Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria | Revista de História | 2021

Guerra Fria resumo desenhado Guerra Fria
Guerra Fria – Resumo desenhado | Foto: HISTORIAR-TE

Nas últimas décadas, um fenômeno político tem chamado a atenção de especialistas e estudiosos em geral: o crescimento e as reformulações no campo da direita em países do Ocidente. Recentemente, surpreendeu a mui­tos o fato de a extrema direita, antes marginalizada, alcançar cena pública ressentida e decididamente, num movimento que soube ganhar adeptos, especialmente pela internet e que consagra líderes ao largo do universo po­lítico, cujas ações desacreditam o próprio sistema que os elegeu.

Esse dossiê procura colaborar com o tema, enfatizando as direitas no plural, já que o fenômeno é suficientemente complexo para ser tratado como substantivo singular. Versa sobre as direitas no correr da Guerra Fria. Expõe as renovações sofridas no campo, para recuperar terreno, na época do welfare, oferecendo elementos para pensarmos as direitas no século XXI. O dossiê aborda o tema nos Estados Unidos e Brasil, países que viram presidentes vinculados à extrema direita serem eleitos e manterem expressivo apoio, apesar das vicissitudes e medidas polêmicas: Donald Trump (2017-2021) e Jair Messias Bolsonaro (2019- ).

O dossiê deriva de evento organizado no Departamento de História da USP – Negacionismos e Revisionismos. O conhecimento sob ameaça –, em 2019. O pro­pósito de tal encontro foi discutir, a partir do instrumental do historiador, temas do presente – como o negacionismo, arma determinante da extrema direita. Os artigos que compõem o dossiê aparecem dispostos, na medida do possível, em ordem cronológica.

Abre o dossiê um conjunto de artigos dedicados exclusivamente aos Estados Unidos, e elaborados por pesquisadores brasileiros, o que indica o crescimento dessa área de pesquisa no país. Nele, vemos como houve, nos Estados Unidos, notável esforço intelectual para renovar o campo conserva­dor após a Segunda Guerra Mundial. Época de revigoramento da democracia liberal – após a liderança norte-americana na vitória sobre o nazifascismo e em função do legado social do New Deal –, que ganhou espaço, corações e mentes. Além disso, o movimento pelos direitos civis, contracultura e outros dissidentes afligia os conservadores.

Já no Brasil, com os movimentos sociais pressionando a roda por direi­tos e reformas, a solução foi a força e as botas: o golpe militar de 1964 e a ditadura que ele implantou. Apesar das diferenças, uma semelhança entre os dois países se destaca: como indicado, as direitas que pareciam em crise, questionadas pelo consenso liberal-progressista do pós-Guerra, sofreram mudanças, foram repensadas; fundiram-se vertentes em inovação para ga­nhar terreno perdido.

Em razão do reduzido conhecimento sobre história e historiografia dos Estados Unidos no Brasil, vale a pena destacar alguns pontos. Naquele país, duas forças políticas agregam, sob seus guarda-chuvas, membros e simpati­zantes dos partidos Democrata e Republicano. Trata-se de forças poderosas, centrípetas, que arrastam para seu centro grupos com demandas distintas, que se alinham à sua inclinação política. Alguns afirmam que ambos os partidos têm o poder de “aparar arestas”, acomodando propostas mais radi­cais no seu anterior. Foi dessa forma que grupos de extrema direita ganha­ram abrigo no Partido Republicano.

O senso comum registra os democratas como progressistas e os re­publicanos como conservadores. Nos Estados Unidos, os progressistas são conhecidos pelo termo inglês liberal. Já no Brasil, liberal é comumente visto como aquele simpatizante ou adepto do liberalismo de mercado, ainda que o liberalismo, como sabemos, seja maior do que a sua esfera econômica. Os progressistas advogam por programas de assistência social, pautas de minorias, discriminação do aborto, reformas mais contundentes, como a da saúde privada, preocupações com meio ambiente etc. Eles são vinculados, geralmente, ao partido Democrata, que congrega demandas desde a ala mais radical da esquerda liberal até partidários do centro político.

