Esclavitud: una historia de la humanidade | M. Zeuske

Na historiografia sobre os mundos do trabalho está cada vez mais evidente a necessidade de discutir alguns limites dos conceitos relacionados a “trabalho livre” e “escravidão” em perspectiva global e local. As temporalidades históricas dessas relações de trabalho também constituem elementos condicionantes do debate. Michael Zeuske, professor de História Ibérica e Latino-Americana na Universidade de Colônia (Alemanha), em estudo ambicioso e instigante, traz importantes contribuições para arejar essa contenda. Nos seis capítulos de Esclavitud: una historia de la humanidad (2018) – tradução espanhola do original em alemão publicado no mesmo ano –, o historiador, apoiado em sólida pesquisa documental e bibliográfica, parte da premissa de que a história da escravidão se confunde com a história da humanidade e lança luz sobre alguns silêncios historiográficos, em busca de uma abordagem mais integradora da História, condição essencial para desenvolver sua hipótese de trabalho.

Zeuske observa a coexistência de vários tipos de relações laborais no marco do desenvolvimento capitalista, e mesmo antes, chamando a atenção para a centralidade de diversos mecanismos de coerção extraeconômica no momento de recrutar e fixar a mão de obra em diferentes épocas e contextos históricos. Sua abrangente definição “histórico-antropológica” da escravidão – “a disponibilidade sobre corpos humanos baseada em uma violência real exercida sobre esses mesmos corpos e a degradação do status” – e dos escravos “como capital de corpos humanos” (p. 36) – ultrapassa as dimensões jurídicas vinculadas ao direito romano e tenta englobar todas as modalidades em que a apropriação e o recrutamento de força de trabalho se realizam através da violência e da coerção direta. Aponta ainda os quatro motivos principais de escravidão: autoescravização ou entrega (a princípio ligadas ao endividamento), guerra, comércio e nascimento como pessoa escravizada. Leia Mais

A História da Escravidão | Olivier Pétré-Grenouilleau

PÉTRÉ-GRENOUILLEUAU, Olivier. A História da Escravidão. São Paulo: Editora Boitempo, 2009. Resenha de: SANTOS, Fabio Luis Barbosa dos. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.10, n.20, jan./jun., 2010. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos | Ira Berlin

O professor Ira Berlin, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, já ganhou diversos prêmios em razão de seus livros publicados em 1975 e 1999, intitulados, respectivamente, Slave without masters: the free negro in the Antebellum South e Many thounsands gone: the first two centuries of slavery in Mainland North America. O mesmo aconteceria com a publicação de outro livro em 2002, e traduzido para o português em 2006, Gerações de Cativeiro, que foi agraciado pela Associação Histórica Americana. Com essa publicação, o professor americano prossegue suas pesquisas na área da história dos Estados Unidos e do mundo Atlântico, enfocando o trabalho escravo.

No livro Gerações de Cativeiro, Berlin trabalha novamente com a escravidão nos Estados Unidos, dando ênfase no escravo, pois, como afirma, apesar da relação entre proprietários e cativos ser desigual, tendo estes pouco poder se comparado aqueles, havia um embate entre ambos. Os escravos eram ameaças constantes aos seus senhores e, portanto, era necessária uma contínua relação de disputas entre estes dois grupos, sendo que, às vezes, o resultado desta era a realização de algumas “concessões” em prol dos cativos. Apesar da proibição de casarem-se, muitos escravos formaram famílias; apesar de não poderem ter religião própria, criaram-se igrejas à revelia dos senhores; apesar de não poderem ter propriedades, muitos cativos adquiram posses. Deste modo, neste livro o escravo é o centro da narrativa mesmo sem esquecer outros atores sociais como os proprietários de escravos, os brancos livres, negros livres ou libertos e indígenas.

O criativo título Gerações de Cativeiro expressa a outra ideia que permeia a análise no livro: a perspectiva de mudanças. Mudanças nas gerações em cativeiro, nas gerações de comunidades escravas, as quais, como a própria palavra geração expressa, foram influenciadas pelas que as precederam e diferenciadas das posteriores. Assim, Berlin demonstra a descontinuidade, as variações e opõe-se a uma história linear dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos bem como a uma história que retrata os escravos como “socialmente mortos”, sem enraizamento, isolados no Novo Mundo trazendo à tona a ideia do escravo como ativo, como sujeito na sua própria história e na sua geração.

