Eric Hobsbawm: uma vida na história | Richard J. Evans

Richard Evans Eric Hobsbawm
Richard Evans | Foto: David Levene/The Guardian

“Durante toda sua carreira como historiador, Eric foi puxado por um lado por ser compromisso com o comunismo e, de forma mais ampla, pelo marxismo, e por outro por seu respeito aos fatos, aos registros documentais e às descobertas e argumentos de outros historiadores cujos trabalhos ele reconhecia e respeitava. Em alguns pontos […], o primeiro vence o segundo, mas no todo é o segundo que prevalece”.

Richard J. Evans

Lançado em 2019 na Inglaterra, acaba de ser lançada, no Brasil, em 2021, a biografia de Eric Hobsbawm escrita pelo historiador Richard J. Evans. Um livro sobre a vida de um dos mais influentes historiadores, dos séculos XX e XXI, no mundo (Hobsbawm), especialmente popular no Brasil, escrita por um proeminente historiador inglês (Evans), que se destacou por seus trabalhos sobre história da Alemanha no século passado, especialmente sobre o Terceiro Reich.

Eric Hobsbawm a life in history Eric HobsbawmA forma dessa biografia é um paradoxo, ao menos para historiadores. Não é uma “biografia acadêmica”, no estilo que os historiadores buscaram desenvolver a partir dos anos 1970-80. Evans chega a afirmar que tentou “deixar Eric contar a história com suas próprias palavras” (2021, p.10), essa frase poderia deixar os historiadores em sobressalto, já que sabemos que os documentos e fontes não falam por si só. Não obstante, é claramente um texto redigido por um historiador.1 Ainda que não exista uma reflexão, por exemplo, sobre questões teórico-metodológicas. Mas isso não nos deve fazer crer que Evans é um neófito no assunto.

Richard J. Evans, ao que tudo indica, teve por objetivo produzir uma narrativa clara e envolvente sobre a vida e obra de seu biografado. Eric Hobsbawm foi o que normalmente chamamos de intelectual público. O historiador frequentava programas de rádio e Tv com assiduidade e suas opiniões eram conhecidas de grande parte do mundo anglófono. Isso, cremos, ajuda a dissolver o aparente paradoxo de um livro. Esse livro não se direciona a um público especializado, mas a um grande público.

Voltamos a ressaltar, o livro é claramente escrito por alguém da área de história, mesmo que não houvesse indicação de autoria, isso poderia ser deduzido. E podemos elencar algumas boas razões. Primeiro, Evans cumpre sua promessa de deixar Eric contar a história, isso pode ser visto quando em praticamente todas as páginas do livro há ao menos uma – normalmente mais – citações de diários, cartas, textos, entrevistas ou outro documento. Isso resultou em mais de duas mil notas de fim, em sua grande maioria para indicar de onde os trechos foram retirados. Segundo, o trabalho árduo com fontes. Richard Evans utilizou-se de um amplo número de fontes produzidas por seu biografado – porém não somente –, não se furtou a realizar entrevistas e utilizar documentos oficiais e documentos oriundos do serviço secreto inglês, por exemplo. Terceiro, ainda que não exista uma seção dedicada a pensar as questões teóricas que incidiram no trabalho como, por exemplo, a memória e a escrita de si, Evans não se omite, quando acha necessário, a contestar algumas afirmações de seu biografado.2 Quarto, há uma clara preocupação do autor em contextualizar algumas decisões e/ou eventos da vida de Hobsbawm, tais como, o que significa ser comunista na Inglaterra dos anos 1930, ou ainda, o que significa fazer um doutorado em Cambridge nos anos de 1940-50, ou seja, questões de primeira importância na prática do historiador que Richard Evans não negligencia. Ainda poderíamos citar um último aspecto, o biógrafo não é condescendente com o biografado. Evans não esconde aquilo que, para um público mais amplo, poderia “macular” a imagem de seu personagem principal. Erros de avaliação – por exemplo, sobre pacto germano-soviético –, ou situações “constrangedoras” – a traição da primeira esposa que desemboca em divórcio – são apresentadas ao público, algo impensável se tivermos em mente as biografias “tradicionais”, preocupadas em apresentar “heróis”, os “grandes homens que não erram” e etc. Aqui é apresentado um homem em sua condição e em suas contradições.

