Do Bellus ao Bellum: (Inter)faces da Guerra na Antiguidade e no Medievo/Mythos – Revista de História Antiga e Medieval/2021

Si vis pacem, para bellum

Vegetius, De re militari

Uma constante presença, fundadora e fundamental do próprio discurso de Clio, a guerra consitui-se como atividade inerente à natureza humana, queiramos ou não. Se partirmos de uma contextualização histórica para investigarmos sua onipresença na história da humanidade, somos forçados a constatar seu papel determinante na construção da escrita da própria História ocidental ao nos remetermos principalmente aos historiadores gregos Heródoto e Tucídides, nos albores da historiografia.

O mundo antigo construiu-se, destruiu-se e reconstruiu-se ao longo de vários séculos de conflagrações e, no caso do Ocidente, impactado diretamente com a ascensão de Roma através de suas scientia e artes, que incluíam o domínio bélico. O gládio e a pena criaram um orbis terrarum capitaneado pela Urbs, até que os “novos tempos” do século V d.C. trouxeram as ondas migratórias e invasoras dos povos germânicos em especial. Com o início, pois, da Idade Média assistiu-se no decorrer de sua longa duração a aperfeiçoamentos, inovações, experimentos nos campos de batalha de então, em que novos engenhos bélicos testavam homens e animais nos momentos de combate.

Até agora concentramo-nos apenas em digressões acerca da guerra no mundo ocidental, porém no Oriente Médio e no Extremo Oriente a historiografia e a literatura, com o auxílio da arqueologia, já nos apresentam convincentes relatos e achados que nos permitem ter uma noção mais precisa de técnicas, táticas, estratégias e armamentos empregados por assírios, fenícios, persas, númidas, egípcios, chineses, árabes, mongóis, seldjúcidas, dentre outros povos e civilizações do Levante.

Posto isto nessa introdução ao dossiê Do bellus ao bellum (inter)faces da guerra na Antiguidade e no Medievo, somos de opinião que este número da Revista Mythos já se justifica. Claro está que, ao pensarmos no título desta publicação, em um primeiro momento fomos tentados a discutir o fenômeno da guerra a partir de dois campos da historiografia que a ela intrinsecamente se relacionam, quais sejam, a História Militar Tradicional, talvez melhor representada pelo clássico escrito de Claus von Clausewitz (1780-1831) Da guerra e pela Nova História Militar, cujo maior expoente é sem dúvida Sir John Keegan (1934- 2012) e, dentre suas obras capitais, Uma história da guerra. Todavia, a História é um discurso e, como tal, articulando-se em narrativa, abre espaço para dialogar com outras epistemes discursivas. Esse espaço de interface tem na Literatura um parceiro privilegiado.

Destarte, ao apresentarmos este volume dedicado à guerra trabalhamos conjuntamente o bellum bellum, um jogo de palavras com o adjetivo bellus, -a, -um e com o substantivo neutro bellum, isto é, a “bela guerra”. Nesse sentido, lembramo-nos da poetização de Horácio em sua ode III, 2, 13, Dulce et decorum est pro patria mori – É doce e honroso morrer pela pátria – da mesma maneira que Vegécio, no século IV d.C. informa ao imperador que “Se queres a paz, prepara a guerra” e do filósofo catalão Ramon Llull (c. 1232- c.1316), que enaltece e enobrece o cavaleiro medieval e seu ofício em seu O livro da ordem da cavalaria.

Tendo em mente esta pluralidade discursiva sobre a guerra, encontramos ao nosso dispor neste dossiê reflexões, de grau de aprofundamento variável e variado, mas instigantes, acerca da guerra e de personagens históricos e literários.

Como artigos pertencentes ao volume em questão, que constam do dossiê, listados em ordem alfabética a partir do primeiro nome do(s) autor(es), Cleyton Tavares Silveira da Silva em Artífices da guerra, devotos do divino: Ethos marcial e religiosidade em Esparta (V-III a. C) discute a relação entre religiosidade e marcialidade na sociedade de Esparta entre os séculos V e III a.C. com vistas a discorrer sobre seu ethos militar.

Já no segundo artigo, de autoria de Daniela Lima Evangelista e Fabrício Nascimento de Moura intitulado Governo do Imperador Alexius Comneno e a defesa de suas fronteiras no Império Bizantino – séculos XI e XII, que abarca a temporalidade medieval, os articulistas tematizam o império bizantino à época do basileu Alexius Comneno, comentando principalmente as suas atividades militares em face dos ataques e incidentes nas fronteiras imperiais.

