Drogas na Américas: culturas, fiscalizações, repressões e ilegalismos / Outros Tempos / 2017

O continente americano é um verdadeiro laboratório de politização das drogas. Se é dele que emergem, historicamente, as primeiras experimentações de uma política proibicionista direcionada a certas substâncias, como o álcool nos Estados-Unidos (1919- 1933), é dele também que emergem hoje as primeiras experimentações de regulação do uso recreativo (Colorado e Nevada, nos EUA) e medicinal da maconha (em alguns países como a Colômbia, os EUA, o México e o Uruguai). Nesse mesmo continente foi declarada, em 1970, a “guerra às drogas” pelo presidente dos Estados-Unidos, Richard Nixon, mas é ainda desse continente que derivam hoje as críticas mais fervorosas em relação a essa guerra [1] . De fato, os efeitos nefastos dessa política bélica se fizeram sentir especialmente em diversos países do continente, levando a, entre outros, um enfraquecimento de alguns Estados, o fortalecimento das multinacionais do crime organizado, o aumento de mortes e contaminações ligadas à precariedade do uso de drogas advindos de sua ilegalidade, ou o aumento de discriminações e da população carcerária. A tal ponto que hoje assistimos a uma denúncia internacional desses efeitos, inclusive por ex-presidentes, como o brasileiro Fernando Henrique Cardoso, ou o colombiano C. Gaviria, os mesmos que, na época, implantaram essa política. E, ironia suprema da Historia, sendo os Estados-Unidos os que mais defenderam, nos anos 1910-20, um sistema internacional de drogas fundado na distinção entre fins legítimos (médico-científicos e farmacêuticos) e ilegítimos, permitindo a constituição de grandes monopólios farmacêuticos em matéria de drogas, é do mesmo país que emerge atualmente os maiores escândalos farmacêuticos ligados ao consumo abusivo e letal decorrentes de drogas prescritas e acessadas de forma legítima: milhões de dependentes de opioides, e milhares de overdoses por ano provenientes de abusos de drogas legalmente prescritas [2] . Eis aqui então uma ambivalência constitutiva do problema das drogas desde o início do século XX: quando destinadas a fins legítimos (médico-científicos) são um mal necessário, quando dirigidas a fins ilegítimos (recreativos), são um flagelo social.

A contemporaneidade e a ambiguidade da problemática das drogas em todo o continente americano justifica a necessidade da publicação, em uma revista de História, de um volume especialmente consagrado a essa questão. Pois as transformações políticas e sociais contemporâneas em matéria de drogas, os seus paradoxos e contradições aparentes, participam de processos de grande fôlego que devem ser analisados em sua complexidade histórica e também em sua variedade geográfica. A originalidade dessa publicação consiste, precisamente, em oferecer uma abordagem histórica que articula, ao mesmo tempo, uma perspectiva global das políticas internacionais sobre drogas e estudos micro-históricos que tratam de contextos geográficos e sociais específicos. Este volume concilia metodologias distintas e confronta assim reflexões mais abrangentes e teóricas sobre conceitos operantes do chamado “sistema proibicionista” com pesquisas etnográficas, realizadas nas realidades do cotidiano da Argentina, do Brasil, da Colômbia e do México. Nos cruzamentos entre macro-história e micro-história, ciências políticas, sociologia e antropologia se encontram pesquisadores, doutorandos e professores vindos de horizontes geográficos e metodológicos diferentes. E, como em uma polifônia, dialogam historiadores brasileiros e franceses; antropólogos da América do Sul e da Europa; assim como sociólogos e psicólogos argentinos, que trazem consigo bagagens repletas de experiências que proporcionam novas reflexões ao universo complexo das drogas. Dessa forma, a pluralidade de perspectivas que figuram nesse volume pode ser encarada como uma sala de espelhos na qual estariam situados, no centro, alguns referentes do campo, como “drogas” ou “proibicionismo”, de onde refletiriam e emanariam os diferentes sentidos que eles adquirem quando confrontados a uma série de realidades históricas e sociais distintas.

É exatamente o referente “drogas” que é situado no centro do artigo de FrançoisXavier Dudouet. Nele, o autor propõe uma investigação quase policial, que percorre as diferentes operações subjacentes de uma organização social global que distinguiria, no mundo inteiro, os usos sagrados dos usos profanos. A problemática das drogas não pode ser apreendida nem a partir de uma perspectiva substancialista, que pensaria as drogas como substâncias tendo propriedades específicas, nem a partir de uma perspectiva moral, que se focalizaria unicamente sobre os mecanismos sociais e morais que conduzem a sua proibição e repressão. Esta perspectiva moral, tende a ocultar o fato de que, na realidade, nenhuma droga é em si proibida e acaba por mascarar as distinções entre usos lícitos e ilícitos, realizadas pelo sistema de regulação das drogas tanto em uma escala nacional quanto internacional. São os processos históricos que conduziram à implantação dessa organização social global das drogas que são centrais em sua análise. Para isso, o autor começa a descrever as operações pelas quais os usos lícitos das drogas foram distinguidos dos ilícitos em nível dos diversos estados europeus no século XIX para, em seguida, mostrar como essas operações contribuíram para a construção, internacional, de uma economia lícita das drogas separada de sua economia ilícita, durante o século XX. Essa dimensão econômica é, posteriormente, aprofundada no artigo a fim de revelar a lógica monopolista que organiza os usos sagrados das drogas. Nessa trama, trata-se de revelar que por trás da crença na proibição das drogas se dissimula uma realidade mais difícil ainda de ser capturada: a monopolização dos usos lícitos.

