Design para um mundo complexo | Rafael Denis Cardoso

Design para um mundo complexo (Ubu, 264p.), escrito por Rafael Cardoso Denis, reúne reflexões sobre o design na contemporaneidade relacionado com a dinâmica da sociedade, cultura, memória, patrimônio e meios de produção. Como fundamento teórico, o autor retoma as discussões do designer Papanek que, em seu livro, Design for the world (1971), polemizava sobre os conflitos entre a visão prática do design no período modernista e as demandas sociais daquela época. Há uma tentativa de Denis em romper com alguns mitos de origem da área, objetivando revelar a instabilidade entre as noções de forma, função e significado. O trabalho se estrutura em três capítulos principais, tendo como linha de abordagem tanto a atualização do pensamento de Papanek como a abertura crítica acerca da complexidade do exercício projetual.

A discussão inicia com uma problematização sobre a natureza dos artefatos, que são resultantes da interferência humana na matéria-prima. Costuma-se categorizar esses objetos como móveis e imóveis. Mas o fato de um objeto permanecer fixo num lugar seria garantia de sua imobilidade no tempo? Para aprofundar essa questão, toma-se como exemplo o monumento dos Arcos da Lapa, uma das mais conhecidas referências do patrimônio construído do Rio de Janeiro. Após 1740, ano de sua criação, a construção se submeteu a diferentes intervenções, e da proposta original de aqueduto passou a ser usado como viaduto, lugar de passagem do bondinho.

Além da mudança de funcionalidade, o patrimônio sofreu transformações de estrutura física, aparência e referência visual. Nos séculos XIX e XX, dois arcos foram abertos, a partir da remoção de fileiras de arcadas, dando passagem a ruas largas em consonância com a expansão urbana da então capital do Brasil. O modo de retratar o monumento se diferenciava, sobretudo na cor: cinza, conforme representado na aquarela The Aqueductat Rio de Janeiro (1792), do inglês William Alexander; branca, em uma gravura baseada nessa aquarela, divulgada em livro (1806); branca, cinza ou marrom, em uma série de cópias dessa gravura em circulação no país. O aparecimento de novas edificações (“arranha-céus”), no entorno dos arcos também colaborou para torná-lo, por um bom tempo, apequenado na paisagem, diminuindo seu impacto visual. O caso emblemático dos Arcos da Lapa confirma o quanto a experiência do objeto depende de convenções, costumes e relativizações, abalando a crença em uma suposta imobilidade de sua natureza.

Partindo desse exemplo, o autor chega a fatores condicionantes do significado de artefato, metade ligadaaà sua materialidade e, outra, à percepção que se tem dele; estes interdependentes e modificados pela ação do tempo. A materialidade abrange uso, entorno e duração. A começar pelo uso, palavra resultante da interligação entre operacionalidade, funcionamento e aproveitamento, por vezes aproximada da palavra função – papel de um artefato na sua relação com a sociedade. No exemplo dos Arcos da Lapa, na passagem de aqueduto para viaduto, tanto seus aspectos formais como suas funções, no plural, sofrem modificações. Já no aspecto do entorno, é descrito o processo de adensamento de construções em torno dos Arcos, tomado pela presença de casarios até quase a metade do século XX até o aparecimento dos primeiros edifícios altos a partir de 1940. Décadas depois, esse processo começa a ser invertido, com a derrubada de vários quarteirões e a reabertura do Largo da Lapa, criando áreas vazias que recuperam o caráter monumental da edificação. Quanto à duração, evidencia-se a capacidade de resistência dos Arcos que, ao ultrapassar a possibilidade de ser destruído com o passar do tempo, consegue manter, hoje, vários traços reconhecíveis do original, mesmo havendo diferentes juízos sobre seu valor simbólico.

