Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro | Esther Priszkulnik

A editora Perspectiva contribui, já há algumas décadas, de forma decisiva para os debates sobre a arte teatral no país. Não é diferente com o livro Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro, lançado em junho de 2013. Nessa obra, a pesquisadora Esther Priszkulnik, falecida em 2009, lança luz e estabelece um diálogo entre três universos teatrais distintos: o da Rússia do início do século XX, o do mundo judaico e o do Brasil dos imigrantes e do modernismo. Baseado em textos apresentados no curso de Pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e na dissertação de mestrado da autora, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o livro é organizado por J. Guinsburg e Luiz Henrique Soares e dividido em três partes: Ensaios, Projeto de uma encenação e O teatro ídiche em São Paulo.

Na primeira delas é feito um breve panorama sobre algumas vanguardas artísiticas que impulsionaram o surgimento de um novo teatro na Rússia nos três primeiros decênios do século XX, personalizado principalmente na figura de Vsevolod Meierhold. O trajeto delineado é didático e evidencia conhecimento em história da arte ao explicitar correntes que romperam com o figurativismo, como o impressionismo, o cubismo, o cubifuturismo, o construtivismo – este último fundamental no contexto de renovação artística soviética. A autora relembra que a concepção do espaço para o homem é diferente de acordo com a época em que ele vive e com seu contexto cultural, o que acarreta diferentes formas de se ver o mundo, já que “Toda imagem encarna um modo de ver”.[2] Dessa maneira, o impressionismo lançou a ideia de que a cor depende da incidência da luz e de que o instante é fugidio; o cubismo uniu as conquistas da ciência e da técnica às artes primitivistas em uma preocupação construtiva baseada na decomposição, superposição, entrelaçamento e multiplicidade de planos; o futurismo representava o movimento e o dinamismo das imagens e dava atenção especial ao som da palavra em um elogio à vida moderna, às máquinas e à velocidade. Lançando olhar mais apurado sobre o contexto russo, a autora defende que o cubofuturismo foi o principal desenvolvimento da arte do país no início do século XX. Essa corrente, cujos principais expoentes foram Khlébnikov e Maiakovski, teria somado ao dinamismo futurista as formas geométricas e radicalizado a montagem e desmontagem das palavras, apontando para uma percepção das possibilidades do idioma. A inquietação e rebeldia desses grupos de artistas imbuídos de um desejo renovador e em busca de novas pesquisas formais levou à criação do construtivismo por volta de 1912, principalmente por meio do INKHUK (Instituto de Cultura Artística), em Moscou, e de artistas como Tátlin e Rodchenko. A defesa de um artista-engenheiro, ligado à sua sociedade, capaz de unir arte e indústria em um processo racional de produção industrial, fez com que o construtivismo realizasse um elogio à máquina, “[…] fonte de poder do homem no mundo moderno, capaz de libertá-lo do trabalho ao transformar este em arte”. [3] Esse grande movimento de intensa atividade artística e de renovação, por meio do qual a Rússia foi centro de encontros e trocas de ideias de toda Europa, teria unido as principais influências da pintura e da poesia para a formação de um importante teatro de vanguarda, já que

Os espetáculos teatrais mais significativos surgiram do clima fantasioso e cintilante da nova pintura. As descobertas da multiplicidade de novos espaços, as possibilidades de cor e luz liberadas da perspectiva renascentista, confluíram para o teatro. Sua manifestação em cena alterou gradativamente o palco italiano, levando para ele todos os recursos de forma e cor da pintura e os efeitos das palavras sonoras dos poemas cubofuturistas.[4]

Apesar da análise interessante e pertinente, a autora nega um desenvolvimento próprio à arte teatral ao se valer de uma perspectiva desenvolvimentista que afirma a “paternidade” de outras artes e ao desconsiderar a criação de outros tipos de teatro na Rússia que não foram influenciados pelo construtivismo e pelo cubofuturismo, como o de Stanisliavski. O paradigma de um novo teatro, para Priszkulnik, é aquele desenvolvido por Meierhold. Em sua arte – grandes espetáculos de massa que se utilizavam das conquistas da “técnica moderna” – se faziam presentes uma dramaturgia ágil, uma cenografia múltipla que permitisse a simultaneidade de ações e a dinamicidade, novas disposições cênicas e novas técnicas de representação que levavam a mudanças na relação palco-plateia. Para Meierhold, era crucial o problema da forma, e sua cenografia era uma máquina cênica imbuída de técnica e produtividade, em que a função utilitária para o ator era primordial. Sua renovação teatral passava, então, pela revelação da estética do processo de trabalho e se valia das conquistas na poesia e nas artes plásticas.

Após delinear um panorama histórico e apontar as inovações do teatro russo no início do século XX, Esther Priszkulnik, na segunda parte do livro, se lança em proposta ousada. Os aspectos da teoria construtivista lhe fornecem as principais linhas para idealizar o espaço cênico e os figurinos para uma montagem inexistente do texto dramático O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade. Para ela, a obra do escritor modernista tem diversos pontos de convergência com o teatro de Meierhold, como a abordagem do mundo da industrialização, a crítica a uma velha ordem, a presença de elementos circenses e do teatro de revista. Segue-se uma longa sequência de imagens de um projeto de encenação que almeja aproximar os parâmetros construtivistas às intenções do texto de Oswald, por meio das quais a autora sugere respostas próprias e livres. Nesse trajeto, há uma exigência na alteração do olhar do leitor, que precisa se desvencilhar de uma matriz teórica para perceber o livro em seus diversos significados, que vão de um percurso didático à criação artística e à pesquisa histórica. No entanto, a proposta de se colocar as imagens no livro corre o risco de se tornar uma especulação não aplicável, carente de sentido artístico e histórico mais profundo, além de não ser desenvolvido ou explicado o texto O homem e o cavalo, o que gera uma lacuna para aqueles que não o conhecem.

