Enciclopédia Negra | Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano, Lilia Moritz Schwarcz

Com suas quase setecentas páginas, a Enciclopédia Negra foi pensada como uma reação a “um grande e constrangedor silêncio” (p. 9). Na introdução, os organizadores fazem uma dura crítica aos arquivos, manuais e livros didáticos, que em grande parte contribuíram para silenciar por muito tempo a história, a trajetória e as lutas da população negra. Partindo dessa constatação, propõem como mola-mestra da obra dar visibilidade a personalidades negras africanas e afro-brasileiras que viveram no Brasil desde os primeiros séculos de colonização até tempos recentes. A obra apresenta mais de 550 personalidades e está organizada em 417 verbetes individuais e coletivos. Visando alcançar um público amplo, seus autores proporcionam uma linguagem clara, direta e acessível a todos.

O caráter didático é sem dúvida uma das maiores qualidades da obra, permitindo a estudantes, professores e pesquisadores acessarem um número extraordinário de personagens anônimos e outros tantos consagrados de nossa história. O material utilizado para a construção das biografias se apoia em uma vasta produção historiográfica, além de uma minuciosa pesquisa literária, antropológica, arqueológica e sociológica. Os autores também apontam que se utilizaram de fontes primárias e secundárias, como era de se esperar, de pesquisadores com a vasta experiência e expertise.

Além da importância em promover a visibilidade das personagens, o livro expõe outras preocupações. Buscando evitar um problema comum em outros trabalhos historiográficos, os organizadores tiveram dois cuidados especiais. O primeiro quanto à diversidade regional, quando assumem o compromisso de “introduzir as histórias de personagens afro-brasileiros espalhados por toda parte do Brasil, de Norte a Sul” (p. 10). E a promessa foi cumprida. Quase todas as capitanias, províncias ou estados brasileiros foram representados. Pode-se dizer que há equilíbrio na distribuição geográfica dos biografados. Certamente, regiões como Rio de Janeiro e Minas Gerais apresentam um número significativo de personalidades destacadas, mas Bahia, Pernambuco, Maranhão e outras regiões, muitas vezes negligenciadas, também ocupam um importante espaço.

O segundo ponto trata da valorização de personagens que foram silenciadas ou invisibilizadas por questões de gênero, ou seja, mulheres negras e pessoas LGBTQIA+ negras. Apesar dos avanços nas últimas décadas, tanto nas pesquisas como em todos os campos do conhecimento, há uma clara resistência da sociedade brasileira em dar visibilidade (e aceitação) a conquistas e representatividade de pessoas consideradas das margens, seu protagonismo, liderança e resistência ao meio social hostil. Pessoas que podem e devem servir de exemplo às gerações mais novas. A obra busca romper os silêncios que as gerações passadas aprenderam a reproduzir sobre personalidades consagradas, cuja cor da pele foi retocada em pinturas e fotos e cuja sexualidade foi ignorada. Quantas escritoras, cientistas, artesãs só recentemente tiveram suas trajetórias reveladas ou valorizadas? Quantas personagens nunca foram biografadas enquanto homossexuais, mesmo aquelas que conseguiram alcançar prestígio, cargos de poder e sucesso? Este silenciamento só serviu para impedir que pessoas negras se utilizassem dessas personagens como referências para sua formação pessoal ou coletiva. Formação esta necessária não apenas voltada para dentro, mas principalmente para fora, com o objetivo de extrapolar as fronteiras muitas vezes fechadas em torno da própria comunidade. Neste ponto, a obra coloca as personagens no centro do debate, apresentadas em sua totalidade, evidenciando-se a importância da representatividade delas no respectivo tempo e lugar históricos dos quais fizeram parte.

Mas antes de tratar de outros pontos mais diretamente relacionados aos biografados, considero importante falar um pouco sobre a estrutura do livro. A obra está, obviamente, organizada por ordem alfabética. De forma geral, os biografados ocupam, em média, duas páginas da Enciclopédia. Alguns, certamente devido às informações disponíveis, ocupam apenas uma ou meia página, enquanto outros chegam a até três páginas. Alguns ganharam um breve relato, como Abigail Moura (c.1904- 1970), nascido em Minas Gerais, responsável pela criação da Orquestra Afro-Brasileira, em 1942 (p. 23). Cada biografado tem, ao final de seu texto, referências bibliográficas simplificadas, constando apenas o nome completo dos autores utilizados como fontes e outros como suporte para entender o contexto histórico. Uma bibliografia completa, com todas as referências, pode ser consultada ao final do livro.

O volume dispõe de um índice de verbetes, contemplando todos os nomes dos biografados seguidos das páginas onde se localizam. Possui ainda um índice remissivo, que permite ao leitor ampliar as possibilidades de pesquisa, sendo remetido a outras personagens citadas com as quais estabeleceram-se conexões, temas e palavras-chave. Outro ponto positivo refere-se ao convite realizado a 36 artistas negros para que produzissem retratos imaginados de biografados que não possuem registros iconográficos. Com isso, personagens como Domingos Álvares (c.1710-?), Rufino José Maria (séculos XVIIIXIX), Liberata (c.1780-?), entre outros, tiveram suas faces “reveladas” por esses artistas, que se utilizaram das mais variadas técnicas e livre interpretação.