Os fatores condicionantes da percepção, por sua vez, abrangem ponto de vista, discurso e experiência. O ponto de vista diz respeito à relativização do olhar. Um artefato pode ser visualizado em vários ângulos por diferentes observadores, formando uma hierarquia de modos de ver que pode considerá-lo melhor ou pior, correto ou equivocado, ao longo dos anos. Contemplar os Arcos de perto ou longe, em parte ou no todo, tornam-se experiências abertas a múltiplos significados. No tocante ao discurso, a impressão sobre o monumento foi sendo traduzida e comunicada a outras pessoas por meio da linguagem. Os recursos mais utilizados vieram das artes visuais, que geraram uma teia de enunciados reproduzidos continuamente, deslocados das mudanças pelas quais o monumento atravessava. O último fator diz respeito à experiência, a relação imediata entre o observador e o artefato. A bagagem cultural, os conhecimentos históricos e as sensações interiores afetam decididamente o modo de experimentar a edificação. Quem a observa pela primeira vez tem a impressão diferente de quem já está acostumado com a paisagem. Dessa forma, a experiência se torna um dos fatores decisivos na apreensão dos significados.

O autor relaciona a experiência à memória e à identidade. Para ele, a capacidade de recordar o já vivido e articulá-lo com o momento presente é um recurso para formar e preservar a identidade do sujeito. Mas enfatiza o quanto essa memória é falha, sendo por vezes fabulada como real (síndrome da falsa memória), embaralhada com as experiências de outras pessoas e sujeita a acréscimos adquiridos por meios indiretos, como as conversas e leituras. Nessa direção, os artefatos se tornam objetos de ativação dessa memória, sendo a nostalgia utilizada, por exemplo, com fins comerciais de vender produtos.

Hoje se viveria uma espécie de não-tempo, no qual todas as épocas convivem simultaneamente no contemporâneo. A identidade vai sendo constituída pela combinação dessas referências do passado, na chamada postura mix and match, combinação livre de elementos. Os designers, ao projetarem produtos, constantemente recorrem a formas antigas como recurso à memória e ao familiar. As pessoas se identificam, portanto, com determinadas marcas e produtos por diferentes motivos, entre os quais: pelo seu caráter de evocar lembranças; pelas qualidades intrínsecas dos mesmos; pelos desejos e aspirações a um determinado estilo de vida; pelo pertencimento a determinado grupo; e pela diferenciação social.

A discussão abarca também as diferenças e aproximações entre formas, funções e valores dos artefatos. Um dos equívocos mais comuns é confundir o caráter funcional de um objeto com a sua capacidade de funcionar, de ser bem adaptado ao manuseio ou de seguir os preceitos formais do modernismo internacional. Os objetos possuem mais de uma função interdependentes de valores simbólicos e afetivos. Por outro lado, as formas também variam, acompanhando o desenvolvimento do design, da tecnologia e do mercado. Há cada vez mais uma busca por produtos customizados, o que desestabiliza o pensamento do Funcionalismo (1920-1950), movimento que defendia a existência de uma única forma ideal, “forma-tipo”, para cada artefato, mesmo com as transformações tecnológicas.

As formas, aparências dos objetos, nunca são neutras, podendo remeter a vivências, hábitos, pessoas conhecidas. Aproveitando-se disso, a publicidade utiliza a imagem de celebridades, confiando na possível transferência de qualidades reais e imaginadas destas para os produtos a serem comercializados. Se os objetos têm sua aparência tomada de significados, é certo afirmar que todo artefato material abrange informação, signo e comunicação, tem uma dimensão imaterial. Cada artefato possui um discurso ou linguagem específicos e está associado a conceitos abstratos como identidade, status e estilo. No processo de projetação, devem ser levados em conta esses aspectos, que definem os diferentes propósitos de seu uso.

O percurso de significação dos artefatos é determinado por fatores. A materialidade, que está ligada à sua estrutura e forma, estando dependente de processos e técnicas de produção. Essa configuração física, mesmo que sofra impactos de seu uso e operacionalidade, continuará oferecendo indícios da categoria a qual o objeto pertence. Outro fator é o ambiente, o entorno, a inserção social. Cada mudança de contexto, altera o sentido do objeto e o modo como é percebido. Uma mesma cadeira pode ter diferentes significados quando vista na sala de uma residência ou em um consultório médico. Os usuários, com seus repertórios, gostos e intenções, também são um fator condicionante. Eles podem ressignificar os artefatos dando a eles novos usos e significados, e estes podem ser aceitos como novo e estendidos a toda a comunidade. O último fator a ser considerado é o tempo, com seu poder de modificar os artefatos. Um único objeto pode ter uma história longa de transformações e alcançar diferentes significados, até mesmo contraditórios.

