Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira | Gaudêncio Frigotto

A polarização ideológica que atingiu o Brasil nos últimos anos alcançou a educação, levando-a para um campo de batalha ideológico temerário, segundo educadores. O projeto Escola sem Partido sintetiza essa bipolaridade no campus requisitado. Desenvolvido no ano de 2004 pelo advogado Miguel Nagib, com a premissa de eliminar a “doutrinação ideológica” em sala de aula, o projeto ganhou destaque nos últimos anos por conter uma agenda conservadora, atacando pautas progressistas e pensadores de esquerda relacionados à sala de aula. Paralelo a esse histórico, grupos de professores e intelectuais começaram a se mobilizar de forma contrária ao projeto, citando o exemplo do coletivo virtual “Professores contra a Escola sem Partido” 1.

O Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro também se mobilizou contra o Escola sem Partido. A obra Escola “Sem” Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira foi o segundo livro lançado pelo LPP, sendo organizado pelo doutor em educação Gaudêncio Frigotto. O objetivo é esmiuçar e criticar as ideias do Escola sem Partido, por considerá-lo um erro na teoria educacional, inconstitucional do ponto de vista jurídico e uma forma de censurar professores em sala de aula. A obra contém uma apresentação realizada pela filósofa Maria Ciavatta e nove artigos (ou capítulos) independentes, compilados por Frigotto.

Mesmo cada capítulo contendo autores colaboradores diferentes, a obra consegue dialogar com outras leituras, estabelecendo uma linha de raciocínio histórica e teórica sobre o projeto Escola sem Partido. Por meio da obra é possível delimitar que as pautas levantadas pelos defensores do projeto não são novas. Já se observou que, em 1964, as elites brasileiras foram para as ruas, na “Marcha com Deus pela família e pela liberdade”, com pautas conservadoras e de caráter antidemocrático. Tais pensamentos se apresentam no tempo presente nas concepções dos apoiadores do Escola sem Partido, ao criticarem o tratamento de questões de gênero ou da pluralidade étnica-religiosa do país. Em síntese, o objetivo foi e ainda é dizer não ao ensino de assuntos sensíveis em sala de aula.

A eliminação da criticidade no ensino está agregada ao modelo educacional que os colaboradores do projeto Escola sem Partido acreditam. O impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff em 2016 foi o resultado do estopim da revolta das classes altas, que vinham perdendo seus privilégios devido à crise que cercou o país, como também devido à maior autonomia que as classes e grupos marginalizados ganharam no decorrer do século XXI. O impeachment se tornou, nesse sentido, o catalisador de pacotes de austeridades, viáveis para renovar os privilégios das elites. No campo educacional, essas elites tentam se manifestar através da mercantilização do ensino, desmanchando a escola pública em prol de um mercado educacional, lucrativo para as elites. Logo, modificar a grade curricular e as funções do professor em sala de aula, para aproximar os alunos de um ensino tecnicista ainda é prioridade.

A aproximação ao tecnicismo do Escola sem Partido levanta o conceito de “pedagogia da exclusão”2, ou seja, o Capitalismo, em sua forma atual, promove um sistema que o individuo se considera o único culpado por viver em condições submissas e por não conseguir participar do mercado. Para normalizar esse pensamento é necessário aplicá-lo culturalmente, logo a família se torna instrumento importante no processo. A fim de alcançar o imaginário familiar, o Escola sem Partido defende o bordão “meu filho minhas regras”, uma forma de evitar a absorção de novas concepções culturais, por parte dos alunos, que afetem a pedagogia da exclusão e a lógica mercadológica.

Frigotto e os colaboradores também apontam na leitura qual conotação o professor assume no Escola sem Partido, com intuito de colaborar na construção do bordão “meu filho minhas regras”. O professor não é educador, pois educar é responsabilidade da família e da religião, o professor limita-se a transmitir conhecimentos gerais. Logo, qualquer professor que fuja desse princípio, assume uma figura vilanesca, por ser considerado um doutrinador. A acusação de doutrinação direcionada aos professores aproxima-se, por sua vez, do modus operandi fascista3.

O Escola sem Partido, assim, cria no imaginário social um discurso de ódio e medo (uma conspiração de professores pró-partidários de esquerda, que buscam degradar a sociedade), tal estratégia assemelha-se ao que foi feito pelos nazistas em relação aos judeus. Nessa perspectiva, os colaboradores do Escola sem Partido conseguem construir com mais embasamento o elemento discursivo do “meu filho minhas regras”. A família tem o direito de escolher a educação moral que estiver de acordo com seus princípios, negando-se a compactuar com o ensinamento do professor “doutrinador”.

Penetrar no imaginário popular também emerge como o método mais curto de desviar do judiciário e alcançar a legalidade. A obra organizada por Frigotto traz a opinião da Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat sobre o Escola sem Partido, destacando sua ilegalidade mesmo aplicado na forma de lei, pois, caso isso ocorra, subverte a atual ordem constitucional, por impedir o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas no âmbito escolar, rompendo também com a laicidade do Estado.

Mesmo com essa inconstitucionalidade, por meio da perseguição, assédio e criminalização daqueles que não compactuam com o projeto, o Escola sem Partido burla a lei e consegue sua legitimação. Em abril de 2017, o vereador Fernando Holiday (DEM-SP) transmitiu em suas redes sociais informações de que estaria realizando blitz nas escolas públicas do Estado de São Paulo, observando se os professores realizavam alguma “doutrinação” em sala de aula, pedindo para seus seguidores o alertarem sobre algum ocorrido.

