Esclavitud: una historia de la humanidade | M. Zeuske

Na historiografia sobre os mundos do trabalho está cada vez mais evidente a necessidade de discutir alguns limites dos conceitos relacionados a “trabalho livre” e “escravidão” em perspectiva global e local. As temporalidades históricas dessas relações de trabalho também constituem elementos condicionantes do debate. Michael Zeuske, professor de História Ibérica e Latino-Americana na Universidade de Colônia (Alemanha), em estudo ambicioso e instigante, traz importantes contribuições para arejar essa contenda. Nos seis capítulos de Esclavitud: una historia de la humanidad (2018) – tradução espanhola do original em alemão publicado no mesmo ano –, o historiador, apoiado em sólida pesquisa documental e bibliográfica, parte da premissa de que a história da escravidão se confunde com a história da humanidade e lança luz sobre alguns silêncios historiográficos, em busca de uma abordagem mais integradora da História, condição essencial para desenvolver sua hipótese de trabalho.

Zeuske observa a coexistência de vários tipos de relações laborais no marco do desenvolvimento capitalista, e mesmo antes, chamando a atenção para a centralidade de diversos mecanismos de coerção extraeconômica no momento de recrutar e fixar a mão de obra em diferentes épocas e contextos históricos. Sua abrangente definição “histórico-antropológica” da escravidão – “a disponibilidade sobre corpos humanos baseada em uma violência real exercida sobre esses mesmos corpos e a degradação do status” – e dos escravos “como capital de corpos humanos” (p. 36) – ultrapassa as dimensões jurídicas vinculadas ao direito romano e tenta englobar todas as modalidades em que a apropriação e o recrutamento de força de trabalho se realizam através da violência e da coerção direta. Aponta ainda os quatro motivos principais de escravidão: autoescravização ou entrega (a princípio ligadas ao endividamento), guerra, comércio e nascimento como pessoa escravizada.

Utilizando a metáfora da “serpente de múltiplas peles”, ou seja, o réptil que troca muitas vezes de pele ao longo de sua vida, Zeuske considera que não existe uma única sociedade escravista em evolução ao longo dos tempos, senão sociedades com escravidões mais ou menos pronunciadas e institucionalizadas. Para caracterizar melhor cada uma delas, propõe a delimitação de cinco “mesetas de esclavitud”, constituídas em diferentes tempos e espaços, que, ao longo da história global, se entrecruzaram e ainda se entrecruzam, sendo, no livro, apresentadas ao leitor cronologicamente. A primeira (20000 a 8000 a.C.), a das escravizações oportunistas, sem institucionalização, de mulheres, crianças e estrangeiros, é provavelmente a mais antiga da história e a mais habitual, ligadas à necessidade de proteção ou de inclusão em um novo grupo. Os indivíduos nessa situação realizavam trabalhos desonrosos ou degradantes, serviços corporais, inclusive sexo forçado.

A segunda (início em torno de 4000 a.C.), a das “pequenas escravidões” no marco de assentamentos e grupos familiares, também chamada de escravidão doméstica ou de parentesco, ligada à agricultura, com o objetivo de aumentar a produção de alimentos. Ainda que existissem rotas de comércio de escravos com seus mercados e portos, a escravidão doméstica predominava. Esta “meseta” se caracteriza pelo considerável aumento da violência – guerras, pilhagens – e por escravizações especiais, como a escravidão coletiva de pessoas derrotadas em conflitos, a escravidão para sacrifícios, as razias de escravos e a escravidão de elite. Em comum, todas se concentravam na “casa” (uma residência/edifício) e, por status legal, não eram propriedade individual de uma família, mas sim do Estado. Segundo Zeuske, esse tipo de escravidão foi mais importante que a atlântica ou a segunda escravidão devido à sua amplitude, influência na história global e persistência até os dias de hoje; mas vale lembrar que essas formas coletivas de dependência e de status, bem como o trabalho realizado não eram interpretadas pelos coevos como escravidão.