Como lembra o autor, Eric Hobsbawm nos legou uma autobiografia (Tempos Interessantes), mas o texto que temos em mãos visa fornecer um retrato mais “íntimo” de Hobsbawm já que, como lembra Richard J. Evans, por meio de uma resenhista, Tempos Interessantes é uma “curiosa” autobiografia impessoal (EVANS, 2021, p.10). O autor nos carrega por uma viagem na vida de seu biografado. O texto de Evans acompanha a vida de Eric de maneira bastante linear. A narrativa é entremeada de muitas citações, especialmente de cartas e diários, de Hobsbawm. 3

Eric Hobsbawm viveu 95 anos, a biografia de Evans tem 10 capítulos onde buscou capturar, grosso modo, as décadas de vida de seu personagem. Assim como Hobsbawm não compreendia os séculos de maneira fechada no tempo “do calendário”4, Richard J. Evans buscou agrupar a vida de Hobsbawm em “pequenas eras” que eram representativas de um determinado período da vida de seu biografado.

Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, no Egito, no ano de 1917. Filho de Leopold “Percy” e Nelly Hobsbaum,5 ambos judeus. Ainda criança Hobsbawm viveu, além do Egito, em Viena e Berlim. Seus pais não eram especialmente ricos. Após a morte de Percy Hobsbaum, na realidade, Eric, sua mãe e irmã (Nancy), passaram por dificuldades financeiras. A familiaridade de Eric com os livros veio de sua mãe – seu pai, além de figura distante, não era um leitor frequente. Nelly Hobsbaum foi escritora, além de trabalhar como tradutora vertendo romances do inglês para o alemão. Muito jovens os irmãos Eric e Nancy ficaram órfãos de pai e mãe. Percy faleceu de ataque cardíaco, em 1929 e, sua esposa, de problemas respiratórios em 1931. Sendo assim Eric e sua irmã foram morar com os tios em Berlim.

A estadia da família de Eric Hobsbawm não poderia se demorar na Alemanha com a ascensão dos nazistas. Mesmo assim, foi nesse contexto que Eric se interessa por política, na Alemanha dos anos 1930. Ainda em Berlim, no colégio, o jovem Eric entra para a Liga dos estudantes socialistas, e começa a militar e se identificar como comunista. Hobsbawm sempre se dividiu entre a militância política e a dedicação aos estudos. Sempre foi qualificado como aluno muito acima da média. Essa dicotomia, militância política e desenvolvimento intelectual, foi uma tensão em boa parte da trajetória de Eric.

Em 1933 Eric e sua irmã, sob a tutela dos tios, chegam à Inglaterra. Eric frequenta a St. Marylebone Grammar School, onde segue sua vida escolar acima da média e impressionando os professores. Antes de completar 18 anos, Eric falava, para além do inglês,6 com razoável fluência alemão e francês, e tinha boas noções de grego e latim.7 Em 1936 Eric decide cursar História na King’s College, em Londres. No mesmo ano adere ao Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB). Sua trajetória acadêmica foi tão brilhante quanto possível, aluno dedicado e assíduo, Eric se formou com as melhores notas. No entanto havia um problema que o dividia, dedicar-se à vida intelectual ou ser um militante comunista? Nós já sabemos a resposta.

Eric, durante a faculdade, fez diversas viagens pelo continente europeu, especialmente à França. Nessas verdadeiras aventuras, o agora jovem-adulto Eric Hobsbawm, se deslocava como caroneiro nas estradas francesas, quando não surgia uma boa alma, o jeito era ir andando. Nessas viagens que Eric constituiu suas amizades naquele país. Muito diferente de outros países, onde suas amizades eram, basicamente, oriundas do meio intelectual.8

Ao terminar o curso de História, Eric se dividiu entre vários caminhos onde o de historiador profissional não foi o principal. Contudo a II Guerra Mundial irrompeu na História e mudou a vida de Eric. Com a guerra foi obrigado a se apresentar como soldado ao exército. Diferente de outros comunistas, Eric sequer chegou perto de campos de batalha. Tentou ser mais “útil” ao Exército Inglês, porém, sempre teve suas expectativas frustradas pelo Serviço de Segurança, Military Intelligence, Section 5 (MI5). De fato, o MI5 foi, durante mais de vinte anos, um incômodo na vida de Hobsbawm.

