Escenarios de família: trayectorias, estratégias y pautas culturales, siglos XVI–XX | Juan Francisco Henarejos López e Antonio Irigoyen López

O livro Escenarios de família: trayectorias, estratégias y pautas culturales, siglos XVI–XX é resultado dos trabalhos empreendidos pela Red de Estudios de Familia de Murcia (REFMUR), um grupo de estudos promovido pela Universidad de Murcia e pela Fundación Séneca. A REFMUR tem por objetivo oferecer reflexões, sugestões e pesquisas sobre a família, um elemento que podemos considerar como uma das problemáticas históricas mais atuais e, ao mesmo tempo, mais complexas. O livro, ao longo de suas páginas, visa a demonstrar como a família pode representar uma importante ferramenta teórica e metodológica para que se possa adentrar na análise da complexidade da realidade social.

Todavia, antes de mergulharmos mais a fundo nos temas abordados na obra em questão, consideramos fundamental apresentar ao leitor o local de produção desse livro: o grupo de estudos REFMUR. Como já mencionado, esse grupo está vinculado à Universidad de Murcia; contudo, esse não tem a intenção de ser apenas mais um grupo acadêmico que realiza pesquisas dentro da universidade e que acaba por se manter somente no campo da reflexão acadêmica. Tampouco mantém o isolamento que os estudos históricos costumam observar com relação às continuidades e mudanças sociais contemporâneas. Pelo contrário, o REFMUR demonstra que compreender a família, como objeto de estudo, reflete as formas de organização e de vida da sociedade, uma vez que que a família tem suas raízes no tempo histórico plenamente.

Obviamente, a origem e a trajetória do grupo, como os próprios pesquisadores afirmam, consistem, fundamentalmente, em pesquisa e docência histórica. No entanto, se existe um objeto de estudo que rompe as fronteiras dos períodos históricos, que integra as diferentes ciências sociais (como sociologia, antropologia, demografia histórica, entre outras) e que deve ser estudado a partir de mudanças e evoluções sociais, permanecendo em uma temporalidade contínua, esse objeto é, precisamente, a família.

Para a REFMUR, a família pode ser considerada como o elemento que, ao mesmo tempo em que explica plenamente a sociedade espanhola em suas características tradicionais, está atento às suas mudanças e inovações. Dessa maneira, seus pesquisadores se dedicam, principalmente, a compreender a sociedade espanhola em uma perspectiva histórica e atual, no contexto da comparação transnacional e na relação entre os diferentes territórios compreendidos pela monarquia hispânica, tanto na Europa como na América.

A obra que aqui apresentamos é fruto dos esforços dos pesquisadores vinculados à REFMUR. Organizado pelos professores Antonio Irigoyen López e Juan Henarejos López, o livro reúne uma série de textos produzidos por pesquisadores oriundos da Espanha, da Áustria, da República Tcheca e do Brasil, dedicados aos estudos relacionados à História da Família e à Demografia Histórica.

Antonio Irigoyen López, professor de História Moderna na Universidad de Murcia, na Espanha, é especializado em História Social da Igreja e do Clero na Monarquia Hispânica dos séculos XVI a XVIII. Suas pesquisas se concentram na temática sobre o casamento e sua regulação eclesiástica, e sobre o batismo e as relações de compadrio.

Juan Francisco Henarejos López é Doutor em História Moderna pela Universidad de Murcia e professor do curso de Relações Internacionais da Facultad de Turismo de Murcia. Desenvolve pesquisas sobre parentesco e consanguinidade, como categorias de análise para o estudo da História da Família.

A obra em questão está estruturada em um texto introdutório, produzido pelos organizadores, e 45 capítulos que tratam da História da Família do ponto de vista dos mais diversos enfoques, como, por exemplo, trajetórias familiares, reprodução social, relações de compadrio, clientelismo, estratégias matrimoniais e espaços de sociabilidades.

De acordo com os organizadores, o livro é resultado de novos estudos em que o indivíduo e a família são os protagonistas. Ainda, segundo eles, a família permanece adaptando-se às idas e vindas das transformações sociais que estão gestando. A primeira parte do volume serve para conhecer essa abordagem por meio do estudo de caso de vários grupos sociais. Porém, vale ressaltar que as famílias da elite — tanto espanhola como brasileira — são as que recebem maior enfoque. Nesses textos, compreende-se que os cenários familiares são amplos; contudo, ainda assim é possível alcançar uma perspectiva mais particular dos grupos familiares.

Atualmente, os trabalhos nutridos por essas novas abordagens permitem que a família e sua capacidade explicativa sejam colocadas em primeiro plano, uma vez que, pensando nessa perspectiva, é por meio da família que se permite o acesso ao indivíduo.

