Discursos da História e Linguagens da História da Arte / História, Histórias / 2013

A história e a história da arte, embora possam parecer tão próximas, possuem cada uma objetos e métodos próprios. Nos trabalhos que se seguem, não se pretende “chover no molhado” retomando os limites e problemáticas que são próprios a cada uma das disciplinas. Nossa intenção, ao nos aproximarmos dos discursos produzidos pela história e pelas linguagens expressadas pela história da arte, é a de nos determos mais atentamente ao tempo, ao espaço e à representação, categorias que são caras a ambas as disciplinas.

A partir dos anos 70, a história passou a encontrar no objeto de arte testemunhos importantes dos eventos históricos. No deslanchar desse processo, vivido paralelamente com a crise dos paradigmas, os historiadores da arte Aby Warburg, Erwin Panofsky e Meyer Schapiro tornaram-se referências teóricas essenciais para os historiadores, em especial os medievalistas. A história da arte por sua vez, ao organizar a pesquisa e o ensino, apoderou-se, não sem alguma resistência, das “idades” da história – antiga, medieval, moderna e contemporânea – como marco temporal na escolha dos temas de estudo. Não se tem conhecimento de que os historiadores e os historiadores da arte tenham se reunido para discutir os possíveis pontos de interseção das duas disciplinas.1
Para os historiadores, as possibilidades abertas por Warburg, Panofsky, e Shapiro permitiram o acesso a uma nova dimensão da história, constituída pelo imaginário e o simbólico, o que renovou em especial a história política.2 Para os historiadores da arte, a despeito da reação de alguns profissionais com relação a uma periodização que atrela a história da arte à história, alguns historiadores da arte têm se mostrado inflexíveis quando o objeto de arte analisado escapa aos padrões temporais ou mesmo regionais impostos tradicionalmente.3 A opção por uma história da arte que ignore as balizas temporais da história e busque nos estudos regionais, ou estilísticos, uma temporalidade longa revelada pelas formas, enfrenta quase sempre uma reação desfavorável. Enfim, para muitos, a história da arte continua a ser vista como uma sucessão de ciclos de vida, morte e renascimento. “O discurso histórico não ‘nasce’ nunca. Ele sempre recomeça”.4
Desde o final do século XX, nos anos 90, Georges Didi-Huberman sacudiu com veemência as velhas certezas dos historiadores da arte e dos historiadores. Dentre elas, a crença inabalável na vitória sobre o anacronismo. Em Devant le Temps. Histoire de l’art et anachronisme des images, Didi-Huberman demonstrou com clareza que o tempo da imagem não é o mesmo da história.5
Este dossiê se inspirou em questões que tocam a história e a história da arte. Mais precisamente, o discurso da história e a linguagem da história da arte. O ponto de partida é Brasília, cidade capital, por excelência, dos espaços. Um espaço que foi pensado, segundo Elisa de Souza Martinez, para o “florescimento de um metadiscurso sobre a história do pensamento brasileiro”, um “laboratório de novas ideias” que, no entanto, não se concretizou. Estudando os escritos de Mário Pedrosa, a autora colheu uma questão, Brasília ou Maracangalha? e a transformou no fio condutor de suas reflexões, onde buscou abordar o confronto entre a utopia e a realidade a partir das proposições de Lúcio Costa, “o inventor de Brasília”.

A proposta deste dossiê se inspirou, portanto, no espaço idealizado, ou se preferirmos, na utopia da nova capital federal. Uma espécie de terra nova, prenhe de criatividade e reprodutora dos mais variados discursos e linguagens. Uma oportunidade única para traçar “os limites e os intercâmbios entre as artes plásticas e/ou visuais, rompidos no início do século XX”, conforme lembra Roberto Conduru ao abordar a realização do Congresso da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) em Brasília, cujo tema foi “A cidade nova e a síntese das artes” – um tema rebatido por Lúcio Costa, que ponderou tratar-se de “integração mais do que síntese”. Em Razões da Nova Arquitetura, o arquiteto urbanista afirmou que “arquitetura, escultura, pintura, formam um só corpo coeso, um organismo vivo de impossível desagregação.

As preocupações utópicas que cercaram a construção de Brasília, tão contemporâneas e presentes, fazem, ao mesmo tempo, parte do passado. Giulio Carlo Argan escreveu que “a ideia de cidade ideal está profundamente arraigada em todos os períodos históricos, sendo inerente ao caráter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidade terrena ou humana”.6 Em História da Cidade como História da Arte, Argan afirma que “cenário e sujeito da história, construída a partir de um modelo no qual as tradições culturais expressam valores, a cidade projeta a sua própria história através de múltiplas facetas que revelam o que são, o que deixaram de ser e o que pretendem vir a ser”.7 Assim, tendo Brasília como inspiração inicial, as palavras de Argan foram tomadas por empréstimo, buscando-se “no cenário e sujeito” as múltiplas facetas que permitam compreender os discursos da história e as linguagens da história da arte.