Deslocando o foco para as Américas, o artigo de Thiago Rodrigues e Beatriz Caiuby Labate analisa os processos histórico-políticos do proibicionismo, a partir de uma perspectiva comparada entre os Estados-Unidos, México e Brasil. No artigo, trata-se de reinserir as bases repressivas e militares do proibicionismo dentro de um conjunto complexo de racionalidades biopolíticas, composto por cinco níveis de segurança: moral, sanitária, pública, nacional e internacional. Esses níveis são confrontados tanto com as particularidades das zonas geográficas em questão, quanto com os períodos históricos que percorrem o final do século XIX, até o século XX. Contrapondo-se a uma visão simplista do sistema proibicionista, o artigo demonstra as dinâmicas e as mutações dos pilares enraizados do sistema, situando e problematizando paralelamente os questionamentos atuais sobre o tema.

Dando continuidade ao tipo de reflexão que procura abranger as especificidades do sistema proibicionista, situando-a no contexto brasileiro dos anos 1930 a 1970, o artigo de Mariana Broglia de Moura busca complexificar uma visão que reduz o proibicionismo a uma política repressiva e que visa a interdição absoluta das drogas. Por meio de uma abordagem “positiva” são restituídas as diversas funções de controle, regulação e repressão que constituem o sistema proibicionista de drogas. É salientada, particularmente, a atividade de fiscalização de entorpecentes, analisada especialmente a partir das seguintes dimensões: controle estatístico, tributação e regulamentação profissional e regulação dos costumes. Por fim, é examinada a maneira como a formalização de um mercado legítimo de drogas vem acompanhado do desenvolvimento de um conjunto de ilegalismos, às margens do lícito e do ilícito.

A abordagem histórica, no que tange a dimensão ilícita do circuito de comercialização das drogas é feita no artigo de Alexandre Marchant. Nesse texto, o autor mostra que a continentalização e a mundialização do tráfico de drogas nas Américas, sistematicamente atribuídas aos cartéis colombianos e mexicanos dos anos 1980, têm origens mais remotas. De fato, elas têm suas raízes ancoradas no sistema implantado nos anos 1950 pelas máfias marselhesas exportadoras de heroína no continente, nos tempos da French Connection. Do sul ao norte do continente, criminosos franceses expatriados instituíram redes, itinerários e práticas que não desapareceram repentinamente com a queda da filial francesa, no começo dos anos 1970. Ao contrário, os cartéis recém-nascidos da cocaína buscaram integrar os antigos traficantes da French Connection, valorizando suas experiências, antes de aperfeiçoar seus métodos para conseguir novos equilíbrios entre o continente americano e europeu no tráfico internacional de entorpecentes, na virada dos anos 1980-1990.

A virada social dos anos 1980, na história política e social do tráfico de drogas no México, é analisada por Sabine Guez através de sua busca pelo “tempo da inocência”, momento de entusiasmo e de fascinação, assumidos e desenfreados pelos traficantes de drogas em toda sociedade, dentro de classes privilegiadas ou populares. É nesse período complexo que o negócio das drogas atinge seu apogeu, por meio da corrupção, constituindo um tipo de poder que articula altos e baixos escalões do México setentrional. Esse poder adquire uma força considerável, sobretudo, com o desenvolvimento prodigioso do tráfico de cocaína sulamericano e seu trânsito, via México, em direção aos Estados-Unidos. A autora percorre então esses rostos e vozes do presente que remetem ao passado dos anos 1980, articulando, para isso, um trabalho etnográfico e histórico-biográfico. É por meio dessa metodologia que ela interroga a autonomização dos traficantes em relação ao Estado, o mesmo que exercera um controle estrito e forte sobre eles. E defende a ideia de que esse movimento de autonomização dos traficantes é correlato às transformações sociais induzidas, na época, pela multiplicação das participações no tráfico.

A articulação entre história e etnografia também está presente no artigo de Beatriz Brandão e Jonatas Carvalho, que busca problematizar dois conceitos recorrentes – o de “política de drogas” e de “sociedade de controle” – enraizando suas análises tanto no concreto etnográfico do programa De Braços Abertos (Cracolânida-SP; 2014-2016), quanto na história política e social da implementação dos dispositivos de controle e repressão de drogas no Brasil. Nesse artigo, os autores trazem à história os processos e efeitos que são constantemente apagados e, por conseguinte, repetidos pelas políticas públicas em matéria de crack, sobretudo nessa região. Eles salientam a novidade do programa implementado pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, e situam essas novas ordenações dos modelos de tratamento – como a Redução de Danos e as Comunidades Terapêuticas – dentro de uma história mais complexa de intervenções políticas, feitas na matéria a partir de práticas higienistas e compulsórias. A nova visão do crack trazida pelo programa é confrontada com quadros analíticos e conceituais, como os de “biopolítica” e “programas- pastores”, inserindo-o em uma nova tecnologia liberal da sociedade de controle, a qual está voltada, entre outros, ao controle dos fluxos e ao governo de si.