Em 1941 Eric conhece Muriel Seaman, com quem, ainda durante a guerra, começa um relacionamento. Eric e Muriel se casam, ela também tinha militância no PCGB, ainda que inconstante. Em alguns anos o casamento entra em crise, Eric descobre que estava sendo traído. Se de início Hobsbawm parece pouco afetado pela descoberta, após algum tempo entra em um estado profundamente depressivo, chegado a cogitar o suicídio. Após alguns anos separados, o divórcio chega em 1952.

Eric foi desmobilizado em 1946, ano em que se decidiu por uma carreira acadêmica. Numa Inglaterra dominada, em termos historiográficos, pela história política e diplomática, Hobsbawm optou por uma abordagem econômico-social – já inspirado pelos Annales. Seu supervisor de doutorado foi Mounia Postan, historiador econômico francamente anti-marxista. 9 Eric escolheu, como tema de sua tese de doutoramento, a Sociedade Fabiana, uma organização de intelectuais radicais e socialistas. Escreveu sua tese, mas, diferente da historiografia, até então, simpática aos “fabianos” ou “fabianistas”, Eric desferiu uma crítica dura, especialmente naquilo que enxergou como simples “reformismo” de seus integrantes. Em 1951 a tese de doutorado de Hobsbawm foi aprovada, não sem críticas. Eric chegou a enviar seu texto para publicação na Cambridge University Press, que rejeitou o trabalho.

No final de 1940 Eric foi indicado para uma bolsa de estudos na King’s College, mas deveria apresentar uma tese de doutorado. Para isso ele preparou uma “segunda tese”, desta vez baseado nos documentos sobre o sindicalismo, arregimentados e editados pelo casal Webb (Beatrice e Sidney). Ainda na mesma década, graças a ajuda de seu supervisor, consegue a autorização para dar aulas na Birkbeck College, em Londres. Emprego noturno, para alunos mais velhos e com pouca carga horária.

Ao narrar a vida de Hobsbawm a partir dos anos de 1950, Richard J. Evans passa a dar cada vez mais espaço a vida profissional de Eric. Isso se deve, acreditamos, ao fato de que Eric literalmente, ter trabalhado até os últimos dias de vida, em sua cama no hospital.

Em 1950 Eric ajuda a fundar a revista Past & Present, cujo objetivo era “contrapor às principais tendências historiográficas da era pós-guerra na Grã-Bretanha” (EVANS, 2021, p. 302), como Hobsbawm confessaria depois, o objetivo era ser “a equivalente britânica da Annales” (apud EVANS, 2021, p. 302). Eric se mostrou um revisor duro, rejeitando artigos que fossem demasiadamente teóricos sem dados empíricos e, também, o reverso.

Eric Hobsbawm também atuou na revista New Statesman como crítico de jazz. Frequentando pubs do underground londrino, Eric, ou melhor Francis Newton (pseudônimo), escreveu quadros vivos dos clubes de jazz e da sociabilidade do indivíduos que faziam parte daquela atmosfera. Seus textos serviram de base para o livro História Social do Jazz. 10 Do mesmo ano de 1959 também é seu o primeiro livro como historiador, Rebeldes e Primitivos.

A década de 1960 foi a mais produtiva em termos “bibliográficos” para Eric Hobsbawm: em 1962, A Era das Revoluções; em 1964, Os trabalhadores; em 1965, editou o livro Formações Econômicas Pré-capitalistas, de Marx e escreveu uma longa introdução; em 1968, Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo; 11 em 1969, Bandidos, que buscava ser um aprofundamento de Rebeldes e Primitivos, e, em coautoria com George Rudé, Capitão Swing. Não há espaço aqui para detalhes, mas Richard Evans nos oferece um belo panorama da produção, editoração e impacto – inclusive das resenhas – que geraram os livros de Eric. Também nesta década que Eric conhece (1961) e casa-se (1962) com Marlene Schwartz, 12 sua companheira até o fim da vida.

