El tribunal de la soberanía. El poder legislativo en la conformación de los Estados: América Latina/ siglo XIX | Marta Irurozqui

Cuca Arsuaga Borja Echevarria Marta Irurozqui y Diego Hergueta Imagem Cucarsuaga
Cuca Arsuaga, Borja Echevarria, Marta Irurozqui y Diego Hergueta | Imagem: Cucarsuaga

Uno de los rasgos centrales de las independencias fue el establecimiento de regímenes políticos fundados en el principio de la soberanía popular, principio en que se asentó la legitimidad de la acción política en el primer siglo de vida republicano. Esa transformación clave e irreversible en la forma de pensar las relaciones entre sociedad y política, se expresó a través de la eclosión de asambleas, parlamentos, congresos y diversos órganos representativos que se propusieron encarnar el principio de la soberanía popular y, en su nombre, sancionar leyes y dotar de gobernabilidad a los nuevos Estados. El libro que reseñamos en estas páginas, El tribunal de la soberanía. El poder legislativo en la conformación de los Estados: América Latina, siglo XIX, coordinado por Marta Irurozqui, tiene el enorme mérito de aproximarse y analizar, desde una perspectiva colectiva, un fenómeno que a pesar de su innegable relevancia –incluso hasta nuestros días– no ha concitado desde la historiografía política e intelectual un interés proporcional: el papel del poder legislativo en la formación de las repúblicas hispanoamericanas del siglo XIX.

¿Vale la pena estudiar el poder legislativo en el siglo XIX hispanoamericano? Marta Irurozqui señala en la sugerente introducción del volumen, que dos mitos historiográficos profundamente arraigados, con su respectiva carga de lugares comunes y reiteración acrítica de estereotipos, han incidido en el escaso interés que la historiografía ha concedido al poder legislativo. El primero de ellos sería el supuesto fracaso de un constitucionalismo decimonónico espurio e imitativo de otras tradiciones políticas, como el mundo francés y angloamericano, que justamente por eso no habría tenido verdadero arraigo popular. El segundo sería la fuerte impronta del caudillismo en la región, con su consiguiente personalización del poder, que habría vuelto irrelevantes a las leyes y constituciones sancionadas en la época. La tradición presidencialista en la región sería otra de las pruebas del rol secundario que habría asumido el poder legislativo en las nuevas repúblicas. Matizando o contrariando dichos lugares comunes, especialmente sobre la base de la transformación historiográfica que desde la década de 1990 ha renovado la historia política latinoamericana del siglo XIX, Marta Irurozqui sostiene que la proliferación de textos constitucionales en aquel período pone de relieve la intensa actividad del poder legislativo en la región, la pronta adopción del constitucionalismo y la instalación de un pluralismo político. Agrega que el descrédito del poder legislativo y su importancia es tributario, en buena medida, de una lectura que se caracteriza por la “sublimación del Ejecutivo”, asociada a “la impronta historiográfica de los sentimientos antiparlamentarios y de descrédito y deslegitimación del liberalismo por parte de los regímenes autoritarios subsiguientes” (p. 13). Leia Mais

Soberanías fronterizas: Estados y capital en la colonización de Patagonia (Argentina y Chile, 1830-1922)

State colonization is an ongoing and lively academic topic that challenges standard histories of nineteenth-century nation-building in Latin America. Soberanías Fronterizas: Estados y Capital en la colonización de Patagonia by Alberto Harambour falls within that historiographical heritage, demonstrating that a transnational history guided by postcolonial theory can offer a fresh interpretation of archival documents and historical events. Soberanías Fronterizas is a trans-Andean history that uses a global framework, examining the process of state colonization by the republican governments of Chile and Argentina in the southernmost Patagonia territories of Magallanes and Santa Cruz (and Tierra del Fuego), respectively, from 1830 to 1922. The book is organized into four thematic chapters; the first two explore the judicial constructions that were used by the dominant forces to colonize the territory and the second two analyze the development and institutionalization of the new economic and political powers. Leia Mais

Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes | António Manuel Hespanha (R)

O contexto e a intencionalidade da produção dos discursos devem ser levados em conta para que não haja interpretações que fujam das possibilidades apresentadas pela documentação. Mesmo uma leitura feita a contrapelo possui limites interpretativos. A sensibilidade do pesquisador costuma ser bom guia para evitar enganos, mas não pode ser o único. Associar um corpo teórico e metodológico à sensibilidade de pesquisa ajuda na execução de uma obra mais coesa.