É necessário descobrir como os destinos individuais tomam forma e até que ponto são influenciados, organizados e enquadrados por estruturas e relacionamentos sociais coletivos, tendo em vista que os problemas com relação aos mecanismos de relacionamento precisam ser abordados na análise. Essa discussão é tratada pelos organizadores ainda na apresentação da obra, e também é contemplada em outros pontos dela, como, por exemplo, no capítulo escrito por Maria Luisa Álvarez y Caña, Estrategia matrimonial y redes sociales entre los comerciantes extranjeros de Alicante: los Cassou y los Carrere, dos ejemplos extrapolables.

Ao se dedicar a compreender a formação das redes sociais entre as famílias Cassou e Carrere, de Alicante (localizada no litoral da Espanha banhado pelo Mar Mediterrâneo), Caña demonstra de que maneira os laços criados a partir do matrimônio podem ser fundamentais para o fortalecimento das famílias na localidade em que estão inseridas. Segundo a autora, a presença marcante de uma grande população estrangeira na cidade de Alicante, especialmente a de origem francesa, resultou na formação de notáveis redes familiares entrelaçadas a partir de interesses variados. Desde a chegada até o posterior estabelecimento individual desses imigrantes — que, muitas vezes, se deu de maneira modesta e provisória no início, e, portanto, cheia de incertezas e de aspirações — desenvolveu-se um processo de vida que vinculava esses estrangeiros à cidade de maneira estável, sobretudo após a formação das famílias pelo laço matrimonial.

O exemplo das famílias Cassou e Carrere, representativas e extrapoladas em seu comportamento em relação a outros casos, permite analisar a evolução desses imigrantes ao longo dos anos de residência em Alicante, sem esquecer as múltiplas dificuldades que enfrentaram em tempos de crise e que puderam resolver com o apoio e a solidariedade da família e do círculo de parceiros.

Dessa maneira, podemos compreender que, dentre muitas outras representações, a família é um conjunto de relacionamentos. Porém, deve-se enfatizar que esses relacionamentos, em primeira instância, são impostos. As famílias biológicas (pais, irmãos, avós e primos) não são escolhidas. Além disso, é possível afirmar que os primeiros relacionamentos sociais de uma pessoa, que não têm base no parentesco, também são determinados pela família. O indivíduo não é nada sem sua família. O que um indivíduo é, e no que ele se torna, em grande parte se deve à sua família. Contudo, mais tarde ele irá gerar novas relações sociais, daí a necessidade de conhecer os mecanismos que torna isso possível. Um simples batismo na paróquia já pode servir para mostrar o emaranhado de elos nos quais as pessoas se embrenham, sobretudo, em relação aos padrinhos de batismo, como podemos ver no artigo de Rachel dos Santos Marques, Além da pia batismal: relações de compadrio na família Silveira (c. 1750 – c. 1810). Mais do que meras testemunhas do cumprimento da obrigação espiritual, as pessoas escolhidas para participarem desse momento recebem uma função muito importante na vida dessa criança: a de tutores ou padrinhos. Para a Igreja Católica, o padrinho e a madrinha deveriam testemunhar a validade do sacramento, cuidar e encaminhar a criança em sua vida espiritual e, principalmente, protegê-la na vida terrena, especialmente na ausência dos pais.

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia normatizavam a escolha desses padrinhos e, ainda, determinavam que “[…] no Baptismo não haja mais que um só padrinho e uma madrinha e que não se admitão juntamente dois padrinhos e duas madrinhas; os quaes padrinhos serão nomeados pelo pai ou mai, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança.” (VIDE, 2007, p. 14).

Por então se tratar de um renascimento espiritual, ou seja, morrer para o pecado e renascer para vida cristã, as crianças deveriam dispor de um novo vínculo filial, ou seja, de novos pais espirituais, que seriam os padrinhos. Os padrinhos, portanto, receberiam a tutela espiritual dessa criança, sendo responsáveis por sua apresentação e manutenção na vida espiritual. Dessa maneira, na Igreja Católica, cria-se um vínculo a partir do batismo:

O batismo cria, acima de tudo, uma relação espiritual; esta é o vínculo “pensado” que une batizando e padrinhos. O laço expresso significa ou indica esta dimensão invisível. O compadrio é um vínculo não do corpo, ou da carne, ou da vontade humana enquanto expressa na lei civil; ele representa, ao contrário, associação ou solidariedade, através da comunhão de “substância espiritual”. (GUDEMAN; SCWARTZ, 1988, p. 41).

