El ámbito doméstico en el Antiguo Régimen: de puertas adentro | Gloria Franco Rubio

Gloria Rubio certamente não é unanimidade entre seus estudantes na Universidad Complutense de Madrid, onde leciona desde 1980 e a partir de 2011 tornou-se catedrática de História Moderna. Facilmente se encontra na web comentários pouco elogiosos a seu estilo inusitado de conduzir as aulas, exigindo silêncio absoluto, proibindo o uso de smartphones, tablets ou notebooks pelos alunos, demandando trabalhos manuscritos, sendo pouco receptiva a questionamentos e comentários ou mesmo fornecendo um cabedal gigantesco de detalhes difíceis de serem absorvidos a cada encontro semanal. No entanto, para quem já a assistiu apresentando suas pesquisas numa conferência, palestra ou mesa-redonda, o relato de tais idiossincrasias por seus ex-alunos parece só agregar certa peculiaridade a uma historiadora que prima pela análise aprofundada e arguta de seus temas de interesse, esmiuçando fontes e desvendando as relações subjacentes à superfície daquilo que, usualmente, se fazia mais perceptível no cotidiano ao longo da Idade Moderna europeia.

O presente livro é resultado de dois extensos projetos de pesquisa coordenados pela docente madrilena entre 2000 e 2008, ambos tratando da vida cotidiana na Espanha da Modernidade e financiados pela UCM e pelo governo espanhol1. Se em Cultura y mentalidad en la Edad Moderna, livro que publicou ainda em 1998, a pretensão de Rubio era construir um amplo panorama sobre a Europa ocidental entre os séculos XV e XVIII, a partir de enfoques da História Cultural e da análise da Cultura Material, a virada do século XX para o XXI levou-a a voltar o seu olhar cada vez mais para o ambiente doméstico e para o papel das mulheres neste espaço. Para aqueles que já conhecem os escritos da autora, fica fácil perceber essa trajetória em diversos de seus artigos e capítulos2 ou mesmo nos números temáticos (RUBIO, 2002; RUBIO, 2015) que organizou nos Anejos dos Cuadernos de Historia Moderna, periódico especializado que dirige há vários anos.

Certamente há, no presente trabalho monográfico de Rubio, ecos da influência de Michelle Perrot e de seus Les femmes ou les silences de l’Histoire (1998), Mon histoire des femmes (2006) e L’Histoire des chambres (2009), embora apenas o último seja referenciado pela historiadora espanhola. Seu texto também parece dialogar, em diversos momentos e de modo muito próximo, com o obrigatório Vita di casa: abitare, mangiare, vestire nell’Europa Moderna, da italiana Raffaella Sarti (1999), que mesmo não sendo explicitamente citado ao longo do livro, do mesmo modo que a obra de Perrot é referenciado ao final da obra.

Uma das qualidades principais presente neste e em outros livros de Gloria Rubio, bem como em seus inúmeros artigos em periódicos especializados e capítulos em coletâneas, é buscar a reconstrução de realidades extremamente complexas por meio do uso dos mais diversos tipos de fontes de pesquisa, ampliando enormemente a visada a partir da qual constrói suas análises. Com destreza e erudição ímpares, ela consegue conciliar fontes iconográficas, arquitetônicas, literárias, cartoriais, judiciais, legislativas e da cultura material – os semióforos de Krzysztof Pomian a que ela se refere logo na introdução da presente obra – apresentando-os numa narrativa que ressalta a ideia de que todas as relações e estruturas sociais se fazem primeiramente no campo das representações – aliás, embora não referencie Roger Chartier, é possível perceber a presença de sua influência e deste conceito que é dos mais caros ao docente do Collège de France, posto que tal ideia vai permeando, em diversos momentos, o texto de Rubio, talvez por ela ter recorrido ao La domination masculine do sociólogo Pierre Bourdieu (1998), sabidamente em vida amigo íntimo e profundo interlocutor do historiador de Lyon.

Outro mérito do livro, que vai surgindo à medida em que se avança em sua leitura e sem que a autora se valha de artifícios falaciosos – ou que possam parecer oportunistas ao vincular-se aos temas hoje em evidência na agenda de historiadores mundo afora – é que sua narrativa busca sempre, de forma equilibrada e a partir das fontes utilizadas, dar voz ao sexo feminino, fornecendo destaque às mulheres por meio de seus próprios testemunhos, em contraposição ao discurso misógino e patriarcal que pretendia mantê-las sob controle estrito, regulando seus corpos, mentes e atitudes. Rubio pretende assim demonstrar como, de maneira muito hábil, tais personagens acabaram por converter-se em protagonistas absolutas naquelas realidades em que lhes era franqueado um mínimo de liberdade, moldando tais ambientes dentro de uma lógica que lhes era toda própria. De fato, esta é a principal premissa de El ámbito doméstico en el Antiguo Régimen: de puertas adentro, ou seja, investigar como se deu o processo de definição simbólica da moradia como “lar” durante o setecentos europeu, com destaque para seus desdobramentos dentro do universo pequeno-burguês urbano sem, contudo, deixar de salientar as especificidades de cada uma das outras condições sociais intervenientes em fins do Antigo Regime, tanto nas cidades como no meio rural.