Observando o escravo por este viés, Berlin percebe, portanto, a escravidão como algo negociado e não simplesmente imposto e mantido através da violência. No centro deste processo está o trabalho desses cativos. Todavia, Berlin não se concentra somente na história do trabalho; ele amplia seus estudos para as relações familiares, religiosas e para o próprio vocabulário desenvolvido pelos grupos de africanos e de seus descendentes que se estabeleceram nas plantações de tabaco, arroz, índigo e nas cidades. Embora não oficiais, essas práticas formularam instituições escravas, as quais se diferenciavam da dos seus senhores.

Conectando o título com a divisão do livro, Berlin intitula e separa seus capítulos baseando-se também na concepção de gerações, as quais organizaram-se e estabeleceram-se a partir do final do século XVI até meados do XIX, com o término da escravidão nos Estados Unidos. Há, portanto, as gerações da Travessia, da Plantation, Revolucionárias, de Migrantes e, por fim, da Liberdade. Nesses capítulos, além da observação de diversas formas de relações dos cativos entre si e entre estes e seus superiores, há a análise das variações dessas relações referentes aos espaços onde estas foram constituídas. Desta forma, nos capítulos iniciais, as narrativas têm como palco as treze colônias americanas enquanto, no fim do livro, temos os Estados Unidos como nação e dividido, principalmente, entre norte e sul.

As Gerações da Travessia são os grupos iniciais de africanos trazidos para a América. Berlin nomeia esses como crioulos do Atlântico, uma vez que eram um grupo de origem não somente africana, mas também europeia. A formação desse grupo deu-se pelo contato ocorrido em virtude do estabelecimento de feitorias e pontos comerciais europeus na costa oeste da África a partir do século XV. Desta relação surgiram os crioulos, um terceiro grupo, o qual não era reconhecido nem como europeu e nem como africano. Esses crioulos eram extremamente hábeis no comércio, pois tinham maleabilidade e conhecimentos para ir e vir tanto no mundo dos europeus como no dos africanos. A despeito das vantagens comerciais e linguísticas, esse aspecto limítrofe do crioulo trazia dificuldades na sua identificação com determinados grupos detentores do poder e, por conseguinte, na obtenção de proteção por parte destes. Deste modo, questões como crimes, dívidas ou má sorte poderiam significar escravização.

Os crioulos do Atlântico, em diversas situações, desempenhavam as atividades diárias lado a lado com os europeus, os quais, em alguns casos, trabalhavam como servos. Aqueles puderam continuar e expandir sua cultura nascida no continente africano. Diferentemente do que aconteceu com as gerações posteriores, a travessia do Atlântico não desfez os laços entre os cativos: simplesmente, deslocou-os para outra localidade. Além disso, participavam das atividades religiosas europeias e tinham mais possibilidades de acesso a terras bem como a alforrias e ao casamento do que as gerações posteriores.

Com a introdução das plantations essa pequena prosperidade vivenciada pelos crioulos do Atlântico desapareceu e a segunda geração de escravos surge: estamos na Geração da Plantation. Apesar das especificidades regionais, o que compreende toda esta segunda geração é a introdução das grandes plantações e a rigidez e a brutalidade com que o sistema escravista se estabeleceu, haja vista que, neste momento, temos a necessidade de maior produção em menos espaço de tempo visando à exportação. Com a plantation, almejava-se o lucro, custe o que custar. Essa geração é o retrato que pintamos da escravidão como tal, com trabalho árduo e castigos corporais mais acentuados, com altas taxas de mortalidade, desequilíbrio entre homens e mulheres, poucas alforrias e famílias.

Não eram mais os crioulos do Atlântico, os escravos trazidos da África. Saiu-se do litoral e mirou-se nos nativos do interior do continente. Assim, a língua crioula deixou de ser corrente para dar voz às africanas do interior. O contato entre trabalhador o escravo africano e o europeu esvaiu-se, aumentando a distância entre brancos e negros.

