A História Global e as fronteiras na Antiguidade | Fronteiras – Revista Catarinense de História | 2022

Detalhe da Estela de um mercenario em Patiris 2134–2040 a.C. Imagem Wikipedia
Detalhe da Estela de um mercenário em Pátiris (2134–2040 a.C.) | Imagem: Wikipédia

Entre as grandes rupturas culturais do final do século XX, a crise do eurocentrismo – entendido como a cosmovisão que situa a modernidade ocidental como modelo e destino da história universal – foi a que teve mais efeitos no campo historiográfico global. As diferentes áreas do campo reagiram de modos particulares: enquanto a História Econômica e comparada reviu a centralidade da Europa na história mundial (revisão exemplificada na corrente intelectual do ReOrient), a História Social buscou ressaltar a imbricação entre estruturas e agência dos grupos subalternos tanto nas sociedades, quanto nas memórias ocidentais. A História Cultural, por sua vez, ressaltou as tensões implicadas na construção de identidades e representações sociais tais como “civilizado” ou “colonial” (como nas abordagens pós- e decolonial), e a História Ambiental reelaborou as relações entre sociedade e ambiente para além do discurso da “conquista da natureza” ou do “lamento da degradação”.

Neste contexto, novas áreas emergiram, como a História Global, cuja missão de criticar o eurocentrismo e o internalismo metodológico orienta os mais diversos estudos, das macro comparações ao estudo das “micro globalizações”, das redes aos sistemas-mundo, dos impérios em contato aos viajantes, dos processos transnacionais aos fenômenos ambientais globais. Central no projeto da História Global é a crítica das fronteiras projetadas pelas sociedades contemporâneas sobre o passado, sob o efeito dos estados nacionais e suas comunidades imaginadas, o que desvinculou as sociedades de seus contextos concretos. A História Antiga dialogou com estas perspectivas, resultando na promoção de três abordagens significativas: a história dos grupos subalternos antigos, a história da recepção e usos da Antiguidade no mundo contemporâneo, e a história das conexões e contatos entre as várias sociedades antigas em seus contextos mais amplos. Nestas três abordagens, o problema das fronteiras é central e se desdobra em múltiplos aspectos, fronteiras sociais e espaciais, internas e externas, trazendo a necessidade de se revisitar conceitos e metodologias que tomavam este termo como dado. Assim, é preciso refletir como definir as fronteiras entre grupos sociais, como dominantes e subalternos, por exemplo, ou entre segmentos de grupos subalternos. De que maneira Antiguidade foi utilizada em contextos de fronteira no Ocidente, como a América Latina contemporânea? Em relação à História Global, fronteiras como “mundo romano”, “Egito”, “mundo grego”, “África”, estão além da projeção dos estados nacionais sobre o passado antigo, mas de que maneira podemos entender esses limites tendo em vista uma visão êmica de fronteira? Quais eram os contextos nos quais as sociedades se interagiam? Qual era a relação entre fronteiras internas e externas às sociedades? A integração a contextos maiores potencialmente eliminava as fronteiras? O objetivo deste dossiê é refletir sobre os problemas associados aos conceitos de fronteira na Antiguidade. Leia Mais

Do Bellus ao Bellum: (Inter)faces da Guerra na Antiguidade e no Medievo/Mythos – Revista de História Antiga e Medieval/2021

Si vis pacem, para bellum

Vegetius, De re militari

Uma constante presença, fundadora e fundamental do próprio discurso de Clio, a guerra consitui-se como atividade inerente à natureza humana, queiramos ou não. Se partirmos de uma contextualização histórica para investigarmos sua onipresença na história da humanidade, somos forçados a constatar seu papel determinante na construção da escrita da própria História ocidental ao nos remetermos principalmente aos historiadores gregos Heródoto e Tucídides, nos albores da historiografia. Leia Mais

Sociedades Asiáticas na Antiguidade / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2020

O estudo das sociedades asiáticas tem se mostrado um campo fértil e multifacetado. Foi o sinólogo Marcel Granet que apontou, em 1929, a impossibilidade de nos considerarmos especialistas em ciências humanas se nossos currículos continuassem a ignorar dois terços do mundo – ou seja, as civilizações de Ásia, África, Oceania e a América pré-colonial. De certa forma, essa ausência persiste na academia, com exceções pontuais. As iniciativas para estudar esse amplo e vasto “Oriente” tem surgido, com relativo constância, mas sem continuidade garantida. Arnold Toynbee (1986), André Gunder Frank (1998) e Jack Goody (2008) alertaram tacitamente a necessidade de reescrever a história mundial em novos parâmetros, redimensionando a perspectiva eurocentrada; Boaventura de Sousa Santos (2009) propôs, inclusive, que uma nova perspectiva epistemológica precisa desenvolver-se para dar conta de incluir e compreender as culturas americanas, asiáticas e africanas. Nesse sentido, as tentativas de explicar as civilizações orientais, a partir de um instrumental teórico tradicional, tem se mostrado pouco adequadas; e cumpre salientar que o desconhecimento sobre a antiguidade e durabilidade dessas tradições aumenta ainda mais essa lacuna, promovendo uma formação incompleta e restrita.

A iniciativa de formar um dossiê sobre as Sociedades Asiáticas na Antiguidade vem em resposta a essa premente necessidade, apontando caminhos para a pesquisa e para uma verdadeira e autêntica liberdade de pensar e conhecer. Nesse número, pretendemos promover um ponto de encontro entre os mais diferentes especialistas, abrangendo um amplo espaço geográfico e histórico que vai de Israel ao Japão. Nossa intenção é escapar ao Orientalismo, bem denunciado por Edward Said (1998), que homogeniza e estereotipa as culturas asiáticas. Buscamos apresentá-las em sua diversidade, originalidade e antiguidade, revelando aspectos culturais enriquecedores para nossa formação.

A necessidade de reescrever a história

A reescrita de uma história global depende, invariavelmente, do reconhecimento e inclusão das narrativas asiáticas na construção de uma nova cronologia histórica. Um currículo eurocentrado não mais se adéqua, nem se sustenta, diante das necessárias releituras que se impõe a partir de uma nova visão pluridiversa das fases históricas – na qual se destaca a disputa pela questão das origens e das hegemonias. Nesse sentido, a construção das histórias asiáticas (ou orientais), pela academia europeia, nasceu de um processo de exclusão e submissão. Como espaço de disputa genésica, no qual se impunha as visões coloniais e imperialistas do século 19, as civilizações de Ásia e África foram alocadas em segundo plano, servindo a uma hierarquização cultural imaginada, que punha o Ocidente Europeu no centro da estrutura histórica e na estruturação de sua periodização temporal e geográfica. As deformações históricas dessas culturas culminaram no fenômeno do Orientalismo, na já indicada acepção Saidiana. Foi nesse processo que Mesopotâmia, Israel e Egito foram construídos como antecessores préracionalizados da ascensão clássica e filosófica de Grécia e Roma, submetidos a um papel secundário. Em outra direção, Índia e China foram interpretadas como derivações migratórias e estagnadas de longa duração das antigas culturas mesopotâmicas, que persistiam em sobreviver na aurora no mundo contemporâneo (Lacouperie, 1880).

Uma visão diversa, multifacetada e integrada desse mundo antigo tem sido revelada gradualmente em duas frentes: o avanço paulatino das descobertas arqueológicas, que redimensionam nosso entendimento sobre as relações e sistemas materiais na antiguidade, e a construção de novas epistemologias, que agregam as contribuições dos sistemas de saberes não-ocidentais (Santos, 2009). No campo da cultura material, trabalhos basilares como de Amihai Mazar (2001), Finkelstein e Silberman em Israel (2003), Mortimer Wheeler (1968) na Índia ou Kwang Chang na China (1983), apenas para citarmos alguns poucos exemplos, revolucionaram a compreensão do passado dessas civilizações, revelando profundas assimetrias em relação à literatura. Por outro lado, os processos de independência afro-asiáticos, ao longo do século 20, renovaram os discursos de identidade e consciência histórica dos países descolonizados, e estabelecendo um ponto de partida para o resgate das culturas tradicionais (Chesneaux, 1977). Com base nesse renascença cultural, anunciada por Raymond Schwab (1950) e levada a cabo por vários intelectuais, as culturas afro-asiáticas buscaram retomar a posse de suas narrativas, redimensionado-as frente à história mundial. Martin Bernal (1987) mostrou a importância da cultura Egípcia para a formação do mundo grego, assim como Cheikh Anta Diop (1923-1986) reconectou a história dessa civilização com suas raízes africanas; Kavalam Panikkar (1977) e Romila Thapar (1978) ajudaram a renovar a escrita da história indiana e Bai Shouyi (1998) reescreveu a antiguidade chinesa a partir de uma interpretação original e diferenciada das teorias marxistas. Mais recentemente, Liu Xinru (2010), Raoul McLaughlin (2012), Peter Francopan (2019) Jared Diamond (2017) e Yuval Harari (2018) conseguiram incorporar algumas dessas novas leituras em uma narrativa histórica global bastante diferenciada daquela herdada do século 19.

Na dimensão curricular da História Antiga, começa-se gradualmente a contemplar outros espaços, tempos e civilizações, ampliando o escopo das relações culturais e materiais das civilizações ancestrais (Gebara, 2019). Necessário relembrar o esforço ingente de pesquisadores como Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) na área de Egito, Emanuel Bouzon (1933-2006) sobre Mesopotâmia e Ricardo Joppert (1979) na de China antiga, em trazer para o Brasil uma tradição de estudos orientais, produzindo materiais e formando quadros que pudessem superar nossa ausência notável na academia. O resgate das culturais orientais vem a reboque dessa mudança, que se estende há anos, e relevar a necessidade de estudá-las – tanto teoricamente quanto metodologicamente – representa um dos novos desafios epistêmicos para a área (Bueno, 2018). Cumpre salientar, pois, que a construção de um dossiê que expresse a diversidade das culturas não-europeias é saudada como uma iniciativa inovadora, que a revista Nearco abraçou nesse volume.