Evans nos mostra a gradativa ascensão de Hobsbawm, tanto em status acadêmico, como em popularidade fora da Universidade, seus livros são amplamente lidos e debatidos. Alguns críticos mais severos – à esquerda e à direita –, outros mais simpáticos – à esquerda e à direita. Mas, de forma geral, todos reconhecem a capacidade de Eric de construir grandes mapas e estabelecer conexões sofisticadas e acessíveis.

Eric nunca abandonou oficialmente o PCGB, mas o partido deixou de ser um dado relevante a partir de 1956. Hobsbawm nunca foi um militantes comunista “cego”, mas criticar a URSS, no auge do poder de Stalin, também não passava por sua cabeça.13 Evans faz questão de evidenciar que Hobsbawm apesar de demonstrar dotes intelectuais fora do comum, também era alguém em formação, que errava e mudava de opinião. Apesar de ser acusado de se manter como “stalinista”, Hobsbawm capitaneou, dentro do PCGB, uma tentativa de democratização do partido, que acabou por não ocorrer. As lideranças do partido, claramente com um viés antiintelectual – as vezes comuns nos PC’s ao redor do mundo –, o viam como uma influência perniciosa e tentaram várias vezes enquadrá-lo, o que nunca ocorreu.

Saltando para a década de 1970, Eric já estava bem estabelecido no mainstream universitário, fazia viagens constantes e era professor visitante em várias universidades, inclusive estadunidenses. O MI5 entendeu que se tratava menos de um comunista subversivo, e mais um professor universitário respeitável, ainda que marxista – o que era um “defeito” imperdoável para o mundo da Guerra Fria. No final desta década, Hobsbawm começou a se transformar na figura do intelectual público, em especial no que se convencionou chamar de “novo trabalhismo”.

Com a ascensão da economia política neoliberal – que gostaria de suprimir a política – de Margaret Thatcher, Hobsbawm passa a discutir a tática e estratégia política do Partido Trabalhista inglês para vencer as eleições. Surpreendentemente, apoiou setores moderados do partido, para que se colocasse fim na política de privatização e desmonte do Estado de bem-estar social inglês. Após mais de uma década de diálogos com os trabalhistas, paulatinamente se afastou do partido, mesmo assim é reconhecido como um dos “pais intelectuais do novo trabalhismo”, papel de que veio a se arrepender, posteriormente.14 Richard Evans mostra que Eric se “encontrou” quando descobriu o “comunismo italiano”, sentiu-se muito atraído pelas discussões sobre “democracia”, “hegemonia” e sobre o papel do intelectual na sociedade que o PCI realizada, enquanto o PCGB demonstrava uma rigidez e aversão a qualquer debate sobre esses temas (EVANS, 2021, p. 465-8).

Em meados de 1982 Hobsbawm se aposentou da Birkbeck College, em janeiro de 1984 foi convidado para integrar o quadro de professores de New School for Social Research, dos Estados Unidos, onde permaneceu até o final da década de 1990. Nos mais de dez anos na New School, Hobsbawm demonstrou interesses atualizados em diferentes áreas da história. Porém, no final do breve século XX já contava com mais de 80 anos. Evans mostra que Eric sempre foi um tanto avesso às pautas da “nova esquerda”, deu pouca importância para, por exemplo, a História das Mulheres, achando que isso era um desvio da questão importante, a classe. Evans ainda relata infelizes comentários racistas de Hobsbawm que levaram alguns alunos a denunciarem sua atitude reprovável (EVANS, 2021, p. 555).