No entanto, um problema atual se coloca no debate: a questão do pós-uso. Enxergar o lixo pela requalificação de seu sentido é uma forma de estender uma sobrevida a muitos objetos que são descartados no meio ambiente. Há diferentes tipos de coleta, desde o ajuntamento e transformação de materiais usados em obras de arte numa coleção até a coleta de latas de alumínio nas ruas para reciclagem. O reúso de diferentes objetos descartados pode superar o tempo de vida útil estimado na sua fabricação. Projetar além da linearidade do ciclo de vida de um produto, enxergando seu pós-uso, mostra-se um caminho possível para o design na contemporaneidade. Para isso, são recomendados como princípios: reversibilidade, uso de módulos na fabricação de um produto; pensamento sistêmico, enxergar o projeto de modo plural e polivalente; e durabilidade, capacidade de um objeto de agregar e simbolizar valores reconhecidos se tornando resistente ao descarte.

Da questão do pós-uso, a discussão se desloca para a relação entre design e configuração em redes. Na modernidade, o mundo passou a ser visto em malhas. As metrópoles se organizavam em redes de utilidade e infraestrutura (transportes e comunicações), e a comunicação visual impressa se tornava uma espécie de rede para fluxo de informações. Em paralelo, o design passou a ser representado em malhas diagramáticas ougridgrid. Mais adiante surge a internet, tornando-se uma rede poderosa, capaz de juntar todas as outras redes num mesmo espaço virtual. Mas esse estágio só foi possível por meio de interfaces gráficas. Essa rede transnacional parte de linguagens e realidades pré-existentes, aproximando-se do layout de várias modalidades do impresso (jornal, revista, livro); do sentido de navegação já presente na configuração visual e espacial do jornal; das atividades marítimas; e da lógica de visualização errática, a experiência de fantasia já presente nas ilustrações, montagens e nos desenhos animados.

Essas são as questões norteadoras do livro. Denis, contudo, extrapola a análise, trazendo na conclusão uma perspectiva crítica sobre o ensino do design para que este seja visto como um caminho de mediação entre o estudante formado e a experiência prática. O autor convida as instituições educativas a estimularem a formação de um designer pensante, possuidor de valores como: pensamento sistêmico – exposição aos processos de produção e industriais; inventividade de linguagem – conjunção de linguagens visuais e plásticas no processo de criação do design que, para o autor, é uma forma de Arte; e excelência da realização – desenvolvimento de um senso de “artesania”, alto grau de atenção ao detalhe na execução do trabalho.

Para Denis, integrar ensino com instâncias como mercado, indústria e meio cultural amplia as oportunidades para o surgimento de profissionais mais comprometidos com seu fazer. Esse pensamento coaduna-se com sua própria experiência nos estudos das artes e das ciências aplicadas; com seu olhar interdisciplinar enquanto teórico de Design. Sua carreira acadêmica inicia com a graduação em Sociologia (Johns HopkingsUniversity), seguida do mestrado em Artes Visuais (UFRJ), alcançando PhD em História da Arte (CourtauldInstitute of Art – University of London). No Brasil, foi professor colaborador na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e no decorrer de sua trajetória vem publicando livros de Design e realizando ações de curadoria.

Enfim, Design para um mundo complexo põe em debate a complexidade de relações do Design com espaço, memória, tempo e ação humana, utilizando-se de um estilo ensaístico, raramente explorado em publicações da área. Alguns dos aspectos tratados na obra sintonizam-se com ideias de estudiosos estrangeiros como Flusser e Gui Bonsiepe, e brasileiros como Dijon de Moraes e Caio Vassão. Pela pertinência do conteúdo, o livro é uma referência indispensável tanto para as áreas de Design, Arquitetura e Engenharia de Produção, envolvidas com a concepção projetual, como para as áreas de Patrimônio, História e Memória Social.

Referência

DENIS, Rafael Cardoso. Design para um mundo complexo. São Paulo: Ubu, 2016.


Resenhista

Simone Cavalcante de Almeida – Doutoranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (SP).


Referências desta Resenha

DENIS, Rafael Cardoso. Design para um mundo complexo. São Paulo: Ubu, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Simone Cavalcante de. Articulações entre design, cultura e memória. Memória em Rede. Pelotas, v.13, n.24, p. 284- 289, jan./jun.2021. Acessar publicação original [DR]

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