Apresentando as produções

Na definição das linhas gerais que norteariam a produção desse Dossiê, optou-se por delimitar, como critério fundamental, a avaliação e publicação de estudos que contemplassem culturas fora de um eixo eurocentrado. Por outro lado, a condição temporal de ‘antiguidade’, sincrônica (ou mesmo, anterior) aquela aplicada às culturas ocidentais, serviu de parâmetro para o estabelecimento de abordagens multitemporais e / ou paralelismos. Isso representa abarcar uma grande diversidade de civilizações, num espectro geográfico que vai do Oriente Próximo ao Extremo Oriente; contudo, nos permite apresentar uma série de ensaios especializados já em andamento, que desvelam as possibilidades de pesquisa para esse imenso campo.

Partindo de uma aproximação com os espaços geo-culturais, começamos a apresentação de nossos artigos voltados para o Próximo Oriente. A “antiguidade oriental”, classificação que abarca uma visão integrada da região do Levante e o do norte da África, foi adotada aqui para nortear os critérios de inclusão das pesquisas apresentadas. Em Formas de representação das candaces na cultura material em Kush (I AEC E I EC), de Fernanda Chamarelli, conheceremos mais sobre a presença do poder feminino na região de Kush, exercido pelas Candaces, senhoras ligadas às famílias dominantes locais, que redimensionam para nós as antigas relações de gênero e política. No domínio da história egípcia, Jorge Henrique Almeida nos traz, igualmente, uma contribuição fundamental sobre a obra de Cheikh Anta Diop, pensador africano crucial para uma nova compreensão da história do Egito enraizada nas tradições africanas, renovando tanto as narrativas sobre a egiptologia quanto da epistemologia da história, razão pela qual o ensaio se intitula O que aconteceu na história da ciência: a contribuição de Cheikh Anta Diop. Uma visão multifacetada do Egito resulta das diversas interpretações possíveis acerca dessa civilização, que vivenciou a colonização europeia de sua história.

Dentro do mesmo cenário, as civilizações da Mesopotâmia são examinadas por Priscilla Scoville e Simone Dupla. Essas duas destacadas pesquisadoras proporcionam leituras diferentes da ampla gama de temas que envolvem a história da região. Em Os Cassitas, Scoville apresenta e analisa a pouquíssimo estudada civilização dos cassitas, trazendo uma contribuição inovadora para nossa historiografia de antiguidade; já Simone Dupla, pesquisadora de larga experiência com questões de gênero e sexualidade na Mesopotâmia, nos traz um instigante texto sobre o papel do Sacerdócio feminino na Mesopotâmia, perscrutando as tradições religiosas da região.

Essa visão integrada do ‘antigo Oriente próximo’ nos leva igualmente a Israel, área de intensas disputas narrativas em razão de suas heranças religiosas, epicentro de revoluções no campo das crenças vivenciadas tanto por Ocidente com por Oriente. Janaína Zdebskyi, em seu texto As estrangeiras: registros sobre deusas e mulheres subversivas em excertos bíblicos nos traz uma reveladora pesquisa sobre o papel feminino nas tradições bíblicas, proporcionando uma leitura distinta e alternativa a uma epistemologia histórica androcentrada. Esse artigo dá continuidade a uma série de estudos empreendidos pela autora nesse sentido, consistindo em uma contribuição fundamental para um outro olhar sobre astradições da sociedade vetero-testamentária. Outro texto de escol é proporcionado por um dos maiores conhecedores da História de Israel antigo no Brasil, Josué Berlesi, que investiga a construção da ideia da divindade de Deus em “Javé é um”: apontamentos sobre o processo de construção do monoteísmo no antigo Israel.

No passo de um deslocamento geográfico gradual que agora realizamos, cumpre ainda assinalar a contribuição de Rodrigo Nascimento, Profetismo e Apocalíptica no Zand Ī Wahman Yasn, como uma das raras oportunidades que temos de entrar em contato com o mundo persa antigo, provida por um autor do seleto grupo de estudiosos de Pérsia em nosso país. A análise dessa importante peça da literatura Sassânida envolve conceitos religiosos que consideramos próprios do mundo Judaico-Cristão, mas que se revelam presentes em uma tradição religiosa distinta, com raízes igualmente ancestrais.

A Pérsia esteve intimamente conectada a Índia em função de um fundo cultural comum, derivado das migrações “indo-europeias” – termo de ampla abrangência para designar uma multidão de povos e movimentos migratórios que envolveria a Europa, as planícies do Irã e o norte da Índia. A construção da história indiana, porém, seria permeada por conflitos e hibridismos entre essas vagas de nômades e as populações autóctones que habitavam o subcontinente indiano, gerando sistemas religiosos e filosóficos próprios, que culminariam na formulação do Sanatana Dharma (ou, ‘Hinduísmo’) e de seus derivados, como o Jainismo e o Budismo. Esses sistemas constituiriam o alicerce formativo da civilização indiana, em que as concepções historiográficas tal como conhecemos foram substituídas por uma noção de manutenção das tradições, construindo uma experiência singular de história antropo-religiosa.

Dois textos se apresentam, aqui, promovendo uma releitura dessas tradições antigas da Índia nos dias de hoje. A renomada indóloga argentina Lia de La Vega, diretora da Associação Latino-americana de estudos afro-asiáticos (ALADAA) nos proporciona um instigante artigo, El budismo desde India hacia Sri Lanka: la donación (dana) y sus potencialidades comunitarias para el desarrollo, em que mostra as profundas conexões entre a espiritualidade budista e a construção de uma iniciativa para doação de olhos no Ceilão contemporâneo. Essa experiência revela como o projeto, de cunho médico e social, está permeado por uma discussão importante dos conceitos budistas fundamentais sobre a relação com o corpo. Em caminho similar, João Braatz, em “O Mahabharata”, de Peter Brook: reflexões sobre intermidialidade e “Orientalismo” em uma perspectiva pós-colonial, realiza uma análise da clássica epopeia indiana do Mahabharata e suas versões modernas no teatro e cinema, que trazem a luz um clássico da literatura mundial pouco conhecido no Brasil fora dos meios religiosos. Ambas as exposições de Vega e Braatz nos proporcionam um panorama fascinante da durabilidade das tradições indianas, suas mundivivências recentes e a compreensão de seus valores e ideias.

Em direção ao leste, chegamos agora na China, civilização cuja cultura desenvolveu-se relativamente afastada do eixo que conectava o Médio Oriente e a Índia. Temos a oportunidade, nesse Dossiê, de assinalar a presença de alguns destacados sinólogos de renome internacional, cujas pesquisas enriquecem ainda mais esse trabalho. O primeiro que gostaríamos de apresentar é Bony Schachter, pesquisador brasileiro que atualmente leciona sobre Daoísmo na China, integrando um seleto grupo de docentes estrangeiros habilitados e ensinar nesse país. Seu artigo, Esporte dos deuses: o ritual daoista visto sob uma perspectiva comparativa, nos revela como a antiga filosofia do Daoísmo, surgida em torno do século 6 AEC, transformou-se em um rico sistema religioso, cujas expressões contemporâneas encontram ramificações até mesmo no Brasil. sua preocupação é entender as transformações, os sentidos, significados e metodologias dessa religiosidade em franca expansão no mundo moderno.

O pensamento filosófico chinês antigo é contemplado em outro importante artigo, escrito pela sinóloga eslovena Jana Rosker. Ela é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores especialistas deste campo na atualidade, sendo inclusive presidente da Associação Europeia de Filosofia Chinesa, e possuindo dezenas de artigos e livros sobre os mais diversos temas. Para o nosso Dossiê, ela preparou Classical Chinese Philosophy and the Concept of Qi, um texto específico sobre o polissêmico conceito de Qi (energia, vapor, sopro vital, entre outros), imprescindível para o entendimento das teorias filosóficas e médicas chinesas.

No mesmo campo, A “Total War”? Rethinking Military Ideology in the Book of Lord Shang, do eminente pesquisador israelense Yuri Pines nos proporciona uma importante apresentação sobre a questão do pensamento militar na China antiga, presente no livro Shang Yang (ou, O livro do Lorde Shang), clássico da filosofia chinesa muito pouco conhecido no Brasil. Pines tem uma vasta e internacionalmente referenciada produção sobre a história chinesa, voltada principalmente para o período da reunificação chinesa, entre os séculos 4 e 3 AEC.

Como havíamos indicado no início desse texto, uma nova visão do mundo antigo prescinde uma investigação de caráter mais integrador e global. Krisztina Hoppál é uma das mais importantes arqueólogas e historiadoras húngaras em atividade, cujas pesquisas estão voltadas para a comprovação material das relações entre Ocidente e Oriente desde a antiguidade. No ensaio preparado para esse Dossiê, Materials of Eastern origin discovered in the former territory of the Roman Empire, with India and China in focus: examples of direct and indirect interactions from an archaeological perspective, ela examina um conjunto de evidências materiais de origem asiática encontradas nas fronteiras romanas, analisando suas rotas de trânsito e funções simbólicas.

Junto a esse seleto grupo de autores, apresento igualmente um contribuição, China: uma arte para dois mundos, no qual busca-se examinar e compreender o papel da escrita e da pintura e suas relações com as práticas religiosas de evocação durante o período Zhou (notadamente no período dos século 4-3 AEC). A escrita chinesa possui uma estrutura distinta dos sistemas alfabéticos, possuindo implicações especiais para a construção do pensamento simbólico e da racionalização das ideias.

Fechando essa apresentação, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório, de Larissa Reddit, investiga um tema praticamente inédito no Brasil, relacionado à cultura japonesa: as tumbas do período Kofun, cujo formato e sentido são objeto de ricas discussões acadêmicas. O trabalho de Reddit, Cultura material do Japão no período Kofun: um panorama introdutório é absolutamente inovador, não tendo paralelo em nosso país, e representa uma contribuição significativa para os estudos japoneses desenvolvidos aqui.

