Economia colonial | Revista Ultramares | 2014

A possibilidade de coordenar e apresentar um dossiê sobre economia em uma revista dedicada aos estudos coloniais é motivo de grande alegria. Nas duas últimas décadas a historiografia relativa à América portuguesa tem passado por transformações extremamente significativas. Em 1990, Ciro Cardoso já saudava os novos rumos historiográficos, ressaltando o que ele denominava de passagem do “esquematismo excessivo à relativa complexidade”1. Referia-se, então, à visão simplificadora do que seria a sociedade escravista brasileira, dividida entre senhores e escravos e caracterizada pelo trinômio latifúndio, monocultura e escravidão. Uma sociedade exteriorizada, sem qualquer dinâmica interna considerável. Naquele momento, as pesquisas que se contrapunham a essa perspectiva buscavam ressaltar a complexidade da sociedade brasileira e de suas dinâmicas internas, diminuindo ou negando a importância dos laços exteriores como elementos explicativos do devir colonial.

Estava-se ainda, no entanto, dentro do que nós poderíamos denominar de paradigma historiográfico da relação metrópole – colônia. Em linhas gerais, boa parte dos debates referia-se ao peso maior ou menor que tais relações possuíam para explicar a história colonial. Não é esse o espaço para retomarmos esse debate, por si só riquíssimo e cheio de consequências. No entanto, e só podemos perceber isso hoje pelo distanciamento que o tempo impõe, esse também era um debate marcado por um esquematismo excessivo.

O rompimento dessa dicotomia deu-se a partir de dois movimentos distintos mas que acabaram por se conectarem. Em primeiro lugar, os estudos sobre escravidão demonstraram a importância do estudo da África para a compreensão do fenômeno escravista na América portuguesa. Mais ainda, demonstraram que as relações entre as duas margens do Atlântico guardava uma forte independência em relação a Portugal, e que essa independência acentuou-se ao longo do tempo2. Logo, a compreensão da sociedade escravista colonial dependia também da compreensão de sua relação com a África. O rompimento com a antiga dicotomia sofreu igualmente o influxo da historiografia internacional, a qual recuperou, nessa mesma época, o conceito de império para um melhor entendimento das relações entre as diversas possessões ultramarinas europeias e seus respectivos centros políticos.

O segundo movimento a ser sublinhado foi a transformação na própria compreensão acerca da sociedade e do Estado na metrópole. Aqui, a obra de Antonio Hespanha adquire uma importância central3. Rediscutindo as características fundamentais da monarquia portuguesa na Época Moderna, Hespanha demonstra que a mesma estava longe da imagem tradicional do que seria uma monarquia absolutista centralizada em torno da figura do rei, visto como única fonte legitima de poder. Pelo contrário, o quadro que emerge de seu trabalho é de um poder político partilhado entre diversas instituições, no qual a monarquia possui limites bastante claros para sua atuação.

A influência dessas mudanças na historiografia foi notável. No campo político, a noção de um poder partilhado levou ao interesse crescente pelas instituições até então desprezadas, sobretudo as ligadas ao poder local, como as câmaras. No que se refere à economia, significou uma maior atenção não somente aos fluxos entre centro e periferia, mas também entre as periferias de um mesmo império colonial, ou até mesmo de impérios distintos. E em todas as áreas a transformação historiográfica mais importante talvez tenha sido a atenção dada aos indivíduos, vistos como construtores da história, e não mais como “vítimas” de uma estrutura que lhes é exterior.

Os artigos reunidos nesse dossiê ressaltam estes aspectos. O primeiro texto, de minha autoria, é talvez o que foge a tais características. Nele, busco analisar fenômenos econômicos mais gerais, ligados ao crédito. Sua função, se podemos assim dizer, é servir de introdução aos demais textos, demonstrando como a economia inseria-se, nesta sociedade, no conjunto das relações sociais, o que impede sua percepção como uma esfera separada da atividade humana.

O artigo de Simone Cristina de Faria trata de tema praticamente inédito em nossa historiografia: os cobradores dos quintos. A partir de uma análise acurada desse grupo social, a autora demonstra que a cobrança desse tributo, fundamental para a monarquia, dependia de uma acurada aliança com as elites locais.

Nauk Maria de Jesus brinda-nos com um texto de excelente qualidade sobre os contratos para cobrança de tributos firmados pela câmara de Vila Bela. Através dele, conseguimos desvendar as relações sociais que se estabeleciam entre os diversos atores envolvidos nesses contratos. A partir das posturas da câmara, a autora revela as formas através das quais o poder local gerenciava aspectos da vida econômica fundamentais para a sociedade.

