Embedded Autonomy. States & Industrial Transformation | Peter Evans

Passada a “onda” neoliberal que determinava a prevalência do mercado sobre o Estado e a diminuição das funções deste apenas àquelas que garantem os contratos e exercem o monopólio da violência, novas discussões e perspectivas se abrem em busca do desenvolvimento.

Para tanto foi preciso – e aqui um reconhecimento da coerência dos argumentos neoliberais – que aquele Estado que exercia funções cada vez mais capitais no desenvolvimento econômico perdesse sua capacidade de agir. O “Welfare State” consolidado como alternativa ao modelo liberal do pós-Guerra se mostrou sem fôlego diante dos desafios cujas soluções eram mais urgentes e necessárias.

Tais problemas, tão eloqüentes como a incapacidade do Estado em poupar e investir, além de organizar de maneira legitima os grupos sociais a ponto de evitar que conflitos distributivos chegassem a um impasse que pudesse paralisar o desenvolvimento, foram sendo percebidos como reflexo da inabilidade geral do Estado em promover, e mesmo participar, das atividades econômicas em conjunto com os atores privados.

Em outras palavras, o Estado, ao contrário do que até então ocorria, passou a ser visto como o promotor do atraso, da ineficiência e irracionalidade econômica; portanto o melhor a fazer era diminuir, e se possível acabar, com as funções exercidas por ele em prol do desenvolvimento econômico.

De fato, após duas décadas de crescimento econômico através de políticas ativas de intervenção estatal na economia, em 1973 esse sucesso do “Welfare State” se mostrou muito pequeno frente aos problemas que gerou. Mais que isso, não garantia, através de suas políticas tradicionais – monetária, fiscal, industrial -, o desenvolvimento econômico. Ao contrário, os desafios que emergiam não geravam respostas do Estado, como o persistente desemprego associado às altas taxas inflacionárias.

Assim, a solução defendida por muitos, e que se tornaria dominante nas duas décadas posteriores, se organizava em torno da idéia do Estado mínimo e sem participação no funcionamento da economia. Em suma, a solução neoliberal (ou neoutilitarista) acreditava estar acabando com as discrepâncias da economia geradas pelo “inchaço” do Estado e pela sua incapacidade de promover o equilíbrio econômico.

Porém, a solução neoliberal propunha a eliminação – ou quase isso – da participação estatal na economia, acreditando que a racionalidade dos mercados garantiria o resultado positivo. Isso precipitou uma discussão quase caricatural a respeito do funcionamento da economia e da relação entre Estado e mercado, pois de maneira maniqueísta, não se questionou qual ou onde estava o problema, e sim definiu, de maneira genérica, a ineficiência do Estado.

Essa perspectiva pôde ser vista, com destaque, nas administrações Tatcher e Reagan, na Inglaterra e EUA, respectivamente, durante a década de 1980. Não por acaso, esses dois casos servem de emblema, pois ao assumirem tais posturas precocemente, representaram a sinalização dada ao mundo por duas potências hegemônicas – principalmente os EUA – de qual caminho outros Estados deveriam seguir. Portanto, a solução proposta por esses dois países se espalhou pelo mundo, precipitando a defesa do “Modelo Único” sob a égide neoliberal.

Pois foi exatamente nesse sentido que o debate se reorganizou a partir de meados da década de 1990. Analisando os resultados promovidos pela “onda neoliberal”, não era possível afirmar que houve melhoras decorrentes da diminuição do Estado ante as forças do mercado. Com isso algumas perguntas – que deveriam ter sido feitas na década de 1970 – apareceram para dar mais consistência à discussão: todos os Estados são iguais? Portanto, os problemas de um são os mesmos que os dos outros? Se não, como identificar, em cada um, quais foram os principais percalços ao desenvolvimento econômico? E, principalmente, será que a questão é mesmo “quanto” de Estado, e não “que tipo” de Estado poderia ajudar e/ou promover o desenvolvimento?

Tentando responder tais questões, o livro de Peter Evans é um excelente passo adiante, buscando entender um possível equilíbrio entre o Estado e o mercado e passando ao largo da simplificação pouco produtiva feita pelos neoliberais. Mais que isso, Evans aponta as diferenças históricas – indiscutivelmente fundamentais – entre países diversos para entender os motivos que levam uma mesma ação estatal produzir resultados diferentes, dependendo do país e de como foi aplicada.