Sobre a periodização, um ponto destacado pelos autores é a importância do pós-abolição. Isso porque esta obra não se limitou ao período marcado pela escravidão da população negra. O livro vai muito além da visão limitada sobre o povo africano e afrodescendente. Evidentemente que eles, escravizados e escravizadas, estão presentes, mas sempre lembrados como agentes históricos protagonistas, que lutaram de diferentes formas contra a escravização de seus corpos e mentes. Ao mesmo tempo, emerge um número surpreendente de pessoas livres e libertas dedicadas às mais variadas atividades: médicos, artesãos, atletas, músicos, professores, escritores e até um ex-presidente.

Podemos encontrar tanto biografias individuais quanto coletivas, como a dos quilombolas remanescentes de Palmares (pp. 24-25), dos imigrantes africanos na ocupação de Santa Catarina (pp. 49-50) ou, ainda, a dos tradutores, guias e cientistas negros da Amazônia (pp. 265-267). A questão da resistência é um ponto sempre destacado, evidenciando-se o papel de líderes pouco ou nada conhecidos do público geral, mesmo em revoltas e insurreições bem conhecidas. Nesse ponto, a presença da liderança feminina ganha um lugar especial, a exemplo das mulheres Acotirene e Aqualtune na resistência de Palmares (pp. 25-26). No atletismo, optou-se também pela biografia coletiva, destacando-se os medalhistas olímpicos Adhemar Ferreira da Silva (1927-2001), João do Pulo (1954-1999) e Nelson Prudêncio (1944-2012, pp. 28-29).

Entre os biografados individualmente, há um grande número de anônimos, além dos já citados anteriormente. Estes vêm ocupando uma vasta discussão historiográfica e têm se destacando em numerosas teses e dissertações, além de artigos publicados em revistas acadêmicas. Buscando popularizar e dar maior visibilidade a esses estudos, os autores apresentam, de forma resumida, biografias que levam o leitor a conhecer estudos científicos muitas vezes reservados a um leitor especializado, agora transformados em uma síntese de rápida e fácil leitura. Entre tantas histórias, temos o caso de Esperança Garcia (século XVIII, pp. 187-188), considerada (supostamente) a primeira pessoa escravizada a ter escrito um documento por suas próprias mãos, onde expressa desejos, vontades e expectativas; Caetana (c.1818-?, pp. 102-103), que recusou o pretendente escolhido por seu senhor; Donga (c.1890-1974, pp. 164-165), importante músico do século XX, que morreu pobre e esquecido, tendo sua obra reconhecida apenas a partir da década de 1970. Outros tantos biografados já são bem conhecidos do público brasileiro, mas são apresentados com nuances que valem a pena conferir: Aleijadinho (1730- 1814, pp. 37-39), Madame Satã (1900-1976, pp. 355-359), Carlos Marighela (1911-1969, pp. 106-107), Cartola (1908-1980, pp. 110-112), Carolina Maria de Jesus (1914-1977, pp. 108-110), Solano Trindade (1908- 1974, pp. 531-532), entre outros.

O protagonismo feminino negro pode ser verificado nas trajetórias de várias mães de terreiro, em tempos e espaços diversos, a exemplo da Mãe Andressa (1854-1954), da Mãe Biu (1914-1993), da Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018), (pp. 359-372) entre outras. Por meio dessas biografias é colocada em evidência a resistência cultural de raízes africanas e o papel da religiosidade e das lideranças femininas em contextos marcados por perseguição, intolerância e luta por espaço e respeito, perpassando por discriminação de gênero e racismo estrutural. E por falar em resistência em tempos de intolerância e perseguição, os mestres de capoeira não poderiam ser esquecidos. Destacam-se dois personagens na divulgação e perpetuação dessa arte, ainda hoje lembrados pelos capoeiristas de todo o Brasil: Mestre Bimba (1899-1974, pp. 429-431) e Mestre Pastinha (1889-1981, pp. 434-435).

Outro ponto importante levantado pelos autores refere-se a personagens consagrados de nossa história, mas que tiveram a sua cor disfarçada, retocada ou simplesmente não mencionada por biógrafos, manuais, livros didáticos ou até mesmo por eles próprios. Talvez o caso mais conhecido e já amplamente discutido seja Machado de Assis (1839-1908). Assim como outras personalidades públicas de nossa história, ele também “não alardeava sua cor e origem”. No entanto, como bem destaca seu verbete, ele não deixou de se posicionar em prol das populações negras, inclusive em suas obras (pp. 352-354).