A riqueza desse Dossiê resulta da mundiviviência de abordagens possíveis, que mostram os inúmeros pontos de abertura para acessar as civilizações asiáticas. Como podemos notar, os presentes textos resgatam as narrativas dessas culturas, desapropriadas de sua voz, e colocadas em segundo plano, como Jack Goody apontou. Se no Brasil persiste uma atitude arrivista quanto às novas dimensões da escrita histórica, Dossiês como este tornam-se uma ponte indispensável para começar a caminhada em direção aos estudos orientais.

Referências

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CHESNEUAX, J. O retorno do passado tradicional nas jovens nações da Ásia e África. In: SANTIAGO, T. (org.) Descolonização. RJ: Francisco Alves, 1977.

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GEBARA, Uiran. ‘Outra história global é possível? Desocidentalizando a história da historiografia e a história antiga’ in Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 43, p. 473-485, set. / dez. 2019.

GOODY, Jack. O roubo da História: Como europeus se apropriaram das ideias e invenções do oriente. São Paulo: Contexto, 2008.

GRANET, Marcel. A Civilização Chinesa. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1979.

HARARI, Yuval. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2018.

JOPPERT, Ricardo. O alicerce cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979.

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MacLAUGHLIN, Raoul. Roma e o Oriente distante. São Paulo: Rosari, 2012.

MAZAR, Amihai. Arqueologia na Terra da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2001.

PANIKKAR, Kalavam. A dominação Ocidental na Ásia. RJ: Paz e terra, 1977.

SAID, Edward. Orientalismo: a invenção do Oriente pelo Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998.

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TOYNBEE, Arnold. Um estudo da História. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

WHEELER, Mortimer. Índia e Paquistão. Lisboa: Verbo, 1970.

André Bueno – Professor Adjunto de História Oriental da UERJ, organizador do presente Dossiê. Aproveitamos o ensejo para agradecer a direção e a comissão editorial do periódico Nearco por oportunizar a realização desse volume, que julgamos necessário e urgente no atual contexto de renovação historiográfica.


BUENO, André. Apresentação. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade. Rio de Janeiro, v.12, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Formas de governabilidade e dominação durante a Antiguidade e a Idade Média | Outras Fronteiras | 2019

A historiografia que emerge, especialmente na França, ainda que não somente no Hexágono, no período que medeia as duas grandes guerra do século passado se realizou uma crítica contundente a uma forma de escrita da história que denominava de événementielle e profundamente identificada com aquilo de François Simand qualificava de ídolo do político.

O sucesso, em particular, da proposta historiográfica formulada por Marc Bloch e Lucien Febvre e que foi continuada e aperfeiçoada por diversos e deferentes historiadores que de uma forma ou outra se vincularam o que ficou conhecida como “Escola dos Annales” lançou a história política num ostracismo senão absoluto, bastante profundo. Leia Mais

Antiguidade e Medievo / Fato & Versões / 2017

Neste número da Fato & Versões – Revista de História, os artigos foram articulados no dossiê Antiguidade e Medievo; acompanhando o perfil adotado pelo corpo editorial, as contribuições abarcam uma multiplicidade de enfoques e metodologias sobre esses períodos, privilegiando o aspecto interdisciplinar do saber histórico.

Iniciamos nosso dossiê com o artigo de Fabiano de Souza Coelho intitulado História, Religião e Ecumenismo: o Primado Petrino católico romano e as comunidades eclesiais ortodoxas, iluminados a partir de alguns documentos do Concílio Vaticano II. Suscita-se as vinculações entre a Igreja Católica Romana e as Otodoxas a partir do decreto Unitatis Redintegratio e o Primado do bispo de Roma nas intersecções entre o Ocidente e o Oriente cristão em busca de uma oficialidade, destacando também o decreto Orientalium Ecclesiarum. Nesse ínterim, é evidente as relações de poder inseridas, o que permeia de maneira semelhante o artigo de Carlos Eduardo Schmitt intitulado Valentiniano I e o início de uma nova dinastia, que trabalha o viés da antiguidade tardia, investigando o conhecimento do historiador Amiano Marcelino sobre a relação entre a corte imperial e o Senado no início dessa nova dinastia do Império Romano.

Evidenciando o período medieval, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira apresenta o artigo A cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no século XII: reflexões sobre o Priorado de D. Teotônio, que busca compreender os eventos que cercaram o processo de fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na primeira metade do século XII, bem como o exercício do primeiro priorado por D. Teotônio. Novamente aponta-se as relações de interesses políticos e religiosos dentro do debate e permeando os textos.

Retornando à antiguidade, Luis Filipe Bantim de Assumpção em seu artigo Revisitando os valores sociais espartanos no discurso de Xenofonte concentra-se na análise sociopolítica espartana de Xenofonte a partir da Constituição dos Lacedemônios, situando seu lugar social no século IV a. C. e a maneira como fomenta elogios à Esparta diante das avaliações críticas sobre posicionamentos da democracia ateniense. Relações territoriais e de perspectivas políticas podem, assim, ser ressaltadas, o que, de maneira semelhante é possível destacar nos demais trabalhos apresentados.

Alexandre Cozer propõe um debate de aprofundamento dos quesitos morais na sexualidade romana da antiguidade pelo viés do riso e da comicidade a partir do texto Nolite omnia quae loquor putare: apontamentos sobre a leitura e o humor na Priapeia Romana, levando em consideração a teoria da estética da recepção de Hans Jauss em suas análises. Finalizando esta edição, Gabriel Freitas Reis resenha o livro Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano no Ocidente de Pedro Paulo Funari, discussão que finaliza a proposta do dossiê.

Boa leitura a todos!

Dolores Puga


PUGA, Dolores. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.9, n.18, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e formas de resistências na Antiguidade / Hélade / 2017

Golpes de estado: a perspectiva da história e a história em perspectiva

No famoso lógos epitáphios de Péricles, entusiasticamente codificado por Tucídides, há um amálgama de elogio aos mortos e celebração da democracia. Na verdade, uma relação de intensa solidariedade ampara essa dupla disposição: nos discursos que fez a respeito de si, a pólis dos atenienses justificava reconhecer o valor dos mortos por ser democrática, e só era democrática por ter cidadãos tão valorosos como aqueles que primeiro tombaram na Guerra do Peloponeso. Em certo sentido, vigorava a certeza de que a cidade deveria ser objeto do cuidado coletivo. Foi para expressar esse cuidado que, no inverno de 431 a.C., Péricles foi convidado a falar e avançou em direção a uma plataforma alta, assim construída para que a multidão pudesse ouvi-lo. Dentre outras coisas, afirmou:

Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos, mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais” (TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, II, 37).

Afora a miríade de possíveis distinções entre a democracia ateniense e as democracias modernas, há algo de fundamental – posto que fundante – que precisa ser observado com rigor: se o que caracteriza os governos democráticos é o caráter coletivo das decisões, o respeito à soberania das decisões coletivas deve ser assegurado de modo intransigente. Fora isso, qualquer ruptura, quando conduzida por um pequeno grupo à revelia da maioria, denuncia uma forma de traição ao princípio vigente. A esse movimento de ruptura, instaurado de forma violenta ou não, por grupos que já detém parte do poder e que dele se utilizam para ampliá-lo, dá-se comumente o nome de Golpe.

A ideia de golpe passou a ser amplamente discutida no Brasil, dentro das muralhas das universidades e fora delas, a partir dos primeiros movimentos que conduziram à deposição de Dilma Rousseff. A presidenta, reeleita em 2014 pelo Partido dos Trabalhadores, foi afastada de seu cargo em 12 de maio de 2016 devido à instauração de um processo de impeachment. Seu mandato foi definitivamente cassado em 31 de agosto de 2016. A justificativa jurídicopolítica para o processo foram as chamadas “pedaladas fiscais”. Diversas dúvidas, contudo, sobrepairam o processo por improbidade administrativa, inclusive em função de uma perícia realizada pelo Senado Federal e entregue à comissão do impeachment em 27 de junho de 2016, posto que o documento isentava a então presidenta afastada de participação nas “pedaladas fiscais”.

Mas não apenas as dúvidas acerca das questões fiscais entram na equação. A despeito das possíveis divergências técnicas que estariam na base do processo, as flagrantes questões políticas envolvidas no impeachment reforçaram em muitos a convicção de que vivemos um golpe de Estado. As tensões estavam há tempos colocadas, mas o estopim do fato político foi claramente motivado pela forma com que o partido de Dilma Rousseff se posicionou a respeito da investigação, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, em um processo por quebra de decoro parlamentar movido contra Eduardo Cunha (PMDB), então presidente da Câmara. Essa história foi corroborada pelo atual presidente em exercício, Michel Temer, em entrevista à TV Bandeirantes em maio deste ano: segundo ele, “se o PT tivesse votado nele naquela comissão de ética, é muito provável que a senhora presidente continuasse”.

