Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)

FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144p. Resenha de: HANDFAS, Anita. Por uma escola pública, democrática, reflexiva e plena de conhecimentos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18 n.2,  2020.

Resistência ao autoritarismo; gênese e significado; educação; redes políticas; criminalização do trabalho pedagógico; avanço do irracionalismo; democracia; reestruturação curricular – esses são apenas alguns dos aspectos do proclamado movimento Escola sem Partido, tematizado ao longo da coletânea organizada por Gaudêncio Frigotto. Fruto de investigações minuciosas realizadas por dezenove pesquisadores, seu objetivo é mapear os principais aspectos do Escola sem Partido, cujas primeiras manifestações surgiram em 2004, ganhando fôlego desde então e deixando rastros cada vez mais marcantes no contexto atual de avanço do obscurantismo no Brasil.

O livro é uma obra de compreensão sociológica acerca das conexões entre educação e autoritarismo. A coletânea é composta por nove capítulos. O eixo condutor que atravessa o livro é traçado pelos princípios da escola pública, democrática e laica, em diálogo crítico com os preceitos do Escola sem Partido, como já aponta o subtítulo. Ou seja, nesse livro há um terreno comum por onde percorrem os autores, em defesa de uma escola que promova o conhecimento científico, a reflexão e o debate, princípios a partir dos quais, os capítulos buscam oferecer ao leitor um diagnóstico rigoroso do referido movimento.

Nessa direção, o livro demonstra com clareza de dados e informações que, a despeito da propalada liberdade, o Escola sem Partido constrange o professor, sufoca o trabalho pedagógico e encoraja práticas de denuncismo entre os sujeitos que convivem no espaço escolar.

Para dar conta da diversidade de olhares contemplados na coletânea, o organizador mobilizou um conjunto de temas tratados nos capítulos que lograram, por um lado, focar em características específicas do movimento e, por outro, constituir um todo do fenômeno investigado, elucidando as questões centrais sobre o que vem a ser esse movimento, assim como os impactos sobre a educação, a escola e o trabalho docente.

O livro inicia com uma apresentação de Maria Ciavatta que nos convida à reflexão, mostrando que, ao buscar a gênese do Escola sem Partido, os autores da coletânea chamam à organização e à ação todos aqueles que lutam por uma sociedade democrática e por uma educação emancipadora.

No primeiro capítulo, Gaudêncio Frigotto nos chama a atenção para a ameaça que representa o Escola sem Partido. Ao evocar a metáfora da “esfinge” e do “ovo da serpente”, adverte para os perigos da propagação da ideologia desse movimento, cujo alvo é o esvaziamento da função social da escola pública. Abrindo caminho para os capítulos seguintes, Frigotto traça um amplo panorama sobre a gênese do movimento, mostrando que a ideologia tão propalada por ele funciona, em última instância, como um mecanismo para encobrir seus interesses políticos e econômicos, tendo em vista a posição atual ocupada pelo Brasil no interior das contradições do capitalismo.

No capítulo seguinte, é a vez de Fernando Penna analisar o discurso do Escola sem Partido. O autor mostra que por detrás daquilo que muitos professores entendiam por absurdo, deboche e mesmo improvável, o movimento alcançou êxito em suas posições na escola e na sociedade, ao partir de uma estratégia discursiva simples e próxima ao senso comum que desqualifica o professor e coloca pais e responsáveis pelos alunos numa posição inquisidora. O autor destaca e analisa quatro aspectos do discurso do movimento: (1) a concepção de escolarização; (2) a desqualificação do professor; (3) a acusação da escola como espaço de ideologização, e dos docentes como militantes travestidos de professores.

O terceiro capítulo foi escrito por Betty Solano Espinosa e Felipe Campanuci Queiroz. Nele, os autores adotam a perspectiva analítica das redes sociais, para quantificar e qualificar os agentes e as ideias que formam o Escola sem Partido, buscando identificar suas interações com atores de variados espectros sociais. Ao mapear a teia de articulação existente, Bety e Felipe concluem que os membros que compõe o movimento estão vinculados a partidos políticos, instituições religiosas e grupos empresariais poderosos.

No quarto capítulo, Eveline Algebaile traça um quadro geral “do que é”, “como age” e “para que serve” o Escola sem Partido. Ao esquadrinhar a plataforma principal do movimento, um sítio virtual da internet, a autora mostra que, ao contrário do que pode parecer, o Escola sem Partido não se constitui enquanto um movimento, no sentido de agir e organizar seus adeptos orgânica e fisicamente, mas tem todas as suas ações veiculadas por meio de uma plataforma virtual, espaço onde são difundidas suas ideias e divulgadas as orientações para denúncias contra supostas práticas de doutrinação ideológica por parte dos professores.

O capítulo seguinte foi escrito por Marise Ramos e se dedica a analisar os impactos das ideias difundidas pelo Escola sem Partido sobre o trabalho pedagógico dos professores. Para tal, a autora desmonta a suposta neutralidade do ato educativo aventada pelo movimento, asseverando que as contradições e disputas por concepções de mundo presentes no espaço escolar nada mais são do que manifestações salutares inerentes ao ato de educar. Para a autora, sem isso, a escola se torna amorfa e cativa da ideologia das classes dominantes.

O sexto capítulo, escrito por Mattos et al, lembra que o debate em torno do caráter secular e democrático da educação pública vem de longa data e a atuação de grupos religiosos contra a laicidade é uma marca na história da educação brasileira. Na atualidade, segundo os autores, essas posições se revestem em ataques aos conteúdos veiculados na escola e nos livros didáticos, sob o pretexto do Escola sem Partido, de que somente aos responsáveis dos alunos caberia velar pelos valores morais, religiosos e sexuais de seus filhos.