O Partido Democrata ganhou reputação como progressista após Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) instaurar o citado New Deal. Executaram-se re­formas que ampliaram a ação do Estado na vida pública, num esforço ex­traordinário para recuperar o país, que mergulhara na Depressão após a crise de 1929. Diga-se o que se disser, o New Deal foi um dos maiores e mais efetivos programas reformistas do Ocidente. Apesar disso, ele apresentou também limites, por exemplo: o projeto reformista de larga escala não en­frentou o problema da segregação racial, embora os programas sociais que implementou tenham aberto oportunidades para os negros.

Do mesmo modo, o partido Republicano congrega desde alas da extre­ma-direita até conservadores próximos ao centro político. Seria simples se pudéssemos vincular, automaticamente, um progressista aos democratas e um conservador aos republicanos. Entretanto, a demarcação não é assim tão clara. Dependendo do período, portanto da circunstância política, é possível encontrar liberals no partido Republicano. Este foi o caso de Nelson Rocke­feller, governador de Nova York (1959-1973) e vice-presidente no mandato de Gerald Ford (1974-1977). Era homem do partido, mas adepto de algumas pautas progressistas. Isto é, em alguns temas, Rockefeller estava mais pró­ximo dos democratas do que dos próprios republicanos. Antes disso, ele foi um importante articulador da Política da Boa Vizinhança para a América Latina, atuando arrojadamente ao lado do democrata Roosevelt, em nome do apoio aos Aliados antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Em ou­tras palavras, Rockefeller operou no correr da conjuntura do New Deal e de seu legado no pós-guerra, em que reforma e welfare estavam colocados. Do mesmo modo, no Partido Democrata, e acentuando exemplo conhecido, um presidente como Bill Clinton (1993-2001) adotou parte da agenda do neolibe­ralismo. Perspectiva essa abraçada por muitos republicanos.

Já a extrema direita que vimos ressurgir ultimamente tem enraiza­mento na história dos Estados Unidos, sendo mesmo uma das tradições do país. Ela remonta aos grupos paramilitares que surgiram após a Guerra Civil (1861-1865), quando se formaram sociedades secretas inconformadas com a derrota e com o “lugar do negro” na sociedade. Contaram com apoio de parte da sociedade sulista, políticos e militares. Entre elas, podemos citar a sem­pre lembrada Ku Klux Klan, os Knights of White Camelia e a White League. Primeiro, as organizações ramificaram-se entre os sulistas, depois, outras denominações ganharam o país. Os atuais grupos de extrema direita osten­tam com orgulho os símbolos dessas sociedades secretas, entre outros, como os dos nazistas. Apesar da inclinação recente, insistimos que a direita nos Estados Unidos não se circunscreve aos extremistas, embora eles tenham feito bastante barulho nos últimos anos.

Algumas das raízes conservadoras são encontradas ainda na funda­ção do país, após 1776. O próprio partido Republicano foi criado em 1859 e responsável pela Guerra de Secessão, com a eleição de Abraham Lincoln (1861-1865), presidente moderado, louvado com realce no panteão dos heróis da nação. Entretanto, o moderno conservadorismo do país remete-nos aos anos 1950, quando o projeto conservador propôs reformulação pelas mãos de intelectuais. Tinha como objetivo a luta contra o comunismo, rechaçava pautas progressistas que ganhavam corpo. É a esse tema que se dedica Ro­drigo Farias de Souza, ao examinar o papel de William Buckley Jr., voz pree­minente do campo conservador no século XX. O intelectual foi fundador da influente revista National Review, em 1955, e responsável pela apresentação do programa de TV Fire Line, entre 1966 e 1999.

A National Review foi lócus privilegiado de discussões intelectuais, desti­nando-se a fundir vertentes do conservadorismo. O esforço concentrou-se em conciliar as tendências dos libertários, adeptos de individualismo má­ximo e liberdade econômica, em face de um governo que consideravam in­tervencionista; os tradicionalistas, preocupados com a cultura e a moral, em geral religiosos e influenciados por ideias europeias; por fim, os anticomu­nistas, mergulhados nas disputas político-ideológicas da Guerra Fria. Essa composição é conhecida como fusionismo. O autor problematiza a questão ao discutir como esses conservadores modernos lidaram com tema espinho­so: a integração racial nas escolas como parte dos direitos civis. O autor exa­mina, assim, premissas desse moderno conservadorismo, cujo debate abriu novas perspectivas para as direitas na segunda metade do século XX.

