Escravidão e liberdade no Brasil setentrional | Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará | 2021

Criado em 2013, o Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia (GEPEAM), registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Pesquisa (CNPQ), reúne, desde então, professores, pesquisadores, alunos de graduação e de pós-graduação de diferentes instituições brasileiras das regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, atuando em diferentes níveis de ensino, interessados na pesquisa sobre a escravidão e o abolicionismo no Brasil Setentrional.

O GEPEAM, em parceria com a prestigiada Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), a segunda mais antiga da Amazônia em funcionamento, juntou esforços para dar corpo ao Dossiê “Escravidão e Liberdade no Brasil Setentrional”, organizado por dois de seus membros: Bárbara da Fonseca Palha e José Maia Bezerra Neto, igualmente membro como sócio efetivo do IHGP. Assim, no presente dossiê se congregou resultados de pesquisas de vários membros do grupo, bem como se contou com a participação de textos de outros pesquisadores ou historiadores, no caso: Anaíza Vergolino e Silva, Jonas Monteiro Arraes, Rafael Chambouleyron e Oscar de la Torre. Havendo também duas resenhas: uma do mais recente livro do historiador João José Reis, “Os Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia” (2019) e outra do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling (2018). Mas, destrinchemos com mais vagar o presente dossiê.

Inicialmente, tratando da organização deste dossiê como não lembrar ao longo de suas páginas daquele que foi um dos grandes pesquisadores da escravidão na Amazônia, que, portanto, não poderia estar de fora. Assim sendo, recordamos Vicente Salles por meio do discurso de posse do professor Jonas Monteiro Arraes, como sócio efetivo da cadeira n. 69 do IHGP, cujo patrono é Vicente Salles, homenageado neste discurso. E contamos ainda com uma entrevista concedida a nós por outro grande pesquisador, o professor Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um dos maiores e mais importantes historiadores brasileiros da atualidade.

Revisitamos e republicamos ainda o artigo da professora Anaiza Vergolino e Silva, intitulado O negro no Pará: a notícia histórica, publicado pela primeira vez em 1970 na obra “Antologia Amazônica”, no volume de Antropologia, organizada por Carlos Rocque. Neste texto, que a autora chama de ensaio, ela evidencia uma série de documentos que possibilitam o estudo da presença do negro no Pará, entre os séculos XVII e XIX, cuja pesquisa foi realizada no Arquivo Público do Estado do Pará, e as possibilidades de reformulações de estudos africanistas para o estado, tornando-se, ao longo do tempo, pesquisa de referência sobre a escravidão de origem africana no Pará.

No artigo Medio Ambiente, Patronazgo, y Nativismo: Los Mocambeiros de Pacoval y el Primer Gobierno Magalhães Barata, 1921-1935, publicado originalmente em The People of the River: Nature and Identity in Black Amazonia, 1835-1945 por The University of North Carolina Press, a quem agradecemos a permissão de sua republicação em espanhol neste dossiê, Oscar de la Torre analisa um protesto dos mocambeiros (quilombolas) na comunidade de Pacoval, localizada em Alenquer, no Pará, ocorrido em 1921, quando da visita de Palma Muniz a região, como representante do governo estadual, para inspecionar os castanheiros e a processo de privatização do castanhal da Praia Grande. O autor baseia sua análise em três elementos: o vínculo dos direitos de cidadania ao mundo natural, a proteção das redes de clientelismo econômico e político construídas já na época da escravidão que, apesar de precárias, configuravam uma influência institucional e a a identificação dos campesinos negros como “bons brasileiros” e, portanto, merecedores da proteção governamental contra estrangeiros.