A atualidade dos dispositivos de acompanhamento de dependentes de drogas e das políticas de redução de danos é articulada, no artigo de Silvia Inchaurraga e Edgardo Manero, a uma reflexão mais abrangente sobre os mecanismos de poder e de controle subjacentes a esses programas. Consagrado à Argentina, esse artigo estuda os efeitos de uma política oficial em matéria de drogas nas últimas décadas, centrada na erradicação do consumo de drogas pela abstinência, no campo sanitário, e pela penalização, no campo legislativo. Tanto as políticas públicas como as principais instituições vinculadas à temática das drogas se sustentam a partir de uma lógica bélica, que instaura a discriminação dos usuários e a construção de uma alteridade social ameaçadora. Esse artigo, escrito por uma psicóloga, diretora do Centro de Estudos Avançados sobre Drogas da Universidade de Rosário, e por um sociólogo, nos dá acesso às principais questões colocadas atualmente no campo da Redução de Danos, na Argentina.

A história das lutas do movimento antiproibicionista colombiano e combinada com uma reflexão semântica e conceitual sobre o termo “pharmakon” nos é proporcionada pelo artigo de Andrés Gongorra, que realiza uma etnografia de grande fôlego (2013-2017), consagrada ao movimento canábico colombiano. O autor mostra como a proibição das drogas no país surgiu com um arranjo sanitário, moral e econômico para monopolizar a produção de remédios e venenos. O conhecimento assim produzido em torno da relação entre as pessoas e o pharmakon – desenvolvido principalmente por especialistas de segurança pública, economia política e saberes psi – desconheceu sistematicamente a agência política dos consumidores e pequenos produtores de drogas. Percorrendo a história da cannabis e de seus defensores, o autor descreve a luta para liberar a planta e permitir a sua reintegração nos espaços da embriaguez tolerada, dos remédios e da indústria.

A história reflexiva sobre as operações de distinção entre substâncias e usuários também encontra um espaço no artigo de Lucas Endrigo Brunozi Avelar, que examina – através de relatos do jesuíta português João Daniel, contidos na obra Tesouro Descoberto no Máximo do Rio Amazonas– como os portadores de uma ideologia religiosa de origem medieval descreveram a embriaguez dos povos indígenas na Amazônia do século XVIII. Nesse artigo, o autor revela as contradições e aproximações entre, de um lado, uma empresa de colonização fundada na produção e comércio de drogas e na tradição alimentar católica assentada no vinho e no pão; e, de outro, uma ideologia do abuso elaborada para dar conta da tradição indígena de ingestão de bebidas e substâncias extraídas da floresta.

As definições e redefinições das drogas na história e as correlações entre drogas e alimentos são tratadas a partir de uma entrevista conclusiva, realizada com o grande historiador do campo no Brasil, Henrique Carneiro, na qual são retomados, desde a antiguidade até hoje, os diversos saberes que se ampararam e contribuíram a forjar os diferentes sentidos atribuídos às drogas. Atributos de divindades, objetos de nomenclatura botânica, produtos secos do comércio do além-mar, fármacos, substâncias ilícitas são os diferentes sentidos aos quais são remetidos esse referente complexo que simplificamos por meio do termo “drogas”. Mas, mais do que um simples referente, as drogas são o objeto de diversas estratégias internacionais, como as comerciais e geopolíticas, tornando-se, na época moderna, os “principais vetores na expansão da navegação, do colonialismo, do escravismo, do consumo de massas e da revolução comercial e industrial”. Sobre a atualidade, o historiador faz um diagnóstico preciso e crítico, no qual localiza os pontos de fraqueza e de força do sistema, e aponta para as forças imanentes que atualmente representam um movimento capaz de desestabilizar alguns pilares do sistema até então enraizados. Por fim, com este conjunto de pesquisas queremos convidar os leitores a uma reflexão crítica e profunda sobre a temática das drogas nas Américas.

Desejamos a todos ótima leitura!

Notas

1. Ver por exemplo o relatório “Guerra às drogas” da Comissão global de políticas sobre drogasde junho de 2011, disponível no site: https: / / www.globalcommissionondrugs.org / reports / the-war-on-drugs /

2. Ver por exemplo : BBC Brasil, “Opioides causam um ‘11 de Setembro’ em mortes a cada três semanas nos EUA” 2 de Agosto de 2017.

Mariana Broglia de Moura

Helidacy Maria Muniz Corrêa


MOURA, Mariana Broglia de; CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 14, n. 24, 2017. Acessar publicação original [DR]

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