Mas se o processo foi alavancado por Eduardo Cunha, a participação ativa do então vice-presidente e de seu partido reforça a hipótese de golpe. Em dezembro de 2015, torna-se pública uma missiva que Michel Temer teria enviado à presidenta Dilma Rousseff fazendo críticas à forma com que era supostamente deslocado das decisões do governo, autoproclamando-se “vice decorativo”. Adiante, também veio a público, na tarde de 11 de abril de 2016, um áudio em que o presidente ensaiava um discurso de posse. Temer alegou que, assim como a carta, se tratava de uma questão privada que se tornou conhecida a despeito de sua vontade; outrossim, e apesar da veracidade ou não dessa afirmação, o conteúdo é bastante sugestivo e indica o desejo do então vice-presidente de ver-se como chefe do Executivo. Esse princípio de publicidade acidental não se aplica, contudo, ao projeto Uma Ponte para o Futuro [2], lançado pelo partido do então vice-presidente da República em 29 de outubro de 2015. Após fazer um diagnóstico da crise econômica e uma série de críticas à condução de um governo do qual faziam parte de modo formal e efetivo, o programa do PMDB convida a nação [sic] para participar desse projeto formulado no interior do partido e que não contava com o aval das urnas:

Faremos esse programa em nome da paz, da harmonia e da esperança, que ainda resta entre nós. Obedecendo as instituições do Estado democrático, seguindo estritamente as leis e resguardando a ordem, sem a qual o progresso é impossível. O país precisa de todos os brasileiros. Nossa promessa é reconstituir um estado moderno, próspero, democrático e justo. Convidamos a nação a integrar-se a esse sonho de unidade (UMA PONTE PARA O FUTURO, 2015, p. 19)

Poderíamos também recordar a sessão deliberativa da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, onde os parlamentares presentes se dirigiam ao microfone para declarar o voto favorável ou contrário ao impeachment. Presidida pelo próprio Eduardo Cunha, que já era réu em um processo que veio a culminar com sua prisão, as declarações de voto raramente colocavam em questão o mérito do processo.

A todas essas questões, poderiam ser adidas outras tantas que, desde então, vem tornando a ideia de golpe francamente presente em nosso cotidiano político, além de despertar o interesse intelectual de muitos que investigam esse e outros processos de ruptura, de tentativa de ruptura e de formas de resistência a ações que parecem contradizer, em prol dos interesses de poucos, o poder decisório da maioria. Os debates sobre a deposição de Dilma Rousseff continuarão por longos anos e serão objeto de acurada investigação por parte da historiografia. Em alguma medida, a historiografia não apenas tornará esses fatos objeto de rigorosa análise, mas também buscará entender esse momento sui generis da História do Brasil, seus efeitos já visíveis e tudo aquilo que ainda iremos experimentar ao longo dos anos. Vivemos uma inconteste crise política que revela o quanto a democracia é frágil e exige nossa atenta observação.

É precisamente por isso que a Hélade publica nessa edição o dossiê Golpes e formas de resistência na Antiguidade. Os artigos dialogam com o tema e mostram o quanto a experiência dos povos antigos é um locus importante não apenas para a reflexão a respeito de nossos conflitos contemporâneos, mas também como espaço em que podemos contrapor experiências e identificar questões que nos escapam na ausência de medidas de comparação. A quantidade significativa de artigos submetidos, encaminhados e aprovados pelos pareceristas ad hoc sinalizam o quanto os historiadores da Antiguidade estão sensíveis ao problema e mobilizados para torná-lo, no marco de nosso livre exercício de reflexão, uma questão a ser analisada por força das demandas do presente da vida social.

Notas

2. Disponível em http: / / pmdb.org.br / wp-content / uploads / 2015 / 10 / RELEASE-TEMER_A4- 28.10.15-Online.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2017.

Alexandre Santos de Morae– Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Homoerotismo na Antiguidade / Hélade / 2016

O Grupo Gay da Bahia3 é uma conhecida entidade que, dentre outras coisas, elabora estatísticas acerca da violência motivada por homofobia e violações dos direitos humanos dos LGBTs no Brasil. Os números que divulgam são alarmantes. Em 2015, 318 homossexuais foram assassinados no país, taxa que indica uma queda desprezível quando comparada ao ano anterior, posto que em 2014 foram anotadas 326 mortes. Imagina-se, com algum grau de certeza, que esses números são tímidos diante da realidade. Em primeiro lugar, porque os cálculos dependem das notícias vinculadas pela imprensa, que não torna notícia a totalidade dos homicídios; em segundo lugar, pela dificuldade de reconhecer com precisão a influência da homofobia na irrupção de determinado assassinato. Ao fim e ao cabo, se os dados são alarmantes, temos razões para crer que a situação é bem mais hostil.

Avanços graduais foram conquistados nas últimas décadas. Há quase 27 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirava a homossexualidade do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A resolução nº 001 / 99 de 22 de março de 1999, publicada pelo Conselho Federal de Psicologia4, seguindo as diretrizes que se consolidavam definitivamente no cenário internacional, considerou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e determinou que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em linhas gerais, graças aos esforços de muitos agentes envolvidos no debate, a livre vivência da sexualidade se tornou um importante topos de luta política em torno das garantias fundamentais dos indivíduos e seu desrespeito passou a ser considerado uma afronta aos direitos humanos.

Obviamente, as camadas mais conservadoras persistem oferecendo resistência a esses avanços. A força impositiva de um discurso tradicional, a heteronormatividade compulsória que caracteriza a educação e a socialização dos sujeitos, a ignorância ou mesmo o caráter duvidoso fazem com que muitos indivíduos – alguns deles com ampla visibilidade nos círculos midiáticos – persistam disseminando discursos de ódio e relativizando tais formas de violência. Partindo da presunção apocalíptica de que o respeito às liberdades individuais pode caracterizar uma ameaça às relações heterossexuais, esses grupos naturalizam o conceito de família, lançam a suposição sem lastro científico de um estado de inalterabilidade das relações afetivas e buscam associar a um discurso naturalizante as relações entre homens e mulheres, ignorando todas as inúmeras possibilidades existentes e que, não raro, eles próprios procuram reprimir. Ainda que discorrendo sobre a divisão binária dos sexos, Pierre Bourdieu percebeu em La domination masculine (1998) um dispositivo que vemos ser utilizado com substrato para a defesa intransigente da heternormatividade e consequente regulação das liberdades individuais, qual seja, uma espécie de “naturalização de disposições” através de discursos que presumem um tipo de ordem do mundo como fundamento primeiro para sua ação reativa. De acordo com o sociólogo, “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2007, p. 17).

A natureza é levada, nesse ponto, ao encontro da conveniência. A constatação é tão óbvia quanto necessária, afinal, a mesma natureza que foi enfrentada quando se colocou diante de nossas necessidades ao longo de toda a história humana, é a mesma que é evocada como argumento para restringir as afetividades e desejos que contrariam as expectativas de quem julga que o “natural” é a medida primeira para todas as coisas.

Desnaturalizar as relações sociais é, talvez, uma das necessidades mais prementes das Ciências Humanas como um todo, e da historiografia em particular. Através de argumentos sólidos, de evidências bem coligidas, de análises metodologicamente rigorosas e com refinamento teórico, somos capazes de substituir a perspectiva de uma “ordem do mundo” pelas várias ordens que nossos vários mundos vivem e viveram. Isso não significa, obviamente, ignorar a longa duração, as permanências e recorrências que caracterizam diversos momentos e processos históricos, mas indicar com precisão que o “nem sempre foi assim” enseja sempre um horizonte de mudança que nos liberta do jugo do status quo. Se algo foi diferente, em algum tempo e / ou espaço, é possível recuperar a lógica de que nada é inalterável e permanente. Inclusive nossas consciências. Inclusive nossos preconceitos.

Essa é uma das questões que sobrepairam os três volumes do célebre Histoire de la Sexualité (1976; 1984), de Michel Foucault. É precisamente pela via histórica (criticada por muitos, mas reconhecida em seus méritos por outros tantos) que o filósofo francês irá se aventurar para sustentar a hipótese de que a sexualidade – essa palavra que surgirá apenas no novecentos, ainda que seu referente não seja exatamente novecentista – não é unívoca em suas práticas e representações, nos discursos sobre suas peculiaridades, nos esforços de silenciamento e ocultação e nas manifestações de poder de um pudor vitoriano que por séculos buscou seu controle e / ou repressão. Assim Foucault sintetizou o projeto que se tornou um dos principais marcos nos estudos acerca da temática:

“Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2010, p. 12)

Sua leitura acerca da Antiguidade é um convite para que revisitemos um período histórico em que as visões e formas de experimentar a sexualidade, em geral, e o homoerotismo, em particular, confrontam o imperativo da naturalização que os discursos conservadores buscam impor para cercear direitos. Escusado lembrar que esse retorno não pretende recuperar um passado livre de todas as formas de controle dos corpos e dos afetos, onde as experiências individuais estavam livres de opressões diversas que interditassem os sujeitos da rígida observância de seus costumes e usos dos prazeres. No entanto, é preciso reconhecer a existência de diferentes formas de expressão do homoerotismo para que sejamos capazes de perceber, entre outras coisas, os limites e paradigmas acerca do comportamento sexual nas sociedades antigas e a forma com que foram representados na documentação a que temos acesso, permitindo assim colocar as sociedades pregressas e atuais em perspectiva através de suas similitudes e, principalmente, através das diferenças.

Os autores que contribuíram com esse dossiê recuperam esse debate e vão além, oferecendo assim uma valiosa contribuição para os Estudos Clássicos no Brasil. Abordar o tema do homoerotismo na Antiguidade Clássica – uma temática cujas análises e investigações cresceram exponencialmente nas últimas décadas – representa um esforço de posicionamento político que reforça a necessidade de persistirmos na busca de ampliação de direitos, de recrudescermos o acesso à cidadania e de combatermos, de forma intransigente, toda e qualquer forma de preconceito. A Hélade reforça, assim, seu compromisso de convidar as sociedades antigas a dialogar com os dilemas e conflitos na vida em sociedade.

Notas

3. Diversas informações podem ser consultadas na página da entidade: http: / / www.ggb.org.br /

4. Disponível em: http: / / site.cfp.org.br / wp-content / uploads / 1999 / 03 / resolucao1999_1.pdf. Acesso em 16 / 01 / 2017.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representação e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ). E-mail: asmoraes@gmail.com

Anderson Martins Esteves – Doutor em Letras Clássicas, professor do Programa de Pós- -Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (ATRIVM-UFRJ). E-mail: andersonmartins@letras.ufrj.br


MORAES, Alexandre Santos de; ESTEVES, Anderson Martins. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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A Antiguidade, o Tempo, Nós e a História / Cantareira / 2015

“(…) a própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda” [2].

