El futuro es un país extraño: una reflexión sobre la crisis social de comienzos del siglo XXI | Josep Fontana I Làsaro

A tópica do imperativo da esperança do mundo melhor remonta ao Gênesis, ao dilúvio e aos tempos imemoriais. Mas foi a partir do século 18, no torvelinho da corrente de dessacralização do fluxo da vida, que essa categoria ganhou o sentido de progresso e evolução permanente que sugere que dias melhores sempre virão. A leitura retroativa indicava que a vida das pessoas vinha de melhora em melhora desde o êxito dos Otomanos sobre Constantinopla. O século 19 não simplesmente ia amplificar os ganhos da revolução industrial do ferro, do algodão e da especialização do trabalho como avançaria sobre diversos campos de inovação científica e tecnológica que desembocaria na belle époque da fin-de-siècle. Esse tempo sublime, eivado de sentimentos de identificação e de necessidades de reconhecimento, levaria os mandatários germânicos após Bismarck a querer contar para além de suas fronteiras impondo aos demais a outorga de seu lugar ao sol.

Essa obsessão de poder culminaria no horror de 1914-1918 e no inferno de 1939-1945. Essas carnificinas globais insuflariam as condições para o sucesso dos incidentes que partiram da Estação Filadélfia e dos dez dias que abalaram o mundo. E, no mesmo diapasão, conduziram ao amadurecimento e consolidação do nazismo, do fascismo e de seus similares. The Atlantic Charter de 14 de agosto 1941, subscrita pelo presidente Roosevelt e pelo primeiro-ministro Churchill, retificava a promessa de futuros dias melhores. O medo e a náusea do statu quo do under war depois da queda de Hitler e de seus acólitos produziram o império do humanitarismo representado pela obsessiva ditadura dos direitos humanos. Os dias gloriosos da primavera econômica do após-1945 conheceram as fagulhas do Armagedão nos movimentos de Praga e Paris dos fins dos sessentas, mas foi durante os setentas – 1971, 1973, 1975 – que a concretude do tempo massacrou as ilusões e assaltou toda a candura que restava em almas inocentes. A sociedade dos homens, em todas as direções cardeais, passou a claudicar e se depreciar.

A diferença entre ricos e pobres, desde muito exorbitante, começou a ficar flagrante. 20, 18, 10, 7 até chegar ao 1% dos mais afortunados foram progressivamente acumulando quantias similares às reservas somadas dos 80, 82, 90, 93 até chegar aos 99% dos pobres, miseráveis e desgraçados. A brutalidade da crise das finanças de 2007-2008 foi a expressão direta das diversas estratégias e táticas dos mais poderosos deste mundo em superar as falências que as crises dos anos de 1970 lhes impuseram suportar. A obscena diminuição e privatização do Estado levada aos extremos nos momentos dos governos de Ronald Reagan e Margareth Thatcher foram aprofundadas pela sodomia legislativa da presidência de Bill Clinton. Nesse ambiente, grassavam os prognósticos que entendiam que o breve ou longo século 20 terminara muitíssimo mal. Mas mal se suspeitava que o após 9/11 de 2001 poderia provocar desconsolos ainda maiores. O enfeixo de crises financeiras, econômicas e institucionais, desde então, foi ganhando invólucro de impropério moral e social. Nem o fascismo e o nazismo ou o franquisco e o salazarismo somados ao comunismo maoísta ou soviético vilipendiaram tão profundamente as conquistas seculares dos populares e as esperanças prospectivas da gente do comum. A demonstração dessa amarga e irresoluta constatação da situação internacional dos dias presentes produzida em longuíssima duração envolve o interesse nuclear do recente El futuro es un país extraño do historiador catalão Josep Fontana i Làzaro.

Na senda do sucesso irretorquível de Por el bien del imperio (Barcelona: Passado & Presente, 2011) que em pouco mais de trinta meses ganhou mais de sete reimpressões por Espanha e mundo hispânico, El futuro es un país extraño avança e desdobra os mesmos temas e problemas nele esboçados ou indicados.

Dividido em quatro concisos capítulos somados a uma elucidativa introdução e a uma intimidatória seção de 63 páginas de notas bibliográficas, El futuro es un país extraño tem muito menos volume que Por el bien del imperio, que ultrapassa em folga as mil páginas. Entretanto, a vigor, a consistência, o destemor ao risco, a erudição e o sublime tato para exposição límpida de ideias, bem ao estilo dos maiores prosadores de nosso tempo, segue sendo a marca do mestre catalão, desde muito reconhecido como um dos intelectuais mais luminosos de sua geração em todo o mundo.

Praticamente nenhum debate importante de depois da primavera árabe de 2011 ficou ausente da mirada de Fontana i Làzaro que analisa friamente os bastidores da superação da crise financeira de 2008 – que foi totalmente resolvida e manejada em 2009 – e lança uma consequente provocação capital a respeito da saída da crise econômica com seguinte questionamento: “recuperación ¿para qué y para quién?” (p. 23).

Com o mesmo entusiasmo, ele vai mostrando que as famílias americanas de classe média perderam, entre 2007 e 2010, 38,8% de sua riqueza ao passo que, no mesmo período, os 400 americanos mais ricos aumentaram as suas posses em 13%. Depois ele indica, em complemento, que no ano de 2011, 1 em cada 6 norte-americanos estava abaixo da linha da pobreza.

Essas suas proposições aferem a duas situações absolutamente pouco ou nada consideradas. A primeira diz respeito ao fato de que a superação da crise financeira com intensivas políticas de austeridade conferiu aumento da concentração de riqueza e a segunda sugere que o poder potencializou o empobrecimento dos mal-nascidos.