As escravidões de propriedade, mais conhecidas e melhor definidas juridicamente, compõem a terceira “meseta” (a partir do ano 1400), na qual se destaca a escravidão atlântica – América, costa ocidental da África – e, mais tardiamente, a costa leste africana e as ilhas do Índico ocidental. Esse conceito de escravidão baseado no direito romano, ou seja, na propriedade privada de pessoas, com a correspondente documentação notarial de compra e venda, deu origem ao tráfico de escravizados como prática intensiva para o abastecimento de grandes e pequenas plantações, atividades como a mineração, a escravidão doméstica urbana e a escravidão estatal, interligando áreas de origem e destino. Tráfico que foi intermediado pelos europeus com a colaboração das elites locais, e cuja característica principal era o uso da violência em todos os níveis.

As duas outras “mesetas” são mais difíceis de caracterizar diante do ideário abolicionista a partir do século XIX, motivo pelo qual, segundo Zeuske, estão ausentes nas representações habituais da história da escravidão em termos de continuidade. A quarta (a partir do ano 1800) apresenta diferentes combinações, relacionadas em essência ao surgimento das cadeias produtivas globais de novos recursos, que necessitavam integrar massas de trabalhadores na produção colonial – a “segunda escravidão” (Tomich, 2012) – ou acarretaram a expansão do trabalho sob contrato (indentured labor) apoiado na ideia de um acordo entre duas partes. Por outro lado, o historiador alemão chama atenção para o espraiamento das atividades escravistas e do comércio de escravos (muitas vezes sob outro nome) para o hemisfério oriental, os oceanos Índico e Pacífico, onde as formas de escravidão não estavam definidas pelos critérios do direito romano – à exceção dos enclaves europeus – nem se chamavam escravidão. Nessa perspectiva, os atores do comércio mundial passaram a utilizar a denominação coolies ou simplesmente “trabalhador contratado” para aqueles que eram transportados em condições de escravidão e realizavam trabalhos de escravos.

No século XX, influenciada pelos debates sobre escravidão e trabalho forçado, a palavra “escravidão” transformou-se em tabu e foi substituída por termos como “bondage”, “servidão por dívida” ou “trabalhos forçados”. Em síntese, a quarta “meseta” é caracterizada pelo desenvolvimento capitalista das escravidões modernas da terceira “meseta”, a segunda escravidão, pelas escravidões do hemisfério oriental e pelo fim do predomínio europeu, pois, a partir de então, os vínculos criados entre escravidão e capitalismo tornaram-se mundiais. Concorreram para isso, como motores da globalização, as novas formas de transporte e comunicação e a produção em massa de bens tropicais. No âmbito ideológico, os discursos abolicionistas demarcaram a ideia de liberdade no ocidente, mas, no fundo, apenas obscureceram as formas de escravidão na prática, o que autoriza Zeuske a considerar a quarta “meseta” como o período da “desformalização” da escravidão a nível global (p. 140). Como resultado, mantiveram-se as práticas escravistas, porém, então envolvidas com contratos, ideologias de livre emprego e discursos sobre civilização (p. 157).

A quinta “meseta” (a partir do ano 1900) é considerada mais incerta, apesar da magnitude das escravidões coletivas estatais e dos sistemas de trabalho forçado à sombra da progressiva ilegalidade da escravidão e do desenvolvimento do capitalismo. Zeuske parte de alguns pressupostos para defini-la: a redução de status e desumanização ideológica do outro, não apenas nas colônias distantes, e um contexto social legitimador da violência direta nas relações de trabalho nos sistemas penitenciários e educativos. O primeiro ponto pode ser exemplificado pelos campos de concentração e trabalho forçado na Alemanha nazista e nos gulags soviéticos, onde o papel do Estado foi relevante, e na imposição do trabalho forçado como castigo legítimo. Trabalho forçado, aliás, que continuou a ser utilizado nas colônias mediante uma série de justificativas para diferenciá-lo do termo “escravidão” a partir dos debates na Organização Internacional do Trabalho (OIT) nas primeiras décadas do século XX.