Nesse segundo capítulo, o autor trabalha com a escravidão na região norte dos Estados Unidos. A priori, a ideia comum é considerar os estados do norte como abolucionistas e livres de escravos. Mas, Berlin demonstra que esta região quase chegou a vias de tornar-se uma sociedade escravista, ou seja, uma sociedade em que este tipo de mão de obra é o alicerce central da produção econômica e todas as relações sociais estão construídas em torno no modelo patriarcal de senhor e escravo. Todavia, a expansão da escravidão freou antes desse processo ocorrer como aconteceu na região sul.

Após o estabelecimento da Geração da Plantation, vêm, no final do século XVIII, as Gerações Revolucionárias, acompanhando e vivenciando as revoluções por igualdade e liberdade que borbulhavam tanto na Europa quanto na América. A Revolução Americana desestruturou internamente a organização da sociedade escravocrata de então, sendo que não havia mais uma uniformidade entre os proprietários de escravos, os quais estavam divididos entre legalistas e patriotas, e nem havia mais um Estado forte para a proteção da instituição escravista. Deste modo, esse período de conflitos internos gerou uma válvula de escape para os cativos.

Além da guerra, a ideologia, que permeava essa e as outras revoluções contemporâneas, também foi extremamente significativa para a erosão do poder dos senhores escravocratas. Apregoava-se, tanto na Declaração Americana de Independência como na Declaração Francesa dos Direitos do Homem, a igualdade universal. Portanto, surgiam questionamentos como: se todos eram iguais como uns poderiam ser subjugados a outros? Além disso, havia outra questão: os americanos desejavam a independência por estarem sendo escravizados pelos países metropolitanos, mas como poderiam almejar sua liberdade se continuavam a escravizar em suas terras? Esse paradoxo fortaleceu ainda mais os escravos.

Com o fim das revoluções, os escravos iriam vivenciar outro momento: a expansão das grandes plantações para o interior do sul dos Estados Unidos, criando as Gerações de Migrantes. Acompanhando a plantation, seguiram mais de um milhão de escravos vindos de outras regiões do país, haja vista que o tráfico Atlântico de africanos havia sido extinto em 1808. Esse mercado interno de cativos aqueceu-se entre os anos de 1810 a 1861 quando as terras do interior sulista foram protagonistas das plantações de algodão e de açúcar.

Enquanto no sul as relações escravocratas enrijeciam-se e se fortaleciam com os lucros das plantações, no norte, após as ondas revolucionárias, mudanças estavam em prosseguimento. Leis para a gradativa abolição da escravatura estavam sendo elaboradas e aplicadas. Em algumas regiões, a abolição aconteceu mais rápido do que em outras, apesar de a escravidão, em certos locais, perdurar com outras formas e nomes, porém com o mesmo conteúdo e objetivo. Além disso, a liberdade para os negros não significava igualdade no norte e muito menos proteção contra investidas dos brancos sulistas, haja vista que a temática da reescravização esteve sempre presente na vida desses indivíduos no século XIX. Mesmo sendo estados considerados livres e sendo refúgio e esperança de muitos ex-excravos, negros livres e cativos sulistas fugidos, o norte auxiliou na recaptura e envio de escravos para os seus senhores sulistas.

Mas, a escravidão não viveria para sempre. A partir de meados do século XIX, a possibilidade da liberdade com o fim da escravidão estava ganhando mais força. A abolição da escravatura em diversos países e o fortalecimento do movimento abolicionista no norte dos Estados Unidos eram os carros chefes desse movimento. Assim, chega-se às Gerações da Liberdade.

