Escravidão | Revista Ultramares | 2013

A partir das comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil muitas obras e pesquisas historiográficas revisitaram as histórias dos escravos e seus descendentes, redesenhando o papel que desempenharam na sociedade brasileira durante os vários séculos de escravidão. Novas fontes foram descobertas, outras revistas. Além do que com as possibilidades abertas pelas influências teóricas pós Annales surge uma nova historiografia da escravidão no Brasil. O escravo que antes era uma peça movida ao bel prazer das vontades dos seus senhores, passou a ter voz e a negociar sua existência dentro do sistema1.

Desde então os escravos passam a ser vistos dentro da sociedade, como parte crucial para o seu funcionamento e desenvolvimento, e como sujeitos ativos na construção cotidiana da nossa história. Sem o negro o Brasil não teria conseguido auferir riquezas e inserção no cenário mundial no desenrolar dos séculos de colonização, e mesmo depois da independência.  No que tange a escravidão, os escravos passaram a ser investigados a partir da formação familiar que emergiu de dentro das senzalas urbanas e rurais, instituição que segundo alguns historiadores, consolidou a paz e acalmou os ânimos2. Novas possibilidades surgem a partir da presença negra na formação de irmandades, contribuindo com sua cultura para promover uma complexidade religiosa, nas festas e devoção aos santos católicos. Além disso, os quilombos, antes vistos como locais de subversão hoje são considerados elementos da resistência. Hodiernamente, o cativo não é mais aquele que sempre desejava a liberdade, mais também é visto como um reprodutor do sistema, que dentro de suas possibilidades buscou status, o de ter outros escravos, que conseguiu angariar pecúlio, deixando de ser uma simples vítima do sistema, mas inclusive compactuando para sua preservação.

Ao longo das últimas décadas os escravos e seus descendentes ganharam voz a partir dos testamentos, nas fontes eclesiásticas, nas ações impetradas na justiça, nos documentos oficiais que sobreviveram as intempéries do tempo. Emerge cada vez mais um cativo que moldava ou se acomodava ao sistema, para conseguir e garantir seus espaços vivendo as múltiplas possibilidades de “liberdades” dentro da escravidão. Uma gente de cor quer seja recém-chegada da África (boçal), já adaptada (ladino) ou alforriada, podia ser considerada agente social, um colonizador como afirmava Freyre3, que conseguiu transformar o cotidiano, moldar a sociedade, misturar-se e dar o tom ao cenário colonial brasileiro.

Abrindo o nosso dossiê Gian Carlo de Melo Silva parte da identificação de africanos na formação social de Pernambuco, com o texto intitulado A presença de Africanos em Pernambuco: aspectos sobre escravidão, família e sociedade no período colonial – séculos XVI ao XIX. O autor mergulha ao longo do período nas histórias que emergem nas entrelinhas de documentos produzidos por quem exercia o poder, os senhores e senhoras de escravos. Estes, através de seus testamentos e inventários, nos legaram aspectos sobre escravidão, família e o lugar de alguns africanos no funcionamento de uma sociedade colonial alicerçada na escravidão e na mestiçagem da antiga Capitania Duartina. Abordando aspectos do comércio atlântico de escravos, Suely Creusa Cordeiro de Almeida e Jéssica Rocha de Souza no artigo O comércio das almas: as rotas entre Pernambuco e costa da África-1774/1787 mostram como Pernambuco estava inserido nas rotas comerciais com a costa africana na segunda metade dos setecentos. As autoras, a partir dos manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino, entre outras fontes, durante o governo de José César de Meneses investigam como os produtos que davam acesso a compra de escravos fizeram parte da economia local. Demonstram as disputas que envolviam comerciantes e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, criando um cenário que extrapola os limites da economia e nos revela dados sobre as dinâmicas da escravidão atlântica. Já Sheila de Castro Faria nos apresenta aspectos da escravidão interpretados a partir da vida material. O seu texto, “Aristocracia do comércio negro”: bens e pecúlio de pretas forras nos setecentos tem como ponto de partida a análise dos testamentos e inventários para o Rio de Janeiro e São João Del Rey entre os séculos XVIII e XIX. Os dados coletados fornecem indicações importantes para historiografia da escravidão ao mostrar que mulheres alforriadas acumularam pecúlio e o investiam na compra de escravos, construindo uma elite feminina, as sinhás pretas. Encerrando o dossiê, Eduardo França Paiva nos agracia com uma análise da escravidão a partir da iconografia e dos relatos de viajantes que estiveram em Minas Gerais entre os séculos XVIII e XIX. Seu artigo, Sob o traço de forasteiros: imagens de escravos e libertos das Minas Gerais, séculos XVIII e XIX, ultrapassa uma contribuição historiográfica, pois nos ensina como olhar o passado através dos registros imagéticos que foram deixados ao longo dos séculos, com todo o rigor metodológico necessário a análise da fonte iconográfica. Nos alerta ainda o historiador que “nenhum desses registros pode garantir veracidade e fidedignidade absolutas, pois todos são igualmente produzidos e lidos historicamente”.