Zeuske sustenta que, atualmente, o escravo como propriedade privada conforme os princípios do direito romano não existe mais em nenhuma parte do mundo. Mas as escravidões estatais e outras formas de escravidão das diferentes “mesetas” permanecem enraizadas nas sociedades. Dentre essas permanências, destaca-se o racismo – uma redução de status típica da “meseta” da escravidão por parentesco (p. 175) – baseado em falsos argumentos teóricos de superioridade, que permeou toda a terceira e quarta “mesetas” e atingiu seu ponto máximo em meados do século XX, porém sem deixar de existir ainda hoje. Nessa altura da argumentação, Zeuske assevera que, nas escravidões atuais2 , nem o racismo nem a propriedade escrava desempenham papel importante (p. 176). Afirmação que deve ser relativizada, pois, se essa redução de status não constitui condição inerente das escravidões atuais, é difícil negar sua presença na maioria delas, em especial nas grandes sociedades escravistas da terceira e quarta “mesetas” – Brasil, Estados Unidos e Cuba –, sobretudo quanto aos trabalhadores afrodescendentes, como demonstram Cooper, Holt e Scott (2005).

No capítulo em que discute “quanto valem os corpos humanos?”, Zeuske historiciza o valor dos corpos das pessoas escravizadas. Na pré-história e nas sociedades com características similares, os escravos eram capital como símbolo de status; na Antiguidade e na Idade Média, os escravos possuíam valor de compra e venda assim como bois e cavalos. Na terceira “meseta” da escravidão atlântica, porém, a relação entre o valor do corpo de uma pessoa escravizada e o valor dos animais domesticados rompeu-se e o preço dos escravos aumentou de forma considerável, inclusive, transformando-os em medida de valor e meio de pagamento. Nos dias atuais, em contraste, ressalta Zeuske, é possível conseguir escravos – crianças ou mulheres – por valores muito baixos.

Outro aspecto fundamental abordado por Zeuske refere-se às diferenças e intersecções entre o tráfico e as escravidões nos hemisférios oriental e ocidental, já apontadas por autores como Capela e Medeiros (1987). No Oceano Índico, na Ásia central e oriental, e mais especificamente na China, é possível identificar quase todas as “mesetas de esclavitud” juntas: militar, estatal, prisioneiros de guerras, escravidão de mulheres e de crianças, escravidão coletiva em certos territórios, escravidão por dívidas, concubinas. Entretanto, chama atenção a ausência da terceira “meseta” caracterizada pela escravidão de propriedade similar à atlântica. Esta foi exportada para o oriente com a modernidade escravista para suprir a necessidade de mão de obra nas plantations a partir de meados do Oitocentos, encaixando-se na quarta “meseta” de tendência globalizadora.

A China, aliás, foi uma importante região de procedência de coolies enviados para Cuba e Peru, além de territórios do Índico. À diferença da escravidão atlântica, no território chinês nunca houve a condição de escravo definida legalmente nem relacionada com a raça ou a cultura e, portanto, nunca existiu uma escravidão ao estilo do direito romano. Porém, também nunca houve o contrário, um ideal de liberdade pessoal. Razão pela qual se tornou invisível aos olhos ocidentais (p. 326). Quanto aos números, Zeuske defende a tese de que a quantidade de pessoas escravizadas no hemisfério oriental – costa leste da África, Ásia central e leste, territórios do Índico e Pacífico – superou a da zona atlântica e cita Gwyn Campbell para afirmar o mesmo em relação ao tráfico de escravizados, ressaltando que a maior parte do infame comércio na Ásia ocorreu por via terrestre (p. 235).