Com o batismo, o parentesco espiritual é estabelecido de tal forma que, a partir de então, as pessoas envolvidas nesse ato estariam impedidas, diante do direito canônico, de contrair matrimônio. Esse parentesco era vitalício2 e se dava tanto na relação estabelecida entre padrinho e afilhado como entre os compadres. Assim, a relação contraída pelo compadrio era formada por três agentes: a criança, os pais e os padrinhos, e por três relações: de parentesco entre pais e filhos (laço consanguíneo), entre padrinho e afilhado e entre pais da criança e padrinhos (laço espiritual). Essas relações, criadas dentro da esfera religiosa, refletiam muito na vida fora dos portões da igreja. As escolhas dos padrinhos eram sempre pautadas por alguns interesses. Consequentemente, o apadrinhamento ampliava os laços familiares e, além disso, reforçava e criava relações de amizade.

Uma vez que a área de pesquisa da História da Família é muito ampla, podemos falar de diferentes famílias de acordo com grupos sociais, espaços geográficos e contextos históricos. As estruturas, os comportamentos e as estratégias variam de acordo com o tempo e, principalmente, de acordo com organização social em que a família está inserida. No entanto, segundo os organizadores do livro, quando nos debruçamos a estudar as organizações familiares, existe e persiste uma concepção que pode ter uma validade quase universal: a família deve ser entendida como um suporte para as pessoas que a compõem. De tal maneira que a identidade individual sempre carrega a identidade da família.

Contudo, essa afirmação talvez não faça sentido ou, ao menos, seja discutível na sociedade em que vivemos atualmente, completamente globalizada e na qual os laços de parentesco são cada vez mais escassos. Porém, nas sociedades do passado, especificamente na sociedade do Antigo Regime, isso era incontestável. O relacionamento por parentesco era um dos componentes fundamentais e, certamente, o mais importante (até mesmo, mais importante do que a identidade individual). O peso da tradição e o ideal de perpetuação apenas sustentavam a força do parentesco. O nome, e, ainda mais que ele, o sobrenome era algo extremamente valorizado. Por essa razão, as estratégias familiares eram fundamentais para se perpetuar em um determinado local e, a partir disso, conseguir benefícios sociais e, principalmente, políticos.

As estratégias, os arranjos e as redes que as famílias das elites ibérica e colonial brasileira estruturavam e tramavam tinham a finalidade de ascensão social e manutenção do poder adquirido. A família era, ao mesmo tempo, meio de se obter prestígio e palco das alianças necessárias para se alcançar tal prestígio. Assim, na maioria das vezes, o matrimônio é o principal mecanismo para tornar efetivo e indissolúvel o vínculo de união entre famílias.

O livro aqui apresentado possui mais de 40 capítulos que nos mostram, a partir de experiências de pesquisas realizadas na Espanha e nos demais países europeus e americanos, exemplos e caminhos metodológicos para se trabalhar com História da Família. A partir dessa produção, nos foi mostrado que o papel das famílias ultrapassa a vida privada e invade a esfera pública em que as estratégias familiares influenciam a vida social e política dos locais estudados. Podemos afirmar que essa obra atinge seu propósito de ser uma tentativa de avanço nos estudos sobre família, pois, a partir da sua leitura, é possível fomentar novas pesquisas que contemplem a perspectiva da História da Família e a Demografia Histórica nacional e internacional.

Nota

2 “[…] o parentesco espiritual, que contrahirão, do qual nasce impedimento, que não só impede, mas dirime o Matrimônio […] o qual parentesco conforme a disposição do Sagrado Concílio Tridentino, se contrahe sómente entre os padrinhos, e o baptizado, e seu pai, e mai; e entre o que baptiza, e o baptizado, e seu pai, e mai.” (VIDE, 2007, p. 26–27).


Referências

GUDEMANN, Stephen; SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII. In: REIS, João José (org.). Escravidão & invenção da liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988.

VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007.


Resenhista

Janaína Helfenstein – Doutoranda em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp campus de Franca) e bolsista pela CAPES. É professora da Faculdade de Ensino Superior de Marechal Cândido Rondon – Isepe Rondon. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É graduada (Licenciatura Plena) em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR). Por fim, atua como pesquisadora nas seguintes áreas temáticas: Demografia Histórica; História da Família; História do Luteranismo no Brasil; Imigração alemã para o Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LÓPEZ, Juan Francisco Henarejos; LÓPEZ, Antonio Irigoyen. (Orgs). Escenarios de família: trayectorias, estratégias y pautas culturales, siglos XVI–XX. Murcia: Universidad de Murcia; Servicio de Publicaciones, 2017. Resenha de: HELFENSTEIN, Janaína. Trajetórias, estratégias e pautas culturais nos estudos de família na Espanha moderna. Escritas do Tempo. [Marabá], v.1, n. 2, p. 109-114, jul./out. 2019.  Acessar publicação original [DR]

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