Nos artigos que completam o volume atual conseguimos contemplar outros espaços e temas dentro do período colonial e início do império. Através da contribuição de Hugo André Flores de Araújo no texto intitulado: Para se dar satisfação a justiça: provimento de ofícios e conflitos de jurisdição no Estado do Brasil no século XVII, nos voltamos ao século XVII, a partir do poder concedido aos governadores e como se aplicavam no cotidiano, especialmente através da justiça e das práticas de uso costumeiro que permeavam o Antigo Regime. No século XVIII e XIX somos contemplados com um estudo genealógico feito por Helder Alexandre Medeiros de Macedo. O seu artigo Da escravidão à liberdade: trajetória do preto forro Feliciano da Rocha na Capitania do Rio Grande (Freguesia do Seridó, séculos XVIII-XIX), conta a história de um homem que conseguiu superar as intempéries da escravidão e acumulou terras, com uma trajetória que permeia a tradição oral da região do Seridó no Rio Grande do Norte até o século XX, mostrando como as articulações sociais e familiares possibilitaram a sobrevivência e a ocupação do espaço.

Estudando o clero colonial, Mayara Amanda Januário, nos apresenta O clero em perspectiva: vocação religiosa, desvios e vida colonial aspectos dos religiosos que estiveram presentes no cotidiano colonial. São observadas suas regras, vivências e pecados, mostrando que entre outras coisas, para a Igreja Tridentina o que causava mais repúdio não era a conduta desviante dos seus religiosos, mas sim o escândalo e a publicidade que um desvio moral poderia trazer para sociedade. Já em A vida cotidiana do Rio de JaneiroMary del Priore, nos brinda com uma abordagem sobre o cotidiano. A autora busca entender como as práticas sociais se processavam no período da chegada da Família real ao Brasil em 1808 e as consequências vivenciadas por aquela sociedade. Através de uma narrativa fluída e rica de conhecimento historiográfico temos um cotidiano “desnudado”, no qual emergem as dicotomias existentes na época. De um lado as belezas naturais e do outro a falta de higiene, para população as contradições entre o atrativo da corte a ausência de estrutura, para os que chegavam de além-mar as incoerências entre uma corte europeia e um Brasil africanizado, mestiço.

Por fim, neste número da Revista Ultramares temos a resenha “Cativos do Reino”: trânsito de pessoas e culturas no império português de autoria de Rogéria Cristina Alves. Nela, a autora debruça seu olhar sobre a obra: “Cativos do Reino”, do historiador Renato Pinto Venâncio, mostrando como este consegue articular o papel social dos encontros culturais de brancos e negros ocasionados a partir do contexto da escravidão dentro do império que Portugal construiu na época moderna.

Finalizada a tarefa de apresentar para vocês o presente volume, nós da Revista Ultramares desejamos que as narrativas do dossiê sobre escravidão e os textos que os seguem, possam despertar o prazer pela leitura e pesquisa histórica, e que contribuam para a continuidade da produção historiográfica.

Notas

1. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

2. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto.  A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; SLENES, Robert W. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

3. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala – Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51º Edição. São Paulo: Global, 2006.


Organizador

Gian Carlo de Melo Silva – docente do curso de História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Também é autor do livro Um Só Corpo, Uma Só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no Recife Colonial. E-mail: [email protected]

SILVA Gian Carlo de Melo (Org d)


Referências desta apresentação

SILVA, Gian Carlo de Melo. Apresentação. Revista Ultramares. Maceió, n.3, v.1, jan./Jul. 2013. Acessar publicação original [DR]

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