Com a guerra civil entre o norte e o sul, iniciada em 1861, os escravos viram o sistema escravista em colapso e aproveitaram essa fragilidade. Contudo, em seus primeiros momentos, a decepção dos escravos quanto à liberdade e a salvação vinda do norte foi grande. A guerra, diferentemente do que geralmente aprendemos, não tinha inicialmente motivos abolicionistas, como expõe Berlin. Os soldados federais não estavam lutando pelo fim da escravidão; a maioria nem se importava com estas questões. Esta relação mudou somente quando os sulistas passaram a utilizar os cativos nas fortificações e na luta contra os soldados da União. Indo de encontro com as políticas federais, os soldados do norte começaram a também fazer uso dos escravos e a não mais devolver os cativos fugidos aos seus donos sulistas. Com o passar da guerra, o governo necessitou de mão-de-obra, o que favoreceu as fugas escravas, que só aumentavam. Para o fugitivo, o envolvimento com o serviço militar significava não só liberdade, mas também a possibilidade de ter acesso à cidadania. Entretanto, foi somente em 1863 que o presidente Lincoln declarou todos os cativos dos estados rebeldes do sul como livres. Portanto, vale ressaltar que a abolição aconteceu quase dois anos depois do início da guerra, demonstrando que esta não era a intenção inicial do governo de Lincoln.

Porém, a escravidão não solapou somente com as forças externas dos federais. Dentro das plantações, os escravos também resistiam, protestavam e se rebelavam. Assim, com o fim da guerra civil, a instituição escravista estava destruída e a nova lógica em jogo era a da liberdade. A construção dessa nova sociedade era um misto de antigos e novos desejos. A história desses libertos não poderia ser elaborada ser as marcas e as vivências da escravidão. E, segundo Berlin, a herança da escravidão são essas marcas e vivências que delinearam e delineiam a formulação da vida em liberdade e do direito de ser cidadão.

O livro Gerações de Cativeiro é um trabalho de síntese histórica uma vez que o autor percorre desde as feitorias na África do século XV até as batalhas da Guerra de Secessão nos Estados Unidos no século XIX. Neste caso, ser um trabalho de síntese não significa um termo depreciativo, ao contrário. Berlin consegue entrelaçar num livro de poucas centenas de páginas diversas pesquisas menores sobre este extenso período. Os dados que apresenta não são retirados de fontes primárias e sim, dessas pesquisas que estão expressas nas notas no fim do livro. Devido ao grande número de trabalhos citados, verificamos uma grande carga de leitura e formidável capacidade de organizá-la de forma coerente e concisa por parte do autor. Porém, além desses trabalhos de outros pesquisadores, Berlin apresenta os resultados das suas próprias pesquisas anteriores resultando num livro dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos com questionamentos e apontamentos revisados e inseridos nos atuais estudos da história social da escravidão.

Ana Paula Pruner de Siqueira – Mestranda pela Universidade Federal de Santa Catarina, financiada pela CAPES. E-mail: [email protected].


BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. Resenha de: SIQUEIRA, Ana Paula Pruner de. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.3, p. 287-292, jan. / jun., 2009.

Acessar publicação original [DR]

História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico – XAVIER (RBH)

XAVIER, Regina Célia Lima (Org.). História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. 392p. Resenha de: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56, 2008. 

O guia bibliográfico História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional, organizado por Regina Célia Lima Xavier e que resultou de um projeto premiado pelo concurso “Memória do Trabalho no Brasil” (Petrobrás/MinC, CPDoc da FGV e Ministério do Trabalho e Emprego), é uma obra ímpar na historiografia brasileira. Pertence àquela linhagem de trabalhos absolutamente indispensáveis para promover e renovar a produção do conhecimento histórico em um determinado ‘território’ e que, pelos serviços que prestam aos pesquisadores, merecem todo destaque e divulgação.

Neste caso, trata-se de um levantamento exaustivo de fontes bibliográficas (com os respectivos resumos) sobre a temática, precedido por uma sólida abordagem analítica de referências teóricas, problemáticas, temas e debates que orientaram e vêm orientando os estudos sobre a escravidão no Brasil Meridional. Dentro desse cenário de análise historiográfica, examina as principais tendências da produção dos historiadores sul-riograndenses que trabalharam esses temas e questões. Oferece assim ao leitor uma oportuna contribuição sobre o ‘estado da arte’ em um tema que vem agregando cada vez maior número de pesquisadores no Brasil e no sul do Brasil em particular.

Ainda que a autora classifique esta análise historiográfica como “breve e introdutória”, seu texto é bem mais que uma introdução, não só pelo rigor com que é apresentado, mas também pelo fato de que não existia até agora um trabalho mais específico, que abordasse de forma sistemática e desde a perspectiva historiográfica, o tema da escravidão e da liberdade no Rio Grande do Sul.