Em uma Nota de Pesquisa, Rafael Chambouleyron apresenta a transcrição de uma denuncia inquisitorial feita ao frei Bernardino das Entradas, missionário apostólico e qualificador do Santo Ofício, em um engenho no rio Itapecuru, capitania do Maranhão, em novembro de 1692. Além de ser uma fonte que revele sobre as relações violentas entre senhores e escravos, os quais recorriam aos meios mágico-religiosos para “abrandar os brancos”, o autor toma o documento para analisar as experiências de africanos, índios e mestiços com a escravidão, com os mundos do trabalho nesta região, além da interação destes grupos sociais entre si.

Entre os membros do GEPEAM, contamos com a colaboração de oito pesquisadores, a começar por Diego Pereira Santos, com o artigo Um capitão de tumbeiros na Amazônia setecentista: tráfico negreiro e seus agentes. O autor apresenta a trajetória do capitão Manoel da Silva Tomás, ligado a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778), e seu papel, representativo da figura dos capitães de navios negreiros, como mediador das relações entre diversos sujeitos envolvidos no tráfico e do funcionamento deste comércio, e que determinava, direta ou indiretamente, o funcionamento desta empresa, assim como posterior ao fim do monopólio, a absorção deste sujeito pelo “comércio livre”.

No artigo Joanna Baptista e sua busca por liberdade na escravidão de origem africana em Belém, Bárbara da Fonseca Palha apresenta o caso de Joanna Baptista, classificado como “um dos mais estranhos e extraordinários procedimentos”, que vendeu a si própria como escrava, em 1780. Esta história já vem sendo investigada pela historiografia brasileira e internacional desde as primeiras décadas do século XX, como um caso de busca de sobrevivência e escapamento do aldeamento. Neste artigo a autora endossa essa tese, mas defende que a estratégia utilizada por Joanna Baptista foi possível pelas próprias características e funcionamento da escravidão de origem africana em Belém, mesma que pareça contraditório alguém livre querer tornar-se escrava.

Em Rios de Liberdade: Os escravos e suas fugas fluviais na Amazônia brasileira (século XIX), José Maia Bezerra Neto, traz um aspecto importante de sua pesquisa sobre escravidão de origem africana no Pará e as fugas de escravos, e que lhe conferiram um lugar de referência na historiografia brasileira sobre a escravidão, que é a possibilidade da prática deste ato de resistência contra a escravidão pelas vias fluviais da Amazônia brasileira. Sujeitos escravizados empreenderam fugas aliando a busca pela liberdade com diversos aspectos que tornavam estas ações possíveis, tais como as sociabilidades construídas, o conhecimento de diferentes tipos de embarcações, a experiência em navegação e o conhecimento da “fluviosidade” da natureza, afastando dessa forma a ideia da fuga como ato instintivo de sobrevivência, ao mesmo tempo em que manejavam suas “bagagens culturais como africanos” em solo amazônico.

Em Cultura Material e o trabalho escravo nos engenhos, engenhocas e sítios em Abaetetuba (Pará, século XIX), Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo analisa os “trabalhos dos escravos” de origem africana nos sítios, engenhos e engenhocas de Abaeté, na região do Baixo Tocantins, por meio da cultura material registrada em inventários post-mortem de senhores e senhoras de engenhos abertos em juizados de Abaeté e da capital do Pará, no século XIX. Os trabalhos desempenhados pelos cativos nestes espaços de produção de açúcar, e que não se restringiam somente a esta atividade, revelam sobre a divisão do trabalho de acordo com o gênero, sobre a especialização (ou não) da mão de obra que refletia na avaliação de um trabalhador cativo, sobre a faixa etária relacionada a produtividade e rentabilidade, assim como o estado de saúde que também esteve relacionado a produtividade e rentabilidade.