A novidade deste livro de Gloria Rubio talvez não esteja tanto na forma até certo ponto detalhista por meio da qual ela vai desvendando as camadas constituintes do processo formativo do modelo familiar surgido a partir da vitória política continental da burguesia na Europa de finais do setecentos. Na verdade seu grande achado é juntar insights que estavam separados em abordagens historiográficas diferenciadas e costurá-los num mesmo tecido coerente e claro, propugnando um olhar que concilia não apenas sua larga experiência com a História do Cotidiano às questões de gênero, tendo como pano de fundo um viés feminista sem panfletarismos desnecessários, como já destaquei, mas o vincula também e imprescindivelmente à História Cultural, à História da Arte, à História da Família e a approaches mais tradicionais como a História Econômica, a História da Ciência ou a História da Alimentação. Desse modo, ao lado de fontes históricas mais usuais, como documentos notariais, por exemplo, constam também manuais de urbanidade, tratados científicos, cadernos de cozinha, receituários de botica e cosmética, relatos de viagens e mesmo textos filosóficos. É justamente daí, desta capacidade enorme de compilação e análise de fontes tão diversas que emerge aquela que, em meu entendimento, é uma de suas principais qualidades como historiadora: promover de fato a interdisciplinaridade na pesquisa e na construção da narrativa historiográfica, utilizando a erudição como ferramenta auxiliar na elucidação de relações existentes, mas nem sempre perceptíveis, entre os diversos sujeitos e grupos sociais e que, como sabemos, permeiam todo o substrato dos processos históricos.

Ecoando Norbert Elias, Rubio percebe no embate privado X público a criação de novas sociabilidades ao longo da Idade Moderna, especialmente no século XVIII, no entanto ela destaca a especificidade daquilo que denomina de domesticidade burguesa, um processo que, circunscrito ao espaço doméstico, teria reforçado as relações assimétricas entre as responsabilidades e protagonismos de homens e mulheres. Por isso mesmo, a própria estrutura do livro reflete seu subtítulo, “de portas adentro”, e aos poucos o leitor vai mergulhando neste ambiente construído, na visão da autora, a partir de uma conjuntura social muito própria e específica desta nova classe que emerge para o protagonismo político e econômico europeu ao mesmo tempo em que o Antigo Regime agoniza, ou seja, a burguesia.

Dividido numa introdução, seguida de quatro partes subdivididas em capítulos e arrematado por uma conclusão e uma pequena seleção de textos de época comentados, de modo geral o livro de Gloria Rubio, se observado apenas a partir de seu sumário, poderia parecer apenas descritivo, como tantos outros manuais de História Moderna. Isso por que a autora realmente organiza seu texto de maneira um tanto ortodoxa, como já destaquei, mas a explicação didática dos objetivos do trabalho, de sua metodologia e das fontes utilizadas, feita logo na introdução, onde também se aclara o próprio conceito de domesticidade, serve na verdade para auxiliar o leitor neófito a se aclimatar melhor à ambiência que irá percorrer a partir dessas páginas iniciais.

Na primeira parte, propondo-se a analisar as origens da domesticidade burguesa, Rubio se volta à compreensão da ascensão do individualismo, passando pelo processo de domesticação que opôs as esferas pública e privada – aí a grande presença de Norbert Elias, sem dúvida – e instituiu o chamado processo civilizatório, abordando tanto os manuais de civilidade como as questões relativas ao avanço do ideal de privacidade e daquilo que a autora nomeia de “triunfo da intimidade”.

Na segunda parte, passando-se ao ambiente privado, a historiadora mira sua análise sobre a família e as inúmeras conformações dos grupos domésticos ao longo do Antigo Regime, abordando laços de parentesco e as diversas relações estabelecidas entre homens e mulheres, por meio de diferentes modelos de matrimônio e sua evolução, bem como a conjugalidade e o surgimento de uma nova concepção de maternidade, fazendo contrapontos interessantes entre os universos católico e protestante.