Certamente a qualidade deste trabalho presta tributo à trajetória intelectual da autora, que vem de longa data se dedicando ao estudo da escravidão e da liberdade no Brasil, especialmente desde sua dissertação de mestrado desenvolvida na Unicamp.1

Quanto ao repertório bibliográfico que é objeto da obra, ele inclui livros, dissertações, teses, artigos e resumos de trabalhos apresentados em congressos acadêmicos, totalizando 851 títulos que abrangem o período compreendido entre meados do século XIX e o ano de 2006.

Esses trabalhos estão agrupados em blocos ou itens classificatórios, cujos títulos já oferecem ao leitor um sugestivo elenco temático que ultrapassa amplamente os enfoques tradicionais sobre a história da escravidão e da liberdade no Brasil meridional: “Dados populacionais, étnicos e questões raciais”; “Participação dos escravos em conflitos militares”; “Trajetórias de vida e experiências cotidianas”; “Trabalho escravo; movimentos sociais: fugas, quilombos, insurreições e crimes”; “Cultura; Afro-descendentes no pós-abolição”; “Família escrava”; “Aspectos jurídicos”; “Abolições e processo de emancipação”; “Economia”; “Tráfico” e “Reflexões historiográficas”. Um último bloco reúne os resumos de apresentações em eventos.

O livro também expõe com muita clareza os critérios que presidiram a seleção da bibliografia (as razões, por exemplo, de não haver incluído obras literárias ou artigos de jornais e revistas de grande circulação), a elaboração dos resumos, os blocos em que as obras foram agrupadas etc. Um índice dos autores e uma lista de siglas completam esta preocupação de orientar o leitor na consulta da obra.

A partir destas observações, é fácil concluir que o Guia atenderá aos objetivos a que se propõe:

Primeiro, deve estimular pesquisas inovadoras sobre o tema da escravidão, uma vez que evidencia as temáticas que foram mais desenvolvidas e aquelas mais carentes de estudos; proporciona uma percepção sobre o uso de fontes e formas de abordagem; assinala as regiões geográficas mais favorecidas nas pesquisas; abre a possibilidade de se pensar as semelhanças entre os Estados do Sul e suas experiências escravistas; por fim, o guia pode ainda explicitar as lacunas existentes e incentivar a renovação e o aprofundamento das pesquisas. Em segundo lugar, deve instigar estudos de cunho historiográfico. (p.11-12)

Trabalhos como o de Regina Xavier nos levam à constatação de que certas afirmações repetidas sem muita crítica ao longo dos anos são apressadas e não resistem às evidências demonstradas por um livro este. Neste caso estão a situação quase residual da escravidão no Rio Grande do Sul, a democracia racial dos pampas, a concentração do trabalho escravo em regiões específicas e o caráter antieconômico da escravidão.

Através dos agradecimentos que a autora faz na Introdução aos numerosos alunos — bolsistas ou voluntários — e aos professores que proporcionaram informações sobre obras de difícil localização, o leitor vislumbra o cuidado em realizar um levantamento exaustivo, que levou a equipe a se embrenhar por três anos nas mais diversas bibliotecas, em arquivos e acervos de todo tipo e depois produzir resumos muito apropriados sobre o conteúdo dos textos, trabalho este que implica extraordinária economia de tempo e esforço para os que consultarem o livro. Uma obra de referência desta envergadura é verdadeiramente uma preciosidade para os pesquisadores.

No entanto, é preciso insistir, o livro de Regina Xavier não é apenas um guia bibliográfico, o que já justificaria plenamente sua publicação. Mais do que isto, como antecipei, a autora realiza também uma pioneira análise historiográfica da produção sul-riograndense sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes.