No hemisfério ocidental, Zeuske revisita as escravidões locais de índios nas Américas até a chegada dos europeus e, posteriormente, a conversão de corpos humanos em capital. O número de escravos indígenas em territórios hispano-americanos e os que seriam depois controlados por Inglaterra, França, Estados Unidos e Canadá pode ser estimado entre 2,5 e 5 milhões até 1900 (p. 242). Voltando seu olhar para a África – importante centro de capitalização de corpos humanos, sobretudo entre os anos 1700 e 1850, em relação ao Atlântico, mas também ao Índico –, o historiador alemão destaca o papel dos europeus no tráfico negreiro transformado em grande e lucrativo negócio através da integração paulatina das regiões produtoras de commodities e das áreas fornecedoras de escravos.

Após evidenciar a importância dos dados numéricos, Zeuske aponta para outra dimensão, considerada essencial em sua tese: “a conceitualização histórica e transcultural dos corpos como capital é a chave para entender a escravidão como um fenômeno histórico global” (p. 249). Ou seja, sem a “produção” e a “disposição” do capital de corpos humanos, sem o contrabando e sem a polivalência deste capital humano não haveria expansões imperialistas, colonialismo, cosmopolitismo e capitalismo – tal fato, em sua ótica, extrapola os benefícios estritamente monetários. Tratava-se, a princípio, do capitalismo comercial de mercadorias, em cujo núcleo se encontravam os escravos, e que ficou conhecido como mercantilismo. O fundamental para Zeuske é a ausência – salvo raras exceções – da escravidão, do comércio de pessoas e dos corpos como capital nas descrições habituais do mercantilismo. Aspecto que aparenta ser uma imprecisão do historiador, pois tráfico de escravizados e escravidão são elementos centrais, por exemplo, nas análises de Fernando Novais (1979) sobre o Antigo Sistema Colonial3. Isso, porém, não invalida a originalidade de sua tese sobre a existência, já neste período, de dimensões globalizadas de um capitalismo de corpos humanos e de uma mobilidade forçada e violenta (p. 250), que só aumentaram a galope do incremento do tráfico de escravizados a partir do final do século XVII, passando pelo século do Iluminismo (XVIII) até meados do XIX (século da “civilização europeia”), com destaque para os três territórios com as escravidões maiores e modernas (segunda escravidão) – Brasil, Cuba e Estados Unidos.

Em relação à África, ciente de que as históricas estruturas e dinâmicas do comércio de escravos no interior do continente foram abaladas pelas demandas do tráfico atlântico e oriental (Lovejoy, 2002), Zeuske lembra que o mercado interno de escravos era no mínimo tão grande quanto o transatlântico. A diferença residia nas variadas formas de escravidão e na maior quantidade de mulheres escravizadas (tendência geral da escravidão na história mundial) em contrapartida ao tráfico transoceânico onde predominaram homens e crianças. Desde o final do século XVIII, as colônias europeias de plantações do Índico – Mauricio, Reunião, Mayotte – e a zona sul-africana do Cabo importavam escravos procedentes da costa oriental. Moçambique, por exemplo, esteve relacionada ao comércio transatlântico, mas também exportou escravos, ainda que em menor escala, para o Índico (Capela e Medeiros, 1987).

A proibição do tráfico e depois a abolição da escravidão provocaram dois movimentos em relação à exploração dos nativos africanos: (1) a compra de escravos transformou-se em compra de liberdade, comprometendo o indivíduo a trabalhar para saldar a dívida, através da assinatura de um contrato de prestação de serviços por tempo determinado (Stanziani, 2012; Flory, 2011); (2) gradualmente a África deixou de ser um afluente de mão de obra destinada à América ou Índico para se transformar na vítima cada vez mais direta do imperialismo europeu, através do qual as elites locais e os governadores coloniais passaram a explorar os escravos dentro do próprio continente (p. 265), sob a justificativa da “missão civilizadora”.