Em seguida, o capítulo de Isabel Santa Barbara, Fabiana Lopes da Cunha e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho parte do entendimento de que historicamente a escola tem sido uma instituição normalizadora e disciplinadora da classe trabalhadora. No entanto, os autores argumentam que quando a escola passa a representar uma oportunidade real de ascensão social das camadas populares, setores conservadores interessados em preservar a hierarquia social e os valores das classes dominantes passam a atacar a escola e os professores. É neste cenário que o Escola sem Partido ganha terreno para operar por meio de mecanismos de “governamento”, no sentido de impor novas condutas e subjetividades no espaço escolar.

O oitavo capítulo, escrito por Rafael de Freitas e Souza e Tiago de Oliveira propõe uma reflexão filosófica sobre o Escola sem Partido. Partindo dos conceitos de doxa (opinião ou crença comum) e logos (razão), os autores mostram como o obscurantismo que atravessa o discurso do movimento fere os princípios da razão e do conhecimento científico na escola, garantidos inclusive pela legislação nacional, para dar lugar à opinião, ao senso comum, fortalecendo assim as crenças e convicções religiosas, como mais uma forma de atacar o conhecimento e o trabalho pedagógico realizado de forma competente pelo professor.

Fechando a coletânea, o capítulo de Paulino José Orso é propositivo de uma alternativa pedagógica e curricular que possa fazer frente ao desmonte da escola, do conhecimento e do trabalho pedagógico do professor. Nessa direção, o autor defende um currículo que contemple uma sólida formação teórica, possibilitando ao aluno uma visão crítica sobre o passado histórico e a compreensão da sociedade atual.

Com a apresentação sintética dos capítulos que compõe a coletânea Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira, fica claro que se trata de um livro da maior importância, sobretudo no contexto atual de avanço do obscurantismo do governo Bolsonaro que ataca a ciência e o conhecimento científico porque quer supor que tudo não passa de construções. A ideologia do Escola sem Partido quer fazer crer que a opinião é tão importante quanto o conhecimento, visão que nos empurra para o relativismo, tão contrário ao esforço investigativo e ao conhecimento, tão necessários para a construção de uma escola libertária. Em tempos sombrios como os que estamos enfrentando atualmente, parece ser mais uma vez oportuna a advertência feita por Saviani (2018) de que a luta pela escola democrática passa por sua articulação com a luta pela democratização da sociedade.

Nesse sentido, a coletânea em pauta é a um só tempo, um livro de denúncia e combate e por isso deve ser lido por todos aqueles que defendem uma educação pública, gratuita, laica e que contemple todas as dimensões da vida humana.

Referências

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, 43. ed. Campinas: Autores Associados, (2018). [ Links ]

Anita Handfas – Universidade Federal do Rio de Janeiro , Faculdade de Educação , Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. E-mail: [email protected]

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Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido – PENNA et al (TES)

PENNA, Fernando; QUEIROZ, Felipe; FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018. 192p. Resenha de: AFFONSO, Cláudio. Pilares firmes contra a Arquitetura da Destruição.  Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.2, 2020.

Ao apresentar seu filme, em 1989, o sueco Peter Cohen nos convidava a um voo rasante sobre uma aldeia na qual, segundo ele, as pessoas ansiavam por um mundo mais puro e harmonioso, rejeitando as ameaças da decadência, o caos espiritual e intelectual que, segundo elas mesmas, conduziriam sua amada pátria à escuridão. Purificada do mal, protegida da degeneração moral e estética da cultura bolchevique e da degradação dos débeis, inúteis e parasitários, a nação renasceria bela, limpa e forte. Segundo Gerhard Wagner, médico-chefe do Bureau de Beleza no Trabalho, criado nos anos 1930 e retratado no filme, “se ao proletariado fosse mostrado como ele deveria se lavar e se elevar ao nível da burguesia, ele – o proletariado, entenderia que não havia porque lutar”. Um verdadeiro despertar estético libertaria os trabalhadores de sua classe e a sociedade superaria o conflito de classes. Ditas e repetidas, orquestradas e estampadas, articuladas às condições de existência daquela Alemanha, estas verdades serviram de base para a Arquitetura da Destruição que se seguiu. Para o cineasta, a tarefa de evidenciar e denunciar esta ‘arquitetura’ fundamentaria o repúdio aos regimes antidemocráticos e seu banimento da História da humanidade.

No mesmo ano de 1989, do outro lado do Atlântico, a República parecia reinaugurar-se. Na esteira dos avanços prometidos pela Constituição de 1988 e ansiados por boa parte dos brasileiros, respirava-se a noção de direito público universal, a defesa de princípios democráticos e a valorização das liberdades individuais e coletivas, abandonando os duros anos da ditadura civil militar das décadas anteriores. Se é verdade que não havia consenso em torno dos conteúdos da democracia e da cidadania, podemos afirmar com alguma convicção que cidadão – fosse o portador de direitos civis e sociais, fosse o de direitos do consumidor –, e cidadania foram os substantivos mais repetidos do período.Neste contexto, e não sem muita luta, a educação pública, laica, de qualidade e para todos parecia um projeto possível. A ressurgência de antigos movimentos sociais e o nascimento de novas formas de organização e mobilização, tanto de cunho popular quanto elitistas, dotavam a sociedade civil de feição estonteantemente dinâmica. Esperava-se a construção de uma democracia substantiva, independente do que isto quisesse dizer para os diversos grupos em disputa.

“A democracia em vertigem”, documentário lançado por Petra Costa, em 2019, testemunha um dos pontos de chegada desta disputa. Capturadas no tempo presente, as imagens emolduradas pela narrativa da própria diretora conduzem o expectador a momentos de angústia e desolação: a democracia brasileira em frangalhos.