O espaço de uma resenha não permite que eu refaça aqui o caminho que ela percorreu em sua análise, na qual comenta as características da abordagem desses autores, a começar pelas Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves, escritas entre 1817 e 1823, um dos primeiros textos antiescravistas que se conhece no sul do Brasil. Também coloca historiadores rio-grandenses como Emílio de Souza Docca e Dante de Laytano em diálogo com as conjunturas históricas das décadas de 1930 a 1950, em que suas obras foram produzidas, e com os vários debates que se desenvolveram no centro do país — onde a referência obrigatória é Gilberto Freyre — e na Europa sobre o racismo e o conceito de raça, sua definição biológica ou cultural, sobre o papel das diferentes raças na construção da nacionalidade. Na década de 1960, esses debates têm por referência as transformações estruturais da sociedade brasileira, a passagem da sociedade tradicional escravista para a sociedade moderna capitalista, e um dos expoentes dessa perspectiva analítica foi Fernando Henrique Cardoso, com cujo trabalho dialogou no Rio Grande do Sul, entre outros, Mario Maestri Filho. A obra de Cardoso suscitou, no entanto, numerosos debates e experimentou muitas refutações através das pesquisas de Paulo Zarth e Helen Osório, para citar os mais conhecidos, que têm revisado, desde vários ângulos, a importância e o significado do trabalho escravo no Rio Grande do Sul.

A autora comenta, também, os trabalhos muito diversificados que se voltaram, nas décadas recentes, para valorizar a experiência dos escravos, seu cotidiano e sua religiosidade, e neste alargamento temático, proporcionado em boa medida pela pesquisa vinculada ao crescimento dos cursos de pós-graduação, também se incluem investigações sobre o tema do trabalho escravo na pecuária e na cidade. Paulo Zarth, Helen Osório e Paulo Moreira são timoneiros dessa nova historiografia no Rio Grande do Sul.

Na conclusão deste panorama analítico referente ao conhecimento produzido sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, a autora também faz um diagnóstico que aponta rumos para as futuras pesquisas:

muito resta por ser aprofundado: na análise das próprias obras citadas nesta Introdução ou o contexto de suas formulações; na relação dessas obras com seus interlocutores, entre outros aspectos. Certamente é preciso tecer considerações mais abrangentes sobre toda esta produção arrolada, privilegiando a perspectiva comparativa. Neste caso, aguardam-se estudos mais sistemáticos que relacionem, por exemplo, a experiência do Rio Grande do Sul com aquela de Santa Catarina e do Paraná. Enfim, longe de esgotar o tema, o panorama citado acima tem o intuito de demonstrar a potencialidade e a importância dos estudos historiográficos. (p.40)

Concluindo, quero reafirmar que a impecável análise historiográfica introdutória, o rigor da pesquisa realizada e o alentado número de obras que integram este livro de Regina Xavier fazem dele um excelente exemplo da qualidade que os historiadores e historiadoras brasileiros da recente geração vêm imprimindo aos seus trabalhos, atestando a vitalidade do conhecimento histórico em nosso país.

Notas

1 Sua dissertação de mestrado foi publicada pela Editora da Unicamp em 1997, com o título A conquista da liberdade; a tese de doutorado foi publicada em 2008 pela Editora da Universidade/UFRGS e pelo IFCH, com o título Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito.

Sílvia Regina Ferraz Petersen – Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Av. Bento Gonçalves, 9500. 91509-900 Porto Alegre — RS — Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

SALVADÓ Francisco J Romero (Aut), A guerra civil espanhola (T), Jorge Zahar (E), MOTTA Rodrigo Patto (Res), Revista Brasileira de História (RBH), Guerra Civil Espanhola, Europa/Espanha (L), Século 20 (P)

SALVADÓ, Francisco J. Romero. A guerra civil espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 356p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56 2008.

O livro de Francisco J. Romero Salvadó vem se juntar à escassa bibliografia em português sobre a guerra civil espanhola e deverá ocupar lugar de destaque em razão da qualidade do trabalho. A proposta é fazer uma síntese desse grande evento do século XX, verdadeiro símbolo de uma época, com base nas pesquisas e publicações produzidas nos últimos anos. E algumas delas foram beneficiadas pelo acesso a documentos abertos ao público em período recente, notadamente os arquivos soviéticos.