Essa imoralidade de laivos pornográficos aludida por Josep Fontana i Làzaro acentua aquilo que Niall Ferguson, na senda de Daron Acemoglu e James Robinson, identifica como “the great degeneration” das instituições ocidentais atuais.

Degeneração porque, contrário às aparências, a crise financeira de 2008 não resulta de “desregulamentação” como sugere o mainstream de economistas, mas de consciente e conivente adequação jurídica e legal à insana acumulação indecente de capital por parte dos mais potentados. Essa simbiose institucional, explicitada por Fontana i Làzaro, ajuda a entender, entre outros assuntos, a promiscuidade dos financiamentos de campanha que expressam a acentuação da privatização da política mundo afora.

O lobby de grandes empresas norte-americanas – que chega a depositar mais dinheiro em contas de campanha que em pagamento de impostos –, conforme demonstra o historiador catalão, impõem candidatos a todos os cargos eletivos do país. Isso explica, no entender de Fontana i Làzaro, a estupidez de muitos postulantes ao sufrágio universal nos Estados Unidos.

No mesmo sentido, Fontana i Làzaro denuncia o que ele chama de “privatización de los ciudadanos” (p. 43). Para tanto, ele vai mostrando que uma das faces mais mesquinhas da retórica da austeridade é o desmantelamento dos serviços básicos de saúde e educação e correção. No afã de tudo privatizar, argumenta Fontana i Làzaro, muitos países são induzidos a piorar e ridicularizar os serviços até destruir toda sua credibilidade.

O exemplo mais violentamente nonsense para Fontana i Làzaro reside no sistema prisional norte-americano. Por ser privado, convém que as cadeias de lá estejam permanentemente lotadas com no mínimo com 90% de sua capacidade ocupada. Para isso, foram desenvolvidos historicamente institutos legais para ampliar as condicionantes de vigilância e punição. Nesse planeta cadeia que são os Estados Unidos da América existe, pelas contas de Fontana i Làzaro, 730 presos para cada 100.000 habitantes ao passo que na China a proporção não passa de 170 por 100.000. Essa cadeização, em muito aumentada pelos Patriotic Acts, filhos legítimos da guerra ao terror do presidente Bush, incide diretamente sobre os imperativos das liberdades civis dos sempre mais visados, a saber: negros e latinos.

Seguindo a discussão sobre as inconveniências da ditadura da austeridade, Fontana i Làzaro atravessa o Atlântico para se referir as tentativas de salvamento financeiro e econômico da Europa via planos de autoridade. Em seu entender, as lideranças europeias lançaram mão da “irracionalidad” para tratar das dificuldades de países como Espanha, Portugal, Grécia, Itália.

No plano global, o nosso intelectual catalão mostra que entre 2010 e 2012 o mundo dispunha de 200 milhões de desempregados, 6,4 milhões de jovens sem esperança de conseguir emprego, 1,3 milhões de pessoas sem luz em casa, 8 milhões com luz apenas alguns dias na semana, 20,9 milhões de pessoas sujeitadas ao trabalho forçado e 870 milhões de desnutridos. No quesito desnutrição, ele observa que a evidência não é a falta de alimentos, mas o aumento indiscriminado dos preços dos produtos básicos da dieta universal dos mais modestos, a saber: milho, trigo, arroz e soja. O continente mais afetado por essa situação é justamente a África.

Não muito longe da África, a situação na Ásia vai ficando cada vez menos simples no entender de nosso autor. O crescimento chinês mantém sua marcha, mas com percalços. O Japão, desde muito estacionado, vive momentos de indecisão agudizados pelas ondas que consumiram Fukushima. A Índia, esse festivo parceiro de Brasil, Rússia e China nos BRICs, patina em todos os quesitos de superação de suas insuficiências estruturais. Para ficar num exemplo, Fontana i Làzaro sugere que o crescimento da Índia em 2010 foi de 10,4% e ela dispunha de algo próximo a 500.000 engenheiros civis quando, em verdade precisaria de ao menos 4 milhões.

Fontana i Làzaro ainda menciona em sua reflexão aspectos da situação latinoamericana com o eclipse dos governos de esquerda e do eterno mal-estar no Oriente Médio, especialmente fruto das guerras no Iraque e no Afeganistão.

O núcleo de seu esforço é demonstrar a complexidade do mundo que nos toca viver. Seu El futuro es un país extraño, para além de continuação e sofisticação de Por el bien del imperio, expressa, antes e acima de tudo, a consolidação da trajetória de toda uma vida de mais de oitenta anos dedicada a compreender e explicar os acontecimentos humanos. São diversos os valores desse livro – como o são os seus estudos sobre o ancien régime. Discorrer sobre o presente e em escala global – ou seja, avançar ensaios de global history, international history, diplomatic history do tempo presente – segue incompreensivelmente marginais entre historiadores brasileiros e estrangeiros. Das maiores contribuições de Josep Fontana i Làzaro neste livro é justamente demonstrar que o presente também pertence à História, e cabe aos historiadores reconhecê-lo.


Resenhista

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor-pesquisador no Ceri-Sciences Po de Paris. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FONTANA I LÀZARO, Josep. El futuro es un país extraño: una reflexión sobre la crisis social de comienzos del siglo XXI. Barcelona: Passado & Presente, 2013. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso da. Na agonia dos tempos. História Revista. Goiânia, v.21, n.2, p.198-202, maio/ago.2016. Acessar publicação original [DR]

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