A frase: “A bandeira do Brasil jamais será vermelha”, pronunciada no discurso de posse do atual Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019, talvez sirva de síntese metafórica daquilo que se instalou no Brasil nos anos recentes e que, como farsa – “um passado disfarçado voltando pela porta dos fundos” ( Konder, 1995 ), repete a Arquitetura da Destruição. Baseado numa espécie de milenarismo míope, ou salvacionismo débil, o regime de ódio político e intolerância, parece sustentar-se em concepções éticas, morais e estéticas que em muito fazem lembrar o irracionalismo fascista. A repulsa à Educação Democrática, e de resto, às instituições democráticas como um todo é, certamente, uma das bases fortes desta construção. Não é sem razão que a disputa pela Escola se tornou o centro aglutinador do movimento/programa/projeto/partido que, nos anos 2000, lançou-se ao combate em defesa de um Deus opressor e da Teologia da Prosperidade, da família parental, da moral machista e das ideologias ultrareacionárias e ultraliberais, autonomeando-se Escola Sem Partido (EsP) 1 .

Tudo isso para dizer: Educação Democrática: antidoto ao Escola Sem Partido, organizado por Fernando Penna, Felipe Queiroz e Gaudêncio Frigotto, é um livro imprescindível. E não apenas para quem se interessa por Educação. Lançado em 2018, reúne artigos de pesquisadores que àquela ocasião tinham assistido ao Golpe de 2016, mas não às eleições de outubro de 2018 e os primeiros meses do (des)governo Bolsonaro. Como o leitor logo perceberá, e talvez possa concordar, nem mesmo investigadores metódicos e criteriosos puderam antever o ritmo, a intensidade e a extensão da destruição que se seguiria. Aleatoriamente, mencionemos a Reforma Trabalhista, a subordinação do Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Fazenda, a liberação de um sem número de agrotóxicos, a extinção do Programa Mais Médicos e a ‘expulsão’ dos médicos cubanos em atividade no Brasil, o Decreto das Armas, os gigantescos cortes no financiamento da Educação Pública, a nomeação de Sérgio Moro Ministro da Justiça e da Segurança Pública e a avalanche de denúncias contra ele e, agora mesmo, a Reforma da Previdência. Ou, algum detalhe mais sutil, mas igualmente significativo, como a estratégia negacionista em relação ao Golpe Militar de 1964 e à Ditadura Militar que tem suscitado mecanismos de autocensura entre renomados autores e professores de História e Sociologia; ou a defesa que fez o Presidente da República ao afirmar que quer um futuro ministro do STF “terrivelmente” cristão, leia-se evangélico.

Se o livro ‘não viu tudo isto’ e, portanto, não traz a análise desta dramática conjuntura e suas implicações na fórmula do “Antídoto ao Escola sem Partido”, o que faz o livro? Aqui situa-se o ponto de inflexão mais importante que podemos tomar neste momento, segundo me parece. A obra faz ‘formação de base’, fundamenta pilares teóricos e, por que não dizer, ético-políticos para o enfrentamento que está em questão. Numa frase, tomada de empréstimo à Marise Ramos que assina a Introdução e inspirada na obra de Ellen Wood, Democracia contra capitalismo 2003, oferece muitas pistas para os que pensam que a democracia “em sua plenitude é incompatível com o capitalismo e odiada pela oligarquia dominante, não se pode lográ-la. Isto porém, não elide – ao contrário exige – a luta por sua conquista.” (p. 8).

Tomada como tarefa coletiva, a construção de pilares para o enfrentamento da desdemocratização do Brasil se faz de forma generosa e abundante ao longo dos textos. Em seu conjunto, o livro pode ser lido como resultado de três movimentos articulados: a delimitação criteriosa do ‘fenômeno’ Escola sem Partido, identificando e analisando suas bases materiais, institucionais e sua estratégia discursiva; a busca metódica das determinações históricas que conduziram à regressão das relações sociais capitalistas com a negação de seus postulados de integração dos indivíduos na diversidade social e do papel da escola no processo de socialização dos indivíduos nos valores do convívio coletivo e, a proposição de táticas de enfrentamento desta regressão, notadamente, o fortalecimento do Movimento Escola Democrática com perspectiva de gênero emancipatória. O ‘antídoto’ está, para os autores, na luta por democracia e escola democrática.

A análise do ‘fenômeno’ EsP, para o qual “O que verdadeiramente está acontecendo é que o conceito de ‘gênero’ está sendo utilizado para promover uma revolução sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar” (p.101), encontra-se em praticamente todos os textos. A diferença de ênfase talvez particularize as contribuições. Assim, os aspectos institucionais do EsP podem ser lidos em “Liberdade para a democracia: considerações sobre a institucionalidade da Escola sem Partido”, de Felipe Queiroz e Rafael Oliveira e “Direito à educação democrática: conquistas e ameaças”, de Russel da Rosa. Os aspectos discursivos são perscrutados em “Como o discurso da ‘ideologia de gênero’ ameaça o caráter democrático e plural da escola”, de Giovanna Marafon e Marina Souza; “O Movimento Escola sem Partido e a reação conservadora contra a discussão de gênero na escola”, de Fernando de Moura; “É que Narciso acha feio o que não é espelho: o ensinar e o aprender pela ótica do EsP”, de Carina Costa e Luciana Velloso e “A EsP na desdemocratização brasileira”, de Diogo Salles e Renata Silva. A análise do problema do ponto de vista das disputas históricas em torno da Escola, daquilo que Carlos Jamil Cury nomeou como “Educação e Contradição” ( 1995 ), encontra-se em “A disputa por educação democrática em sociedade antidemocrática”, de Gaudêncio Frigotto e “ Instrutio ou Educatio”, de Zacarias Gama. O centro da formulação tática encontra-se, segundo minha leitura, em “Construindo estratégias para uma luta pela educação democrática em tempos de retrocesso”, de Fernando Penna, mas também, e fortemente, no já citado texto de Giovana Marafon e Marina Souza.

