Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt – ASSY (ARF)

ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva; São Paulo: Instituto Norberto Bobbio, 2015. Resenha de: DIAS, Lucas Barreto. Argumentos – Revista de Filosofia,, Fortaleza, n.14, jul./dez. 2015.

A interpretação de um pensamento talvez seja uma daquelas atividades da qual nunca se pode dizer ter chegado a um término. Mas a que fim se propõe o pensar? Se visado como possível de pôr fim a algo, não há qualquer fim, sua finalidade não se esgota, mas é sempre tema para um novo pensamento. Dizer que pensar é um constante repensar significa dizer que não há um ponto de chegada que o pensamento possa pretender alcançar. O que então, alcança o pensamento? Do que ele é capaz? Estas reflexões, próprias daquele tipo de vida que se acostumou chamar de contemplativa, podem soar dissonantes quando se tornam tema central de uma autora como Hannah Arendt, conhecida sobretudo por seus textos políticos. Talvez por isso seja pouco vista a utilização de sua última e inacabada obra – A vida do espírito – como bibliografia central para se interpretar o seu pensamento.

Ao se lançar a tal empreendimento sobretudo em razão das controvérsias geradas por Eichmann em Jerusalém, algo pode ser retido: a banalidade do mal (“conceito” que desponta na obra sobre o burocrata nazista) impulsiona Arendt a tentar compreender melhor o que ela chama de “plena capacidade de pensar” [thoughtfulness] em contraposição à “incapacidade de pensar” [thoughtlessness].

Porém uma das questões que surgem daí diz respeito a saber o que o pensar pode fazer para evitar o mal, não mais interpretado como radical, mas como fruto de uma banalidade. Antes mesmo, contudo, poder-se-ia ponderar: tem o pensar qualquer relação com os conceitos duais bem/mal? Pode o pensar nos guiar na vida prática? Há que se dizer que o debate sobre tal tema é por vezes evitado entre estudiosos de Arendt, isso porque frequentemente ou se cai em uma interpretação que beira a metafísica platonista em que o pensar guia o homem para o Bem, ou se nega qualquer possibilidade de o pensamento ter qualquer coisa a acrescentar- -nos acerca dos assuntos humanos. Falar sobre ética em Hannah Arendt, por conta disso, é provavelmente uma empreitada das mais escorregadias. O texto de Bethânia Assy, porém, traz algo que faltava à bibliografia brasileira sobre Hannah Arendt: uma interpretação que tem como foco central as questões éticas de seu pensamento presentes, sobretudo, nos escritos tardios de Arendt, sejam seus escritos decorrentes de seminários que ministrou e artigos acabados, sejam obras inacabadas, como no caso de A vida do espírito.

Dividido em cinco capítulos, os quatro primeiros parecem uma preparação que Bethânia Assy faz para o ponto central de sua interpretação presente no capítulo cinco: é possível uma ética que não derive seus princípios de ação de leis morais universais, mas que também não recaia em uma ética da impotência? Talvez seja esta a questão que toda sua obra tenta responder, porém como a própria autora formula primeiramente a questão:

minha preocupação é articular […] uma dimensão ética, cuja base remeta à visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas melhores intenções, transpareça a relevância ética da ação e da experiência (p.xxxvii).

Esta passagem da introdução nos remete diretamente para um dos maiores ganhos para as discussões sobre Arendt: a preocupação com o framework no qual se insere os conteúdos éticos do pensamento arendtiano, isto é, a busca por compreender o quadro teórico-metodológico que subjaz às suas concepções. Ainda que Bethânia não se dedique a explorar tais aspectos, ela ressalta recorrentemente a base fenomenológica das reflexões arendtianas de cunho existencial e hermenêutico.

A estratégia argumentativa se baseia em delinear o que Assy chama de uma “nova gramática ética” (capítulo 01) partindo das intuições que fizeram Arendt falar, em Eichmann em Jerusalém – da banalidade do mal como a incapacidade de pensar, para, aos poucos, sublinhar uma “Ética da visibilidade” (capítulo 02) que encontra suporte no texto arendtiano sobre a fenomenologia da vida contemplativa, A vida do espírito. Trata-se aqui, sobretudo, de sustentar a ética arendtiana tanto pela noção de aparência, quanto pelas atividades do espírito.