Se a cor da pele de Machado de Assis nunca foi tema de discussão nas salas de aula, quem se lembra de ter ouvido de um professor alguma menção à origem afrodescendente de Mário de Andrade (1893-1945)? Talvez, o simples fato de ele ser incluído na Enciclopédia traga estranheza para a maioria dos brasileiros. Certamente, devido ao próprio contexto histórico em que cada um deles viveu, Machado deixou uma marca mais evidente sobre o seu posicionamento quanto à escravidão e à luta da população negra. Em um momento histórico bem diferente, mas não menos marcado pelo preconceito e pela intolerância, “é possível dizer que a vida íntima de Mário de Andrade ficou sempre envolta no silêncio. Sua família durante muito tempo escondeu o fato de o escritor ser negro e homossexual” (pp. 421-423). Ao carregar o duplo estigma da cor da pele e da sexualidade dissidente, Mário de Andrade teve e ainda tem suas origens e vida íntima silenciadas, temas a serem evitados inclusive em tempos intolerantes como hoje. Trazer à tona aspectos tão importantes no processo de construção de identidades e representatividades ao jovem educando pode trazer sérios problemas para professores mais compromissados com uma formação mais ampla e antirracista. Posso até ouvir o burburinho nos corredores da escola ou as queixas apresentadas por pais apressados em saber quem ousou manchar a memória de tão consagrado escritor.

Além dos casos acima, o que dizer de nosso ex-presidente Nilo Peçanha (1867-1924)? Qual a importância de apresentar ao público geral, principalmente jovem, que no início do século XX tivemos, sim, um presidente negro? Assim como outros personagens que tiveram a cor disfarçada, não faltam relatos da época que evidenciam as dificuldades enfrentadas por Peçanha por trazer na pele as heranças da ancestralidade africana. Autores contemporâneos e estudiosos do tema destacaram o fato de o político tentar sempre esconder sua origem racial e a cor de sua pele. Contudo, adversários políticos, em diferentes oportunidades, traziam a questão à tona, chamando-o pejorativamente de “mulato”. Por essa postura de negação, foi duramente criticado por intelectuais negros (como Abdias do Nascimento, também biografado nesta obra) por “retocar suas fotografias oficiais, buscando branquear a sua pele” (pp. 461-463).

De forma geral, é digno de nota que ainda hoje não seja evidenciado entre educadores, comunicadores e outros agentes que promovem a cultura que esses personagens carregavam não apenas a cor negra em sua tez, mas que todos têm uma história diretamente relacionada à questão da negritude. Alguns foram vítimas do preconceito, da intolerância, do silêncio, dos tabus ou pelos seus posicionamentos contra a escravidão, ou ainda em debates polêmicos envolvendo teorias raciais hoje superadas, como no caso de Tobias Barreto (1839-1889, pp. 554-556).

Não somente personagens consagradas tiveram suas origens silenciadas, mas também aquelas que, embora pouco conhecidas pela maioria da população, tiveram um grande papel em suas áreas de atuação profissional. Elas também não foram e não são usadas como exemplos de representatividade negra, a exemplo do médico Juliano Moreira (1872- 1933), frequentemente chamado de “fundador da psiquiatria no Brasil”. Nas palavras do seu verbete, “o que poucos contam é que ele era negro e africano de origem” (pp. 321-323).

A enciclopédia também se destaca por não se limitar a personagens afastados no tempo. A biografia de personagens cujas mortes violentas geraram revoltas e indignação e ainda estão bem presentes na memória da população brasileira revela um posicionamento importante dos organizadores quanto a trajetórias que foram interrompidas pela violência policial ou miliciana. Neste ponto, destaca-se o caso do pedreiro Amarildo Dias de Souza (c.1965-2013, pp. 40-41), assassinado no Rio de Janeiro após uma operação policial marcada pela arbitrariedade e conivência de autoridades estaduais. O caso comoveu o país. A família nunca mais teve notícias suas e o corpo nunca foi encontrado. Ainda mais comovente foi o caso da vereadora Marielle Franco (1979-2018, pp. 419-421), assassinada também no Rio de Janeiro por milicianos. Apesar da prisão dos assassinos, a pergunta tantas vezes repetida por familiares, amigos e simpatizantes continua sem resposta: “Quem mandou matar Marielle?”.

A Enciclopédia negra tem uma proposta que não é exatamente inovadora em sua concepção, seguindo uma tradição que remonta ao século XVIII, herdeira do humanismo francês de D’Alembert e Diderot. Ao mesmo tempo, inova ao colocar no centro da pesquisa pessoas negras espalhadas por quase todas as regiões do país, escravizadas, livres e libertas; pessoas e trajetórias diversas, que vão desde quilombolas até presidentes da República. Ou, como se referem os autores, “negros, negras e negres”, revelando nesta rebeldia ortográfica a preocupação em evidenciar trajetórias as mais variadas possíveis, sem negligenciar, silenciar ou retocar a cor ou a sexualidade dos biografados. É sem dúvida um material que deve estar ao alcance de educadoras, comunicadores e outros setores responsáveis pela formação de nossos jovens para, assim, quem sabe, rompermos o ciclo vicioso da invisibilidade da população negra, que clama por mais e mais espaço de participação, em seu significado mais amplo.


Resenhista

Robson Pedrosa Costa – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. https://orcid.org/0000-0003-3837-940X


Referências desta Resenha

GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Orgs.). Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: COSTA, Robson Pedrosa. Personalidades negras: trajetórias, visibilidade e representatividade. Afro-Ásia, 66, p. 612-619, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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