Aos que sentem o ânimo combalido diante de tamanha avalanche, sirvo-me de duas imagens para concluir esta recomendação de leitura. A primeira está no Prólogo do também imperdível A era do cometa, do historiador alemão Daniel Schönpflug (2018) . Apropriando-se da tela “O cometa de Paris” (1918), de Paul Klee, ele descreve um contexto que “mirava exatamente esse limiar entre o passado e o futuro, entre a realidade e as projeções” ( Schönpflug, 2018 , p. 13). Tratava-se do ano de 1918, final da Primeira Grande Guerra Mundial e ano um da Revolução Russa. Usado como metáfora para definir um sinal do imprevisível, um arauto de grandes acontecimentos, de transformações profundas e, até mesmo, de catástrofes, o cometa representa o alvorecer de novas e impensadas possibilidades no horizonte, e futuros desconhecidos. Lembremo-nos que, percebidos ou não, cometas seguem cruzando o céu 2 .

A segunda, não menos importante, e que devemos a Gramsci, reafirmar o pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. As diversas sínteses, organizadas em artigos independentes, nos permitem avançar rapidamente na fixação de pilares firmes para a luta por democracia radical e plural.

Eis o antídoto. Eis a tarefa.

Boa leitura!

Referências

CURY, Carlos Jamil. Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo. SP, Cortez, 1995. 7ª ed [ Links ]

KONDER, Leandro. O novo e o velho. O Globo. 27/05/1995 [ Links ]

SCHÖNPFLUG, Daniel. A era do cometa: o fim da primeira guerra e o limiar de um novo mundo. São Paulo: Todavia, 2018, p.13 [ Links ]

Notas

1 O esforço analítico empreendido por FRIGOTTO, Gaudêncio (Org). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira . Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017 merece ser considerado pelos que desejam compreender melhor o fenômeno.

2 CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019. é mais uma luz no céu escuro.

Cláudia Affonso Colégio Pedro II , Rio de Janeiro , RJ , Bras. E-mail: [email protected]

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Trabalho docente sob fogo cruzado – MAGALHÃES et al (TES)

MAGALHÃES, Jonas E. P.; AFFONSO, Claudia R. A.; NEPOMUCENO, Vera Lucia da C.. Trabalho docente sob fogo cruzado. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 268 pp. Resenha de:  BOMFIM, Maria Inês. Precarização estrutural do trabalho docente: o fim do professor intelectual? Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.3, Rio de Janeiro, 2019.

Trabalho docente sob fogo cruzado é uma coletânea organizada por Jonas Magalhães, Cláudia Affonso e Vera Nepomuceno, reunindo 12 capítulos que analisam, de forma crítica e sob perspectivas diversas, a desvalorização do trabalho docente, em tempos de precarização estrutural do trabalho (Antunes, 2018).

Com prefácio e apresentação de Gaudêncio Frigotto e Marise Ramos, respectivamente, o livro reúne estudos de pesquisadores membros do Grupo de Estudos Trabalho, Práxis e Formação Docente vinculado ao Grupo de Pesquisa THESE-Projetos Integrados de Pesquisas em História, Educação e Saúde (UFF/UERJ/EPSJV/FIOCRUZ) e de outros autores convidados, abordando ‘questões de natureza política, socioeconômica e ideológica’ sobre o trabalho docente. Dentre elas, assegurando a especificidade que o tema requer, a mecanização do trabalho na escola e a expropriação da subjetividade docente, em especial desde a década de 1990.

No Capítulo 1 da coletânea, “Trabalho de professor no fio da navalha: reengenharia das escolas e reestruturação produtiva em tempos de Escola Sem Partido”, Cláudia Affonso articula três dimensões centrais que estarão, também, presentes em outros capítulos: “a reestruturação produtiva das escolas, a Reforma do Ensino Médio e o avanço do Movimento Escola Sem Partido” (p. 4). Retomando o rico debate sobre a natureza do trabalho, analisa os sentidos conferidos à profissionalização docente nas últimas décadas por autores de matrizes teóricas diversas, e problematiza os limites da autonomia docente na atualidade. A participação docente desqualificada, que restringe a condição de intelectual dos professores no processo de ensino aprendizagem, articulada às implicações trazidas pela Reforma do Ensino Médio (2017) e, ainda, ao fortalecimento de ideologias de criminalização sinalizam duas preocupantes tendências: o esvaziamento da prática docente e o desemprego de professores.

Valéria Moreira é a autora do Capítulo 2, “A organização do trabalho do professor e a qualidade do ensino”. A autora busca apreender a “inviabilização da incorporação do trabalho ao objeto do trabalho” (p. 28), processo vivido pelos professores de Sociologia, em virtude da redução da carga horária da disciplina na proposta curricular do Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro. Discutindo o processo de trabalho, em geral, o processo de trabalho no século XX e o trabalho docente na atualidade, toma como objeto de estudo a emblemática materialidade fluminense, na qual os professores da rede estadual resistem às condições de trabalho severamente precarizadas.

“Carrera profesional docente en Chile: la construcción de un nuevo modo de ser profesor” é o terceiro capítulo da coletânea, escrito por Paulina Cavieres. O Chile, precursor do ciclo neoliberal que atingiu boa parte do mundo, possui uma legislação extremamente hierarquizada em relação à carreira docente, na qual os professores são permanentemente avaliados e certificados, o que estimula a promoção de certo tipo de subjetividade docente ‘assujeitada’. Diante desse quadro, a autora defende a potencialidade das chamadas ‘linhas de fuga’ (Miranda, 2000), que explicitam a resistência dos professores chilenos às novas formas de controle docente.

O quarto capítulo, “História da docência e autonomia profissional: notas sobre experiências em Portugal, Quebec (de língua francesa) e Canadá”, de Danielle Ribeiro, destaca a atualidade do movimento pela profissionalização docente. Recuperando, historicamente, avanços e retrocessos na constituição da profissionalização docente, problematiza os limites impostos à conquista da autonomia docente, aspecto central na luta pela ‘profissionalidade’. Na contemporaneidade, analisa os debates sobre autonomia docente em Portugal, Quebec e no restante do Canadá, evidenciado suas ambivalências, singularidades e conflitos.