No entanto, embora Bethânia chame esta Ética da Visibilidade de uma ontologia política da aparência, seu principal enfoque não é a questão política, cuja eminência hermenêutica é tangencial. Dedica-se, inicialmente, às noções de responsabilidade pessoal/moral e responsabilidade política, postas em discussão no contexto da banalidade do mal e como posicionamento contrário à

teoria do dente de engrenagem”, a qual “postula que dentro de um sistema os sujeitos não agem como indivíduos, mas como engrenagens de uma máquina, de modo a tornar impossível atribuir-se individualmente qualquer culpabilidade moral ou legal. (p. 22).

Tal concepção tem como intenção não subsumir a culpa pessoal dos burocratas nazistas capazes da solução final, assim como sua responsabilidade coletiva, em uma falta de responsabilidade pessoal, como se desta última se derivasse uma impossibilidade de que suas ações e cumprimentos de ordens fossem julgados em tribunal.

É justamente para mostrar que tais indivíduos têm sim que ser julgados legalmente que Bethânia Assy, após expor o problema no capítulo 01, parte, em seguida, para considerações mais gerais acerca da noção de singularidade.1 É no segundo capítulo que se concentram os conceitos de Arendt mais vinculados à visibilidade, tendo como centro hermenêutico o conceito de aparência, este que é constantemente o ponto de partida e de chegada das discussões tanto relativas à vita activa quanto às da vida contemplativa. É nesse sentido que Assy compreende ser por meio do conceito de autoapresentação a melhor maneira de explicitar a formação da doxa em relação com a aletheia tendo em vista a singularidade com a qual aparecemos aos outros que compartilham o mundo conosco. Mostrando a reflexão arendtiana que não coloca doxa e aletheia como conceitos diametralmente distintos, o ganho, que Assy chama de epistemológico, resume-se a não repetir a perspectiva com a qual a tradição do pensamento ocidental pôs em lados opostos o chamado verdadeiro ser frente à mera aparência. Arendt, em A vida do espírito, nega à razão a possibilidade de se chegar à verdade, deixando ao campo fenomênico tal atributo junto também da possibilidade do falso. Isto confere ao mundo o estatuto de ser a base na qual tanto o verdadeiro quanto o falso aparecem, isto é, a verdade e a falsidade pertencem ambas ao domínio da aparência. Assim, ainda que a opinião não se identifique diretamente com a verdade, ela também não é reduzida meramente à falsidade.

A formação da doxa, no entanto, não pode prescindir da pluralidade humana, isso porque a própria apreensão das aparências por cada um de nós depende também do fato de que outros confirmam aquilo que meus sentidos percebem.

É justamente por a doxa se relacionar à aparência e sua apreensão depender de um contexto compartilhado com outros que confirmam a mim a aparência percebida – criando o que Arendt chama de sensação de realidade [reallness] – que Assy afirma que “a doxa é o própria significado ontológico da pluralidade no domínio das aparências.” (p. 47) o que nos levaria a uma “fenomenologia da ação política, […] [uma] valorização ontológica da experiência visível.” (p. 49) Bethânia afirma que de tais considerações acerca da doxa e da aletheia2 decorre uma dupla implicação para a ética que visa expor: 1) conferir à visibilidade o critério pelo qual as doxas de cada um são expostas aos demais, de modo que a ética passa a não ser enquadrada na “boa pessoa, mas, sim, em termos do que significa agir consistentemente e de forma responsável” (p. 50, 52) retirando a ética do domínio puramente do self, Arendt dá uma forte dimensão interpessoal à doxa e a põe no contexto do cidadão visível no domínio público.

O esforço de Bethânia, a partir disso, será o de analisar os papeis desempenhados pelas três atividades do espírito na formação da doxa e como isso se reflete no campo dos assuntos humanos, mas, com ênfase maior, na ética. Bem se sabe que o modelo que Arendt elege para a figura de pensador é Sócrates, personagem que também figura de maneira central em suas discussões sobre ética.