Iniciamos o texto com essa reflexão por uma dupla razão. António Manuel Hespanha mesmo se propondo a fazer um livro mais focado na exposição das tradições jurídicas portuguesas e não na análise dessas tradições, não se permite escapar da teoria e do método que caracterizam o trabalho do historiador. A segunda razão é o próprio Hespanha quem introduz. Ele diz que os historiadores ainda esperam encontrar as coisas como elas realmente aconteceram, mesmo que duvidem das narrativas que lhes chegam como fontes. E duvidam ainda mais daquelas que “são muito senhoras de si”. Problema que se agrava quando as narrativas em questão são as jurídicas.

O autor resgata a ideia de “uma sociedade construída sobre o direito”, consoante o medievalista russo Aaron Gurevič, para demonstrar o nível de abrangência desses textos. Bem como fica expresso no título do livro, “direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes”, eram todos campos cobertos pela Justiça. E, para cada um desses campos, havia subdivisões. A intenção dos juristas letrados era produzir uma legislação que pudesse dar conta de aspectos muito gerais e, ao mesmo tempo, capaz de arbitrar sobre casos extremamente específicos. A literatura jurídica tendia a fazer uma exposição pormenorizada da organização e do funcionamento social. “Ou seja, os juristas descrevem muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo” (posição 79-81). O que, por vezes, pode conduzir o historiador ao engano de pensar na sociedade portuguesa de Antigo Regime como um corpo homogêneo e seguidor das leis. Mas, havia nuances como a tradição, o prestígio dos sujeitos, as regionalidades, as distâncias, entre outros aspectos que interferiam na forma de dispensar a Justiça. E como bem apontou António Manuel Hespanha no trecho acima citado, o texto jurídico recaia na intencionalidade dos homens responsáveis pela sua produção.

O direito das mulheres pode nos servir de modelo para mostrar como a lei buscava circunscrever do quadro mais geral aos mais específicos. O Antigo Regime português apresenta as mulheres como seres frágeis e facilmente coagidos. O feminino era considerado praticamente inexistente diante do masculino. No entanto,

[…] quando a imagem da sua particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o saber jurídico amplifica e projeta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos – fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade (posição 7471- 7473).

Essa avaliação tornava as mulheres juridicamente menos responsáveis pelos seus atos. Elas não poderiam, assim como os rústicos e idiotas, responder pelo crime de falso testemunho, pois lhes seria difícil distinguir a verdade do erro. Porém, em determinados casos a “imprudência” e “fragilidade” feminina eram desconsideradas. As mulheres comerciantes são bons exemplos disso. A prática do comércio seria suficiente para garantir faculdades mais amplas para as mulheres, ainda que não comparáveis às masculinas. A legislação, como é possível notar, não apenas inferiorizava as mulheres como também lhes fechava qualquer possibilidade de obter um posto de mando. Preceito que apenas o monarca tinha poder para constranger.

Conforme alerta Hespanha, o conteúdo do texto jurídico sobre as mulheres no Antigo Regime é dos mais suscetíveis a avaliações feitas de acordo com o entendimento que temos hoje do Direito (e, principalmente, do feminino). A estranheza provocada é normal. Reflete as diferenças entre o presente e o universo social do tempo estudado. Atualmente, no mínimo nos pareceria risível – para citar outro detalhe dentro de atribuições mais amplas – incluir entre as cláusulas de um contrato de locação de imóvel a previsão de realocar o inquilino caso a propriedade fosse assombrada por almas penadas. Não obstante, para uma sociedade imersa no pensamento religioso, esta era uma prática possível. Resguardar as diferenças entre os períodos, ou melhor, localizar no tempo determinadas práticas jurídicas é um dos pontos fortes de “Como os juristas viam o mundo (1550-1750)”.