Para tanto, Evans generaliza algumas dúvidas a fim de elucidar a questão e, fazendo isso, sinaliza suas preocupações centrais, contemplando entre outras:

  • Quais são os possíveis papéis do Estado no desenvolvimento econômico?;
  • Entre eles, qual é o melhor para determinado setor produtivo?;
  • Qual a relação entre a burocracia do Estado e a sociedade?; e
  • Como tal relação pode definir o sucesso ou fracasso no desenvolvimento econômico?

Para responder tais questões, Evans se concentra em alguns Estados-nacionais e os diferencia através do conceito – de difícil tradução – que dá nome ao livro: “embedded autonomy”. Algo próximo à “autonomia engajada”. [1] Esse conceito, tal como exposto pelo autor, define a relação entre o Estado, através de seus tentáculos burocráticos, e a sociedade. Usando a tradição webberiana, Evans destaca que um bom relacionamento entre grupos organizados da sociedade, principalmente aqueles que podem definir o investimento, como a burguesia empresarial, e uma bem formada e recrutada burocracia, pode contribuir para o desenvolvimento econômico de uma nação. Ou seja, a autonomia dada aos agentes privados não é excludente em relação ao engajamento que eles têm em relação aos projetos de desenvolvimento nacionais propostos e ou gerenciados pelo Estado. Assim, estabelecer o “tipo” de Estado é fundamental, sendo que alguns são “predadores”, outros ”engajados”, e outros, ainda, “intermediários”, segundo o autor.

No primeiro caso – os “predadores” ― estaria o Zaire sob a ditadura de Mobuto. No segundo caso – os “engajados” – estariam Japão, Coréia do Sul e Formosa, dada a “parceria” entre a burocracia estatal e grupos organizados na sociedade civil. E no terceiro caso – os “intermediários” – estariam o Brasil e a Índia, já que, no caso brasileiro é possível ver a presença de “ilhas” burocráticas modernas e engajadas em projetos de desenvolvimento junto à iniciativa privada – como o BNDES ― em meio a permanência de interesses privados, arcaicos e personalistas. No caso indiano, percebe-se o desenvolvimento de setores específicos – como a informática – em meio ao atraso e à manutenção de estruturas sociais embasadas na desigualdade do sistema de castas.

Feita essa diferença, Evans se concentra em avaliar a atuação de Brasil, Coréia do Sul e Índia para mostrar como determinadas ações do Estado voltadas a específicos setores produtivos geraram resultados diferentes, tais como o setor têxtil, o siderúrgico e o automobilístico. Porém, a grande preocupação do autor é o setor de Tecnologia da Informação (T.I.) já que, segundo ele, esse é o setor que representa a vanguarda do processo produtivo em nível global. Em outras palavras, Evans insere na discussão o fenômeno da globalização, rompendo a antiga divisão internacional do trabalho e repensando a teoria da dependência ao somar às funções do Estado aquela que estabelece a relação entre a economia e as empresas domésticas com a economia global e as empresas transnacionais.

Após a divisão setorial, Evans estabelece quatro possíveis papéis do Estado (alguns, também, de difícil tradução):

  1. Custódia ou Regulação (Custodians);
  2. Demiurgo (Demiurge);
  3. “Midwife”;
  4. “Husbandry”.

O que os diferencia é o grau de autonomia e engajamento que, dependendo do setor, o Estado estabelece entre sua burocracia e a sociedade.

Nesse sentido, o papel regulador (Custodians) é basicamente o do policiamento e da estipulação de regras para o funcionamento da economia. Por exemplo, impedindo que o capital migre para atividades inapropriadas e/ou ilícitas. Esse papel pode também ser visto em algumas medidas de promoção, por exemplo, de importações ou, ao contrário, de restrições através de medidas protecionistas.

O Estado-demiurgo (demiurge) prevê um Estado-produtor, mesmo em setores que possam competir com o produtor privado. Ao contrário dos serviços/produtos tradicionalmente oferecidos pelo Estado – como transporte, energia e saneamento, que seriam considerados como funções reguladoras – o Estado-demiurgo atua, normalmente, em setores que considera inadequados ou pouco atrativos à burguesia nacional. Em outros termos, o Estado pode atuar em setores cujo investimento inicial e a manutenção dos investimentos não estão ao alcance da burguesia. Esse ponto fica ainda mais evidente quando analisamos, como faz Evans, países que não se formaram historicamente fundamentados numa burguesia forte. O caso brasileiro é, nesse sentido, exemplar, pois a soma dos dois papéis ― regulador e demiurgo – foi visível em determinados momentos da história recente, como na última década de 1940.