Vera Nepomuceno é a autora do Capítulo 5, cujo título é “Reforma do Ensino Médio: uma estratégia do capital?”. O estudo sublinha os nexos históricos entre a dualidade estrutural na educação, os interesses da burguesia brasileira e a intensificação da escala e da profundidade da associação entre o público e o privado, com destaque para o protagonismo de fundações e instituições empresariais nas decisões do Estado, ignorando as condições concretas das escolas e dos jovens.

“Da ‘desnecessidade’ da educação à ‘desnecessidade’ do trabalho docente no Ensino Médio” é o título do Capítulo 6, escrito por Cláudio Fernandes. O tema é, igualmente, a Reforma do Ensino Médio e suas implicações para o trabalho docente, mas sob outra perspectiva.

Para o autor, a reforma de 2017 revelou-se como a continuidade e o aprofundamento da reforma realizada nos anos 1990, ambas marcadas pelas demandas da empresa flexível. Os efeitos dessa flexibilização configuram, na atualidade, a ‘desnecessidade’ tanto da educação como do trabalho docente, ainda que de forma contraditória. Buscando a materialidade que a reflexão requer, o estudo analisa a proposta implementada no Rio de Janeiro, produzida pelo Instituto Ayrton Senna (IAS), denominada de ‘Solução Educativa para o Ensino Médio’.

Amanda da Silva é a autora do Capítulo 7, intitulado “A presença de frações da classe burguesa na educação pública brasileira e as interferências no trabalho docente”. A análise parte da teoria de Estado como uma relação permeada de contradições. O conceito de ‘bloco no poder’ (Poulantzas, 1977), ganha centralidade na investigação sobre as ações empresariais no âmbito do Estado, mediante parcerias público-privadas. O trabalhador docente, nesse projeto da burguesia, tem sua autonomia severamente ameaçada.

O Capítulo 8 da coletânea é “Qual escola? Para que sociedade? Desafios da formação docente em um contexto de contrarreforma e retrocessos na gestão da educação pública brasileira”, de autoria de Maria Aparecida Ribeiro. Com base em um estudo de caso que retrata o percurso formativo de um aluno de licenciatura em Filosofia, suas conquistas, desafios e descobertas, a autora traz uma inquietante indagação: “como atuar na formação docente neste contexto de severa intervenção político-governamental nos processos de escolarização?” (p. 151).

Francisca Oliveira, por sua vez, aborda políticas regulatórias para o magistério no Capítulo 9, cujo título é “O Fundeb e a Política Nacional de Formação de Professores da Educação Básica: uma nova regulação para a valorização do trabalho docente?” A autora prioriza as políticas sancionadas no segundo mandato do presidente Lula da Silva (2003-2010), sendo o recorte empírico o estado do Ceará. A Política Nacional de Formação de Professores para o Magistério da Educação Básica, com suas ambivalências e o Fundeb, com suas contradições, são os alvos da análise apresentada no capítulo.

O Capítulo 10, escrito por Maria da Conceição Freitas, tem como título “Trabalho docente no ideário do materialismo histórico- dialético- Redecentro: 2010 a 2014”. A Redecentro é uma rede de pesquisadores do Centro-Oeste brasileiro, com a participação de sete universidades, em busca da qualidade nas produções acadêmicas, considerando duas lógicas: a mercadológica e a que, com base na ética e na relevância social, inclui a emancipação e a formação crítica e integral dos pesquisadores. A autora recupera diferentes tendências presentes na literatura internacional sobre trabalho docente e profissionalismo, apresentando dados referentes à produção acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília no período de 2010 a 2014.

Fechando o conjunto de textos da coletânea, Jonas Emanuel Magalhães é o autor do Capítulo 11: “Saberes docentes e epistemologia da prática: apontamentos críticos e possibilidades de investigação a partir do materialismo histórico-dialético”. Trata-se de estudo sobre conceitos que ganharam expressiva importância nos processos de formação inicial e continuada de professores nas últimas décadas, com base nas produções de vários autores, particularmente Maurice Tardif, principal referência sobre o tema no Brasil.

Uma primeira vertente de análise questiona se a ‘epistemologia da prática’ proposta por Tardif não estaria promovendo a secundarização da base científica necessária à formação docente, visto que “a produção de saberes da prática e pela experiência não implica necessariamente a compreensão efetiva dos fenômenos” (p. 204). Tendo em mente as categorias saber, ‘ação, interação, cultura e experiência’ propostas por Tardif (2002), o autor propõe o conceito de ‘consciência socioprofissional’, no qual o saber analítico sobre o trabalho se destaca, na sua historicidade, diferenciando-se do conceito de ‘consciência profissional’, proposto por Tardif.

Por fim, o Capítulo 12 traz a entrevista realizada com o historiador Fernando Penna, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, intitulada “Projeto Escola sem Partido: a ofensiva ultraconservadora contra o professor”.

As origens do movimento e sua ascensão nos últimos anos, particularmente quando se articulou a outros grupos reacionários, permitiram a Fernando Penna, destacar um aspecto de extrema relevância, isto é, o ódio direcionado à figura do professor, com fortes implicações para o esvaziamento da função docente. No plano legal, modelos de projetos de lei foram replicados pelo movimento, sendo aprovada a Lei Escola Livre, em Alagoas, alvo de ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. A disputa, porém, não ocorre apenas no plano legal, mas, também, no plano ideológico, marcado por uma determinada concepção de ética profissional docente contrária à autonomia do professor. Diante disso, em tempos de trabalho docente sob fogo cruzado, a resistência precisará ser ativa, articulada e permanente.