Frente a isso, Bethânia define três tópicos que considera como principais na discussão entre a faculdade de pensar e a Ética: a) pensar como espanto; b) pensar como consciência de si; e c) pensar em sua relação com a faculdade de julgar e com a doxa. Esta maneira de compreender a atividade de pensamento nos conduz a uma forma de entendê-la como um modo de vida, isto porque é um pensar cônscio de ser sempre vinculado a um mundo, isto é, aquilo que Taminiaux denominou de “paradoxo do pertencimento e da retirada”. Embora se retire do mundo das aparências para efetuar o diálogo da alma consigo mesma, o pensador não deixa de ser uma aparência entre tantas outras. Além do mais, no pensamento o homem é capaz de encontrar, se não uma pluralidade, já uma dualidade que representa que mesmo a atividade considerada como a mais solitária não é realizada por um self puro, mas indica o significado originário da palavra reflexão: tal qual me divido em dois em um reflexo meu em um espelho, me divido em dois ao pensar. O espanto frente a um acontecimento exige minha retirada do mundo para pensá-lo, decisão que me faz dividir-me em dois e me torna cônscio de mim mesmo, preparando espaço para o juízo e, assim, à formação da doxa frente ao que me aparece, ao dokei moi.

É disso que Assy irá aos poucos dar um passo importante em sua interpretação sobre a ética arendtiana, formulando aqui uma primeira versão que denomina de uma “ética de emergências”, ou, ainda, de uma “ética de não participação.” (p. 73) que Arendt – em Basic Moral Propositions – chama de uma ética da impotência (p. 86). Ainda que em uma versão preliminar do pensamento ético de Arendt, já temos aqui uma contraposição ao normativismo ético e às duas perspectivas éticas da filosofia continental: a procedimentalista e a comunitarista. Não se trata aqui de criar uma teoria moral, seja com pretensões de alcançar princípios universais, seja visando constituir uma comunidade de valores. (p. 100-101). A ética da impotência pode ser caraterizada como “uma ética desprovida de prescrição.” (p. 103), ela não demanda o que fazer, mas apenas indica um ‘parar e pensar’. Daí Bethânia assinalar como propriedades-chave do pensamento os critérios de consistência e de pluralidade, ambos compreendidos a partir do modelo socrático de pensar. A pluralidade, ainda que primária, provém no pensamento do dois-em-um, do diálogo da alma consigo mesma, onde Arendt põe o questionamento de “com que eu gostaria de conviver”? Tal questionamento demanda a consistência do pensar com o agir, afinal, “gostaria eu de conviver com um assassino”? É justamente neste sentido que o pensar não origina uma teoria prescritiva da moral, mas é, ao menos, capaz de incapacitar o sujeito que pensa de realizar uma ação que o tornaria incapaz de conviver consigo mesmo.

Dados tais aspectos, Bethânia inicia em seu quarto capítulo uma investigação que tem como objetivo compreender como o indivíduo decide como agir.

Talvez seja esse o ponto mais controverso do texto. A controvérsia não é à toa, afinal, os problemas acerca da faculdade da vontade em Arendt se tornam complicados de serem tratados se lembrarmos que em seus textos políticos ela critica as concepções que conferem à Vontade a característica de ser o órgão mental que produz a liberdade. Porém, como bem pontua Assy, um dos maiores ganhos com a discussão de Arendt sobre a Vontade é trazer de modo forte a contingência como cerne do argumento.

Embora não resolva efetivamente os percalços da relação entre a liberdade compreendida como proveniente da vontade e sua relação com a liberdade política, Bethânia Assy dá um passo importante para a discussão. Isso porque, segundo a intérprete, compreender aqui a contingência relativa à vontade significa compreender a factualidade presente já nessa faculdade, pois “a contingência implica inevitavelmente em factualidade.” (p. 123). Se lembrarmos de como Arendt interpreta o conceito de aparência, a importância de trazer à faculdade do espírito o elemento de contingência se torna latente junto à sua factualidade. A contingência assume, diferente do que costumou ser interpretada na tradição, um aspecto positivo e ativo, pois “não se define como mera privação, deficiência ou acidentalidade”, isto é, “a contingência é um modo positivo de ser.” (p. 123). É justamente este o ponto que Bethânia usa para reforçar o argumento central de tal capítulo: a “de que neste atributo da vontade, de agir ou não agir, se assentaria o fundamento ontológico da liberdade política.” (p. 124). Para tanto, Bethânia assenta tal assertiva não com o intuito de afirmar ser a liberdade da vontade já uma liberdade política, mas que o fundamento da liberdade política se encontra na capacidade da vontade de decidir algo novo. Sabe-se largamente que um dos principais conceitos políticos de Arendt é o início, isto é, a capacidade proveniente da natalidade que o homem tem de começar algo novo, de trazer novidade, deste modo, para Assy, “assim como a ação anuncia o milagre da natalidade na vita activa, a virtude criadora da vontade anuncia o milagre da natalidade na vita contemplativa.” (p. 130), isso para poder afirmar que “nossa faculdade de querer nos impele, de certa forma, à ação” (p. 131).