Na terceira parte, o livro traz apontamentos baseados na dissertação de mestrado da autora sobre o teatro ídiche em São Paulo. Partindo de um projeto inicial de 1977 do professor Jacó Guinsburg, – que visava a estruturação de um banco de dados com estatísticas das peças encenadas, autores, gêneros, locais de apresentação, diretores, atores, músicos, empresários – Priszkulnik nos apresenta um panorama histórico do teatro encenado na língua popular do imigrante asquenaze em São Paulo, considerando-o uma de suas principais manifestações culturais. Chama a atenção o número significativo de apresentações e a fidelidade dos espectadores e artistas que, articulados em torno de um idioma e um repertório cultural comum, puderam afirmar sua identidade cultural, evidenciando as relações entre a dedicação filodramática e a manutenção de uma identidade cultural. O teatro ídiche é apresentado enquanto parte do contexto da corrente migratória judaica em São Paulo, entre os anos de 1913 e 1970, quando a sua produção já diminuía drasticamente com uma maior assimilação e uma diminuição do número de falantes do idioma. Esses imigrantes, vindos da Europa Oriental a partir do final do século XIX, a maior parte deles trabalhadores urbanos pobres, foram aos poucos formando instituições culturais, sociedades beneficentes para os recém-chegados, escolas, sinagogas, jornais, bibliotecas, corais, e trouxeram consigo o gosto pelo teatro, já praticado em suas terras de origem, agregando uma expressiva comunidade no bairro do Bom Retiro. Essa vida comunitária, em que o ídiche era o idioma comum para a grande maioria de seus membros, e em que havia receptividade para manifestações culturais, teria sido terreno propício para o desenvolvimento de um teatro ao mesmo tempo tradicional e significativo em suas elaborações de linguagem e debates políticos. A primeira peça de que se tem notícia data de 1913. No entanto, somente a partir da década de 1930, com a consolidação dos jornais em ídiche, há maior documentação disponível. A partir de então, a autora traça detalhadamente as realizações mais expressivas desse teatro, passando pela retração durante a II Guerra Mundial, pelo seu “período de ouro” devido à qualidade e à quantidade na década de 1950, e a sua redução expressiva nos anos 1960, ocasionada pela alteração na prioridade do ensino para o hebraico e pelo avanço do idioma português na comunidade.

São abordados a importância da vinda de companhias internacionais, que muitas vezes atuavam ao lado do elenco local, e nomes de atores, diretores, instituições promovedoras e dramaturgos judeus que proporcionavam repertório comum. Priszkulnik apresenta ainda, trajetórias de atores e suas famílias, depoimentos e, em sínteses quantitativas, listas de espetáculos, principais veículos de divulgação e principais locais de apresentação. Pretende, assim, preencher mais uma lacuna na história do teatro brasileiro, reconhecendo a carência de fontes, mas também demonstrando a suficiência delas para fornecer alguns indicadores dessa construção cultural plena de preservações e transformações em um contexto de experiência urbana comunitária no bairro do Bom Retiro. No entanto, apesar da grande enumeração e explicitação de elementos constituintes do banco de dados, há carência de interpretações. A própria relação entre os temas das três partes do livro – o teatro construtivista russo, o exercício criativo acerca da obra de Oswald de Andrade, e o teatro ídiche em São Paulo – é por demais frágil, cabendo ao professor Jacó Guinsburg estabelecer maiores relações no prefácio. Para ele, o livro lança luz

sobre um período de profundas mudanças na linguagem e no fazer teatral – as primeiras décadas do século passado- e sobre o papel importante que o teatro ídiche nele desempenhou, em duas sociedades ao mesmo tempo radicalmente distintas e em acelerado processo de transformação. [5]

Portanto, a Rússia pós-revolucionária teria sido, até a década de 1930, palco do apogeu do teatro ídiche, principalmente em Moscou, e, após 1930, São Paulo também veria certa efervescência trazida pelos imigrantes, com tradições teatrais, mas também com elementos de um novo teatro. O teatro amador não era, portanto, alheio às novas concepções e técnicas teatrais, apesar de não buscar a inovação por si só e não levantar bandeiras de vanguardas estéticas. Ele seria “[…] o esforço pela criação de um novo teatro para uma nova humanidade e a luta pela sobrevivência material, mas também espiritual, numa nova terra”. [6] Assim, Ensaios de um percurso fornece importante material de pesquisa acerca do teatro ídiche em São Paulo, pela abrangência de seus dados, e é didaticamente claro na explicação de correntes artísticas, mas exige do leitor certa condecendência com a fragilidade metodológica e teórica de maneira a fruir as contribuições da autora, traçando assim, seus próprios percursos.

Notas

1. Resenha escrita no âmibito da disciplina “Produção e circulação do conhecimento histórico nos periódicos científicos”. Agradeço à professora Regina Horta Duarte e aos colegas.

2. PRISZKULNIK, Esther. Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.3.

3. PRISZKULNIK. Ensaios de um percurso, p.12.

4. ______. Ensaios de um percurso, p.14.

5. GUINSBURG, Jacó. No palco do ídiche: um prefácio. In: PRISZKULNIK, Esther. Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.xv.

6. ______. No palco do ídiche: um prefácio, p.xix.


Resenhista

Henrique Brener Vertchenko – Mestrando em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

PRISZKULNIK, Esther. Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro. Organização e notas de J. Guinsburg e Luiz Henrique Soares. São Paulo: Perspectiva, 2013. Resenha de: VERTCHENKO, Henrique Brener. Entre a história e a criação artística: Ensaios de um percurso1. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.3, p.223-227, set./dez. 2014. Acessar publicação original [DR].

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