“Se seu filho, filha, neto ou neta estuda em uma escola que não é exemplo, onde os professores abusam da autoridade em sala de aula, onde a direção não faz o seu trabalho devidamente, não deixe de denunciar. Eu vou chegar de forma surpresa para que todos saibam que tipo de escola é aquela”4.

O próprio Escola sem Partido oferece um espaço, em seu site, para pessoas realizarem denúncias anônimas sobre possíveis “doutrinações” em escolas5.

A obra organizada por Frigotto ainda analisa a máxima do projeto, combater a “doutrinação” em sala de aula, na práxis escolar. Utilizando o aporte teórico do filósofo grego Platão, compreende-se a distinção entre doxa (opinião ou crença comum) e o logos (razão). Para o filósofo grego, a primeira é superficial, já o segundo, é rigoroso e confiável. A aplicação do projeto Escola sem Partido significa trazer a doxa para a sala de aula, o que acarretaria em um enfraquecimento do logos. Trazendo para o campo da prática, podem ser usados exemplos das dificuldades de professores desenvolverem aulas que respeitem a crença comum (doxa) de cada estudante. Por exemplo, ao tratar sobre a História do continente africano, o professor de História relataria que o povo africano é amaldiçoado, seguindo as histórias bíblicas6, ou levantaria as teses factuais e históricas (logos), contrariando a doxa de seus alunos cristãos?

Por meio dos fatos relatados no livro e pela conjuntura em que o Escola sem Partido ganhou eco, compreende-se o porquê das aspas utilizadas por Frigotto no título do livro, observando que o projeto tem uma ideologia político-partidária definida desde seu principio. Fazendo menção a Dermeval Saviani, um dos teóricos utilizados na obra, é destacado que toda prática educativa contém uma dimensão política, desde o formato fordista7 das salas de aulas até na construção de grades curriculares.

Considerando o que foi exposto, a obra Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira se torna pertinente para um estudo mais aprofundado sobre o projeto Escola sem Partido, escapando do senso comum. Em meio a essa análise, fica evidente o esforço dos autores por combater o avanço do conservadorismo e autoritarismo no meio educacional, em prol de um ensino democrático, público e progressista. A esfinge, como destacou Frigotto no título da obra, era um monstro mitológico que devorava a todos que não acertavam seus enigmas, sendo Édipo o único que conseguiu confrontá-la e derrota-la. Antes que ela, representada aqui pelo Escola sem Partido, se alimente de todos, cabe acumular embasamento intelectual, energia ética e disposição política coletiva para decifrar suas incógnitas e enfrentá-la. Frigotto destaca que a tarefa não é fácil, mas assim como fez Édipo, é função de todos reunir coragem para realizá-la

Notas

1 Disponível em: https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/. Acessado em: 28/01/2018.

2 O conceito de pedagogia da exclusão não é utilizado no livro, mas através da leitura da obra resenhada é possível traçar um paralelo com esse conceito. Para mais informações sobre a pedagogia da exclusão ler: GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

3 Respaldando-se na opinião do historiador Manuel Loff, Penna, autor do segundo capítulo da obra Escola “sem” Partido, aproxima o projeto desenvolvido por Miguel Nagib da estratégia discursiva fascista. Enquanto os antissemitas nazistas desumanizavam os judeus, o Escola sem Partido busca desumanizar o professor (tratando-os como monstros ou parasitas). Para ler na integra o texto de Loff: https://www.publico.pt/mundo/noticia/escola-sem-partido-1740469/. Acessado em: 28/ 01/ 2018. Para maiores informações sobre fascismo, ler: BOBBIO, Norberto. Fascismo. In: ______________; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora UnB, 1998.

4 Disponível em: http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,vereador-fernando-holiday-faz-blitz-em-escolaspara-verificar-doutrinacao,70001726796. Acessado em: 28/01/2018.

5 Disponível em: http://escolasempartido.org/planeje-sua-denuncia. Acessado em: 28/01/2018.

6 Souza e Oliveira, autores do oitavo capítulo do livro Escola “sem” partido, utilizam o livro Gênesis da Bíblia para questionar a operacionalização do programa. Em Gênesis (9:20-29), após despertar da embriaguez, Noé descobre que seu filho Cam o viu sem roupas, motivo para jogar uma maldição nos descendentes do rapaz, amaldiçoando-os como servos dos outros filhos de Noé, Sem e Jafé. Nessa linha de raciocínio bíblico, os africanos são descentes de Cam.

7 Para compreender mais sobre a relação da política com a educação ler: SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. SP: Autores Associados, 2008. Sobre fordismo e tecnicismo ler: SAVIANI, Dermeval. As ideias pedagógicas no Brasil entre 1969 e 2001: configuração da concepção pedagógica produtivista. In: _______________. Historia Das Ideias Pedagógicas No Brasil. São Paulo: Autores Associados, 2008 e a matéria disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/como-no-seculo-19-nossas-salas-de-aula-pararamno-tempo-arjn56m7xzsmdid2inpnhu8cv. Acessado em: 28/01/2018.


Resenhista

Yego Viana Santos – Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGEdu/UFPE).


Referências desta Resenha

FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ; LPP, 2017. Resenha de: SANTOS, Yego Viana. Escrita da História, v.5, n.10, p.315-319, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

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