Ao escrever essa frase, Marc Bloch construía uma crítica à História tal como era escrita por Langlois e Seignobos, como uma sucessão de fatos ocorridos em tempos antanhos, a famosa histoire événementielle, focada nos grandes eventos e grandes figuras. Bloch concebe a História como a “ciência dos homens no tempo”, enfatizando o “continuum”, a “perpétua mudança”. Quando se debruçam sobre a Antiguidade, tema do presente dossiê, os historiadores buscam justamente o que há de continuidade e o que há de “perpétua mudança” no andejar dos homens nas estradas do tempo. E desse caminhar chegaram até nós as marcas fragmentárias de suas pegadas, suas representações: vestígios materiais de sua cultura ou, como diz Denise Jodelet, conhecimentos partilhados socialmente, que construíam uma noção de realidade comum para uma comunidade [3]. Nesse sentido, a própria História nasceu como representação [4]: Heródoto elabora seu relato sobre as Guerras Greco-Pérsicas a partir do que ouviu, ou seja, das ideias e noções sobre esse fenômeno que circulavam entre os gregos. Ao tornar público o resultado de sua pesquisa -eis o sentido da palavra iστορία na época- o primeiro historiador também criou uma visão da realidade. As representações construídas por Heródoto nos mostram o continuum de que Marc Bloch fala: as tensões entre Oriente e Ocidente, por exemplo, mais que nunca presentes na imprensa do século XXI.

Por falarmos em mídias, os antigos nunca realmente “saem de moda”. Vemos sua presença nos livros para jovens adultos como “Jogos Vorazes”, “Harry Potter”, “Percy Jackson”. Em filmes como “A Múmia”, “Tróia”, “Hércules” (em suas variadas versões) e “Fúria de Titãs”. Nas histórias em quadrinhos com “Asterix”. A série “Roma” foi um sucesso de crítica; em 2014 a vida do faraó Tutankamon foi romantizada na televisão em “O Rei Tut”, exibida neste ano no canal a cabo History Channel. O teatro grego, que exercia verdadeira função educacional na Grécia Antiga, não perdeu seu caráter catártico mesmo hoje: “Ajax”, de Sófocles, é encenada, em 2015, para que veteranos da Guerra do Iraque possam confrontar seus traumas e fantasmas [5]. Spike Lee se inspirou em Lisístrata, de Aristófanes, ao criar o enredo de seu filme “Chi-raq”, no qual perscruta as tensões existentes na Chicago contemporânea. Na época de seu lançamento, o filme “300”, de Zack Snyder, foi objeto de debate de vários classicistas: as relações entre espartanos e persas na película retratavam as hostilidades atuais entre Ocidente e Oriente. Os quadrinhos que o originaram se inspiraram, por sua vez, em outro filme: “300 de Esparta”, de 1962, cujos tons mostravam que a beligerância encenada pelos atores estava mais conectada à Guerra Fria que ao século VI a.C. A Antiguidade, tal como o teatro clássico fazia para os gregos, nos oferece um “espelho” pelo qual podemos enxergar a nós mesmos, contemporâneos, como o Outro. Ela nos obsequia o exercício da alteridade indispensável para compreendermos nosso próprio cotidiano e nossa identidade. Em outras palavras: os antigos ainda são estudados, representados e estão “na moda” porque são bons meios, diríamos, para a construção do pensamento crítico sobre nós, pessoas vivendo em 2015. Não apenas continuamos analisando as representações que eles nos legaram, mas construímos nossas próprias visões do que seria o mundo deles em filmes, séries, livros e etc. Atualmente, os estudos sobre as recepções da Antiguidade estão em expansão no mundo anglófono. Talvez a mesma atenção deva ser dada pelos pesquisadores brasileiros acerca das visões sobre a Antiguidade e como elas, de fato, se referem ao próprio contexto histórico em que são concebidas. Para citar mais um exemplo cinematográfico, o filme “Deuses do Egito”, dirigido por Alex Proyas, será lançado em 2016, mas já está sendo objeto de discussão. A maioria dos atores retratando as divindades egípcias são brancos e europeus, o que não condiz com as representações legadas pelos próprios antigos. Tal fato, claramente, diz muito mais sobre nossa própria sociedade e a falta de diversidade étnica na mídia contemporânea que sobre as crenças engendradas no Antigo Oriente Próximo há mais de 3.000 anos atrás.

Em tempos de discussão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), cuja proposta retira do Ensino Médio os conteúdos de História Antiga e Medieval, cabe aos historiadores exporem suas pesquisas e demonstrarem como seus objetos dialogam com o seu tempo e sua sociedade. Também na “Apologia da História” Bloch cita o ditado árabe Sociais. “os homens parecem mais com seu tempo que com seus pais” [6]: os temas que interessam os historiadores da Antiguidade são os mesmos que inquietam aqueles que pesquisam temporalidades mais recentes, como podemos perceber pela leitura dos artigos que compõem nosso dossiê. Se historiadores devem ser como ogros, farejemos, pois, a carne humana!

Os primeiros artigos do dossiê tratam da História das Mulheres na Grécia Antiga. Talita Nunes Silva é a autora do texto “A mulher grega como ‘sacrificadora’: ‘transgressão’?”, no qual faz um apanhado das visões acerca da transgressão apresentadas por pensadores do Direito, da Psicanálise e das Ciências Sociais para discutir o uso desse conceito na atuação religiosa feminina através da personagem Clitmnestra tal como construída na trilogia Oréstia, de Ésquilo e também para pensar a possibilidade das mulheres terem agido como sacrificadoras nos ritos religiosos gregos. O artigo de Juliana Magalhães dos Santos, “Eros e a prostituição feminina ateniense no V Século a.C: aproximações e representações”, também reflete sobre a religiosidade helênica ao tratar o banquete (symposion) como ritual de cidadania e amizade. Eros é apresentado como potência geradora e elemento de união e equilíbrio social, necessário para a manutenção dos laços entre os cidadãos. A presença de prostitutas (hetairai) na celebração marca a heterotopia da casa ateniense como espaço religioso e espaço festivo. O âmbito privado tornava-se, no symposion, microcosmo do amor e da amizade que deveriam, segundo Platão em O Banquete, unir a cidade. “Entre ideologia e representação: novos olhares sobre as mulheres atenienses”, por sua vez, trata das divergências entre as representações na cerâmica ateniense e o conteúdo do discurso filosófico e político no que tange à visão sobre as mulheres dessa pólis. Dayanne Dockhorn Seger, a autora, ressalta que os registros literários procuravam evidenciar a reclusão feminina. Contudo, as representações na cerâmica ática mostram que as mulheres gozavam de mais liberdade que as fontes escritas e a historiografia tradicional nos fazem crer.

Luis Henrique Bonifácio Cordeiro e José Maria Gomes de Souza Neto elaboram em “Vingança e arrependimento como parte da concepção do ser trágico do período clássico ateniense na Electra de Eurípides” uma visão sobre o ser trágico ateniense a partir da análise das personagens da peça do título. Os autores defendem que as personagens trágicas estão em situações marcadas pela contradição e pelo questionamento. A tragédia coloca em cena o desequilíbrio da ordem cósmica (social, econômica, política e religiosa) e as personagens euridipianas em Electra apresentam em si relações dialéticas como destino / escolha pessoal, vingança / arrependimento, entre outras.

“Os gregos, os romanos e os celtas: contatos entre culturas e a representação do gaulês no De Bello Gallico de Júlio César”, cuja autoria é de Priscilla Adriane Ferreira de Almeida, aborda como os gauleses foram figurados na literatura greco-romana, buscando focar-se na representação dos gauleses construída na obra do estadista romano. Em De Bello Gallico, Júlio César trata de diferentes níveis civilizacionais dos bárbaros, ao que ele denomina de ferocitas. As condições climáticas do habitat gaulês faziam desse povo inferior aos romanos e, por estarem nas bordas do mundo, sua selvageria era perigosa à ordem representada por Roma. Apesar de serem fortes e corajosos, era preciso dominálos. Litiane Guimarães Mosca traz em seu texto “A construção da imagem de Otávio César Augusto como propaganda política: uma análise das Res Gestae Divi Augusti (séc. I d. C.)” uma discussão dos elementos presentes no Res Gestae que enaltecem a figura de Augusto e que permitem que identifiquemos esse documento como propaganda política. O artigo defende que o imperador utilizou as placas de bronze póstumas a fim de legar para a posteridade uma imagem positiva do governo e de si próprio. Assim, não apenas teria seus feitos reconhecidos, mas a legitimidade do poder de Tibério, seu sucessor, seria atestada.

Nelson de Paiva Bondiolli disserta em “Doados aos Humanos como um Segundo Sol: Uma abordagem póscolonial à História Natural de Plínio, O Velho” acerca das fronteiras e identidades do Império Romano durante o Principado, defendendo que a presença de estereótipos na obra de Plínio, o Velho, permite-nos perceber a construção da identidade romana em oposição ao “Outro”, qual seja, os povos que não comungam da cultura de Roma. As conquistas militares do Império solidificam a identidade romana, enquanto o Outro, bárbaro, é desumanizado. Ser romano, na História Natural é, assim, sinônimo de civilização. “Um estudo da recepção do epicurismo pela elite romana do século I AEC: alguns problemas e revisão crítica”, de Maria de Nazareth Eichler Sant’ Angelo, argumenta que a pesquisa sobre a recepção do epicurismo pela elite romana no primeiro século de nossa era é prejudicada pelo fato dos especialistas não perceberem essa corrente filosófica como parte da identidade da elite romana. Sant´Angelo afirma que os círculos literários romanos eram campos férteis para a circulação das ideias epicuristas, especialmente os banquetes aristocráticos. A prática da filosofia helenística não negava a religiosidade, aberta a influências estrangeiras. “Fontes e representações políticas sobre o polêmico imperador Nero”, de Ygor Klain Belchior, traz um diálogo entre as modernas interpretações historiográficas acerca do imperador romano e suas representações nas fontes clássicas. Enquanto a obra de Suetônio traça uma imagem ambígua sobre Nero, primeiro como um bom governante e depois como um sanguinário, Tácito descreve-o como um político “fantoche”, manipulado por sua mãe Agripina, por Sêneca e Burrus e, posteriormente, por Tigelino. O autor ressalta que as visões negativas sobre Nero que chegaram até nós são consequências das disputas pelo poder em Roma, especialmente após a ascensão da dinastia dos Flávios.