Os trágicos acontecimentos da Espanha da década de 1930 tiveram impacto internacional e inscreveram-se de maneira marcante na memória coletiva, em parte por força das representações construídas no cinema, literatura e artes plásticas. Naturalmente, seus ecos fizeram-se ouvir também no Brasil. Quando as forças de direita deslancharam o golpe contra a República espanhola, em julho de 1936, dando início à guerra civil que duraria três anos, o Brasil vivia clima político igualmente tenso, sob a onda de repressão que se seguiu à frustrada insurreição de novembro de 1935. Os projetos e valores políticos em disputa no Brasil assemelhavam-se aos das forças conflagradas na Espanha, e por aqui muitos torceram contra ou a favor da República, tendo um pequeno grupo de ativistas da esquerda, na maioria militares implicados no levante de 1935, se alistado nas tropas das brigadas internacionais. A direita nacional, por seu turno, entusiasmou-se pela luta de seus congêneres espanhóis, aumentando-lhe a convicção de que o seu mundo, ordenado com base nos valores cristãos e no caráter sagrado da propriedade privada, estava sob ataque cerrado do comunismo internacional. A conflagração espanhola, junto com outros eventos do contexto internacional à época, contribuiu para fortalecer o ânimo punitivo e autoritário das forças conservadoras brasileiras.

Para o bem e para o mal, o ambiente político dos anos 30 está a anos-luz da realidade deste início do século XXI, em que não se vêem mais disputas acirradas por questões de natureza ideológica, embora as guerras religiosas pareçam estar voltando. Em meio à radical polarização política da época, os lados contendores no conflito espanhol foram denominados com diferentes adjetivos, reveladores das visões de mundo em choque. Para a esquerda, tratava-se de uma luta em defesa da República, contra as forças do fascismo e da reação. O outro lado não se identificava como fascista, embora parte dele efetivamente fosse (os falangistas), mas sim como nacionalistas em luta pela pátria espanhola, agredida pelo comunismo ateu.

É precisamente na análise do quadro internacional que reside o ponto alto do livro de Romero. As melhores páginas do trabalho são dedicadas a explicar como o drama espanhol se inseriu nos conflitos internacionais do período; sobretudo, como as ações das grandes potências influenciaram os acontecimentos. O autor mostra os interesses em jogo, tanto materiais quanto político-ideológicos, e as estratégias dos países decisivos: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e União Soviética. A Alemanha nazista e a Itália fascista foram os principais protagonistas entre as potências que interferiram na Espanha. Solidarizaram-se com as forças contrárias à República por afinidade de idéias, afinal, do lado nacionalista alinhava-se coalizão de direita semelhante à que permitira a Hitler e Mussolini ascender ao poder, e contra os mesmos inimigos: comunistas, socialistas, anarquistas, democratas e liberais. Mas também havia razões mais concretas para o apoio: a Itália desejava estabelecer hegemonia na bacia do Mediterrâneo, e a Alemanha cobiçava os recursos naturais da Espanha para alimentar sua máquina de guerra.

Com seu ânimo agressivo e a convicção de que os países liberal-democráticos eram fracos e decadentes, os dois Estados fascistas mobilizaram tropas e recursos numa escala que nenhuma outra potência ousou atingir: cerca de 80 mil italianos e 20 mil alemães combateram na Espanha, sob o pouco convincente disfarce de tropas voluntárias, ao lado de 10 mil portugueses enviados por outro regime simpatizante, o de Salazar. Do lado republicano, os combatentes das lendárias brigadas internacionais, recrutados por organizações ligadas à Internacional Comunista em mais de quarenta países, montaram a cerca de 35 mil, enquanto a União Soviética enviou 2 mil assessores militares, que, com poucas exceções, não se engajaram em combates. O balanço da ajuda material em armas leves, artilharia, tanques e aviões é semelhante: os aliados fascistas enviaram para as tropas de Franco quantidade muito superior ao que os republicanos receberam (compraram) dos soviéticos. E uma das razões para explicar tal disparidade foi a atitude dos governos franceses e ingleses, que criaram empecilhos à chegada dos suprimentos soviéticos, enquanto faziam vistas grossas à crescente intervenção ítalo-alemã. A diplomacia inglesa, principalmente, que nesse caso arrastou consigo a França, temia mais a vitória dos republicanos que a dos franquistas, preferindo uma eventual hegemonia fascista na Espanha a correr o risco de ver a Península Ibérica cair na órbita soviética.