Edileide Bodenhausen brinda-nos com seu texto Boudicca: a rainha guerreira, que traz à cena a famosa rainha dos Icenos e sua apropriação como personagem histórica pelos historiadores romanos Tacitus e Cassius Dio. A construção de seu mito, aliado à existência das Duces Feminae dentro da sociedade celta, merece também a atenção da autora.

Voltado para a Baixa Idade Média, o artigo de Edilson Alves de Menezes Junior Dialética das relações pessoais da aristocracia: guerra, consenso e articulação (séculos XII-XIII) apresenta as reflexões do autor sobre ser a guerra uma atividade central recorrente na sociedade feudal para referendar o poder e o controle da aristocracia dentro do modelo social feudal, perfazendo dinâmicas perpetuadoras de mandos.

Emerson Aparecido dos Santos em A interferência do Deus Pã na guerra em Dáfnis e Cloé introduz o leitor ao romance grego Dáfnis e Cloé, focando principalmente o livro II, no qual há a interferência do deus Pã na guerra contra Metimna, embates contra os piratas e a aprendizagem religiosa dos protagonistas.

Uma outra reflexão sobre Esparta nos é oferecida por Gabriel Cabral Bernardo em seu texto Covardia coletiva e militarismo em Esparta, no qual o autor questiona a noção comum da militarização da vida espartana, ao trazer à discussão a covardia coletiva e pondo na balança o lugar comum da Esparta guerreira.

Política, sociedade e conflitos no mundo egípcio são tematizados por Hector Eliahou Leon Levy em seu artigo Relações de poder no mundo egípcio: alianças e conflitos durante a XXV dinastia após o Novo Império (1550-1070 a.C.). Fazendo uso de Bobbio (2000) e de uma documentação em estela, o autor discorre sobre o período de dominação kushita no Egito (séculos VIII-VII a.C.)

A Idade Média é tema do artigo de João Batista da Silva Porto Junior, cujo título é Castelos: a genealogia do símbolo arquitetônico do poder medieval entre a França e a Inglaterra. Através da constituição arquitetônica dos castelos, o autor, profundo conhecedor de suas técnicas de construção, expõe como essas fortificações, carregadas de simbologia, se constituíram, desde suas origens, em fundamentais marcos de poder político e linhagístico, permeando ainda hoje o imaginário popular.

Um texto original com um tema pouco abordado na academia brasileira, A tradição militar na consolidação da dinastia Joseon – Coreia séculos XIV e XV, de Juliana Maria de Souza Xavier e Fabrício Nascimento de Moura, introduz o leitor à dinastia coreana Joseon (1392-1910), iniciada por uma rebelião militar e que se consolidou devido às tradições e organização militares, bem como seu diálogo com a tradição neo-confucionista.

Augusto sempre é objeto de estudos. Dito isto, Macsuelber de Cássio Barros da Cunha em Augusto e a volta dos estandartes partos a Roma: representações imagéticas como estratégias de poder retoma o personagem histórico e analisa o uso dos estandartes romanos, perdidos para os partos e recuperados por Otávio Augusto, como estratégias de poder, e sua propagação e consolidação durante o período.

Márcio Felipe Almeida da Silva em seu artigo A fronteira elástica: um breve estudo sobre o alargamento do território castelhano nos tempos de Afonso X procura compreender como a expansão da fronteira castelhana é devida às transformações políticas e militares empreendidas no reino por Afonso X.

Tema tratado por Maria Fernanda Ribeiro T. M dos Santos, O conceito de Miles Sancti Petri nas correspondências de D. Afonso I (1143- 1144) é abordado a partir do conceito weberiano de autoridade legítima, já que o título Cavaleiro de São Pedro é usado pela chancelaria de D. Afonso I de Portugal em sua correspondência oficial com o Papa Lúcio II. O conceito de virtus e guerra civil em Roma são tratados por Martín Miguel Vizzotti em seu artigo Lucano y la degradación del concepto de virtus en el marco de la guerra civil. Com base em sólida bibliografía de apoio e em variada exemplificação, o autor discute como o valor original e simbólico do conceito da virtus associado à marcialidade no poema Pharsalia padece de esvaziamento semântico e se converte em um furor criminal.

Em outro contributo sobre questões relativas ao universo bélico no medievo, Ricardo Marques de Jesus e Adriana Zierer escrevem sobre O modelo ideal de um Bellator: a construção do “bom cavaleiro” no manuscrito da visão de Túndalo com o intuito de demonstrar como na obra Visão de Túndalo (1149) se evidenciam os propósitos do clero em moldar um exemplo de “bom” cavaleiro adequado às propostas eclesiásticas.