Sobre a religiosidade monoteísta na Antiguidade temos os textos de Vítor Luiz Silva de Almeida e Mariana de Matos Ponte Raimundo. Do primeiro autor é ““Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel”: A memória anti-samaritana na literatura neotestamentária”, artigo que perscruta os evangelhos bíblicos a fim de entender a representação negativa dos samaritanos neles contida. Narrativas como a parábola do bom samaritano e o conto dos dez leprosos salientam que não se esperava um comportamento moral ou de amor ao próximo por parte dos habitantes da Samaria. Longe de exaltar as virtudes dos samaritanos, essas historietas mostram as más ações dos judeus uns com os outros. Almeida aponta que os relatos do Novo Testamento, nesse sentido, apontam para divergências religiosas entre samaritanos e judeus, mostrando ainda uma visão de superioridade desse último grupo. Já “A consolidação da identidade cristã no século IV”, da segunda autora, tem como tese a ser defendida a ideia que a construção de uma identidade associada ao cristianismo foi resultado de interações e embates com outros grupos, como pagãos e judeus. As tensões dentro da própria comunidade cristã são ressaltadas, mostrando que a identidade surgida não significou ausência de contradições internas. Todavia, as tentativas de conciliação entre os diversos cristianismos existentes e a reorganização de elementos da cultura romana permitiram que a religião se consolidasse.

Finalizando os artigos do dossiê temos “Os inimigos dos romanos sob o imperium de Graciano no tratado De fide de Ambrósio, bispo de Milão (séc. IV d.C.)”, de Janira Feliciano Pohlmann, no qual desenvolve-se uma discussão sobre as maiores ameaças ao Império Romano e à cristandade no entender de Ambrósio, quais sejam: os bárbaros e os hereges, especialmente os arianos. Em seu relato, o religioso retrata o imperador Graciano como um governante escolhido por Deus, responsável pela guarda do povo cristão.

A resenha de Mateus Mello de Araújo Silva sobre o recém-lançado livro de Emma Bridges contribui para a divulgação de trabalhos bem recentes sobre as interações entre gregos e persas. De fato, os helenistas de língua inglesa nos últimos anos têm se dedicado à pesquisa dos governos autocráticos, especialmente das monarquias helenísticas e persas, renovando os estudos sobre Cultura Política na Antiguidade.

A entrevista realizada com Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF) ressalta que o olhar do historiador, seja qual for a temporalidade que ele pesquisa, está sempre guiado por questões do seu próprio cotidiano. Segundo ele, suas vivências e sua identidade carioca influenciaram sobremaneira as temáticas de seus trabalhos sobre a Grécia Antiga. Questionado sobre as implicações da BNCC nos rumos da História Antiga no Brasil, o professor deixou claro que, em seu entender, as propostas não prejudicariam apenas o estudo desse eixo temporal, mas a própria ideia de que a História se trata de análises sobre as experiências humanas.

Na seção de artigos livres as temáticas são variadas, tratando desde o Medievo inglês ao Brasil contemporâneo. Os autores são de diferentes áreas das Ciências Humanas, mostrando a importância da Revista Cantareira como um periódico discente que agrega diversos pontos de vista teóricos e metodológicos.

Aos pareceristas que contribuíram com este número enfatizamos o nosso agradecimento. E a você desejamos uma leitura prazenteira!

Notas

  1. BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.52-53.
  2. JODELET, D. “Representações Sociais: um domínio em expansão” In: JODELET, D. (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p.22.
  3. Ideia defendida por François Hartog. Ver: HARTOG, F. O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a Representação do Outro. Belo Horizonte: Editor UFMG, 2014, p.336-393.
  4. CLARK, Nick. “Harry Potter star Jason Isaacs joins ‘extraordinary’ project using Ancient Greek plays to help veterans”, 2015. Disponível em: . Acesso em 8 dez 2015.
  5. BLOCH, op.cit., p.60.

Mariana Figueiredo Virgolino – outoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do NEREIDA / UFF. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 22, jan-jul, 2015. Acessar publicação original [DR]

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A Escrita da História na antiguidade / Revista de Teoria da História / 2015

Quando os curricula, ementas e bibliografias sugeridos sobre a temática da história da historiografia são analisados alguns poucos nomes de autores antigos aparecem. Geralmente, há breves referências a Heródoto, Tucídides e Políbio e daí parte-se para Agostinho, quando muito Eusébio. O próximo nome a aparecer na lista daqueles que deram alguma contribuição para a escrita da história já é o de Giambattista Vico (1668-1744). Da mesma forma, uma rápida consulta aos planos de ensino das disciplinas que abordam a temática nas universidades brasileiras é suficiente para que se tenha a sensação de que pouca coisa aconteceu antes de Leopold von Ranke (1790-1880). Séculos e séculos de historiografia são, por vezes, reduzidos à idéias como “historia magistra vitae”, de que “os gregos viam o tempo de maneira cíclica”, ou que “na Idade Média se escrevia uma história eclesiástica”. Para Jonh Marincola, isto ocorre porque muitos avaliam a historiografia Antiga com os parâmetros e abordagens dos historiadores do século XIX i. Um outro motivo pode ser acrescentado, mais relacionado à especificidade do contexto brasileiro. Trata-se do fato de que a quase totalidade dos professores que lecionam as disciplinas teóricas dos cursos de história de nossas graduações, nas quais a história da historiografia costuma ser abordada, é composta por especialistas em temáticas contemporâneas ou História do Brasil. Leia Mais

Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo / História e Cultura / 2013

A revista História e Cultura, atenta às pesquisas e ao debate acadêmico desenvolvido na História e em áreas afins, traz neste número especial um dossiê voltado ao estudo da Antiguidade e do Medievo.

As pesquisas acerca da Antiguidade e do Medievo vêm ganhando destaque crescente entre a pluralidade de temáticas de estudos no Brasil e no exterior. Dessa forma, essas investigações congregaram problemáticas, metodologias, discussões historiográficas e estudos de caso ímpares que demonstram as especificidades dessas áreas de pesquisa. Respeitando essas características, o dossiê se apresenta como um espaço de reflexão dos temas que abordam o recorte cronológico das denominadas Antiguidade e Medievalidade.

O tema “Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo” determina o fio condutor da abordagem dos trabalhos de pesquisa contemplados neste dossiê. Além de artigos que abordam a temática elencada para este número, contamos com a contribuição de entrevistas e resenha de livro, analisadas pela comissão de pareceristas conforme sua relevância historiográfica e sua pertinência acadêmica.

Nossos objetivos não são somente possibilitar, mais uma vez, o debate intelectual acerca do tema, mas também fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no campo da antiguidade e medievalidade no Brasil e no exterior. Dessa forma, organizamos este dossiê em três partes: Entrevistas, Artigos e Resenha.

As duas Entrevistas que abrem o dossiê abordam, cada uma, os dois campos de pesquisa atendidos. A primeira foi direcionada ao Dr. Adolfo D. Roitman, diretor e curador do Santuário do Livro, uma ala do Museu Nacional de Israel, em Jerusalém. O entrevistador, o doutorando Fernando Mattiolli Vieira, nos traz notícias do trabalho desenvolvido pelo Dr. Roitman, bem como do local onde estão armazenados alguns dos manuscritos do mar Morto encontrados nas cavernas da região de Qumran. Outros dois entrevistadores, Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho e o doutorando Germano M. F. Esteves, por meio da entrevista com a Profª Drª Eleonora Del’Elicine, nos informam sobre os estudos acerca do Medievo na Argentina. Especialista sobre a Hispânia Visigoda, a Drª Del’Elicine nos mantém informados sobre as pesquisas medievais na Argentina e na Universidad de Buenos Aires, onde leciona.

Os trinta e um textos que compõem o dossiê estão organizados cronologicamente abordando uma pluralidade de discussões historiográficas sobre as denominadas, a saber: Antiguidade Clássica, Antiguidade Tardia e / ou Primeira Idade-Média, Alta Idade Média, Central e Baixa Idade Média, além da passagem do Medievo para o que entendemos historiograficamente como Idade Moderna.

Passível de percepção, os textos aqui selecionados e apresentados compreendem a perspectiva de diferentes olhares sobre as chamadas histórias Antiga e Medieval, na medida em que concentram intelectuais de diversas tendências acadêmicas em uma mesma obra, incluindo professores e alunos de pós-graduação de universidades brasileiras e estrangeiras. Nossa intenção foi exatamente essa: a de apresentar diferentes olhares, rótulos, percepções e entendimentos de História, mais especificamente no campo da Antiguidade e do Medievo.

De acordo com nossa proposta, informamos de uma forma breve os trabalhos que compreendem o presente dossiê: oito Professores Doutores locados em universidades públicas do país; quatorze doutorandos em História, dos quais onze pertencem a instituições nacionais e dois a programas de pós-graduação do exterior; dois mestres e sete mestrandos em História. Além de apresentar artigos de autores da instituição, ou seja, do Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Campus de Franca; o terceiro número (especial) do segundo volume da revista História e Cultura apresenta, igualmente, pesquisas de dezoito instituições de ensino superior, a saber: Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB); Programa Cultures en Contacte a la Mediterrània do Departament de Ciències de l’Antiguitat i de l’Edat Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB); Programa de Pós-Graduação em História Medieval da School of History – University of Leeds, Reino Unido; Universidade de São Paulo (USP); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual Paulista (UNESP – Assis); Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Federal do Alagoas (UFAL); Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM – UBERABA); Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri / Diamantina-MG (UFVJM) e Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ao final, apresentamos a resenha do livro de Andrew Lintott confeccionada pelo doutorando Thiago Eustáquio Araújo Mota.