No capítulo final, Zeuske analisa de forma bastante crítica o conceito de abolição concebido e sedimentado nos séculos XIX e XX, não sob a perspectiva da “liberdade”, mas da “falta de liberdade”/escravidão. Inicialmente, observa que entre 1808-1840, época das abolições formais do tráfico de escravizados no Atlântico, surgiram processos de ocultamento, marginalização e nomeação eufemística de tudo o que se relacionava com o comércio e posse de escravos e com as escravidões reais que continuavam existindo. A galope do movimento abolicionista, forjaram-se conceitos e discursos culturais para descrever as escravidões reais como tradições independentes, quase sempre utilizando como marco a concepção de “trabalho forçado”, a ser superado pela introdução do modelo de civilização europeu. Ou seja, a abolição serviu como pretexto para a expansão imperialista e, enquanto instrumento deste objetivo, prestou-se a protelar o fim da escravidão – “el largo adiós”, na oportuna expressão de Seymour Drescher citada por Zeuske (p. 287).

Encaminhando-se para o fim do livro, Zeuske se pergunta: “Quando acabaram as escravidões realmente e não só formalmente como nos discursos políticos e textos jurídicos?” (p. 296). A resposta não é otimista, mesmo enfatizando a agência dos indivíduos escravizados na luta contra a degradação de seu status e por condições dignas de sobrevivência. Segundo o historiador, a abolição das escravidões complexas e estabelecidas legalmente contribuiu para perpetuar escravidões mais antigas, pequenas e locais ou mesmo a favorecê-las. As escravidões informais nunca terminaram e se transformaram em formas de migração laboral sob condições difíceis e violentas e com práticas análogas à escravidão (transporte, castigos físicos, trabalho escravo, alimentação e alojamento). Isso ocorreu em virtude das novas nomenclaturas da escravidão, dos interesses coloniais e das novas formas de produção de recursos cada vez mais globalizadas. Em suma, não acabaram a redução de status, a escravidão por dívida, a escravidão infantil, a prostituição forçada, nem outras formas de escravidão moderna ou mesmo os escravistas.

A resposta passa também pelas já referidas “mesetas de esclavitud”, pois a complexidade dos processos de escravização da história global4 deve-se à contínua evolução de forma independente das “velhas mesetas” que continuam a desempenhar importante papel na criação de novas formas (“mesetas”) de escravidão. Os discursos mudaram, mas, via de regra, os trabalhos que os libertos deveriam executar para não morrerem de fome eram os mesmos, assim como seu status, e se seguiu exercendo a violência sobre seus corpos: práticas escravistas sem escravidão formal. Tudo somado, leva Zeuske a concluir que na história global jamais houve a propalada dicotomia entre “liberdade” e “escravidão”. Por outro lado, o historiador defende que o melhor dimensionamento da percepção do sentido da liberdade viria com os estudos de micro-história sobre as experiências vividas por aqueles que sofreram na pele a escravidão, o comércio de escravos e a própria abolição (Rozalén e Zeuske, 2017).

Antes de concluir esta resenha, sob perspectiva crítica mais ampla, seria importante inserir a história da escravidão de Zeuske na História Global do Trabalho. Suas “mesetas de esclavitud” permitem discutir algumas categorias de sujeitos que se deslocaram em grandes volumes ao longo dos séculos XIX e XX, ou mesmo nos dias atuais, no contexto do espraiamento global do capitalismo: escravos africanos, trabalhadores africanos e asiáticos sob contrato, imigrantes europeus, tráfico de crianças e mulheres. Um esforço para apreender o fenômeno migratório dos denominados “trabalhadores subalternos” de Marcel van der Linden (2013), tendo como ponto de partida a análise expandida geográfica e temporalmente sem, no entanto, relegar ao segundo plano as especificidades locais das relações de trabalho livre e não livre.

Evitando as amarras da dualidade “trabalho escravo”/“trabalho livre”, a História Global do Trabalho, desenvolvida como “área de interesse” por Linden, traz elementos essenciais para a percepção de que o trabalho livre era muito menos livre do que se supõe e, em muitos casos, aproximou-se da servidão e do trabalho coercitivo no mundo todo, inclusive nas áreas centrais. Trabalho livre e não livre, remunerado e não remunerado, organizações formais e informais de trabalhadores constituem, assim, os objetos em perspectiva transnacional e transcontinental das relações de trabalho em amplo arco temporal. Ou seja, uma história do trabalho que integre a história da escravidão.