Trabalho de interesse para os pesquisadores, Guerra na Assíria: soberania, ordem e equilíbrio no Império Neoassírio, de Ruan Kleberson Pereira da Silva, apresenta-nos a guerra como ordálio e parte integrante do mundo da realeza assíria, mesclando em sua constituição os respectivos elementos políticos, econômicos e religiosos.

O último artigo do dossiê, de autoria de Wellington José Gomes Freire e Márcio Ricardo Coelho Muniz de título As ações militares da expansão imperial portuguesa no solo africano no século XV em Zurara demonstra que o autor da Crônica da Tomada de Ceuta pleiteia a existência de um ideal cavaleiresco, pelos articulistas considerado anacrônico, mas que, segundo o cronista, teria sido decisivo para levar os portugueses a alcançarem seus objetivos políticos e militares.

Completam esse número da revista Mythos outros artigos livres, a saber:

Ellen Juliane Bueno dos Santos discute, de forma concisa, em seu texto História da Religião do Mediterrâneo Antigo e a importância de rever os conceitos os critérios de análise, a partir da historiografia, de cultos e religiões dentro do espaço geográfico do Império Romano, buscando ressaltar a necessidade do cuidado com as singularidades e especificidades espaço-temporais de cada manifestação de culto religioso.

Ainda com temática associada à Roma, mais especificamente ao seu passado, Guilherme Welte Bernardo reflete em seu artigo “Rômulo foi o primeiro a iniciar tal confusão”: o passado romano e a percepção da cidade de Roma na Cronografia de Miguel Pselo sobre como o erudito bizantino relê pejorativamente o passado romano ocidental em sua obra a partir de seu pertencimento à Roma Oriental e o porquê de tal interpretação.

José Roberto de Paiva Gomes em A tirania de Pisístrato e a produção de vasos áticos oferece-nos um quadro preciso do uso dos vasos gregos como elementos propagandísticos, em que a cerâmica e a imagem se fundem, segundo a análise do autor, para veicular mensagens, nas quais Hércules se torna quase um garoto-propaganda pró tirania pisistratida.

O Japão e as lutas pelo poder no século XIII é objeto de estudo de Nikita Chrysan da Silva Pires em Regência em tempos de guerra: o projeto do Gukansho e o uso da História na manutenção da tradição, em que a crônica Gukansho, gênero que se caracteriza por ser uma narrativa – grifo nosso – histórica, serviu como instrumento de legitimação de um projeto político em uma época, na qual os embates eram uma constante.

O último artigo deste número, de autoria de Victor Hugo Sampaio Alves, apresenta como título Thor: um Júpiter escandinavo? Pensando as influências clássicas na descrição de Adão de Bremen acerca do deus e nele o autor investiga como Adão de Bremen, em sua Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, descreve o deus germânico Thor fazendo uso de aproximações com divindades oriundas da mitologia clássica, em especial Júpiter, deus do trovão. Cabe sempre salientar que um dos instrumentos mágicos do deus nórdico é o martelo Miölnir, associado ao trovão pelos germanos devido ao seu estrondo similar a um trabalho na forja.

A apresentação deste número da revista Mythos e dos artigos que a compõem talvez tenha despertado o interesse do leitor. Um assunto como a guerra em tempos difíceis como os nossos atualmente sempre nos leva a pensar em desânimo, em resignação, mas também nos inspira à resiliência, à obstinação. Armas brancas, de fogo, balísticas, químicas, enfim, cercam os homens em um mundo de defesa, ataque e violência na contemporaneidade. Na Antiguidade e na Idade Média, armas ofensivas e defensivas também estavam ao alcance dos guerreiros de diversas civilizações, do Oriente e do Ocidente, em maior ou menor escala e grau de eficiência. Não obstante, que esse dossiê Do bellus ao bellum (inter)faces da guerra na Antiguidade e no Medievo proporcione o prazer da leitura e que, mesmo que nunca nos afastemos do tom marcial da luta, continuemos a nos lembrar daqueles versos iniciais de duas das maiores epopéias de todos os tempos, que fundem homens, armas em um eterno e rubro enlace poético – Arma uirumque cano e As armas e os barões assinalados – Virgílio e Camões!


Organizador

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Referências desta apresentação

BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Entre histórias: discursos sobre a guerra. Mythos – Revista de História Antiga e Medieval, ano 5, n. 4, p. 8-15, out./dez. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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