Espaços urbanos e territórios de poder / Varia História / 2003

Segundo Lévi-Strauss, especialmente na América, as cidades não foram feitas com o intuito de durarem, mas para se renovarem na mesma rapidez com que foram edificadas.[1 ]Sua observação atenta para a capacidade de transformação dos espaços urbanos o que tem ocorrido, nos últimos tempos, de forma cada vez mais acelerada. Os sujeitos ao se apropriarem dos espaços das cidades com eles se interagem, proporcionando, mesmo às velhas paisagens européias, novos significados e valores simbólicos. Os números 29 e 30 da Varia Historia reúnem o dossiê Espaços urbanos e territórios que se desdobra em duas partes. O primeiro, que se publica nesse número 29, se intitula Espaços urbanos e territórios do poder e o segundo, a ser contemplado no número 30, se denomina Espaços urbanos e territórios simbólicos.

Esse primeiro dossiê, Espaços urbanos e territórios do poder, abarca um conjunto de estudos sobre diversas cidades em suas inter-relações com os poderes que as constituíram. Em Cidades e elites coloniais; redes de poder e negociação, Maria Fernanda Bicalho analisa o papel das câmaras municipais como centro articulador entre o poder local e o poder real. Parte das interpretações historiográficas do tema, especialmente a obra de Charles Boxer e a de Evaldo Cabral de Mello, para propor uma nova abordagem. A partir do estudo do papel da Câmara Municipal no Rio de Janeiro na década de 1640, logo após a aclamação de Dom João IV como rei de Portugal, a autora enfoca o papel das redes de poder local e sua inserção na política mais geral do império, particularmente no que diz respeito aos negócios e interesses dessa elite no complexo mercado do Atlântico sul.

O artigo de Cláudia Damasceno Fonseca aborda a concessão de títulos de vila e cidade na capitania de Minas Gerais no decorrer do século XVIII. Usualmente, os estudos tradicionais salientam as questões políticas decorrentes das disputas de poder envolvidas nestas contendas, atribuindo ao rigor metropolitano a escassez de títulos concedidos aos núcleos urbanos mineiros. Numa outra vertente, a autora analisa as representações de cidades e dos núcleos urbanos que transparecem nos discursos coevos que salientam os aspectos que enobrecem as localidades tais como: a ordem dos assentamentos, a fidelidade dos moradores à Coroa, o papel defensivo e / ou estratégico da povoação, entre outros. Tais discursos refletem os interesses e as disputas dos moradores locais pela autonomia ou não dos espaços urbanos imprimindo novos significados aos conflitos entre os colonos e o poder metropolitano.

Os relevos urbanos da cidade de Macau são desvendados a partir de uma leitura semiótica da paisagem por Isabel Marcos. A ocupação do território chinês pelos portugueses correspondeu a três etapas diferenciadas que, segundo a análise da autora, podem ser identificados em três relevos cartográficos distintos. Essa disputa pela ocupação e transformação do espaço urbano evidencia as disputas de poder entre os primitivos habitantes, e os conquistadores. Num primeiro momento, os portugueses avançaram sobre os locais simbólicos dos chineses, especialmente aqueles relativos à morte. Numa segunda etapa, assiste-se simultaneamente a um processo construtivo diferenciado empreendido em espaços concorrentes tanto da parte dos portugueses quanto da dos chineses, o que resultou em uma diversidade de interações sob a forma de grandes percursos urbanos. Já no século XVIII, ocorre a terceira etapa de apropriação do território, quando Portugal admite no território chinês grandes companhias estrangeiras e assiste-se a um processo de edificação em massa na cidade de novos bairros, praças, edificações criando um espaço diversificado e intrigante.

As transformações arquitetônicas das moradias urbanas das elites no Brasil do período colonial até o início do Republicano são abordadas no artigo História, Cultura e Patrimônio: os solares urbanos do século XIX. Chamando a atenção para o desprezo que a política de defesa do patrimônio histórico no Brasil teve em relação às moradias populares, a autora Sandra Pelegrini salienta que as transformações e singularidades dos projetos arquitetônicos dessas habitações revelam a própria organização hierárquica que caracterizou a sociedade brasileira, evidenciando as estruturações de poder no campo social. Nesse aspecto, as adaptações e as características que a cozinha tomou ao longo do tempo nas moradias brasileiras são sintomas da segregação que a mão-de-obra, especialmente a escrava, encontrava no Brasil.

No contraponto do dossiê a respeito do mundo urbano, o universo dos sertões é abordado no artigo de Márcia Amantino. O sertão, identificado como o lugar da fronteira e do vazio desde o início da ocupação portuguesa, configura-se no século XVIII em Minas Gerais como espaço de resistência de negros aquilombados e índios selvagens. Representado nos discursos como um lugar vazio, mas verdadeiramente ocupado pelo outro, esse espaço torna-se, na ótica das autoridades, terra a ser ainda conquistada e incorporada ao mundo civilizado dos brancos.

A política de controle e estímulo ao comércio local para o abastecimento dos núcleos urbanos nas Minas Gerais é estudada por Flávio Marcus da Silva. Em seu artigo, o autor analisa o papel das Câmaras municipais no sentido de estabelecer uma política que propicie a organização do mercado de víveres nos núcleos urbanos, ao mesmo tempo que estabelece uma política de repressão aos atravessadores e ao comércio ilegal. Privilegia o estudo do relacionamento entre as autoridades locais e três dos principais agentes responsáveis pelo abastecimento alimentar: os roceiros, os comissários e os atravessadores.

Em A História na “história” de José Bonifácio: fundamentos de um projeto nacional, Ana Rosa Coclet da Silva analisa a visão de história presente no pensamento político de José Bonifácio, fundamental para a compreensão de seu projeto reformista para o Brasil e para o Reino. Ancorada no duplo aspecto da continuidade- de natureza física e humana- e de ruptura- na medida que informava a especificidade das partes e de seus habitantes- , a História constituía aspecto fundamental do projeto modernizador imperial na medida em que fornecia as bases para emendar o velho Reino e criar a nova nação brasileira.

Rodrigo Patto Sá Motta e sua equipe encerram esse número com um artigo no qual se debruçam sobre o acervo documental do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (OOPS / MG) e apresentam os resultados preliminares do estudo desse instigante acervo. Partem da discussão sobre a política de acesso aos documentos dos arquivos das agências de repressão, o que só se torna possível em um estado de direito e que se associa à luta por um estado em consonância com os interesses comuns da população e subordinado ao poder público, ponto de convergência com a própria temática republicana. Num segundo momento, abordam a regulamentação e o aparelhamento dos órgãos de repressão, aspecto necessário para a organização e a compreensão da própria documentação levantada, compondo um quadro da trajetória institucional do órgão.

Nota

1. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1970. p.81- 82. “As cidades na América não só foram recentemente construídas como estão para renovar-se com a mesma rapidez com que foram edificadas.

Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.


FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, jan., 2003. Acessar publicação original [DR]

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