Linden, assim como Zeuske, observa que a história do capitalismo, desde a expansão do mercado mundial no século XIV foi sempre a história do trabalho compulsório, por coerção tanto física quanto econômica, e os “trabalhadores assalariados reais” abordados por Marx eram apenas uma das formas que o capitalismo encontrou para transformar força de trabalho em mercadoria. A principal contribuição dessa tese seria questionar o pensamento teleológico de que escravidão, servidão por contrato, trabalho autônomo, doméstico, infantil e de subsistência seriam formas residuais de exploração do trabalhador, não subordinadas à lógica da mercantilização capitalista e, portanto, fadadas ao desaparecimento. Visão em escala global que permite constatar a coexistência e a complementariedade dessas formas de trabalho, vereda que Zeuske também percorre, só que sob o “prisma da escravidão”.

A base comum a todos esses trabalhadores é a mercantilização coagida de sua força de trabalho, o que torna importante inventariar os motivos que levam ao uso desta ou daquela modalidade de exploração da força de trabalho, ou o impedem – considerando cálculos econômicos, normas comportamentais, legais, políticas e morais. Nessa perspectiva, os “trabalhadores subalternos” abarcam o trabalhador livre assalariado, os trabalhadores autônomos, arrendatários, trabalho sob contrato e os escravos. São aqueles cuja força de trabalho é vendida (ou alugada) a outra pessoa em condições de compulsão econômica ou não econômica, independentemente de o portador da força de trabalho vender ou alugar ele mesmo sua força de trabalho, e independentemente de o portador possuir meios de produção (Linden, 2013).

Alessandro Stanziani, com quem Zeuske dialoga no livro, também defende que a história das formas de trabalho “livre” está intimamente ligada à do trabalho forçado. Enfocando o contexto do Oceano Índico oitocentista, observa que não existiam fronteiras claras entre a escravidão e o trabalho assalariado, mas continuidade e coexistência de diversas formas de dependência e submissão, demonstrando que o capitalismo é compatível com o trabalho não livre. A tese do historiador italiano é de que, entre os séculos XVII e XX, formas de trabalho e escravidão por toda a Eurásia foram definidas e praticadas em uma via de mão dupla. Uma ampla gama de configurações de dependência, escravidão e trabalho existiu na Rússia, Índia e Indonésia, bem como no Japão, China, Grã-Bretanha, França, Prússia e no Oceano Índico. Isso ocorreu não apenas em áreas específicas, de forma enraizada em instituições locais, valores e relações econômicas, mas também em escala global. Nas colônias europeias, a prática do trabalho sob contrato foi concebida como uma forma extrema de subordinação do serviço doméstico e da servidão na Europa. Ou seja, sem a identificação do trabalhador como um servo na Grã-Bretanha, França e Holanda, o trabalho sob contrato nessas áreas seria impossível (Stanziani, 2013).

As estratégias de obtenção e controle de trabalhadores permitem identificar alguns aspectos associados ao capitalismo em termos de redução de custos e controle da força de trabalho. As várias formas de coerção, portanto, constituíram historicamente a base das estratégias de obtenção dos “trabalhadores subalternos” para rebaixar os custos da produção e ampliar a oferta de mão de obra, cujo limite de exploração se encontra nas escravidões modernas apontadas por Zeuske. O fato de o trabalho forçado conviver no mesmo tempo e espaço com formas de escravidão e trabalho livre no passado e no presente, inclusive sob o sistema capitalista, aponta para a necessidade de se repensar a dualidade entre trabalho escravo e trabalho livre. Debate cada vez mais fundamental frente às “formas de trabalho semelhantes à escravidão” presentes nos dias atuais, no qual o livro de Zeuske certamente tem muito a contribuir.