Na terceira parte, afinal, surge toda uma análise sobre o próprio espaço doméstico burguês e sua gradativa transformação simbólica de casa em lar. Para tanto, Rubio esmiúça desde as questões culturais envolvidas no uso das habitações como também sua gradativa passagem de espaço laboral para ambiente doméstico, processo que refletiu as profundas e específicas transformações da dinâmica econômica e social da Europa Moderna.

Na quarta e última parte do livro aparece de forma mais evidente o principal conceito que aos poucos vai sendo construído em suas páginas: o de que o ambiente doméstico burguês de finais do Antigo Regime propiciou a construção de uma idealização da mulher como “anjo do lar”, simbolismo que adentrou o oitocentos e também teve desdobramentos sobre a representação ideal da imagem masculina, especialmente a do “pai de família”.

Nas conclusões, sintetizadas na forma de apenas dez tópicos distribuídos em quatro páginas, Rubio procura mostrar, de forma concisa e didática, as principais linhas de força de seu trabalho, ao mesmo tempo em que lança sementes para possíveis continuidades em suas investigações. Trata-se de um fecho interessante para um trabalho que trata de uma realidade tão complexa: não há conclusões definitivas, e o que se percebe a partir das colocações da autora é que sempre se faz necessário ao historiador continuar a perseguir a compreensão do passado. Afinal, não é mesmo essa a curiosidade que move a todos nós, adeptos de Clio?

Por fim, resta esperar que as editoras tupiniquins comecem a se interessar em traduzir e publicar entre nós alguns historiadores espanhóis como Gloria Franco Rubio e tantos outros que trabalham com a abordagem da História Cultural e da História das Mulheres, desenvolvendo pesquisas de alta qualidade como a sua e tratando das mais diversas temporalidades, a fim de facilitar o acesso a seus escritos e também maior diversidade e intercâmbio de ideias na formação de novos historiadores brasileiros.

Notas

1 “Usos, costumbres y vida cotidiana en la España del siglo XVIII” (2000-2004) e “La vida cotidiana en el ámbito doméstico durante el Antiguo Régimen” (2005-2008) (Rubio, 2015, p. 06-07).

2 Apenas para destacar alguns dos textos escritos por Gloria Rubio que orbitam o tema deste seu livro: “La contribución literaria de Moratín y otros hombres de letras al modelo de mujer doméstica”, Cuadernos de Historia ModernaAnejos, vol. VI, 2007, p. 221-254; “La vivienda en la España ilustrada: habitabilidad, domesticidad y sociabilidad”, publicado em El mundo urbano en el siglo de la Ilustración (organização de Ofelia Rey Castelao e Roberto López), vol. II, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2009, p. 125-136; “La vivienda en el Antiguo Régimen: de espacio habitable a espacio social”, Chronica Nova – Revista de Historia Moderna de la Universidad de Granada, n. 35, 2009, p. 63-103; “El nacimiento de la domesticidad burguesa en el Antiguo Régimen: notas para su estudio”, Revista de Historia Moderna – Anales de la Universidad de Alicante, n. 30, 2012, p. 17-32.

Referências

BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Éditions du Seuil, 1998.

PERROT, Michelle. Les femmes ou les silences de l’Histoire. Paris: Flammarion, 1998.

______. Mon histoire des femmes. Paris: Éditions du Seuil, 2006.

______. L’Histoire des chambres. Paris: Éditions du Seuil, 2009.

RUBIO, Gloria Franco. Cultura y mentalidad en la Edad Moderna. Sevilha: Mergablum, 1998.

______ (org.). De mentalidades y formas culturales en la Edad Moderna. Madri: Publicaciones Universidad Complutense de Madrid, 2002.

______ (org.). Condiciones materiales y vida cotidiana en el Antiguo Régimen. Madri: Publicaciones Universidad Complutense de Madrid, 2015.

______. Curriculum Vitae. Madri: Comisión Interministerial de Ciencia y Tecnología, jan. 2015. Disponível em: http://www.ucm.es/data/cont/docs/995-2015-01-13- CVGloriaFranco.pdf. Acesso em: 04 jun. 2019.

SARTI, Raffaella. Vita di casa: abitare, mangiare, vestire nell’Europa Moderna. Bari: Giuseppe Laterza & Figli, 1999.


Resenhista

Carla Mary S. Oliveira – Professora Associada IV da Universidade Federal da Paraíba. Pós-Doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9642-8081


Referências desta Resenha

RUBIO, Gloria Franco. El ámbito doméstico en el Antiguo Régimen: de puertas adentro. Madrid: Editorial Síntesis, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Carla Mary S. O mundo doméstico europeu no Antigo Regime: uma visada a partir da história cultural e da história das mulheres. História, histórias. Brasília, v.7, n.14, p. 139- 144, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

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