Outro ponto forte da obra é não ter preocupações quanto à extensão dos capítulos e muito menos do livro como um todo. O que permite descrições longas sobre os campos cobertos pelo saber jurídico. Isso foi possível porque, ao contrário das suas obras anteriores, o pesquisador realizou a publicação de forma independente. É provável que uma editora aconselhasse o autor a retirar algumas partes para tornar o livro mais “enxuto”. Sem essas barreiras, o trabalho surge como uma leitura que também pode ser feita em forma de consulta. Por duas razões. Primeiro devido ao fato de apenas a introdução (capítulo 1) e o epílogo (capítulo 9) adiantarem e reforçarem as ideias apresentadas nos demais capítulos. Os outros sete capítulos são independentes entre si. E, quando a argumentação exige questões já trabalhadas, Hespanha as repete. As argumentações e conceitos só não são repetidos quando um tópico é exatamente igual ao outro em termos interpretativos.

A segunda razão diz respeito à corriqueira dificuldade que os historiadores têm com o universo de escrita dos oficiais da justiça, comumente, carregados de termos técnicos. E, quando os historiadores tentam sanar seus déficits de informação auxiliados por livros de direito atual, “é o pior dos remédios, pois os leva a aprisionar o passado nas categorias do direito de hoje” (posição 131-132). Hespanha prefere o “desconforto” da leitura dos textos clássicos, ao usar compreensões jurídicas que atualmente estão superadas, do que cair no anacronismo. Esse tipo de resguardo metodológico, ele diz ser positivo tanto para os historiadores que lerem a obra, como também para os juristas. Afinal, a aproximação que se busca é com o universo dos magistrados de então.

Para evitar enganos, Hespanha aconselha a leitura de alguns interpretes das leis portuguesas. Sugere aos seus leitores o mesmo que sugere aos seus alunos, a leitura de “Institutiones iuris civilis lusitani”, de Pascoal José de Melo Freire dos Reis, publicado em finais do século XVIII, e a obra de Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, “Notas de uso practico, e criticas, addições, illustrações e remissões”, datada do início do século XIX. Mas o conselho é seguido por uma ressalva. Por ter sido Pascoal de Melo um reformista e Lobão um conservador, as interpretações de um podem ser facilmente balanceadas pelas do outro. O que não exclui o compromisso que deve ter o profissional da História com a leitura de interpretações feitas para reforçar, reconstruir ou até mesmo extinguir conceitos.

Se com os autores mencionados no parágrafo anterior é possível ter melhores explicações sobre leis pontuais, o que o livro de António Manuel Hespanha oferece é uma visão melhor sobre a tradição jurídica portuguesa. Dito de outra forma, o livro pode ser consultado para tirar dúvidas sobre as formas de pensar e executar o Direito entre 1550 e 1750. As peças jurídicas eram “uma sofisticada construção de juristas letrados, a partir da qual se estabeleciam regras para a vida de todos os dias. Mas também de uma imagem consistente do homem e da sociedade” (posição 34-35).

Como forma de reprodução social a cultura letrada ajudava a aprofundar as categorias sociais. Os letrados, por dominarem o código de escrita e leitura, não poderiam ser vistos, socialmente, como os que não dominavam o mesmo código. Ainda que o objetivo final da legislação fosse conhecido pela maior parte da população, segundo Hespanha, conhecer as especificidades da lei e ter poder para executá-las era o grande diferencial.

Seja como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni) (posição 1148- 1153).