A vontade, nessa compreensão, é o fundamento não-político da liberdade política e “adquire uma dimensão ética mais direta que a atividade de pensar” (p.132), pois dela decorre o que Bethânia chama de uma ética da responsabilidade, ou seja, um passo à frente da ética da impotência. Isso, claro, não significa que qualquer prescrição normativa provenha da vontade, a negatividade da ética compreendida pelo pensar não dá espaço para a criação de princípios morais, mas, agora, por meio do querer, é capaz de legar à ação a dimensão da natalidade. A promessa, junto ao amor mundi, são, a partir disso, vistos como aspectos que atrelam a vontade à responsabilidade pessoal, pois, segundo Arendt, enquanto o Pensar se relaciona com o passado sob a forma de memória, o Querer se relaciona com o futuro. A promessa é a maneira pela qual Arendt vê a possibilidade de se comprometer com o mundo e com o outro. Junto a isso, a Vontade também diz respeito ao modo pelo qual cada um se individua, isto é, a singularização de cada um de nós, a decisão de quem eu decido ser e que responsabilidades eu assumo ao mostrar-me.

Porém, a formação da doxa não é efetivamente executada pela faculdade da vontade, assim como permanece incompleta através do pensar, visto não ser ainda uma doxa capaz de expor um posicionamento positivo por meio do pensamento, mas apenas negativo, a ética da impotência, tendo apenas uma parcela de positividade proveniente do Querer efetuado pela vontade, que nos legou o princípio de uma ética da responsabilidade. A hipótese anunciada já na introdução por Bethânia é a de que “as atividades do espírito […] não conduzem a juízos determinantes, à boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais autônomas” (p.xxxiii), sendo, por isso, necessária uma interpretação que ultrapasse tais questões em vistas de uma “ética de responsabilidade pessoal […] ligada à visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez, estão associadas ao cultivo de um éthos público”, o que nos leva a tentar entender “como o sujeito se singulariza na comunidade política.” (p.xxxiv). Tais pontos, embora apareçam tangencialmente nas demais atividades do espírito, só encontram morada hermenêutica na faculdade de julgar.

Em seu último capítulo, Bethânia tem como preocupação chegar a uma ética da responsabilidade baseada em figuras que por vezes são postas como excludentes: o ator e o espectador. A teoria do juízo arendtiana é aqui compreendida como a possibilidade de não se recair na normatividade ou no puro agonismo, leituras feitas por Benhabib e Villa. Cabe tanto ao espectador quanto ao ator a capacidade da mentalidade alargada, o ser capaz de pensar simulando os olhares de outros, assim como a capacidade de pensar por si mesmo. É assim que certas noções de Arendt ganham destaque aqui:

o prazer desinteressado, […] a mentalidade alargada, o sensus communis como o cultivo de sentimento público, a estreita ligação entre aletheia e doxa, a validade exemplar […] e a questão da companhia”, isto é, o “com quem desejo ou suportaria viver junto? (p. 145).

Em diálogo constante com a terceira crítica kantiana, Assy, então, esmiúça a teoria do gosto com a intenção de superar o egoísmo a fim de “conduzir-nos a uma dimensão afetiva comum” para “elucidar a pluralidade de nossos juízos” (p. 149), os quais, assim, liberados do mero interesse privado, podem se dar através de um interesse desinteressado. Tal tomada de postura possibilita a cobrança aos outros desta mesma maneira de julgar, não, com isso, buscando uma validade universal, mas, sim, geral. Trata-se de julgar “o mundo em sua visibilidade e na comunalidade dos afetos.” (p. 157) sem com isso pretender se chegar a qualquer juízo consensual universal. O gosto não se reduz a uma mera preferência subjetiva, mas provém de uma sensação de prazer acerca de algo que aparece aos demais e que será por eles alvo de aprovação ou desaprovação. Dada a possibilidade de ser julgado pelos demais que compartilham um mesmo espaço de aparência, Assy sublinha como critério da (des)aprovação tanto a comunicabilidade como a publicidade.