Agradecemos em nome de todos os membros do Conselho Editorial o constante apoio do Conselho do Programa de Pós-graduação em História no qual está locada a História e Cultura.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Margarida Maria de Carvalho – Professora Doutora

Helena Amália Papa

Germano M. Favaro Esteves

Organizadores do dossiê


CARVALHO, Margarida Maria de; PAPA, Helena Amália; ESTEVES, Germano M. Favaro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.3 (Especial), 2013. Acessar publicação original [DR]

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Germanos, da Antiguidade ao Ano Mil / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2012

“Em minha opinião, os germanos são indígenas (…) incontaminados por casamentos com outras nações” Tácito, Germânia, 98 d.C.

Há várias décadas os povos germânicos estão sendo reavaliados pelos acadêmicos europeus. Em vez de apenas serem pensados como os bestiais causadores da derrocada do Império Romano, ou de outro lado, como primitivos e bucólicos habitantes das florestas num contexto quase romântico, as atuais perspectivas exploram suas particularidades enquanto inseridas numa dinâmica de transformações que afetaram todo o Ocidente. Nem bons, nem maus, os germanos são fundamentais para se entender o novo tipo de mundo que teve início entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média: “as sociedades ditas bárbaras têm uma cultura e as que se chamam civilizadas adquirem uma à custa de esforços, para o melhor ou para o pior”, [3] considerou Paul Veyne, enquanto que para Peter Burke “O declínio do Império Romano não deve ser considerado a derrota da cultura pelo barbarismo, mas um choque de culturas (…) Por mais paradoxal que possa parecer a expressão, houve uma civilização dos bárbaros”.[4] Essa reabilitação, por certo, vem colocando também alguns problemas metodológicos e investigativos, como a questão de identidade entre as diversas etnias, a ponto de alguns pesquisadores questionarem uma pretensa unidade lingüística e cultural entre estes povos (a etnogênese) e sua contrapartida, o referencial étnico criado a partir de Roma. A arqueologia neste sentido vem sendo decisiva, concedendo a possibilidade de se contrastar e ou examinar as fontes clássicas com novas perspectivas, indo muito além dos referenciais da interpretatio romana.

Em nosso país, uma nova geração de germanistas vem sendo formada, tanto de pessoas advindas das áreas de História e Letras, mas também de Filosofia e Artes, de pesquisadores vinculados aos estudos classicistas quanto medievalistas e orientalistas. Os principais centros de pesquisas, a exemplo da maioria das investigações envolvendo Antiguidade e Medievo, ainda são essencialmente situados no eixo São Paulo e Rio de Janeiro, mas com articulações por todo o país. Em especial, o grupo Brathair há cerca de dez anos vem promovendo estudos, publicações e eventos na área, mas atualmente o interesse está sendo ampliado também para os tradicionais laboratórios, núcleos e centros de investigações históricas e arqueológicas. Ressalta-se aqui a criação de grupos novos, como o NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, de caráter interinstitucional, do qual o dossiê apresenta a participação de seis membros.

A presente coletânea é uma mostra das mais recentes investigações sobre os povos germanos, com trabalhos de pesquisadores de diversos locais do Brasil, e proporcionado gentilmente pela equipe do NEA, Núcleo de Estudos da Antiguidade, vinculado à UERJ, que coordena a revista NEARCO.

O primeiro trabalho é de autoria de Ciro Flamarion Cardoso (UFF), um dos grandes nomes da pesquisa em História Antiga de nosso país. Seu artigo, A interpenetração da cosmogonia religiosa com a história entre os escandinavos, investiga como o imaginário religioso nórdico era estreitamente conectado ao mundo social e material, questionando a tradicional separação sócio-espacial entre deuses e homens nas sociedades antigas.

Em seguida, temos o artigo Os fiordes e as serpentes: definindo espaços guerreiros na saga de Óláf Trygvasson, de Pablo Gomes de Miranda (UFRN / NEVE), que tem como objetivo estudar a relação mantida entre os escandinavos da Era Viking com os meios hídricos das regiões onde habitavam, articulando o delineamento de um espaço próprio da cultura guerreira.

Munir Lutfe Ayoub (PUC-SP / NEVE) é autor do próximo artigo, Um breve debate sobre os primeiros contatos e a formação da Islândia, no qual examina a historiografia e as controvérsias sobre a colonização escandinava na ilha da Islândia, durante a Alta Idade Média.

Encerrando a coletânea, outro estudo sobre a Islândia, desta vez atentando para o processo de cristianização através das fontes literárias: Islândia no ano mil d.C.: uma análise segundo o Islendigabók, de Renato Marra Moreira (UFG / NEVE).

Ao finalizar o dossiê, congratulamos a equipe do NEA pelo espaço, antevendo que o futuro das pesquisas germânicas antigo-medievais em nosso país é muito promissor, seja pela presença cada vez maior de interessados, quanto no amplo diálogo que os centros universitários consolidados podem proporcionar para que o debate e a pesquisa sejam sempre o espírito que move os acadêmicos, independente das instituições que pertençam. Boa leitura!

Notas

3. VEYNE, Paul. História da vida privada: do império romano ao ano mil. Vol. 1. SP: Cia das Letras, 2009, p. 404.

4. BURKE, Peter. Variedade de história cultural. SP: Civilização Brasileira, 2006, p. 246.

Johnni Langer – Pós-Doutor em História Medieval pela USP, professor da UFMA. Coordenador do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (www.nevevikings.tk). E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br

Luciana de Campos – Mestre em História pela UNESP. Membro do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos e NEMIS, Núcleo de Estudos de Mitologias (http: / / gruponemis.blogspot.com). E-mail: fadacelta@yaho.com.br


LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Editorial. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, v.5, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão: da Antiguidade à Modernidade / Politeia: História e Sociedade / 2010

O presente dossiê, pautado pela perspectiva comparada, partilha do esforço de vincular a temática da escravidão a processos históricos e a contextos sociais multi-temporais e espaciais. Sob o prisma de variadas abordagens, tem a chance de lançar luz sobre pontos de contato e de diferenciar experiências sociais no tempo e no espaço e, nesse sentido, apontar para novas questões de estudos.

Jovens e veteranos pesquisadores, oriundos de diferentes instituições, apresentam, sob perspectivas próprias, artigos lastreados por fontes diversas, modulados com sobriedade e imaginação histórica, como é próprio ao mister do historiador. Esses artigos originam-se, em sua maioria, de estudos mais extensos e meticulosos e evidenciam, com vitalidade, a atualidade do tema, renovado por preferências e opções pessoais, mas, sobretudo, abordagens que se atêm aos sujeitos históricos e à trama de seu cotidiano. São análises que, ao considerar as sutilezas das relações sociais, desvendam processos que estariam invisíveis de outro modo.

Este dossiê garante um mosaico amplo e rico em alternativas para pensarmos a escravidão por ângulos e abordagens atentos às suas singularidades, às possíveis aproximações, ao confronto de fontes e de ideias. Reserva-se ao leitor o contato com experiências sociais interpretadas em seu movimento histórico, que se recusam a generalizações, numa postura historiográfica que assume cada vez mais importância e interesse entre nós. Este rico painel é aqui apresentado em forma de artigos e entrevista.

A entrevista é uma contribuição valiosa e inestimável do historiador norte-americano e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Robert Slenes. Com disposição, entusiasmo e zelo, o professor Slenes reflete sobre os caminhos percorridos em sua trajetória historiográfica e pessoal. Atento aos meandros que envolvem o ofício de historiador, expõe compreensões teórico-metodológicas – sempre explicitadas em seus trabalhos – e indica trabalhos nascidos de profícuas pesquisas, muitos deles já publicados, e que são cuidadosamente apresentados ao final de sua entrevista. É um registro histórico que tivemos a sorte de colher e pelo qual somos profundamente gratos.

José Ernesto Moura Knust, mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), abre a seção de artigos deste dossiê com o texto “Escravidão rural no final da República Romana: a De Re Rustica de Varrão” em que examina, no Tratado sobre as coisas do campo – escrito pelo erudito romano Marcos Terêncio Varrão, no final do século I a.C. –, relações entre senhores e escravos, em especial a autoridade de escravos em posição de chefia e a promoção de atitudes entre os escravos que visavam favorecer aos senhores. Ao analisar estratégias de controle dos escravos refletidas no referido Tratado, o autor nos transporta para a escravidão rural da Roma Antiga e identifica alguns de seus traços na escravidão americana. Para tanto, ancora-se no conceito de sociedade escravista do intelectual norte-americano Moses Finley.

O segundo artigo, “As guerras servis da Sicília”, é uma colaboração de Sônia Regina Rebel de Araújo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ao tratar das circunstâncias históricas que envolveram duas revoltas de escravos na Sicília entre 135 e 101 a. C., Sônia Rebel evidencia o alcance da resistência escrava na Roma Antiga. Seu texto se orienta por abordagens teóricas de Moses Finley e Keith Bradley e de dois grandes historiadores brasileiros, Sidney Chalhoub e João J. Reis. Com isto, busca demonstrar “como o entrelaçamento dos estudos sobre a escravidão na Antiguidade e nas Américas pode ser produtivo, profícuo, para os estudiosos deste importante tema”. Para a autora, “o diálogo entre os aportes teóricos de historiadores da escravidão nas Américas e no Brasil, como João Reis, Chalhoub e Genovese, e os historiadores da Antiguidade, revelou-se útil, na medida em que aspectos da resistência dos escravos na modernidade revelaram-se instigantes para a análise dos movimentos sociais dos escravos no mundo romano”.