A manutenção dos textos jurídicos em latim ou com expressões latinas, por exemplo, ainda que a maior parte estivesse em vernáculo, aparece como “projeto de poder”. Não apenas por afastar das pessoas o entendimento fino do texto, como dito acima, mas ajudava igualmente a associar as peças jurídicas do mundo sacro (dos saberes religiosos). Servia ainda para a manutenção das hierarquias profissionais no campo do Direito. Os juízes não letrados seguiam mais o direito natural e comum do que os compêndios universitários. E por isso, eram tratados pelos juízes letrados como executores do “direito dos rústicos” ou dos “direitos próprios” (consuetudinário).

Apesar disso, os livros de direito tinham boa circulação. Eram encontrados nas periferias do Reino e do Império, garantindo assim, “o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existirem juristas” (posição 365-366). Nos centros urbanos eram ainda mais comuns. O que não significa dizer que os juristas dispunham de grandes bibliotecas pessoais. Hespanha diz que a lista de livros referência para o trabalho dos juristas e juízes era curta e, ainda menor era o número de títulos de fato utilizados. Na maioria das vezes, o acesso a essas obras só era possível em instituições com boas bibliotecas. A posse pessoal passava pelas dificuldades do valor, transporte e fragilidade das obras.

Ao passar a tradição jurídica portuguesa em revista António Manuel Hespanha explora os campos civil e eclesiástico; o que era válido e inválido para nobres e não nobres; versa sobre os compromissos dos reis com a execução da Justiça e etc. Inclusive, de como as penalidades foram se tornando mais brandas com o passar do tempo. Discorre ainda sobre as gentes e as coisas. Aqueles que não gozavam de nenhuma personalidade ou status, como os escravos, não eram considerados como pessoas, senão como coisas. E, objetos inanimados poderiam aparecer como titulares de direitos, ou seja, personificados. Por exemplo, “um prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a ‘adscrição’, vinculação de certas pessoas a trabalhar certa terra)” (posição 6391-6393). Havia então, sob a avaliação contemporânea, coisas tratadas como gentes e gentes tratadas como coisas. Ainda assim, ambos poderiam ser requalificados, a depender da situação, e enquadrados em outros campos do Direito

Além do que já foi mencionado e de tantos outros temas que ficaram de fora desse comentário, há uma ideia central que perpassa toda a obra. Neste trabalho, António Manuel Hespanha não apenas reforça a sua famosa tese sobre a distribuição dos poderes por diversos polos, como também introduz uma nova tese (ou provocação historiográfica). Trata a visão jurídica exposta como típica da Europa “latina”. O autor reconhece a ousadia da sua afirmação e trata de apresentar algumas razões que o conduzem a tal pensamento. Diz não acreditar em um “espírito latino” ou em uma “cultura latina”. Tampouco considera que esse fenômeno possa ser atribuído aos diferentes panoramas religiosos entre “Sul” e “Norte” da Europa após a reforma protestante.

Para Hespanha, o cerne da questão estava de fato no uso e comunicação do corpus literário. Mesmo antes da cisão religiosa, os juristas do “Sul” discutiam entre si, enquanto os do “Norte” (leia-se alemães, holandeses e ingleses) não tinham uma literatura jurídica muito expressiva. Sendo assim, havia um corpus literário comum entre os juristas ibéricos, italianos e até mesmo franceses, na primeira época moderna. “A identidade ‘do Sul’ é antes uma identidade induzida por um círculo de comunicação” (posição 19801). O que facilita para que parte da historiografia as classifique como corporativas e repletas de falhas de rigor na aplicação das leis. Quem sabe até possa o “sabor latino” do direito comum entre essas sociedades revelar as raízes de parte daquilo que somos hoje.

Notas

1 A obra é vendida exclusivamente pela Amazon. No site da empresa é possível ter acesso ao livro em dois formatos: o físico, com 732 páginas e impresso pela CreateSpace; e digital, com 36.362 posições.