Referências

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. 325p. [ Links ]

MIRANDA, Luciana L. Subjetividade: a (des) construção de um conceito. In: SOUZA, Solange J. (org.) Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 29-45. [ Links ]

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977. [ Links ]

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. [ Links ]

Maria Inês Bomfim – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira | Gaudêncio Frigotto

A polarização ideológica que atingiu o Brasil nos últimos anos alcançou a educação, levando-a para um campo de batalha ideológico temerário, segundo educadores. O projeto Escola sem Partido sintetiza essa bipolaridade no campus requisitado. Desenvolvido no ano de 2004 pelo advogado Miguel Nagib, com a premissa de eliminar a “doutrinação ideológica” em sala de aula, o projeto ganhou destaque nos últimos anos por conter uma agenda conservadora, atacando pautas progressistas e pensadores de esquerda relacionados à sala de aula. Paralelo a esse histórico, grupos de professores e intelectuais começaram a se mobilizar de forma contrária ao projeto, citando o exemplo do coletivo virtual “Professores contra a Escola sem Partido” 1.

O Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro também se mobilizou contra o Escola sem Partido. A obra Escola “Sem” Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira foi o segundo livro lançado pelo LPP, sendo organizado pelo doutor em educação Gaudêncio Frigotto. O objetivo é esmiuçar e criticar as ideias do Escola sem Partido, por considerá-lo um erro na teoria educacional, inconstitucional do ponto de vista jurídico e uma forma de censurar professores em sala de aula. A obra contém uma apresentação realizada pela filósofa Maria Ciavatta e nove artigos (ou capítulos) independentes, compilados por Frigotto. Leia Mais

Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)

FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: LPP, Uerj, 2017. 144p. Resenha de: SOUSA JUNIOR, Justino. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.3, set./dez. 2017.

Esta é uma daquelas obras forjadas no calor da luta, produzida por sujeitos preocupados em compreender, explicar e transformar a realidade social. Temperada no aço, no mesmo passo do fenômeno, mas nem por isso mal acabada. Ao contrário, esta obra se faz de estudos acurados, atentos e críticos dos processos sociais que correm em nosso país. A atenção voltada para o projeto Escola sem Partido (EsP) desseca o objeto, mas o faz analisando criteriosa e criticamente as circunstâncias históricas em que ele é produzido. Eis aqui um pensar orgânico com um fazer teórico e político transformador.

Apresentado pela professora Maria Ciavatta, o livro é composto por nove artigos e reúne 19 autores os quais, versando sobre o mesmo objeto, a mesma problemática, não cometem repetições enfadonhas. Os textos complementam-se na tentativa de cobrir os principais problemas colocados pelos embates provocados pela proposição da Escola sem Partido: sua vinculação com o golpe de Estado expresso no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff; suas inspirações estadunidenses e sua ideologia e vinculações políticas obscuras; as articulações mais remotas do que se passa na conjuntura brasileira com as linhas majoritárias da crise do sistema metabólico do capital; os meandros jurídicos; a história recente dos embates educacionais brasileiros; seus aspectos mais eminentemente pedagógicos, didáticos etc.

As análises, muito bem fundamentadas, e todas agudamente críticas, adotam referências múltiplas que vão de Mészáros a Foucault, passando por Debord, Agamben, Platão, Gramsci, Saviani, Florestan Fernandes, Marx, dentre outros. A multiplicidade das referências faz da obra um diálogo amplo, rico, diverso, ao mesmo tempo múltiplo e uno. Múltiplo porque dialoga com fundamentações jurídicas, políticas, históricas, pedagógicas, econômicas, dialoga com a tradição e com a contemporaneidade. E uno porque todos os artigos e autores, sem exceção, assumem posição clara em defesa da democracia, do direito universal à educação, da laicidade do ensino, autonomia didática e adotam a perspectiva de análise dos ‘de baixo’. Todos os artigos trazem posicionamento crítico em relação à regressão social, política e econômica que assoma no Brasil deste período pós-golpe.

A obra em exame nos mostra como a ideia que nasceu em 2004 de uma iniciativa pessoal do advogado Miguel Nagib, aliás, fracassada no início,1 só ganhou vulto nos anos mais recentes exatamente no bojo da emersão da onda reacionária que se alevantou contra o governo da presidente Dilma Rousseff.

De início, os educadores progressistas subestimaram a EsP, parecia apenas uma iniciativa isolada, absurdamente conservadora, baseada em ideias esdrúxulas, numa visão mesquinha, princípios reacionários, embasamento rasteiro, argumentações preconceituosas e vulgares – não se esqueça que o garoto propaganda da moralista EsP é o ator de filme pornô Alexandre Frota. Mas ela foi ganhando corpo à medida que crescia a onda reacionária e toda sorte de visões atrasadas começavam a sair do ostracismo.

É nesse movimento social complexo, impulsionado por corporações e organizações estrangeiras,2 entidades empresariais e grande mídia, apoiada pelos setores reacionários dominantes no parlamento que emergem, portanto, do mais tenebroso pântano social, ideias de apoio a regimes ditatoriais, acompanhadas de ataques a lutadores sociais e a todo tipo de perspectiva progressista que defenda segmentos LGBT, negros, indígenas, feministas, sem-terra, sem-teto, trabalhadores e explorados em geral.

Esse ponto não é exatamente aprofundado na obra, mas, de qualquer modo, ela nos instiga à reflexão autocrítica: em que medida as composições, os conchavos, a linha política da conciliação de classes dos governos eleitos entre 2002 e 2014 não abriram caminho para o avanço de setores, partidos e indivíduos que trabalham para desqualificar qualquer projeto progressista de sociedade? Teria essa linha política, que de certa maneira fortaleceu e encorajou segmentos reacionários zelosamente tratados como aliados, de alguma forma, ajudado a gestar o ovo da serpente de que nos fala a inspiração bergmaniana de Frigotto?

A obra nos revela o caráter centralizador do projeto Escola sem Partido que não se apaga ou diminui com o crescimento de suas ramificações. A ideia da EsP tem representatividade em 14 estados da Federação, vincula-se a dezenas de partidos, todos conservadores, evidentemente, é defendida por dezenas de parlamentares em todas as esferas legislativas do país, mas não perde seu caráter centralizado e personalizado o que, de acordo com a obra em questão, invalida sua caracterização como movimento.