O interessante aspecto que aparece neste ponto do texto é o de incutir, ainda que talvez não propositalmente, uma caraterística do pensamento hermenêutico de Arendt: a admiração que se segue à aprovação de um juízo de gosto expresso é capaz de realizar um ajuste à vida social; esse ajustar-se se vincula não ao conhecimento de propriedades do que é admirado, nem à publicidade fenomenicamente cognoscível, mas porque o acesso a um senso público faz aparecer o meio intersubjetivo no qual a doxa se forma, como diz Bethânia: O prazer ou desprazer que um juízo reflexivo evoca não se arbitra meramente pela sensação imediata de satisfação ou insatisfação, e sim à medida que aprovamos ou desaprovamos nosso deleite, à medida que nosso prazer/desprazer se apropria do interesse público. (p. 165).

O que é relevante aqui é o significado/sentido que provém do prazer/desprazer, não de uma cognoscibilidade objetal, e embora o conhecimento empírico seja também mediado pela pluralidade, é o sentido de como se é afetado por algo que tem relevância para a comunidade ético-política, daí a importância do sensus communis, o sentido intersubjetivo que nos auxilia a nos ajustar à vida compartilhada.

Por fim, gostaria de comentar a fenomenologia da exemplaridade, tal como nomeada por Assy e que serve como fechamento de sua interpretação, ao acrescentar a denominação de a ética arendtiana ser uma ética da experiência. Após a breve passagem de uma ética da impotência tendo em vista a ética da responsabilidade, por em relevo a experiência e o papel do juízo – após se sublinhar os papeis do pensar e do querer – para a formação da doxa serve como modo de dotar a ética aqui, sem cair em prescrições ou normas, de uma dimensão positiva.

Na escolha de “com quem gostaria de viver”, o outro critério a ser acrescido à validade geral é o da validade exemplar e seu atrelamento às experiências. Junto à mentalidade alargada em que torno presente para mim as considerações dos outros, penso neles sobre o signo da exemplaridade a partir das preferências públicas, isto é, junto ao exemplo se soma o interesse desinteressado, o interesse pelo bem comum, a preocupação pelo mundo: o amor mundi.

É assim que, para Bethânia Assy, em Arendt se é capaz de desenvolver uma teoria ética que é chamada pela intérprete de uma teoria crítica do juízo baseada em um juízo político dos afetos comuns. É este comprazimento com o mundo comum e o ajuste pelo sensus communis à pluralidade humana que Bethânia defende uma ética da responsabilidade que se vincula, pelos afetos comuns, a um sentimento de justiça ou injustiça, e não há associação massiva a eventos que vão de encontro à pluralidade e à dignidade humana que libere o homem de sua responsabilidade pessoal. A experiência nos propicia pensar, julgar e direcionar nossa vontade para a ação. A teoria ética de Arendt ganha um ótimo ponto de apoio e discussão com esta obra de Bethânia Assy.

Notas

1 Tal estratégia visa preparar o terreno para os três últimos capítulos, os quais seguem a estrutura na qual A vida do espírito deveria ter sido escrita caso Arendt não tivesse falecido: o primeiro versa sobre o pensar, o segundo, sobre o querer, e o terceiro, sobre o julgar.

2 Bethânia, todavia, dá enfoque aqui a uma dimensão mais epistemológica do que fenomenológica. Tal compreensão não parece ser condizente com o texto de Arendt, sobretudo porque parece não dar espaço para uma das principais distinções conceituais de A vida do espírito e que perpassa toda a obra arendtiana: a diferença entre Pensar e Conhecer que serve como base para o desmantelamento das falácias metafísicas.

Reduzir tais aspectos a uma epistemologia parece tender para a indistinção entre a cognição e o pensamento, levando a uma perda não apenas a nível conceitual e filosófico, mas, sobretudo, às características éticas e políticas.

Lucas Barreto Dias – Doutorando do Programa em Pós-graduação da UFMG. Professor da Faculdade Católica Rainha do Sertão. E-mail: [email protected]

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