Em 1994, menos de três anos após a dissolução da URSS, Eric lançou a sua “síntese” do século XX, a Era dos Extremos. Evans mais uma vez nos brinda com a repercussão do livro. Leitores mais alucinados conseguiram encontrar no texto de Eric uma defesa do comunismo soviético – ou melhor, do socialismo real. O conservador Nial Ferguson, surpreendente amigo de Hobsbawm, elogiou o texto e se indagou, “onde está a nossa [da direita] história do século XX? Onde está o nosso [da direita] Hobsbawm?” (apud EVANS, 2021, p.537) (grifos no original).15

Era dos extremos foi o livro de Eric que mais gerou polêmica. Mas nada semelhante ao que se passou na França. Evans narra detalhadamente o que jornais de esquerda na França chamaram de l’affairette Hobsbawm. 16 Pierre Nora, eminente historiador e responsável pela “Biblioteca de Ciências Sociais” e “Biblioteca de História” de uma das mais importantes editoras francesas, a Gallimard, foi reticente sobre a possível publicação do livro de Hobsbawm. Com a justificativa de que a tradução seria demasiada cara e o livro não se pagaria, rejeitou o livro. Houve uma resistência, na França, à publicação do livro, algumas editoras negaram o livro nos mesmos termos da Gallimard, outras sob o pretexto que o livro não era vendável – justificativa que mais incomodava o autor, tendo em vista o sucesso do livro na Inglaterra e alhures. Uma pequena editora de Bruxelas, Éditions Complexe, com revisão minuciosa de Hobsbawm, lançou o livro em 1999.17

Com a chegada do século XXI Eric tomou consciência de sua idade e do fim de seus dias. Em 2002, depois da insistência de amigos e colegas, lançou sua autobiografia. Depois passou a trabalhar na compilação de artigos para publicação em livro (ou melhor, livros). Desses últimos esforços saíram Globalização, democracia e terrorismo, Como mudar o mundo e, o já póstumo, Tempos fraturados. Em 2012 Hobsbawm morreu, depois de enfrentar diversas complicações de saúde, além de um câncer, com 95 anos.

A biografia de Richard Evans é muito mais ampla do que nos foi possível retratar aqui. Aborda diversas dimensões da vida de Eric Hobsbawm, ainda que, depois dos anos 1950, o foco tenha sido na produção bibliográfica e na vida como intelectual público. Notavelmente, os livros de Eric, inclusive aqueles que tiveram menor circulação no mundo anglo-saxão e europeu, foram sucessos de venda no Brasil. A paixão de Eric pela América Latina, também teve espaço na biografia escrita por Evans.

A obra de Eric Hobsbawm contemplou tanto a história vista de baixo, bem como, também, as sínteses históricas ou, poderíamos dizer, uma história vista de cima. A segunda forma de escrever história foi a que, certamente, o tornou famoso além dos muros da universidade. Como Evans evidencia ao longo do livro, o marxismo de Hobsbawm foi responsável por lhe incutir a problemática do movimento estrutural da sociedade.

Como qualquer outro autor, lembra o biógrafo, Eric teve seus defeitos e suas limitações. Para além de um interesse, ainda como aluno da King’s College, na região norte da África, especialmente a de ocupação francesa, Eric nunca despendeu uma reflexão mais elaborada sobre o continente africano, dando a entender que o tema não era especialmente relevante (EVANS, 2021, p. 613). A teoria feminista e a História das Mulheres também foram solenemente ignoradas, enquanto isso foi possível. Quando não foi, apareceram de maneira muito episódica e mal digerida.18 Apesar de ser admirador do jazz – algo que, ao longo de sua vida, diminuiu de importância –, Hobsbawm sempre teve uma abordagem algo dúbia em relação à arte. O modernismo e a música pop eram tratados como formas de arte “menor” – Elvis, Beatles e Dylan tiveram suas respectivas famas dadas como mortas em poucos anos pelo historiador, um erro colossal.

Mesmo assim, as obras de Hobsbawm continuam a encher prateleiras e frequentar bibliografias obrigatórias dos estudantes de história. As análises do historiador em parte foram superadas, outras se mantém. Mas, as mais importantes foram aquelas que semearam uma nova abordagem do fazer historiográficos, a despeito de continuarem atuais ou não. Essa foi a vitória de Hobsbawm.