A obra desmistifica a pseudoneutralidade da EsP, comprovando seus vínculos políticos, ou seja, revelando sua face oculta, isto é, seu caráter fortemente ‘partidarizado’. A EsP guarda vínculos claros com organizações da hegemonia burguesa como o Instituto Milenium, entre cujos membros encontram-se Gustavo Franco, Armínio Fraga, Jorge Gerdau, Henrique Meireles, Guilherme Fiúza, Giancarlo Civita e Rodrigo Constantino; o Movimento Brasil Livre (MBL), o Foro de Brasília, o Instituto Liberal e a Frente Parlamentar Evangélica (FPE).

A partidarização da EsP evidencia-se também através da forte associação com políticos e partidos tipo Izalci Lucas, deputado federal do PSDB, autor de projeto de lei que visa incluir o EsP na LDBEN; Rogério Marinho, deputado federal do PSDB, autor de projeto de lei que criminaliza o ‘assédio ideológico’ (PL 1.411/2015); Dorinha Seabra Rezende, deputado federal do DEM; Jair Bolsonaro, deputado federal do PSC, e seus filhos Carlos Bolsonaro, vereador do PSC/RJ, autor de projeto de lei que visa incluir o EsP na educação do seu município (PL 867/2014), e Flávio Bolsonaro, deputado estadual PSC/RJ, autor de projeto de lei semelhante para o estado do Rio de Janeiro; Erivelton Santana do PSC; Antônio Carlos M. de Bulhões do PRB; Marcos Feliciano, deputado federal do PSC; Magno Malta, senador do PR, autor de projeto de lei de teor semelhante ao PL 867/2015 no Senado (PL 139/2016); Marcel Van Hattem, deputado estadual do PPB/RS, que propôs projeto de lei (PL 190/2015) visando instituir no sistema educacional gaúcho o “programa Escola sem Partido”. Tais são as expressões políticas e legislativas da EsP, que falam eloquentemente por si mesmas.

O livro em discussão aponta a profunda fragilidade teórica da proposição da EsP. Rechaça a separação proposta entre educação e instrução, que visa a reduzir a formação escolar à mera instrução técnica, como um procedimento neutro, como se isso fosse possível, deixando a educação a cargo da família; mostra como os livros didáticos continuam sendo majoritariamente embasados nas ideologias burguesas; mostra que a escola não é, como pejorativa e injustamente acusam os defensores da EsP, lugar de doutrinação esquerdista, mas lugar de embates entre contraditórios, lugar de tensionamentos em que, via de regra, ainda prevalecem visões conservadoras.

Os artigos, como um todo, assumem posição a favor da universalidade do conhecimento, da fundamentação científica, do pluralismo de ideias, da abertura para a investigação, para a reflexão, para o debate. Refutam a posição da EsP que propaga a liberdade, mas tolhe a atuação não só do professor, mas dos sujeitos da escola e de tudo que questione a sociedade burguesa e os princípios ‘sagrados da família tradicional’. A obra refuta o pressuposto de que os filhos são propriedade dos pais e que sua educação deve estar sob o controle desses proprietários. A sua reflexão sugere a questão: a noção de direito e de liberdade da EsP não terminaria convertendo-se justamente no seu oposto, isto é, seguindo indicação da obra, na negação do acesso aos saberes sistematizados e fundamentados (logos) e na condenação dos jovens ao universo estreito das crenças (doxa) de seus pais e ou tutores?

A obra em questão é uma valiosa contribuição ao nosso pensar e fazer transformador. Ela nos oferece farta informação e boa reflexão, mas não fecha questão quanto ao caminho a ser trilhado para o enfrentamento do problema. Nesse sentido, aproveitando a figura utilizada por Frigotto, podemos indagar: quem irá decifrar o enigma e destruir a esfinge?

Não podemos nos tornar reféns da ilusão do messias, é com projetos coletivos que decifraremos e destruiremos a esfinge. Se compreendermos que a EsP é uma expressão da luta de classes, e não parece poder ser outro o caminho, o primeiro desafio, que está longe de ser consensual entre as forças progressistas, é refletir seriamente sobre a necessidade de assumir uma posição classista nesse embate. A EsP nos impõe cada vez mais a necessidade de assumir posição política firme de confronto não só em relação àquela proposição, mas na disputa hegemônica como um todo. A EsP nos impõe os termos do conflito e, nesse sentido, ela coloca um aspecto muito positivo, qual seja, a situação clara do antagonismo de classe. Se a esquerda outrora governo errou ao semear ilusões de pactos sociais entre pontas extremas de uma polarização social abismal, os ideólogos da EsP expõem com nitidez indiscutível a carne viva da luta de classes. Nesse sentido, a escola, que não é a trincheira mais importante das lutas dos explorados, deverá ser concebida como espaço importante para a disputa aberta de projetos antagônicos. O que os ideólogos da EsP não sabem ou fingem não saber, talvez devido ao inebriamento momentâneo do golpe, é que a escola pública é nossa área, o campo privilegiado para a práxis política dos ‘de baixo’. Na escola pública estão as massas trabalhadoras, os desvalidos, os desempregados, os mal-remunerados, os humilhados, os oprimidos, os explorados, os que não têm nada a perder, mas que nutrem a esperança de um mundo justo e fraterno. Na escola pública estão aqueles cuja vida prática reclama verdades objetivas, esclarecimento, engajamento, prática transformadora. Por mais que ideias variadas circulem na escola pública, e isso é extremante saudável, as próprias condições objetivas acabam empurrando os sujeitos ao extremo da luta. As ocupações das escolas, um dos fenômenos mais interessantes e auspiciosos que aconteceram nos últimos anos, talvez em toda história da educação brasileira, são uma demonstração do quanto é fértil e promissor o espaço escolar para a formação crítica e transformadora.

A EsP precisa ser enfrentada exatamente como é: uma expressão da luta de classes, por isso não podemos ficar ‘falando de lado e olhando pro chão’, envergonhados, escondidos atrás da coluna do Estado de direito e da democracia burguesa, embora esse não seja um campo de disputa desprezível.