À guisa de conclusão, cabe recuperar a metáfora aludida no início desta resenha. Se no reino animal, ao cumprir seu ciclo de vida na natureza, a serpente troca várias vezes de pele até perecer, Zeuske, em sua História da Humanidade, considera a escravidão imortal, ao menos enquanto as sociedades existirem: “No hay final al final” (p. 305). Como resumiu Fernando Mendiola Gonzalo no prólogo da edição espanhola do livro de Zeuske, o debate segue aberto sobre coerção, escravidão e capitalismo, mas todos pertencem ao mesmo mundo. Afinal, segundo a OIT5 , atualmente (dados de 2017), existem mais de 40 milhões de pessoas em situação de escravidão, formas de dominação contemporâneas e amparadas pelo capital em diferentes partes do globo, onde o trabalho regular, acordado sob condições livres por ambas as partes, representa apenas uma das formas de trabalho. A palavra derradeira é de Zeuske quando expõe sua tese no início do livro: “as dinâmicas da economia e da riqueza global foram e continuam sendo impulsionadas em grande parte pelo motor mantido por corpos humanos através das escravidões e dos trabalhos forçados” (p. 30).

Notas

2 Zeuske apoia-se na definição da ONU para as formas de escravidão moderna: (1) Escravidão de propriedade pessoal; (2) Escravidão por dívidas (bond-slavery); (3) Trabalho infantil; (4) Prostituição forçada; (5) Matrimônio precoce ou forçado; (6) Escravidão ritual e para culto; (7) Trabalho forçado nas oficinas de costura ou zonas rurais (Zeuske, 2018, p. 176-181).

3 O livro de Fernando Novais, aliás, não consta nas referências bibliográficas consultadas por Zeuske.

4 A História Global é pensada como um campo da História que pretende ser um palco comum para que realidades se encontrem e dialoguem, além de permitir discutir as unidades de análise a serem utilizadas no futuro que extrapolem os limites do quadro nacional (Moreli, 2017).

Referências

CAPELA, J.; MEDEIROS, E. 1987. O tráfico de escravos de Moçambique para as ilhas do Índico, 1720-1902. Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 128 p.

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FLORY, C. 2011. Alforriar sem libertar: a prática do “resgate” de cativos africanos no espaço colonial francês no século XIX. Revista Mundos do Trabalho, 3(6):93-104.

LINDEN, M. van der. 2013. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas/SP, Editora da Unicamp, 518 p.

LOVEJOY, P. E. 2002. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 497 p.

MORELI, A. 2017. Vida (e morte?) da História Global. Estudos Históricos, 30(60):5-16. http://dx.doi.org/10.1590/S2178- 14942017000100001

NOVAIS, F. A. 1979. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo, Hucitec, 420 p.

ROZALÉN, V.; ZEUSKE, M. 2017. Microhistoria de esclavas y esclavos. Millars: Espai i Història, 42:9-21. http://dx.doi.org/10.6035/Millars.2017.42.1

STANZIANI, A. 2012. Travail, droits et immigration: Une comparaison entre l’île Maurice et l’île de La Réunion, années 1840-1880. Le Mouvement Social, 4(241):47-64. https://doi.org/10.3917/ lms.241.0047

STANZIANI, A. (org.). 2013. Labour, coercion, and economic growth in Eurasia, 17th-20th Centuries. Leiden; Boston, Brill, 326 p.

TOMICH, D. W. 2012. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo, Edusp, 248 p.

ZEUSKE, M. 2018. Esclavitud: una historia de la humanidad. Pamplona, Katakrak Liburuak, 344 p


Resenhista

Paulo Cesar Gonçalves – Departamento de História, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP – Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected]  ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3122-0690


Referências desta Resenha

ZEUSKE, M. Esclavitud: una historia de la humanidad. Pamplona: Katakrak Liburuak, 2018. Resenha de: GONÇALVES, Paulo Cesar. Escravidão, uma antiga serpente de múltiplas peles. História Unisinos. São Leopoldo, v.26, n.1, p. 159-164, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

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