No artigo Ao sabor do cacau e sob a elasticidade da borracha: a continuidade da escravidão negra no Pará, durante a segunda metade do século XIX, Luiz Carlos Laurindo Junior defende a tese de que a presença significativa da população escrava no Pará, no contexto da segunda metade do oitocentos, mesmo depois da Cabanagem e da Lei Eusébio de Queirós, esteve atrelada as demandas de produção e exportação da borracha e do cacau, colocando a região dentro da economia mundial capitalista do século XIX. E a força do tráfico interno foi responsável por movimentar os sujeitos cativos entre as regiões do Vale Amazônico, em acordo “aos interesses e às expectativas econômicas e políticas de seus senhores”, ao mesmo tempo em que gerava “instabilidade em seus vínculos familiares e descontinuidade nas teias de sociabilidade em que estavam inseridos”.

No artigo Cidade febril: as doenças que matavam os escravos em Teresina (1877-1887), Rodrigo Caetano Silva contribui com um tema recorrente na historiografia, o estudo sobre as doenças que acometiam escravizados. O autor aponta que as enfermidades eram diretamente proporcionais a vida no cativeiro, marcado por exploração no trabalho que levava corpos negros ao esgotamento e por negligências na hora da doença que podia levar a morte, em muitos casos. Ao comparar doenças que acometiam sujeitos livres e escravizados, o autor aponta indícios que uma mesma doença matava mais escravos do que livres, neste contexto em Teresina, além da própria precariedade do atendimento à saúde, de modo geral.

Josenildo Pereira nos apresenta o artigo A Rebeldia do trabalho em tempos de escravidão: nuances da experiência do Maranhão, no qual analisa as formas de rebeldia de escravizados, tomando a província do Maranhão como o lugar de experiências deste grupo de trabalhadores e ao mesmo tempo mercadorias. Atos de rebeldia como “os furtos, as burlas de posturas urbanas, as festas, a frequência e o consumo de bebidas espirituosas em bares, e por consequência embriaguez” são analisados como reações a estrutura de exploração de suas forças de trabalho e de seus corpos sujeitos as transações comerciais, típicas das relações sociais da produção escravista, baseadas no sistema capitalista, antes mesmo que o operariado tenha dado feição ao movimento operário por meio dos “piquetes, quebras de máquinas, formação de sindicatos, greves e partidos políticos”.

Ana Carolina Cravo e José Maia Bezerra Neto escrevem juntos o artigo “A Terra da Liberdade na Amazônia”: faces da história e memória do abolicionismo na antiga colônia agrícola de Nossa Senhora do Carmo de Benevides. Neste texto, os autores analisam aspectos relacionados a história da abolição da escravidão na então colônia agrícola de Benevides, em 30 de março de 1884, o segundo lugar no Brasil a pôr fim ao sistema escravista, feito que, cem anos depois, foi apropriado por políticos locais para criar uma memória em torno do fato e estabelecer o então município como a “Terra da Liberdade”, neste contexto.

Em seu artigo intitulado Um Poeta Mestiço: entre a escravidão e a liberdade no Grão-Pará (1871-1897), Marcelo Ferreira Lobo nos apresenta a trajetória do poeta e jornalista paraense José Natividade Lima, filho de Damásia, mulher escravizada, porém nascido “ingênuo”, em 17 de setembro de 1782, com base na lei 28 de setembro ou lei do Ventre Livre. A vida de Natividade foi marcada pelo fim gradual da escravidão, pelas discussões sobre os usos da mão de obra neste contexto e pelos espaços sociais que se tornaram acessíveis aos indivíduos considerados ingênuos. A vida de Natividade, (re)constituída em parte pelo autor, é, portanto, representativa destes processos.

Enfim, este é o dossiê que agora saí publicado na Revista do IHGP, no segundo semestre de 2021, no ano em que a Lei do Ventre Livre (que libertou o ventre das mulheres escravizadas, nascendo livres a partir de então as suas crianças) completa 150 anos de sua aprovação. Esperamos que os leitores possam gostar.

Belém, 17 de novembro de 2021.


Organizadores

Bárbara da Fonseca Palha

José Maia Bezerra Neto


Referências desta apresentação

PALHA, Bárbara da Fonseca; BEZERRA NETO, José Maia. Editorial. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 8, n. 2, p.1-4, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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