Em seguida temos o artigo “Escravo, servo ou camponês? Relações de produção e luta de classes no contexto da transição da Antiguidade à Idade Média (Hispânia, séculos V- VIII)”, de Mário Jorge da Motta Bastos, professor da UFF. O autor considera que as grandes transformações que se verificaram nas sociedades ocidentais a partir do século X resultaram de um conjunto mais amplo de processos, que se desenvolveram no longo intervalo que separa a Antiguidade e o Medievo. Para Bastos, “sociólogos, economistas e historiadores, conjugando empenho e engenhosidade dedutiva, tentaram desvelar uma realidade fugidia, fugaz em suas expressões, envolta pelas brumas de uma documentação limitada em número e fundamentalmente normativa em sua natureza”.

O quarto artigo resulta da parceria entre os professores Ocerlan Ferreira Santos e Washington Santos Nascimento, ambos vinculados às atividades do Museu Pedagógico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), campus de Vitória da Conquista, sendo o último, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Em artigo intitulado “Dimensões da vida escrava na Imperial Vila da Vitória nos últimos anos da escravidão (1870- 1888)”, tratam da escravidão no “Sertão da Ressaca”, mais especificamente, na Imperial Vila da Vitória, atual Vitória da Conquista. Por meio de pesquisa em fontes inéditas, examinam dinâmicas que envolveram as relações entre senhores e escravos nos últimos anos da escravidão, levando-os a concluir que “o que se percebe nos últimos anos da escravidão na então Imperial Vila da Vitória é uma profunda dinâmica envolvendo a população escrava com a construção de arranjos de sobrevivências que provavelmente permaneceram após a abolição da escravatura”. É mais um estudo que se soma aos esforços da pesquisa sobre a escravidão sertaneja, que emerge de uma disposição muito tenaz de pesquisadores que “descobrem” arquivos e organizam documentos, enriquecendo em várias direções a abordagem do tema.

O quinto artigo, “Entre a morada e a roça: escravidão no Recôncavo Sul da Bahia, 1850-1888”, decorre de estudos e pesquisas desenvolvidos por Alex Andrade Costa, Mestre em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), campus V – Santo Antônio de Jesus. O autor agrega novos enfoques à escravidão no Recôncavo Sul da Bahia ao analisar a mobilidade e a autonomia na vida cotidiana de escravos de pequenas e médias propriedades rurais, identificando formas de sobrevivência próprias de escravos lavradores. Alex Costa mostra que aquela parte do Recôncavo abrigou relações entre senhores e escravos com traços muito próximos da escravidão no sertão baiano. Numa perspectiva comparada, recorre à historiografia da escravidão para expressar aproximações de análises: “como a historiografia tem demonstrado, o conflito aproximou-se muito do ato de negociar, às vezes convivendo juntos numa mesma ação com um duplo significado”.

Encerrando a seção de artigos temos o “Historiografia sobre o negro, a escravidão e a herança cultural africana na Bahia”, apresentado pelo professor Erivaldo Fagundes Neves. Revela-se ali uma espécie de cartografia da historiografia da escravidão e dos estudos sobre o negro na Bahia. Um amplo painel, que destaca temas, fontes e metodologias presentes nesses estudos.

Como se antevê, são estudos que possibilitam comparações pontuais, enriquecem campos conceituais e ampliam a nossa compreensão das experiências históricas. Também evidenciam o papel chave do “ato de comparar” como um exercício metodológico inerente ao exercício da prática historiadora.

Gostaria, por fim, de externar gratidão e reconhecimento aos colegas que colaboraram com todo o trabalho desta publicação. Em especial, ao professor Luiz Otavio de Magalhães (Uesb, editor de Politeia), que acolheu a proposta do dossiê e acompanhou cuidadosamente a sua edição. Às professoras Gabriela Reis Sampaio e Wlamyra Albuquerque (Universidade Federal da Bahia), aos professores Fábio Joly (Universidade Federal de Ouro Preto), Alexandre Galvão e Márcia Lemos (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), que compuseram a comissão científica e se empenharam no convite a colegas, alguns deles aqui presentes. Como toda publicação da revista Politeia, espera-se que esta edição possa nutrir debates e apontar boas perspectivas para a pesquisa nas humanidades.

Maria de Fátima Novaes Pires – Professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) E-mail: fatimapires90@hotmail.com


PIRES, Maria de Fátima Novaes. Apresentação. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 10, n. 1, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Trabalho livre e trabalho escravo na Antiguidade e na Idade Média e outros estudos / Varia História / 1988

Quando, em 1983, realizava-se, na Universidade Federal da Paraíba, o 1º Simpósio de História Antiga, a avalização geral da situação do ensino e da pesquisa nessa área do conhecimento no Brasil era bastante sombria, o que parece bem resumido pela Profª Vânia Leite Froes, ao afirmar: “reduzida no currículo do curso de História, praticamente eliminada do 1 º e do 2º graus pela reforma do ensino e finalmente deixada do lado pelo vestibular, onde se exige o adestramento do aluno a partir da crise do feudalismo, o papel da História Antiga no Brasil precisa ser repensado”. Palavras que podem ser aplicadas também ao domínio da História Medieval, o que provocou a proposta de que o âmbito da própria série de simpósios que então se iniciava fosse ampliado também para esse domínio, no esforço efetivo de criar os meios para repensar o papel dessas disciplinas não só nos quadros curriculares do sistema de ensino nacional, mas ainda, e principalmente, como legítimos representantes de uma esfera de produção do saber sistematicamente marginalizada desde várias décadas nas escolas, nos institutos de pesquisa e junto dos órgãos oficiais de fomento à produção científica.

Diversas propostas foram debatidas naquela ocasião, apontando para a necessidade de uma ação permanente, junto da comunidade científica e das instâncias dirigentes, o que supunha antes de tudo que os próprios professores, pesquisadores e estudantes da área se articulassem. Constatava-se como a dispersão impedia uma estratégia conjugada: professores do Aio de Janeiro desconheciam quase totalmente o que se fazia em São Paulo e vice-versa, o que fica patente, para citar um exemplo marcante, no fato, registrado nos Anais, de os primeiros ignorarem a existência, na Universidade de São Paulo, do Museu de Arqueologia e Etnologia, que conta com _um significativo acervo relativo às culturas antigas médio-orientais e clássicas. Como expressou o Prof. Ciro Flamarion Cardoso na ocasião, “a única alternativa seria que os especialistas da área se unissem em algum tipo de associação, com a finalidade de lutarem pela solução institucional (e não individual) dos problemas de sua área de atuação, entre eles o do acesso às fontes primárias e em geral aos instrumentos de pesquisa”.

O primeiro passo nesse sentido teria lugar no ano seguinte quando, por ocasião do 1º Congresso Nacional de Estudos Clássicos, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, se articulou a fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, restrita não apenas a historiadores, mas englobando todos os especialistas, estudantes e estudiosos das culturas clássicas e de outras culturas com elas relacionadas. A SBEC foi fundada em 1985, iniciando um trabalho cujos frutos já se fizeram sentir desde logo. No interesse de ampliar os contatos, na busca conjunta de soluções, assumiu, quando da realização do 2ª Simpósio de História Antiga e Medieval, promovido pela Universidade Federal Fluminense, a organização do evento seguinte. Para isso, contou imediatamente com a colaboração do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o que tornou possível a realização, em Belo Horizonte, do programa, cujos anais constituem o corpo do presente número especial da Revista do Departamento de História.

O balanço dos acontecimentos dos cinco últimos anos pode, de fato, fazer renascer a esperança. De um lado, está em processo o almejado repensar o papel da História Antiga e Medieval no Brasil, graças aos encontros periódicos dos que atuam nessas áreas e ao contato permanente proporcionado por instituições como a SBEC. Por outro lado, como conseqüência dessa mesma articulação, os órgãos de fomento à pesquisa têm dado apoio efetivo a projetos do setor, tendo sido criados mesmo programas emergenciais, como o patrocinado pela CA· PES. Finalmente, a exemplo do que aconteceu no campo das ciências da Antigüidade, formou-se e organizou-se, durante o último Simpósio, a Sociedade Brasileira de Estudos Medievais e Renascentistas. Tudo isso tem levado a uma paulatina recuperação do espaço dos estudos antigos e medievais no contexto da comunidade científica nacional, sob a égide do debate e da avaliação permanentes, requisitos indispensáveis para o desenvolvimento de trabalhos deveras sérios e cuja contribuição seja efetivamente relevante no contexto da produção não apenas brasileira, mas internacional.

Há ainda um longo caminho pela frente. O perfil de um encontro abrangente como o 3ª Simpósio constitui um retrato do que já se obteve e do que resta por conquistar. As disparidades regionais são grandes. É urgente a questão do ensino básico e médio. A situação da transmissão e da produção de conhecimento nas Universidades exige uma ação decidida e continua. O problema da formação de profissionais competentes não pode ser descurado. Não se trata, contudo, de uma avaliação pessimista. O sentimento generalizado é de que existe um largo caminho a ser percorrido, mas que o percurso é viável. Mas ainda: de que tal percurso não poderá ser vencido isoladamente por pessoas ou instituições, mas depende de um esforço conjunto capaz de dar sentido e perenidade às realizações das pessoas e instituições. Trata-se de criar tradição de trabalho científico, de fazer escola, de caracterizar um tipo de contribuição brasileira para as ciências da Antigüidade e da Idade Média sem bairrismos, sem concessões no que respeita à qualidade e sem perda da perspectiva crítica que, felizmente, vem animando esse repensar de que o presente volume dá uma mostra.

Jacyntho Lins Brandão – Universidade Federal de Minas Gerais


BRANDÃO, Jacyntho Lins. Editorial. Varia História, Belo Horizonte, v.4, n.7, set., 1988. Acessar publicação original [DR]

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