A análise do mercado de crédito carioca na segunda metade do século XVIII é o centro do artigo de Fábio Pesavento, que busca analisar como uma conjuntura recesssiva influencia a concessão de crédito e a circulação de numerário numa sociedade pré-capitalista. A utilização de uma considerável base de dados permite-lhe não só reconstruir as diversas conjunturas do período como seguir os caminhos que o crédito percorre, ressaltando a importância do papel dos grandes negociantes como financiadores da sociedade colonial.

A economia da região norte da América portuguesa, sempre marcada como periférica e ainda pouco conhecida dos historiadores, tem sido objeto nos últimos anos de pesquisas que buscam reverter esse quadro e qualificá-las de forma positiva e não por suas ausências. O texto de Siméia Lopes é, neste sentido, uma excelente oportunidade de se conhecer o mercado de Belém, centro nevrálgico de toda a Amazônia, encruzilhada de rotas que ligavam os mais remotos rincões da América portuguesa com os dois lados do Atlântico. Para guiar seu leitor nessa análise, Lopes debruça-se sobre escrituras de crédito que lhe permitem reconstruir o emaranhado de relações que dava sentido a essa teia mercantil.

Os artigos que compõem o presente volume apresentam a mesma riqueza de abordagem, buscando resgatar o papel de instituições e cargos antes pouco considerados. Os textos de Rodrigo Rocha da Cunha e Wanderley Menezes abordam, de ângulos distintos, o significado do poder local na construção das hierarquias e no estabelecimento de alianças entre pessoas e grupos sociais. De seus trabalhos surge uma rica história política, nascida da negociação entre indivíduos e destes com a coroa, e marcada pela busca da diminuição da incerteza, inerente a um modelo político descentralizado.

A construção de um novo modelo político no início do século XIX e a participação do clero nesse processo é o foco do trabalho de Cristina Aguiar. Longe de pensar os religiosos como um grupo homogêneo, a autora busca reconstruir suas atuações individuais para entender como estas se articulavam com a conjuntura política agitada da virada do setecentos para o oitocentos.

Período de mudanças significativas, o início do século XIX é o tema também da análise de Marieta Carvalho. Dialogando com uma historiografia recente, a autora busca entender a administração de d. Fernando José de Portugal nos quadros da crise do Antigo Sistema Colonial. No que pesem as críticas à própria noção de crise, existente hoje na historiografia, cabe sublinhar que a autora não se furta a se posicionar no debate.

Por fim, a resenha de Anne Karoline acerca do livro de Maria Filomena Coelho nos traz uma importante reflexão acerca da atuação da justiça no contexto de uma monarquia corporativa. Longe de uma história institucional, estamos diante de uma reconstituição de laços pessoais, cujo conjunto constitui redes que atravessam o império. Uma contribuição importante para pensarmos a política na lógica do Antigo Regime português.

O quadro que emerge deste conjunto de artigos é o de uma sociedade colonial multifacetada, incapaz de ser reduzida à plantation exportadora inerte diante das conjunturas internacionais. Muito além do antigo esquematismo, temos aqui uma esfera econômica construída pelos indivíduos, e não externa a eles. Inserida no conjunto das relações, a economia não existe como realidade autônoma. Esse conjunto tão rico de textos certamente contribuirá em muito para uma maior compreensão da realidade colonial brasileira, além de funcionar como estímulo para novas pesquisas, sempre necessárias.

Notas

1. CARDOSO, Ciro. O trabalho na colônia, in: LINHARES, Maria Yedda L. (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 69-88.

2. Cabe sublinhar, aqui, o pioneirismo de Pierre Verger, cuja tese, embora defendida em 1968, somente foi publicada em português na década de 1980: VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, 3ª edição.

3. HESPANHA, Antonio M. As vésperas do Leviathan – Instituições e poder político em Portugal. Século XVII. Lisboa: Almedina, 1994.


Organizador

Antonio Carlos Jucá de Sampaio – Professor do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Autor da obra como “Na Encruzilhada do Império”; e Organizador das Obras “Conquistadores e Negociantes” e “Monarquia Pluricontinental e a Governança da Terra no Ultramar Atlântico Luso”. E-mail: [email protected]

SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá (Org d)


Referências desta apresentação

SAMPAIO Antonio Carlos Jucá de. Apresentação. Revista Ultramares. Maceió, n.6, v.1, ago./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

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