Paulo Fillipy de Souza Conti – Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH – UFPE). E-mail: [email protected]


HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: CreateSpace Independent Publishing Platform (Amazon), 2015.1 Resenha de: CONTI, Paulo Fillipy de Souza. O mundo dos juristas pelos olhos do historiador. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.1, p.296-300, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

Embedded Autonomy. States & Industrial Transformation | Peter Evans

Passada a “onda” neoliberal que determinava a prevalência do mercado sobre o Estado e a diminuição das funções deste apenas àquelas que garantem os contratos e exercem o monopólio da violência, novas discussões e perspectivas se abrem em busca do desenvolvimento.

Para tanto foi preciso – e aqui um reconhecimento da coerência dos argumentos neoliberais – que aquele Estado que exercia funções cada vez mais capitais no desenvolvimento econômico perdesse sua capacidade de agir. O “Welfare State” consolidado como alternativa ao modelo liberal do pós-Guerra se mostrou sem fôlego diante dos desafios cujas soluções eram mais urgentes e necessárias. Leia Mais

Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État | Pascal Ruby

Les Princes de la Protohistoire et l’émergence de l’État vem nos trazer o resultado da Table Ronde Internationale de Naples, organizada pelo Centro Jean Bérard e pela Escola Francesa de Roma em 1994, com o intuito de reunir arqueólogos e historiadores interessados em debater a questão do “poder” e da formação de “Estados” na pré-história, demonstrando que tais questões não são exclusividade das sociedades modernas e que as sociedades pré-históricas tampouco podem ser consideradas como “sociedades sem história”.

Os debates aqui apresentados fundamentam-se, sobretudo, na estreita relação entre a arqueologia e as ciências sociais para o estudo dos fenômenos evidenciados a partir da cultura material, tendo como preocupação central a emergência de “Estados tradicionais” e as desigualdades sociais, econômicas e políticas encontradas em tais sociedades. Não se trata, tão somente, de centralizar-se as discussões em torno do aumento de complexidade social, da mudança de “estágios”, como muitas vezes tem sido abordada essa questão, mas, em especial, de apontar outras possibilidades de interpretação dessas questões, indo além da dicotomia “sociedades de chefia” versus “Estados”. Mais do que explorar “… a validade (…) de um modelo evolucionista único, que faria dos ‘príncipes’ uma etapa necessária e suficiente, que, inevitavelmente, precede a emergência do Estado…” (p.7) ou do que avaliar o modelo de “sistema mundial”, visava-se aprofundar o diálogo acerca do “fenômeno principesco”, destacando outras perspectivas e formas de abordagem.

Contudo, isso não significa que tais questionamentos tenham sido abandonados (haja vista o acalorado debate que perdura entre Patrice Brun e Michael Dietler sobre as chefias celtas da Europa central durante a Idade do Ferro (1)), mas sim que esteja buscando outras teorias, a fim de diversificar o debate, afastando os pesquisadores da hegemonia de um modelo teórico. Assim, os trabalhos contidos neste livro priorizam três pontos: o reconhecimento do fenômeno principesco; a articulação das dimensões simbólicas, imaginárias e reais deste fenômeno principesco e a instabilidade característica deste fenômeno e suas possíveis relações com a formação dos Estados, apontando questões teóricas e sua aplicação ao caso das sociedades da Península Ibérica, helênica, etrusca, hallstattianas, cita, africanas e polinésias, destacando a diversidade do fenômeno principesco e as singularidades regionais.

Esse encontro veio, então, contribuir, por um lado, para a contenda acerca das categorias conceituais usualmente empregadas para o estudo das sociedades ditas “pré-históricas” (mormente aquelas da Idade do Ferro) e sua disparidade ou imprecisão com relação às especificidades históricas de cada uma dessas sociedades e, por outro, para indicar outras vias de análise, que abarquem quer o conflito e a instabilidade no seio dessas sociedades (pouco abordado até então), quer a dimensão simbólica do poder, sua relação com o sagrado, os rituais e a construção da coesão social (fundamentais para alicerçar o poder político).