O campo da direita abrigou, igualmente, intelectuais conservadores ne­gros no debate público. Eram veementemente contra as agendas dos mo­vimentos dos direitos civis e, como não podia deixar de ser, insurgiam-se contra o comunismo e a URSS, nos anos 1950 e 1960. Flávio Thales Ribei­ro Francisco enfrenta o tema, apontando como esses conservadores negros rechaçavam o debate sobre a raça. Eles juntaram-se à grande parcela dos brancos que presumiam que os negros primeiramente deveriam preparar­-se, ser devidamente educados – para só depois ganharem direitos políticos. Era uma espécie de pré-requisito para entrar na “sociedade moderna civili­zada Ocidental” que, segundo muitos, os Estados Unidos lideravam. Adeptos do liberalismo econômico, os negros conservadores apostavam num futuro empreendedorismo negro, certos de que as oportunidades do capitalismo abririam as portas para a inserção dos negros na hora oportuna.

No entanto, foi a partir dos anos 1970 que o fluxo no campo movi­mentou água e moinhos em torno da visibilidade e maior espaço do campo conservador. O caleidoscópio girou, fazendo com que os neoconservado­res, ou neocons, entrassem em cena. Essa variante conservadora, liderada por corpo de “falcões” bem preparados, advogava por agressividade na política externa. Era igualmente contra programas sociais, intervenções estatais de distintas ordens, francamente avessos à contracultura e, claro, adversos ao comunismo. Roberto Moll Neto discute os primeiros anos dessa variante do conservadorismo, em que intelectuais igualmente influentes divulgaram seu projeto em revistas especializadas, think tanks, etc. Alcançaram facilmente o Congresso, governos estaduais e federal, com destaque para as presidências de Ronald Regan (1981-1989) e George W. Bush (2001-2009). É atribuído ao governo Reagan e aos neoconservadores a operação de desmonte do welfare do pós-guerra. Na política externa, os neoconservadores inspiraram inter­venção na Nicarágua nos anos 1980 e atuaram decisivamente na Guerra ao Terror após os ataques de 11 de setembro de 2001.

Em direção semelhante à da reformulação em curso nos anos 1950, eles somaram aspectos do conservadorismo tradicional, as perspectivas da Ciên­cia e a lógica do livre mercado moderno. Apesar dessa crença no mercado, os neoconservadores distanciam-se dos neoliberais. Os neocons resistem a pautas de origem progressista que, dependendo da ocasião, os neoliberais apoiam, como descriminalização do aborto, defesa da liberdade religiosa, união homoafetiva etc. Os neocons, desse modo, ora se afastavam dos con­servadores tradicionais e dos neoliberais, ora se aproximavam, adotando elementos de ambos.

Notem que estamos tratando do campo da direita elaborado por inte­lectuais que alcançavam o âmbito da política, ocupando cargos, candidatan­do-se em eleições estaduais e federais. Portanto, homens que reconheciam a ordem e os sistemas partidário e eleitoral, pelos quais funciona o país. São homens que acreditam na racionalidade guiando a política. Isso quer dizer que muitos neocons distanciam-se da área com bordas mais soltas da direita extremista que hoje reúne grupos distintos: supremacistas brancos, neofa­ cistas, misóginos, milícias contra o controle de armas etc. Já foram denomi­nados como right wing populism (direita populista), far right (extrema direita) alt right (abreviatura de alternative right – direita alternativa). Entre eles, correm teorias conspiracionistas e negacionismos de distintas ordens. Isso quer di­zer que o país que mantém eleições indiretas desde 1789, considerado como referência para a democracia liberal, conviveu e convive com elementos antidemocráticos. Desde a escravidão, passando pela segregação racial e pelo nativismo, até alcançar elementos da extrema direita atual que, como men­cionado, questiona a política, desqualificando o sistema que elege políticos que ela reconhece como lideranças, como foi o caso de Donald Trump.

