquilo que foi discutido ao longo da obra.

Em uma escrita que alterna entre exposição de debates acadêmicos, explicação de conceitos e apresentação de eventos históricos, Carvalho desenvolve a discussão a respeito do Estado enquanto estabilizador da economia no primeiro capítulo do livro. Aqui, a preocupação da autora é contextualizar como as crises econômicas de 1929 e 2008 impuseram desafios, do ponto de vista da estabilidade da economia, um tanto quanto diferentes dos que são colocados no contexto da crise sanitária do coronavírus. Pois, diferentemente de outras crises com origem no sistema financeiro, a pandemia provocou o distanciamento entre produtores e consumidores, gerando um impacto considerável tanto na oferta de produtos e serviços quanto na demanda.

Neste contexto, a autora aponta para o “ressurgimento” da necessidade de intervenção do Estado na economia. Entretanto, como a crise atual tem uma configuração diferente daquelas que se originaram no sistema financeiro, as medidas para atenuá-la devem incidir, em um primeiro momento, na garantia da sobrevivência de famílias e empresas e, em um momento subsequente, no estímulo à demanda via gastos públicos.

Seja por pressões da sociedade ou iniciativas do Congresso, Carvalho identifica que o Estado brasileiro tem atuado de uma forma estimuladora durante a crise, representando uma ruptura com a estratégia anteriormente defendida pelo atual governo. A atuação do Estado brasileiro como agente estabilizador é visto em medidas como o auxílio emergencial, as linhas de créditos para empresários e a postura expansionista do Banco Central.

Em seguida, no segundo capítulo, a autora apresenta a função de investidor desempenhada pelo Estado. Da mesma forma como no primeiro capítulo, Carvalho mostra como, em razão dos distintos rumos tomados no pensamento econômico e nas agendas governamentais, a função do Estado enquanto formador de capital foi esvaziada, passando a ser compreendido como uma fonte de ineficiências. Apesar disso, a crise de 2008 já havia reacendido o debate a respeito da importância dos investimentos públicos, questão intensificada com a chegada da pandemia de coronavírus.

Com a pandemia, o papel do Estado no desenvolvimento da infraestrutura de um país foi revisitado. Para Carvalho, o Estado enquanto investidor de infraestrutura é essencial para o fornecimento do acesso a serviços básicos como saneamento, transporte, eletricidade e moradia ou mesmo educação e saúde. No Brasil, a necessidade do desempenho de tal função é ainda maior em razão das desigualdades históricas no acesso à infraestrutura por parte da população.

Os capítulos 3 e 4, por sua vez, podem ser lidos de maneira conjunta, visto que as funções apresentadas pela autora dialogam de forma mais umbilical e clara. Nestes capítulos são apresentadas as funções de proteção dos mais vulneráveis e de provisão de serviços à população por parte do Estado. Essencialmente, há uma discussão aprofundada a respeito do Estado de bem-estar social capaz de prover serviços de educação e saúde gratuita e universal, programas de assistência e seguridade social à proteção das populações mais vulneráveis.

Assim como as demais funções do Estado, a autora identifica uma estagnação das despesas e da importância atribuída pelo pensamento econômico e pelas agendas governamentais nestas funções nas últimas décadas. Tal estagnação está ligada a um movimento observado no debate do pensamento o econômico e nos governos de reduzir a intervenção do Estado nos mais diversos setores de atuação, aquilo que se convencionou chamar de neoliberalismo. Como afirma Boron (2006), esse movimento caracteriza-se por um menosprezo a tudo que é estatal e, em paralelo, por uma exaltação da importância dos mercados.

Com os desdobramentos históricos recentes, especialmente o coronavírus, Carvalho afirma existir uma revitalização da importância do desempenho dessas funções pelo Estado, seja para garantir o acesso a serviços públicos básicos ou para proteger a população mais vulnerável diante de crises como esta. É nesse sentido que se vê, mesmo que na contramão dos discursos do período eleitoral, os governos estadunidense e brasileiro adotando medidas para aliviar os impactos sociais e econômicos do novo coronavírus.

Por fim, é trabalhada a função empreendedora do Estado. Basicamente, a posição do Estado enquanto empreendedor está relacionada aos investimentos na promoção do desenvolvimento tecnológico. Segundo a autora, as inovações mais relevantes nos setores econômicos necessitam de financiamento estatal. Tais noções já foram bem desenvolvidas em Costa (2013) ao tratar das trajetórias de desenvolvimento das políticas de ciência, tecnologia e inovação dos Estados Unidos, assim como em Block (2008) ao discutir a importância exercida pelo Estado no Sistema de Inovação dos EUA, apesar das ideias fundamentalistas de mercado que caracterizam parte do debate público do país.

Apesar de boa parte das questões apresentadas neste capítulo não serem novas, Carvalho mostra como a conjuntura do coronavírus – em especial, a escassez de equipamentos de proteção individual e a incapacidade de determinados países em produzir soluções e equipamentos domésticos para o combate ao vírus – despertou a necessidade de se pensar no Estado enquanto agente empreendedor. No Brasil, em específico, tal tarefa é complicada em razão de erros passados nas políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico que criaram aversão ao debate de tais temáticas.

No capítulo de conclusão, a autora evidencia como determinadas mudanças, que possivelmente estão sendo aceleradas em razão do coronavírus, já estavam em curso no pensamento econômico e na agenda governamental. Entre elas, o renascimento da discussão a respeito das funções do Estado, especialmente nas democracias representativas do Ocidente. Neste sentido, a pandemia revelou a necessidade de fortalecer tais funções, assim como colocou em questionamento a ascensão das lideranças de extrema-direita ao redor do mundo, que optaram por minimizar os impactos da crise e transferir as responsabilidades pelo colapso econômico para terceiros.

Ao mostrar o curto-circuito em que determinadas concepções a respeito do Estado se encontram nesse momento, Carvalho é única na articulação entre importantes debates políticos e econômicos da academia com a história recente brasileira e a atual conjuntura do coronavírus. Apesar da clareza com que a autora desenvolve as questões, a obra pode não ser tão acessível para leitores pouco familiarizados com determinados conceitos econômicos.

Mais do que uma atualização da discussão a respeito das funções do Estado, Curto-Circuito é uma obra fundamental para pensar o futuro do Estado e da democracia no Brasil. Os questionamentos e caminhos apontados ao longo da obra revelam uma visão bastante articulada da noção de Estado enquanto um organismo capaz de prover estabilidade, bem-estar social e desenvolvimento tecnológico e de como, no Brasil, a crise do coronavírus impõe, mais do que nunca, o desafio estratégico de se pensar nestes termos.

Referências

BLOCK, Fred. Swimming Against the Current: The Rise of a Hidden Developmental State in the United States. Politics and Society, v. 36, n. 2, p. 169-206, 2008.

BORON, Atílio. Estado. In: SADER, Emir & JINKINGS, Ivana (coord.). Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006. p. 510-518.

CARVALHO, Laura. Curto-Circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 1ª Ed., 2020.

COSTA, Karen Fernandez. Trajetórias e Desenvolvimento: As Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação dos Estados. Estudos e Análise de Conjuntura – OPEU, 2013.


Resenhista

Barnabé Lucas de Oliveira Neto – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa – PB, Brasil. E-mail: [email protected]  Orcid: 0000-0002-1295-5977


Referências desta Resenha

CARVALHO, Laura. Curto-Circuito: o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia, 2020. Resenha de: OLIVEIRA NETO, Barnabé Lucas de. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.10, n.20, p.596-600, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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