Na opinião do autor, que é convincente, o desfecho da guerra deveu-se em grande medida à maior ajuda externa recebida pelos nacionalistas, pois em outros aspectos os dois lados tinham recursos semelhantes. Grande responsabilidade teve o governo inglês, que, com sua infeliz e ineficaz política de apaziguar Hitler, combinada ao medo de ver o comunismo instalar-se na Europa ocidental, favoreceu, na prática, a vitória de Franco. Ao contrário de outros autores, que buscam atribuir a culpa pela derrota da República aos comunistas, Romero tende a relativizar a responsabilidade do PCE (Partido Comunista Espanhol) e dos soviéticos. A seu ver, o aumento da influência comunista no campo republicano durante a guerra civil deveu-se menos a maquinações soviéticas e mais à atração exercida por um grupo que mostrou dedicação total à causa. A disciplina dos comunistas e o prestígio alcançado pela União Soviética, único país que apoiou de fato a República (embora seus motivos não fossem altruístas, claro), atraiu para seu lado milhares de republicanos, muitos dos quais tinham escassa convicção marxista.

Naturalmente, Romero menciona os expurgos comandados pelos comunistas, que vitimaram sobretudo militantes do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) e seu líder, Andreu (Andres) Nin, odiado por sua inclinação trotskista. Mas o autor relativiza esses eventos ao situá-los no meio de outras disputas pelo poder no campo republicano, em que todos os grupos recorreram ao assassinato de concorrentes. Argumento polêmico, decerto, e longe de encerrar o debate, mas Romero parece ter razão ao tentar mostrar que os expurgos stalinistas não foram a causa da derrota republicana. A obsessão antitrotskista dos stalinistas contribuiu para as divisões, desconfianças e traições no campo republicano, mas eles não foram os únicos a cometer atos condenáveis. Afinal, a derrota da República foi abreviada quando forças moderadas (março de 1939) tentaram aproximar-se de Franco negociando à base do isolamento dos comunistas. Fracionado o bloco que a sustentava, a República desmoronou quando ainda ocupava um terço do território espanhol. Desfecho melancólico para uma causa que despertou tanta paixão e sacrifícios.

O livro, portanto, é leitura instigante e provocativa, e nos estimula a continuar refletindo sobre esse acontecimento fundamental à compreensão do século XX. Na conta dos aspectos negativos mencione-se que, em certas passagens, o autor exagera nos detalhes, citando nomes e eventos que o leitor comum teria dificuldade em localizar, muitos deles desnecessários em trabalho cuja ambição é a síntese. A tradução do original em inglês é competente, mas cometeu alguns deslizes: por alguma razão, e recorrentemente, milhares viraram milhões, gerando a situação absurda das tropas africanas de Franco montarem a ‘milhões’ de soldados; e o nome do marechal italiano Italo Balbo tornou-se Marshall Italo Balbo.

Rodrigo Patto Sá Motta – Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — Av. Antônio Carlos, 6627. 30310-770 Belo Horizonte — MG — Brasil. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery | Rebecca J. Scott

Rebecca Scott, mesmo para os leitores brasileiros, dispensa apresentação. Autora de diversos trabalhos sobre a abolição da escravidão em Cuba, entre eles Emancipação Escrava em Cuba – a transição para o trabalho livre (1860-1899), Scott publicou em 2005 Degrees of Freedom: Lousiana and Cuba after Slavery, em que desenvolve argumentos inicialmente apresentados no artigo “Raça, trabalho e ação coletiva em Lousiana e Cuba, 1862-1912” no livro Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação, já publicado no Brasil.

O título do livro, Degrees of Freedom, é um conceito tomado de empréstimo dos físicos e químicos, que enfatiza a necessidade da análise em várias dimensões para se chegar ao estudo de um sistema num dado momento, e é usado como metáfora pela autora que estuda o período pós-emancipação a partir de duas dimensões – a organização do trabalho e a participação política – e discute a inserção do negro na sociedade e as relações raciais em Cuba e na Lousiana após o fim da escravidão. Leia Mais