Apesar disso, e para incluir outros tons na zona cinzenta: neoconservado­res adeptos da racionalidade na política colaboraram com o governo polêmico de Trump, líder da extrema direita. Entre eles, John Bolton, conselheiro nacio­nal de segurança, e Nikki Haley, embaixadora dos Estados Unidos na ONU. Em direção contrária, e para ficar em apenas um exemplo, o senador das fileiras ne­oconservadoras, Mitt Romney, quase sempre se opôs ao polêmico presidente.

A extrema direita liderada por Trump recebeu apoio, também, de parte do universo da Direita Cristã, conhecida pelo fundamentalismo, reunindo grande número de evangélicos e com vultosa atuação na opinião pública e na política. Nos anos 1980, nomes influentes, como o televangelista Jer­ry Falwell, ajudaram a criar uma espécie de organização conhecida como “maioria moral”, transformando evangélicos de direita em força política de­terminante. Alexandre Cruz e Daniel Rocha discutem essa forte presença na vida norte-americana. Havia entusiastas da Direita Cristã, por exemplo, entre os arrebatados do movimento Tea Party – o grupo de extrema direita do Partido Republicano, contumaz crítico dos impostos e da intervenção do Estado no setor privado, que ascendeu rapidamente em 2009 e declinou também velozmente.

Antes de continuar com a apresentação dos artigos do dossiê, faz-se necessária uma observação sobre as direitas no Brasil. Apesar das diferenças, há no nosso país grupos e partidos que podem ser classificados dentro do leque das direitas. Como nos Estados Unidos, muitas vozes que defendem o liberalismo de mercado tentaram combiná-lo com visões políticas autori­tárias, conservadoras e restritivas em termos de direitos humanos e sociais. Essa pluralidade de grupos e posições tem sido um desafio para os pesqui­sadores. A situação agrava-se ainda mais em razão das “novas direitas” e direitas alternativas abrirem o leque em direção a uma miríade de posições heterodoxas em relação ao conservadorismo tradicional.

A história das direitas brasileiras, extremas ou moderadas, tem sua gê­nese nos anos 1920, com a consolidação de grupos de ação política e in­telectual, críticos do liberalismo oligárquico e do federalismo da Primeira República. No entanto, suas raízes indiretas encontram-se no século XIX, a partir de certa identidade da elite política conservadora do Império. Ela re­forçava a ação político-administrativa do Estado para tutelar conflitos entre as elites provinciais. O objetivo, entre outros, era garantir hierarquias sociais dentro da ordem escravocrata. Não por acaso, vozes da direita brasileira de ontem e hoje – mesmo os não monarquistas –, expressam, por vezes, “nostal­gia imperial” e culto a “poderes moderadores”, veem a sociedade civil como imatura e frágil, com necessidade de proteção contra si mesma.

Há, claramente, um DNA antiliberal nas direitas brasileiras, apesar de suas bases intelectuais e ideológicas serem diversas. A lista é grande: direitas inspiradas pelo positivismo e seu ideal de “ditadura republicana”, pelo ca­tolicismo ultramontano com desdobramentos corporativistas, pela nostalgia monarquista do “patrianovismo” (movimento atuante até início dos anos 1930) e pelos fascismos e seu culto ao partido de massas.

Não raro, esses grupos atraíram conservadores tradicionalistas, cujos diagnósticos e fórmulas políticas eram compartilhados para enfrentar os “males” do Brasil. A solução é conhecida: Estado forte e centralizador na re­pressão e controle de conflitos políticos e sociais. A intenção era manter hie­rarquias sociais e raciais (ainda que muitos líderes de direita no Brasil não fossem propriamente segregacionistas). Procuravam formar nova elite técni­ca, capaz de regular os conflitos sociais e gerenciar a modernização industrial do país. Planejavam incorporar a classe operária nascente dentro do civismo e do patriotismo, um “verdadeiro antídoto” contra o comunismo. Como não podia deixar de ser, defendiam a família tradicional como esteio da “civiliza­ção cristã”. Sem esquecer da imposição de limites ao individualismo liberal e seus princípios de representação política, embora defendessem a proprie­dade privada individual, tão “sagrada” quanto Deus e a família tradicional.