Algo que chama a atenção, no texto de Evans, é a ausência da coleção História do Marxismo, editada e organizada por Eric Hobsbawm. Isso se torna ainda mais intrigante tendo em vista o fato de que Evans dedicou longas passagens à análise da produção e circulação dos livros de seu biografado. Seria muito interessante auferir o impacto desses livros no pensamento de Hobsbawm – inclusive com vários capítulos escritos pelo próprio organizador. Lembremos, Eric convidou muitos intelectuais, de diversos continentes, para analisar tanto a teoria marxista como a prática que ela veio a inspirar.

Cabe apontar, como nota negativa, alguns problemas da edição em português da obra. São consideráveis, no texto, erros de digitação e concordância. Não há uma preocupação com a adoção de um padrão nos títulos de livros, ora estão grifados em itálico, noutros momentos não. Algumas obras tiveram seus títulos “retraduzidos”: Value, price and profit, de Karl Marx, foi traduzido como Valor do preço e do lucro, ao invés do tradicional (e mais correto) Salário, preço e lucro; Industry and Empire foi traduzido literalmente como Industria e Império, ignorando a tradução existente, Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Um revisor técnico teria apontado o problema de algumas traduções literais como, por exemplo, o termo “social fascists” traduzido como “fascistas sociais” (p. 52).19 Os erros não chegam a atrapalhar a boa narrativa do texto de Evans, mas são em um quantidade bastante razoável, necessitando de correção para edições posteriores

Notas

1 Em uma palestra na Itália o autor afirmou que escrever uma biografia não é o mesmo que escrever História. Para Evans o historiador, ao escrever um livro de História deve inventar um tema – mesmo que ele seja mais ou menos definido –, já o biógrafo já tem seu objeto “dado”, só restando narrar a vida do biografado. Em suas palavras, “[…] A. J. P. Taylor once wrote that Biography is not history, but every historian should try it once […] when you write a biography it is, of course, as Taylor says, it’s not History. So in History you have to invent your subject, you have to have, even if it’s already existing, you have to decide, do I want to go whit this with this current concept of the subject, you have to decide what its boundaries are, how you structure it. Those are some of the most challenging parts of writing history. But with biography it’s a life, cradle-to-grave, birth to death, you weave in context and that’s all given, it’s easier than History”.

2 Um exemplo é quando Hobsbawm afirma que decidiu ser historiador após a leitura do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, o que ocorreu aos 15 anos, em 1932 (EVANS, 2021, p. 626, nota 37). Para Evans isso é uma reconstrução da memória, seguindo os diários e cartas, apesar de ter escolhido cursar história na faculdade, frequentando a King’s College entre os anos 1936 e 1939, Hobsbawm só decidiu seguir uma carreira como pesquisador em 1946. Anteriormente Eric se debatia entre a possibilidade de ser um militante profissional do Partido Comunista (PCGB) ou jornalista (EVANS, 2021, p. 224-5).

3 Os primeiros anos de Hobsbawm são narrados baseados, sobretudo, nas cartas de sua mãe; um texto cortado de sua autobiografia (Two families); e em Tempos interessantes. O período que abrange sua adolescência até o fim da Segunda Guerra Mundial se baseia nos diários (com uma breve interrupção em meados dos anos 1930) e sua correspondência com seu primo Roland “Ron” Hobsbaum. A primeira carta de Eric é escrita para seu tio Sidney, cumprimentando-o pelo aniversário, em 1929, aos onze anos (EVANS, 2021, p. 27-8). Ainda no mesmo ano começou a manter um diário, mas, segundo Evans, o mais antigo ao qual temos acesso é de 1934 (2021, p. 621, nota 74). Após a guerra Eric passa a se corresponder com uma miríade de interlocutores.

4 Lembremos que o “longo século XIX” começa em 1789 e termina em 1914 e o “breve século XX” inicia-se em 1914 e finda em 1991.

5 A saga do nome paterno de Eric é um tanto errática. A família “Obstbaum” é de origem do leste europeu, quanto chegam à Inglaterra tiveram o nome grafado como “Hobsbaum”. Quando foi registrado, no consulado inglês no Egito, o nome de Eric foi grafado como “Hobsbawm”. Sendo assim, somente Eric, sua esposa, filhos e netos têm essa grafia. Outros parentes são os “Hobsburn” ou “Hobsborn”.