Outro papel possível para o Estado, o “midwife”, consiste em “maximizar a indução dos formadores de decisão”. Nesse caso, o Estado deve estimular o capital privado – diminuindo os riscos e antecipando e/ou garantindo retornos ― a investir em determinados setores. Diz Evans que, se o objetivo for a promoção de um novo setor, este papel é o mais adequado. Também é possível uma combinação entre o papel da Custódia e do “midwife”, dado que, por exemplo, a adoção de barreiras alfandegárias pode estimular o capital privado a investir em um setor que o Estado define como fundamental. Subsídios podem fazer a mesma função.

E o último papel desempenhado pelo Estado é o do “husbandry”, cuja definição pode ser vista de variadas maneiras, assim como o de “midwife”. Em suma, o papel de “husbandry” consiste numa sinalização, suporte e, muitas vezes, na formação da mão-de-obra e no desenvolvimento da tecnologia que serão usados por um setor produtivo. Nesse caso, mais do que o incentivo do “midwife”, o Estado é parceiro e fornecedor de insumos para determinados setores produtivos.

O setor de Tecnologia da Informação (T.I.) apresentada por Evans representa, segundo ele, o maior desafio que os Estados, principalmente aqueles de industrialização tardia, enfrentam no processo de modernização e globalização econômica.

Esse setor envolve alta tecnologia e a necessidade de formação de mão-de-obra especializada; além de concorrer – e muitas vezes se associar – com o capital transnacional. Portanto, os papéis do Estado, definidos pelo autor, se sobrepõem e se transformam em primordiais para o desenvolvimento do setor de T.I.

Além disso, a tecnologia da informação tornou-se sine qua non para a inserção de um país e de sua sociedade no mercado global, dado que uma das características desse processo do fim do século XX é exatamente a capacidade de produzir, analisar e circular as informações.

Sendo assim, desenvolver o setor de T.I. tornou-se, para os países, mais do que a capacitação para ter auto-suficiência num produto cujo valor agregado é alto e, portanto, difícil de ser importado; mas também condição para compartilhar as vantagens possíveis da globalização. E, nesse caso, o papel do Estado foi fundamental e muitas vezes responsável pelo aparecimento do setor, já que os vários papéis representados por ele foram exercidos em conjunto. Regulação, produção, sinalização e parcerias foram se somando para viabilizar o setor de T.I. nos países estudados por Evans (Coréia do Sul, Índia e Brasil): a regulação e a sinalização (“midwife”), como a montagem de barreiras alfandegárias e as reservas de mercado; a produção em casos envolvendo a segurança nacional; e a parceria (“husbandry”) em casos onde o investimento no setor era financiado por bancos estatais, além da criação de órgãos burocráticos de incentivos à produção.

Mesmo com as variáveis de cada um deles e com o maior ou menor sucesso relativo, todos eles conseguiram estabelecer e desenvolver o setor de T.I. através de ações do Estado conjugadas com a iniciativa privada, nacional ou transnacional.

Portanto, mais importante do que diferenciar, em detalhes, a experiência de cada país, o livro de Evans representa a retomada, mesmo que de maneira diferente, da discussão acerca do papel do Estado no desenvolvimento econômico; discussão essa que se perdeu com o colapso do “Welfare State” no início da década de 1970.

Além disso – que bastaria por si só –, Evans inclui em sua apresentação a questão que ressalta que a formação de uma burocracia bem-formada e engajada no projeto de desenvolvimento econômico de seu país, mesmo que autônoma, pode contribuir positivamente na inserção desse país na economia global. Ou seja, Evans lança uma luz sobre um dos maiores desafios do mundo contemporâneo: como estabelecer mecanismos de atuação política e pública na economia, já que o Estado tem suas funções circunscritas ao âmbito nacional e a economia, no âmbito global?

A resposta está aberta, mas certamente Evans contribui para mostrar que ela não é como pensavam os neoliberais.

Notas

1. Não há tradução para o português do livro de Evans. O professor João Estevão, da Universidade Técnica de Lisboa, traduz o título Embedded Autonomy” como “Autonomia Encrustada” em seu artigo Desenvolvimento econômico e mudança institucional: O papel do Estado, publicado na revista da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), Notas Econômicas, em edição especial dedicada à Conferência Internacional Ecomomic policies in the new millenium/Políticas económicas no novo milênio, realizada na mesma universidade em abril de 2004.


Resenhista

Vinícius De Bragança Müller e Oliveira – Mestre em Economia pela UNESP/Araraquara e Bacharel em História pela PUC-SP.


Referências desta Resenha

EVANS, Peter. Embedded Autonomy. States & Industrial Transformation. New Jersey: Princeton University, 1995. Resenha de: OLIVEIRA, Vinícius De Bragança Müller e. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 04, n. 08, p. 108-113, julho, 2007. Acessar publicação original [DR]

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