Flexível e plástica, a direita que emergiu após 1945 soube adaptar-se à linguagem da Guerra Fria. Por um lado, combinou autoritarismo políti­co, elitismo social e conservadorismo dos costumes. Ainda assim, aderiu à democracia formal de bases constitucionais, devidamente tutelada por um Estado forte ou pelas Forças Armadas. Por outro lado, o pensamento liberal que emergiu do pós-Guerra – renovado, prestigiado e que, particularmente nos países centrais do Ocidente, combinou aceitação do planejamento eco­nômico, ampliação dos direitos políticos e sociais – teve pouca força entre nós. Em síntese: o Brasil continuou um país profundamente desigual, sem cultura política aberta ao reformismo e à inclusão social. A breve e intensa história da República de 1946, nossa primeira experiência de democracia eleitoral ampliada, mostrou claramente esses limites. Quando a crise social agravou-se, com o protagonismo de movimentos sociais reformistas e revo­lucionários, os liberais não hesitaram em abraçar o “autoritarismo de crise”, na expressão sagaz de Décio Saes. Ou seja, não duvidaram em pedir solu­ções golpistas e autoritárias, apoiando em massa o golpe de Estado de 1964, através de seus porta-vozes na imprensa, em associações profissionais ou empresariais que se diziam “liberais e democratas”.

Assim, para pensarmos a história das direitas na segunda metade do século XX brasileiro, não basta mapearmos e compreendermos as bases doutrinárias e ideológicas dos grupos antiliberais, mas também as hesita­ções e movimentos táticos de propalados liberais que ajudaram a constituir o “partido da ordem” em momentos nos quais se sentiam ameaçados em seus interesses e valores.

Voltemos ao dossiê. Ele segue com dois artigos sobre conexões entre Es­tados Unidos e Brasil. Rodrigo Patto trata das oscilações entre os dois países no contexto do golpe de 1964. Ele analisa a direita radical nos primeiros anos da ditadura militar, conhecida ainda hoje na memória social, na imprensa e em parte da historiografia como “linha dura”. A partir de documentação produzida pelo Departamento de Estado norte-americano, o autor analisa como os Estados Unidos apoiaram o golpe de Estado de 1964, reposicionan­do-se, entretanto, em relação aos grupos de direita no Brasil, após a tomada do poder. O temor era de que o regime autoritário reproduzisse um sistema político abertamente autocrático, sem fachada parlamentar e legal. A razão estava dada: a maior parte dos militares da linha dura tinha simpatia por políticas econômicas autárquicas e nacionalistas. Essas tensões, traduzidas pela linguagem diplomática norte-americana, expressam as contradições da coalização golpista civil-militar que logo deu lugar ao regime militar autori­tário. Contudo, cioso das “fachadas” liberais, legitimação legal e institucional, permanentemente pressionado por setores da direita radical.

Da mesma forma, Elizabeth Cancelli aborda Estados Unidos, Brasil e o contexto sul-americano, mas em outro período e em diferente direção. Ela analisa as estratégias de transição política das ditaduras de direita para regimes liberal-democráticos, elaboradas nos think tanks e estimuladas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Esta agenda dominou o debate político ocidental entre fins dos anos 1970 e início dos 1990. A autora ma­peia e analisa a gênese deste projeto de redemocratização e seu impacto na agenda de pesquisas das Ciências Sociais. Tais formulações sobre modelos de transição política foi importante no contexto sul-americano das dita­duras militares. As estratégias norte-americanas da última fase da Guerra Fria visavam uma aliança de setores liberais com as direitas dissidentes dos regimes autoritários. O propósito: isolar as esquerdas, os nacionalistas e os reformistas em geral, impedindo seu acesso ao poder, já que esses grupos tinham outro projeto para a transição política. O resultado em cada país va­riava conforme o jogo de alianças locais, porém, aproximou-se mais de uma continuidade conservadora do que da ruptura progressista.

