É necessário queimar os hereges: Sébastien Castellion e a liberdade de opinião na época da Reforma Protestante | L. T. de Almeida

Para aqueles que se interessam pela temática da Reforma Protestante, uma ótima pedida de leitura é o recém-lançado É necessário queimar os hereges, de Leandro Thomaz de Almeida. O novel autor, graduado em Teologia e Letras, mestre e doutor em literatura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós- doutorando da mesma instituição, inaugura uma promissora carreira como escritor, lançando mão de um novo ponto de vista da história da Reforma, valendo-se, para tanto, da figura antológica de um teólogo praticamente desconhecido.

O título do livro, um tanto quanto provocativo, remete-nos às fogueiras inquisitoriais de um período libertário e, ao mesmo tempo, sombrio: o século XVI. A despeito dele, o livro não ratificará o extremismo daqueles que, detendo nas mãos a “verdade”, acabaram por, ao fim e ao cabo, executar em nome dela. Pelo contrário, Leandro Thomaz ressuscita a figura ignorada, ao menos no Brasil, de um teólogo, pensador, biblista e latinista apaixonado pela liberdade de opinião e obcecado pela tolerância religiosa, cujo nome foi olvidado pelos anais da história: Sébastien Castellion (1515-1563).

Logo na introdução, o autor nos apresenta a maneira como travou contato com a obra desse – até então – ilustre desconhecido: “garimpando” a seção de teologia da biblioteca francesa de Sainte-Geneviève, durante um período sanduíche de doutoramento. Foi assim que Leandro Thomaz encontrou essa “pepita”, que, a meu ver, trará uma lufada de ar sobre o pensamento teológico reformado brasileiro.

O livro, disposto em cinco capítulos, traça um breve percurso biográfico de Castellion e se baseia em três das principais obras castellionianas: 1. Da impunidade dos hereges; 2. Da arte de duvidar e de crer, de ignorar e de saber; e 3. Contra o libelo de Calvino, após a morte de Miguel de Servetus. Há um apêndice no qual o leitor encontrará aquele que muito provavelmente é o primeiro texto de Sébastien Castellion traduzido no Brasil, uma dedicatória ao duque de Wirtemberg aposta ao livro Traité des hérétiques.

O livro tem como eixo central a polêmica questão do assassinato do médico espanhol Michel de Servetus, que, tendo discordado de João Calvino no que tange à doutrina da Trindade, foi queimado como herege. Castellion, sendo contemporâneo de Calvino e, a princípio, gozando de boa relação com ele (uma vez que fora instrutor e diretor no colégio genebrino, a convite do próprio Calvino), torna-se, agora, seu desafeto por dissentir da posição do reformador genebrino em relação a esse fato. Calvino posicionara-se favoravelmente à punição aos hereges por meio do magistrado civil, algo inconcebível para Castellion.

Diante de tal impasse, o autor em questão afirma que “matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem” (p. 73). Diferentemente daqueles que praticavam uma fé intolerante para com os pensamentos divergentes (ao longo da leitura, ficará perceptível que o termo “herege” era utilizado indistintamente por Calvino para todos aqueles que discordassem minimamente de sua interpretação das Escrituras), Castellion prezava pela liberdade de opinião e de interpretação das Escrituras. Para Almeida, na perspectiva de Castellion, não sendo as Escrituras claras em suas afirmações, nada mais certo que houvesse maior tolerância com os pensamentos divergentes, havendo sempre espaço para interpretações. Além disso, a obscuridade das Escrituras serviria, ainda, para que o homem pudesse exercitar sua capacidade reflexiva, dádiva conferida pelo Criador.

Contudo, as querelas entre Castellion e Calvino não se restringem ao episódio protagonizado por Servetus. A doutrina da predestinação – alvo de polêmicas e controvérsias até os dias atuais – também teve sua parcela de contribuição. Em 1554, Castellion publicou sua segunda tradução da Bíblia para o latim com uma nota refutando a predestinação, o que lhe rendeu uma série de escritos condenatórios por parte de Calvino e de Beza, nos quais foi, inclusive, chamado de “instrumento de Satanás”.

No entendimento de Castellion, em vez de ocupar-se com coisas de somenos importância e que somente geram dúvida e discórdia no seio da igreja, como a predestinação, o importante, mesmo no que concerne à salvação, diz respeito a questões essencialmente práticas da vida cristã, como amar a Deus e ao próximo, fazer o bem aos inimigos, não pagar mal com mal, não mentir, não ser invejoso etc. Sendo assim, o que se vê claramente – ao longo de todo o livro – é um embate entre a ortodoxia calvinista e a ortopraxia castellioniana.

Por fim, reporto-me à novela São Manuel Bueno, Mártir, de Miguel de Unamuno (2000), cujo personagem principal, Dom Manuel, vigário de uma pequena vila, muito embora não cresse em nada, era, ainda assim, considerado um homem santo. Lá pelas tantas, ele apregoa que todos os santos morreram sem crer em nada, ou seja, duvidando. E só por isso puderam ser tachados como santos: porque possuíam mais dúvidas que certezas. É possível traçar um contraponto entre a fala do protago nista de Unamuno e o pensamento de Castellion, observando o que diz Zweig (apud ALMEIDA, 2014, p. 92):

[Castellion] jamais considerou, como Calvino, sua opinião como a única justa, e o prefácio que ele mais tarde publicou mais tarde à sua tradução da Bíblia é um modelo de modéstia. Nele, ele declara abertamente que não compreendeu todas as passagens da Santa Escritura e advertiu o leitor para não confiar sem reservas em seu trabalho, pois a Bíblia é um livro obscuro e pleno de contradições, e o que ele oferece é apenas uma interpretação incerta.

O que mais salta aos olhos na leitura dessa breve introdução à vida e obra de Sebastien Castellion é o fato de sua tolerância religiosa, sua abertura para a interpretação das Escrituras e sua benevolência ocorrerem em um século maculado por assassinatos em nome da “sã doutrina” tanto por parte de católicos como de protestantes, o que nos leva a pensar que, possivelmente, Castellion, melhor que ninguém em seu tempo, tenha compreendido o verdadeiro significado do Evangelho. Dessa feita, o livro de Leandro Thomaz de Almeida nos permite ouvir um “herege” apresentar seu ponto de vista da história reformada, dando voz e vez àquele a quem a história relegou ao olvido. Ora, as ponderações até aqui ordenadas nos fazem questionar juntamente com o autor: como seria a igreja e a teologia reformadas caso tivesse seguido o caminho benevolente, tolerante e libertário proposto por Castellion?

Referência

UNAMUNO, M. de. São Manuel Bueno, Mártir. Porto Alegre: L&PM, 2000.


Resenhista

André Jorge Catalan – Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), licenciado em Letras e bacharel em Teologia. Autor do livro Jesus na ótica da literatura. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ALMEIDA, L. T. de. É necessário queimar os hereges: Sébastien Castellion e a liberdade de opinião na época da Reforma Protestante. São Paulo: Fonte Editorial, 2014. Resenha de: CATALAN, André Jorge. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v. 12, n. 1, p. 300-304, jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

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