A ideia do espaço urbano construído “de acordo com modelos e tradições que expressam valores que oscilam no que são, no que deixaram de ser e no que pretendem vir a ser” é evidenciado por Françoise Vergneault-Belmont, para quem a planta de uma cidade é o testemunho de um passado. Cartógrafa por formação, Vergneault-Belmont decifra nos traçados das ruas uma lógica de um itinerário ou de um limite. Para ela, as plantas da Paris permitem compreender as relações entre a sociedade e o espaço. Debruçando-se com um rigor fino sobre três séculos de planos traçados para a capital francesa (séculos XVI, XVII e XVIII), ela concluiu que as plantas são denominadas de portrait8, do verbo pourtraire. No sufixo da palavra, composta por dois elementos, o verbo traire, tirer, assume seu antigo sentido, dessiner, tirer un trait. Isto é, segundo a autora, a planta é como um retrato de uma pessoa, ou do rei, ultrapassando a descrição para revelar a natureza e a essência do que é representado. Isto significa que desde a sua origem, em suas palavras, estabeleceu-se um “estreito parentesco semântico e simbólico entre a planta e o retrato como efígies do poder”. Os sucessivos planos da cidade de Paris procuraram interferir diretamente na sua urbanidade, eram projetos urbanos nos quais Vergneault-Belmont enxergou um testemunho da história.
É sobre testemunhos que nos fala Susani Silveira Lemos França, referindo-se aos cronistas quatrocentistas e viajantes estrangeiros que passaram por Lisboa no século XV. Esses escritos contribuíram de forma decisiva para a “consolidação de um passado selecionado” que fez de Lisboa “a cabeça” de Portugal. Susani França os vê como “peças-chave” na configuração da imagem e da história de Lisboa. Ela chama atenção para o fato de que em uma época em que outras cidades marítimas, tais como Veneza, Gênova, Ceuta e Constantinopla, eram descritas minuciosamente, Lisboa não era vinculada ao oceano: a sua história interna se sedimentava na memória religiosa e nas condições comerciais. No discurso da crônica, Lisboa aparece como o palco de cenas memoráveis que envolvem o rei e a corte régia. Ressalta-se, igualmente, o valor bélico e os eventos memoráveis, tais como as procissões e outras manifestações sagradas ou políticas vinculadas às cortes. Mas, como se sabe, a corte era itinerante, passando, portanto, por outras cidades. A beleza das cidades associava-se então, ao que nelas acontecia e a como os seus habitantes atuavam. A ordenação dos edifícios e a arquitetura (tão cara aos historiadores da arte) só eram citadas pelos cronistas enquanto cenários de acontecimentos extraordinários, tais como o sepultamento de relíquias e o albergamento das cortes. São, portanto, questões internas memoráveis que promovem Lisboa como “cidade grandíssima e cabeça de Portugal”, e não como cidade marítima.
A memória religiosa e comercial das cidades modernas é fruto de um movimento longo da memória coletiva. Memória, aqui, compreendida como vida em permanente mudança. A chamada modernidade não renasceu das cinzas de um passado sepultado, e, muito menos, rompeu com a Idade Média. Para os medievais, a notoriedade de uma cidade estava vinculada às suas catedrais, nas quais se guardavam um tesouro de objetos preciosos, incluindo as relíquias de um santo. A riqueza ostentada pela catedral e a importância das feiras realizadas na praça da cidade asseguravam a grandeza e a celebridade da cidade.

Clara Bargellini e David J. Weber, estudando o território das missões na América Espanhola, demonstram com propriedade como franciscanos e jesuítas transportaram para o Novo Mundo práticas religiosas que foram constituídas ao longo da Idade Média e continuaram vivas até o século XVIII. Em La Maison Dieu, Dominique Iogna-Prat pergunta: por que e quando Deus se tornou de “pedra”; e por que, e quando, a Igreja se impôs na paisagem do Ocidente? A partir de quando a Igreja passou a ocupar espaços e territórios? Para Iogna-Prat, a doutrina sozinha não explica a reunião dos cristãos em um “edifício de pedra” que recebe a mesma denominação da comunidade dos fiéis. Ele considera que a Igreja é também um conjunto de bens eclesiásticos, o que permite que se interrogue de forma mais ampla a relação dos homens com o espaço em uma época onde os termos Igreja e sociedade são coextensivos no lugar das estruturas eclesiásticas de fixação e controle das populações.9

Analisando os bens eclesiásticos da missão jesuítica de Becerac no norte da Nova Espanha, Clara Bargellini inventariou um impressionante acervo constituído de altares, ornamentos diversos, prataria e outros objetos de adorno do culto. Tais objetos apontam, ao mesmo tempo, para o uso de materiais preciosos e para a habilidade dos artífices, permitindo que sejam identificados como objetos de arte, de função comemorativa permanente. Trata-se de comemorações importadas para a América pelos franciscanos e jesuítas. A suntuosidade dos ornamentos e objetos tem como cenário uma arquitetura magnífica tanto nas fachadas exteriores, quanto no interior.