O dossiê encerra-se com dois artigos exclusivamente sobre o Brasil. Neles, percebe-se o que apresentamos até aqui: a perspectiva inovadora que demarca uma espécie de entrelugar histórico e ideológico das “novas direi­tas”, entre o autoritarismo tradicional, o conservadorismo nos costumes e o liberalismo elitista. O artigo de Janaina Cordeiro analisa movimentos de massa em disputa pelo controle das ruas. No caso, a Marcha com Deus pela Família em São Paulo, às vésperas do golpe de 31 de março de 1964. O artigo demonstra a apropriação de categorias como “constituição”, “democracia” e “liberdade” por grupos tradicionalistas e autoritários, que temiam a ação política dos “de baixo”, vista como próxima ao comunismo, ameaçadora da idealizada “civilização cristã”. O artigo reexamina a composição social e o imaginário desses eventos, enfatizando sua pluralidade. Problematiza a me­mória consagrada pelas esquerdas de que esses tradicionalistas que toma­ram as ruas eram mero fenômeno de “classe média” alta, de caráter farsesco e manipulador de símbolos religiosos. Para a autora, as marchas expressam um “consenso defensivo”, de caráter anticomunista, contra a possibilidade de uma radicalização do projeto reformista de João Goulart. O artigo destaca o papel central de entidades conservadoras protagonizadas por mulheres, como a União Cívica Feminina (UCF), dando um tom “apartidário” ao evento, como se sua presença fosse garantia de objetivos bem mais amplos do que unicamente mudar o governo: defender a “civilização”.

Tatiana Maya examina o papel dos intelectuais, notadamente os qua­dros da direita do modernismo brasileiro, a serviço do regime militar, insta­lados no Conselho Federal de Cultura (CFC). O foco da autora são os debates sobre a necessidade e legitimidade de censura no campo da cultura, sediada no MEC, feita por intelectuais funcionários do governo, nos moldes da exis­tente no Estado Novo, como alternativa à censura feita por policiais. Muitos intelectuais do CFC recusavam qualquer censura, enquanto outros até rei­vindicavam esse cerceamento à liberdade de expressão, sobretudo em temas relativos à moral e aos bons costumes. O artigo é contribuição importante para entender as direitas como parte do campo intelectual no Brasil. Com isso, a autora supera a visão, herdada da memória da resistência, de que ho­mens de ideias humanistas seriam incompatíveis com posições conservado­ras ou coniventes com a repressão e a censura. A bem da verdade, a autora demonstra a pluralidade destes intelectuais de direita, assessores do regime, que se reconheciam pelos pontos em comum: o nacionalismo como resulta­do da soma dos regionalismos brasileiros, o mito das três raças mestiçadas e o culto ao Estado central forte e regulador dos conflitos. Divididos entre crí­ticas protocolares e acomodações aos influxos da ditadura, os intelectuais do CFC acabaram por ser neutralizados politicamente em meados dos anos 1970. Na época, surgia núcleo mais pragmático e tecnocrático de ação cultural via Estado, disposto a conciliar cultura e mercado. Ao mesmo tempo, o artigo nos dá elementos para pensar sobre diferenças e semelhanças entre a direita intelectual dos anos 1960 e a dos ideólogos atuais, que se assumem “de di­reita” e reivindicam reconhecimento intelectual e influência junto ao Estado.

Com este dossiê, esperamos contribuir para a compreensão histórica do fenômeno das “novas direitas”, seus antigos argumentos e imaginários re­novados, que ocuparam o espaço público no mundo – e, no nosso caso, nos Estados Unidos e no Brasil.

Não poderíamos encerrar essa introdução sem acentuar as diferenças entre as “direitas republicanas” que aderem ao jogo democrático, sejam elas quais forem, gostemos delas ou não, com as ações e movimentos que vêm colocando em xeque os consensos democráticos e civilizacionais erigidos a partir da derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, esses movimentos exigem uma compreensão crítica, sem clichês, platitudes ou adjetivos, por parte de analistas e cidadãos preocupados com a ampliação da democracia. Nesse segmento, a historiografia pode dar uma boa contri­buição, ao desnudar as origens e trilhas entrecruzadas de atores, movimen­tos e discursos ao longo do tempo, suas rupturas, migrações e permanências.

Desejamos uma boa leitura!


Apresentadores

Mary Anne Junqueira – Pós-doutora pela University of Maryland (2004-2005) e New York University (2019), Estados Unidos. Professora Associada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Marcos Napolitano – Professor Titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP.


Referências desta apresentação

JUNQUEIRA, Mary Anne; NAPOLITANO, Marcos. Apresentação – Dossiê direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria. Revista de História. São Paulo, n.180, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF]

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