Ideias como a EsP não têm como vingar na escola pública. A postura que preconiza a criminalização e a perseguição aos professores, e que, ao mesmo tempo, se mostra totalmente insensível aos gravíssimos e históricos problemas relativos às desigualdades educacionais brasileiras; que desdenha da situação da escola pública, em que metade das unidades de educação básica não possui biblioteca e/ou sala de leitura; em que 28% das unidades não dispõem de abastecimento de água da rede pública; em que 23% dos docentes da educação básica não possuem formação em nível superior completa (Censo Escolar, 2016); e que acha normal a precarização do trabalho docente, as péssimas condições de ensino e os baixos salários, essa postura não vinga no meio popular, pelo menos como consenso.

Referências

CENSO ESCOLAR da Educação Básica 2016. Notas estatísticas. 2016. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_censo_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017. [ Links ]

COSTA, Antonio Luiz M. C. Quem são os irmãos Koch. Carta Capital, São Paulo, 9 jun. 2015. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/quem-sao-os-irmaos-koch-2894.html>. Acesso em: 7 ago. 2017. [ Links ]

Notas

1 Indignado com uma comparação feita por um professor da escola de sua filha entre Che Guevara e São Francisco, como pessoas que abandonaram suas vidas privadas para se dedicarem a uma causa maior, o senhor Nagib interpelou professor e escola, distribuiu panfletos na porta da instituição, mas tudo o que conseguiu foi provocar uma ampla reação dos estudantes que fizeram, inclusive, passeata a favor do professor.

2 Ver, a propósito, a relação entre os irmãos Koch e o MBL em Costa (2015).

Justino de Sousa JuniorPrograma de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará, Ceará, Brasil. E-mail: [email protected]

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(P)

Escola Sem Partido

OS ARGUMENTOS A FAVOR do projeto Escola Sem Partido (ESP) partiram de quatro sujeitos. O líder do movimento, o procurador Miguel Nagib, o consultor de Educação Gustavo Ioschpe, o colunista da Folha Vinicius Mota e o vereador Fernando Holiday.

Para essas pessoas, o projeto defendido pelo Movimento ESP possui vários atributos combinados que podem ser resumidos dessa forma. Em primeiro lugar, o projeto denuncia a ideologização (ou a cooptação) dos professores, bem como a incompetência desses sujeitos. Também tem o poder de evitar e de criminalizar a referida ideologização.

Em segundo lugar, o projeto informa aos alunos sobre os seus direitos, a liberdade de eles pensarem e, por isso, pode melhorar a qualidade da educação escolar.

Por fim, o projeto protege as opções religiosas e morais dos pais. Protege o Estado, a Constituição e equilibra o jogo político (entre partidos de esquerda e de… eles não falam em direita).

Os argumentos contrários ao projeto partiram da maioria dos opinantes: Alessandra Orofino, Angela Alonso, Claudia Costin, Contardo Calligaris, Demétrio Magnoli, Eduardo Cuolo, Guilherme Wisnik, Gustavo Ioschpe, Hélio Schwartsman e editores da Folha de São Paulo.

O primeiro argumento contrário é o da constitucionalidade. O projeto é ilegal. O projeto é pouco claro. Ignora a assimetria entre criacionismo e evolucionismo. Trata de família mas não a define. Fala de uma escola que não foi consultada. Fala de moralidade e religião quando o nosso Estado é laico. Fala de controle ideológico na escola sem compreender a função dessa instituição em ambiente democrático e em repúblicas laicas.

Um projeto dessa natureza sob o ponto de vista legal, enfim, é inócuo, “não provoca prejuízo ou dano” porque as seis obrigações para os professores, inscritas no desejado cartaz (reproduzido abaixo) já foram prescritas pela atual legislação.

Relacionados à constitucionalidade, vêm os argumentos referentes aos direitos feridos pelo projeto. Para os autores, as ideias do ESP abrem oportunidades ao autoritarismo, ao mandonismo de padres e pastores (que trabalhariam na ausência dos pais).

A iniciativa estabelece a censura, cerceia a discussão sobre gênero, sobre a violência contra a mulher, o conhecimento sobre a cultura e a política, as liberdades de saber e de manifestar-se e de criticar.

Além de ilegal, o projeto é contraditório. Tomando plataformas liberais de pensamento, os articulistas afirmam que a ideia é paternalista porque defende que o Estado substitua o cidadão no controle do ensino.

Em termos gerais, a iniciativa também é contraditória porque expressa uma ideologia, a despeito de combater outra ideologia. É contraditória porque toma partido (uma causa, uma facção e um Partido – o da República), a despeito de combater a partidarização na escola.

Outros argumentos estão fundados nas teorias da recepção. Os articulistas acusam os autores do projeto de subestimarem a capacidade crítica dos jovens, dos alunos e dos pais de alunos (mas o fazem considerando a capacidade crítica como “natural”). Seus entusiastas, afirmam os críticos do ESP, ignoram que a instituição escola também é produtora de vontades e que essas vontades devem ser consideradas no jogo dos poderes.

Os argumentos de maior apelo entre os opinantes têm a ver com a exequibilidade das ideias. Os críticos afirmam que não há como selecionar conteúdo ou descrever um processo histórico sem lhes atribuir valor, sem transmitir alguma carga moral ou sem contradizer algumas convicções dos alunos.

Também não há como operacionalizar a medida porque é impossível distinguir, nitidamente, a fronteira entre a “explicação” (dever do professor) e a “persuasão” (ofício do doutrinador). É impossível fiscalizar tudo que acontece em sala de aula.

É impraticável exigir que professores (e alunos) se dispam de suas crenças no momento de ensinar, que alunos se dispam dos preconceitos adquiridos no meio familiar e pelos meios de comunicação. Enfim, não há como proteger as crianças contra ideologias porque elas estão presentes em todos os lugares como coisas naturais (o gozo é obsceno, Deus é obrigatório etc.).