6 Apesar de nascido no Egito, o idioma falado na casa dos Hobsbaum sempre foi o inglês. Curiosamente, os diários de Hobsbawm sempre foram escritos em alemão, inclusive enquanto serviu ao Exército na guerra.

7 Mais tarde Eric ainda falaria com fluência o italiano, além de ser capaz de ler e falar espanhol e português.

8 Richad J. Evans enfatiza essa questão: diferente de outros países, Eric não tinha profundos vínculos de amizade seja com acadêmicos franceses, seja com militantes do PCF. Hobsbawm frequentava pubs, onde constituiu muito de suas amizades. Após a década de 1960 muitos historiadores franceses romperam com o PCF e se tornaram aberta e ferozmente anticomunistas, François Furet foi somente o símbolo dessa virada. Essa atitude era francamente rejeitada por Hobsbawm. Mesmo assim, na década de 1970 fez parte de um grupo de historiadores (franceses, estadunidenses e ingleses), que se encontravam na França, para discutir em mesas-redondas e seminários o desenvolvimento da História Social.

9 Mas, para Hobsbawm, seu diferencial era o fato de Postan realmente conhecer os textos de Marx.

10 No original, Jazz Scene, de 1959. Na primeira edição o livro foi creditado a Francis Newton.

11 No original, Industry and Empire: From 1750 to the Present Day.

12 Após o casamento Marlene assume o sobrenome do marido. Como evidenciarei, no decorrer desta resenha, a partir dos anos 1960 a biografia se torna mais sobre atuação de Hobsbawm como historiador e intelectual público, dessa forma o casamento com Marlene e a vida privada “doméstica” não ganham tanta relevância como havia ocorrido até esse momento (anos 1960). São retratados, especialmente, os jantares com presença da intelligentsia britânica e mundial, na residência dos Hobsbawm. Talvez o fato de que Marlene Hobsbawm estava, em 2019, em vias de lançar seu livro de memórias, Meet me in Buenos Aires: a memoir, lançado em 2020, tenha influenciado Richard Evans a não dar uma maior ênfase nesses pontos. Porém, a vida familiar não é totalmente negligenciada. Há passagens relatando o relacionamento de Eric com sua esposa e filhos, especialmente a adolescência difícil de seu filho, Andy Hobsbawm.

13 Por exemplo, em 1934 considerava Lenin e Stalin grandes estadistas, enquanto demonstrava uma atitude francamente hostil a Trotsky. (EVANS, 2021, p. 67)

14 Tony Blair era especialmente desprezado por Hobsbawm, símbolo do “novo trabalhismo”.

15 Receio que Niall Ferguson tenha que se contentar com a monótona história do século XX do conservador Martin Gilbert, lançada em 2001, que, a despeito de informativa, é um texto sem cor.

16 Em referência a “L’affaire Dreyfus”.

17 Mesmo assim, como indica Evans, Hobsbawm manteve relação cordial com Pierre Nora, inclusive aceitando convites para debates. Para a celeuma envolvendo a publicação de a Era dos Extremos na França, ver: EVANS, 2021, p. 541-549.

18 N’A Era dos Impérios as mulheres receberam um capítulo à parte, gerando crítica de diversas historiadoras, inclusive de suas ex-alunas.

19 O termo usual é socialfascistas, oriundo da interpretação da III Internacional que via a socialdemocracia como “socialfascismo” [social fascism] equiparando-os ao nazi-fascismo.

Referência

EVANS, Richard J. Richard J. Evans, Eric Hobsbawm: A Life in History – 12 novembre 2019. [S. l.: s. n.], 12 de novembro de 2019. 1 vídeo (1 h 24 min 2 s). Publicado pelo canal SNS Channel Humanities. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pAgxQABIn_M&t=271s. Acesso em: 16 set. 2021.


Resenhista

Vinícius de Oliveira Masseroni –  Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


Referências desta Resenha

EVANS, Richard J. Eric Hobsbawm: uma vida na história. São Paula: Planeta, 2021. Resenha de: MASSERONI, Vinícius de Oliveira. Hobsbawm: uma vida na história e a história de uma vida. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v. 13 n. 26, p. 366- 375, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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