Apesar da semelhança entre as duas ordens, Bargellini chama atenção para diferenças que apontam para a história de cada uma delas. Enquanto os franciscanos recordam o “seu papel missionário como fundadores da Igreja na Nova Espanha, apoiados pela monarquia dos Habsburgos, os jesuítas insistiram na individualidade dos membros da Companhia, ativos e heroicos representados na iconografia da Igreja, seguidamente sozinhos, ou em grupo, mas sempre identificados. Ambas as ordens, em todas as etapas da produção artística, imprimiram um valor simbólico aos objetos. Ao estabelecerem uma missão, as necessidades artísticas se centravam especificamente nos ornamentos, na prataria e nos objetos de uso na missa. Para os jesuítas, as imagens ganhavam uma função especial voltada para a catequese (uma resposta aos ídolos indígenas). A arquitetura do edifício da igreja e as coleções interiores de objetos de importante valor material e artístico respondiam à necessidade vital da identidade e da transcendência, conforme afirma a autora. Porém, guardando as devidas proporções de tempo e espaço, poderíamos dizer que são seguidamente, “coextensivas”, conjugando seguidamente os poderes da Igreja e da monarquia.

David J. Weber ressalta a importância da arquitetura na forma de igrejas missionais, assim como da pintura, da escultura, da música, dança e teatro para impressionar os indígenas com o poder e a glória de Deus. Adverte, todavia, que o uso das artes pelos missionários para promover conversões e sustentar a fé fez, das mesmas, coadjuvantes na pedagogia do medo.

Em síntese, os trabalhos de Bargellini e de Weber, que integram um projeto institucional que reuniu estudiosos dos dois lados da fronteira, México e Estados Unidos, evidenciam como os fins doutrinários e expansionistas da Igreja, apoiada nas monarquias ibéricas, promoveram uma integração das artes, arquitetura, escultura, pintura, ourivesaria, música, dança e teatro no território das missões. Se ousássemos pensar em termos contemporâneos e rompêssemos as barreiras do tempo, poderíamos ver nas Missões da Nova Espanha a realização da síntese das artes que veio a ser almejada alguns séculos mais tarde. A realização dessa “síntese” com base na doutrina cristã prometia, aos que se convertessem, a salvação, isto é, o Paraíso: lugar, que vários historiadores veem como uma utopia medieval10, uma espécie de lugar idealizado, sempre almejado e jamais encontrado.

Considerando as abordagens feitas aos espaços, aos tempos, aos discursos e às linguagens, este dossiê espera favorecer o debate entre historiadores e historiadores da arte. Foram convidados historiadores de diferentes formações, que enriqueceram o dossiê, possibilitando a sua publicação. Agradecemos a generosidade, presteza e paciência de cada um. A Elisa Martinez, Roberto Conduru e Susani França, participantes fiéis desde o início desta “empreitada”. Nossa gratidão, em particular, à viúva de David Weber, que permitiu a publicação do seu trabalho, bem como a Clara Bargellini, que intermediou o consentimento. Nossos sinceros agradecimentos a Françoise Vergneault-Belmont, pela inestimável contribuição prestada aos historiadores de várias partes do mundo. Nosso muito obrigado a Flávio Fonseca e Matheus Silveira pelo auxílio essencial na transposição e configuração dos textos em língua estrangeira.

Brasília, novembro de 2013.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília)

Notas

1 Os historiadores e historiadores da arte encontram-se ou em simpósios temáticos ou em participações isoladas de historiadores ou historiadores da arte em eventos específicos promovidos pelas associações das disciplinas (Associação Nacional de História – ANPUH, Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP, Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA). Não há registro de que historiadores e historiadores da arte tenham promovido um evento específico visando discutir questões pertinentes às duas disciplinas.

2 Foram os medievalistas os primeiros a chamar a atenção para a importância das imagens como fonte para o historiador. A renovação da história política partiu também de um grupo de medievalistas liderados por Jacques le Goff pelo viés de uma nova disciplina, a Antropologia Histórica.

3 Ver MARTINEZ, Elisa de Souza; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Anti-medieval ou anti-moderno? As fronteiras do estudo da história da arte na contemporaneidade. In: História da Arte: 50 anos. Rio de Janeiro. http://wordpress.com/

4 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002, p.11.

5 DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000.

6 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte, como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 73-74.

7 Idem, p. 74.

8 Portrait, retrato, em português, vem do italiano ritratto, originado do latim retractus: significa fazer a efígie de uma pessoa. Sugere, assim, os mesmos significados apontados por Françoise Vergneault. Conferir no texto da autora.

9 IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison de Dieu. Une histoire monumentale de l`Église au Moyen Âge. Paris: Seuil, 2006, p. 17-18.

10 Deve-se naturalmente, tomar cuidado com a palavra utopia, pelo fato da mesma não existir na Idade Média (como se sabe, a palavra foi utilizada pela primeira vez por Thomas More em 1516). Todavia, os medievais idealizaram vários lugares, frequentemente, ilhas, onde o clima seria ameno, com abundância de frutos e fartura de alimentos, e onde a natureza seria bela e clemente.

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