No que tange aos Estudos Célticos, tal discussão se revela assaz importante, uma vez que a maior parte dos estudos tem sido norteada pelo debate acerca dos processos de hierarquização e de institucionalização da chefia e de emergência de Estado, havendo uma hegemonia, até hoje pouco questionada, do modelo de “sistema mundial”; o qual é defendido, neste livro, por Patrice Brun, no capítulo A gênese do Estado: as contribuições da arqueologia e por Jean-Paul Demoule, em A sociedade contra os príncipes. Este último, no entanto, apesar de se manter vinculado ao modelo de “sistema mundial” e à concepção de que as mudanças verificadas nas sociedades hallstattianas se devem ao contato com o Mediterrâneo e ao controle do acesso aos bens de prestígio importados, ao levantar temas como “conflito”, “manipulações ideológicas”, “monopólios do imaginário”, “violência do poder” e “resistência ao poder”, contribui para ampliar os questionamentos a propósito do poder nas sociedades celtas da Idade do Ferro, principalmente sobre a institucionalização da chefia nas tribos hallstattianas e a emergência de Estados em fins do período lateniano na Europa centro-ocidental.

Por outro lado, consideramos de suma relevância nos afastarmos da supremacia desse modelo, trazendo para este debate o âmbito do simbólico e do sagrado a fim de que possamos ampliar nosso conhecimento sobre essas sociedades, tal como no caso dos capítulos de Michael Dietler, Rituais de comensalidade e a política de formação do Estado nas sociedades “princiescas” do início da Idade do Ferro, e Michael Rowlands, A economia cultural do poder sagrado. O primeiro, centra-se no estudo da “dimensão política dos rituais de comensalidade” marcados nos achados dos assentamentos da zona ocidental de Hallstatt, estabelecendo a relação entre as práticas rituais e o processo de hierarquização e fortalecimento da chefia nas tribos hallstattianas, demonstrando serem elas instrumentos fundamentais para o desenvolvimento de tais processos. O segundo, apesar de trabalhar com as regiões ocidentais de Camarões, renova o debate acerca do “poder sagrado” com sua proposta de “economia sacrificial”, de modo a nos permitir alargar a reflexão a respeito da relação entre o poder e as práticas rituais, enfocando a necessidade de se enveredar por uma abordagem que não ignore a dimensão ritual/ simbólica, nem tampouco se limite a reproduzir categorias ocidentais/ não-ocidentais.

De modo geral, a questão do simbólico permeia a maior parte dos trabalhos apresentados neste encontro de Nápoles, destacando-se como um dos aspectos centrais para a análise do poder, das práticas políticas e da própria formação dos Estados nas sociedades pré-históricas, mostrando ser necessário abarcarmos não somente aspectos sociais, políticos e econômicos, mas, também, culturais, sem os quais não nos será possível aprofundar o debate acerca do fenômeno principesco nessas sociedades.

Nota

1. Sobre este debate, além dos trabalhos de Dietler e Brun presentes neste livro, ver: ARNOLD, B. and GIBSON, D.B. (eds.) Celtic Chiefdom, Celtic State. Cambridge: Cambridge University Press, New Directions in Archaeology, 1995; BRUN, Patrice. Contacts entre colons et indigènes au milieu du Ier millénaire av. J-C. en Europe. Journal of European Archaeology, 3 (2), 1995: 113-123; DIETLER, Michael. The Cup of Gyptis: rethinking the colonial encounter in early-Iron-Age western Europe and the relevance of world-systems models. Journal of European Archaeology 3(2), 1995: 89-111.

Adriene Baron Tacla – Probationer Research Student Institute of Archaeology, University of Oxford. E-mail: [email protected]


RUBY, Pascal (Dir.) Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État. Naples-Rome: Centre Jean Bérard/École Française de Rome, 1999. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. O Fenômeno Principesco e a Emergência do Estado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p.75-76, 2001. Acessar publicação original [DR]