Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia | Ann Heberlein

Em 2021, a editora Companhia das Letras traduziu o livro [Arendt: Om kärlek och ondska] publicado em 2020 de autoria da sueca Dra. Ann Helen Heberlein, que, pouco conhecida no campo da História brasileira, produziu uma biografia sobre Hannah Arendt. Ainda que não dotada de singularidades abruptas, a biografia expõe duas categorias como chave de leitura para a narrativa de vida de Arendt: contexto e situação-limite. Nesta resenha, portanto, o caro leitor encontrará três setores de informações: a) uma leitura comparativa entre a biografia escrita por Heberlein e outras já consagradas; b) uma síntese geral da narrativa, focando em alguns capítulos-chave; e c) reflexão e apreciação das duas categorias mencionadas.

Heberlein nasceu em 22 de junho de 1970 na Suécia. Estudou Teologia na Lund University, para onde voltou a fim de ser professora-pesquisadora a partir de 2007. Sua dissertação, defendida em 2005 e intitulada Kränkningar och förlatelse (Abusos e perdão), ganhou destaque nacional. A partir de então, começou a discutir sobre culpa, vergonha, responsabilidade, moral, abusos e perdão. Passou a integrar o corpo docente da Universidade de Estocolmo a partir de 2009, além de ter trabalhado como colunista nos jornais Sydsvenskan e Dagens Nyheter. O destaque internacional veio após a publicação, em 2008, de seu relato autobiográfico sobre como é a vida com transtorno bipolar, intitulado Jag vill inte dö, jag vill bara inte leva. Contudo, o primeiro livro traduzido para o português ocorreu em 2012 com Det var inte mitt fel! Om konsten att ta ansvar – traduzido para Não foi culpa minha. A arte de assumir a responsabilidade. Leia Mais

Philosophy, dialogue, and education – GUILHERME; MORGAN (B-RED)

GUILHERME Alexandre Anselmo Guilherme ucsclay ucr br Dialogue
Alexandre Anselmo Guilherme. ucsclay.ucr.br

GUILHERME e MORGAN Philosophy dialogue and education DialogueGUILHERME, Alexandre Anselmo; MORGAN, W. John. Philosophy, dialogue, and education. Nine Modern European Philosophers [Filosofia, diálogo e educação: nove filósofos europeus modernos]. London: Routledge, 2018. 190 p. Resenha de: CHERON, Cibele. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.15 n.2 São Paulo Apr./June 2020.

O que é o diálogo, na compreensão de nove dos mais importantes filósofos modernos europeus? Quais são as implicações dessa compreensão do diálogo para o campo da Educação? É desse duplo questionamento que Alexandre Anselmo Guilherme e W. John Morgan partem para, ao longo de Philosophy, Dialogue, and Education, discutir as ideias de Martin Buber, Mikhail Bakhtin, Lev Vygotsky, Hannah Arendt, Emmanuel Levinas, Maurice Merleau-Ponty, Simone Weil, Michael Oakeshott e Jürgen Habermas.

A intersecção entre o diálogo e o campo educacional se faz presente na trajetória dos autores, ambos expoentes da Filosofia da Educação. W. John Morgan é professor emérito da School of Education [Faculdade de Educação] da University of Nottingham, onde presidiu a Cátedra UNESCO de Economia Política da Educação. Ele também é professor honorário da School of Social Sciences [Faculdade de Ciência Sociais] e do Wales Institute of Social and Economic Research, Data, and Methods [Instituto Wales de Pesquisa, Dados e Métodos Sociais e Econômicos] na Cardiff University, e bolsista emérito do Leverhulme Trust, realizando estudos sobre economia política comparativa da educação (especialmente Rússia e China), sociedade civil e antropologia do conhecimento, bem como educação para a paz. Alexandre Anselmo Guilherme é professor adjunto da Escola de Humanidades, Departamento de Educação, e coordenador do Grupo de Pesquisa Educação e Violência – GruPEV da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, atuando principalmente nos temas educação e violência, educação e diálogo, imigrantes e refugiados, e Psicologia da Educação.

Guilherme e Morgan indicam a relevância dos questionamentos que embasam Philosophy, Dialogue, and Education: o diálogo é comumente entendido como conversação, intercâmbio de perguntas e respostas entre dois ou mais sujeitos, e, simultaneamente, tem sido objeto privilegiado nas pesquisas em Filosofia da Educação. Todavia, a maioria das investigações nessa área costuma concentrar-se em apenas verificar a ocorrência de intercâmbio comunicativo, resultando em “modos simplistas e reducionistas de compreender o diálogo, os quais não consideram as relações envolvidas no diálogo” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.3)1. Em oposição ao reducionismo rejeitado pelos autores, é destacada a “gama de complexidades, dinâmicas e efeitos resultantes e causados pelo diálogo, que a simples percepção de um processo de perguntas e respostas não captura com êxito” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.4)2.

A escolha dos filósofos abordados enfatiza o caráter polissêmico, multifacetado e complexo do diálogo. Philosophy, Dialogue, and Education reflete sobre as complexidades inerentes ao diálogo, situando as perspectivas sociopolíticas dos pensadores na tradição europeia da filosofia dialógica. Cada filósofo é tratado num capítulo específico, cujo título sintetiza o conceito de diálogo desenvolvido. Após uma breve apresentação, seguida dos principais eventos da vida e carreira, o leitor é conduzido a um panorama consistente e detalhado sobre como o diálogo é conceituado e relacionado à educação.

No primeiro capítulo, Martin Buber: dialogue as the inclusion of the other [Martin Buber: diálogo como a inclusão do outro], o diálogo é referido como uma relação simétrica, inclusiva do outro, despida de preconceitos e expectativas, na qual simplesmente se aceita o outro como ele é. A relação dialógica assume a forma ‘Eu-Tu’ e está, assim, em contraste com as relações ‘Eu-Isso’, baseadas na objetificação do outro e na ausência de diálogo. ‘Eu-Tu’ e ‘Eu-Isso’ são as ‘palavras básicas’ indicativas da qualidade da experiência contida na relação que elas descrevem. À leitura filosófica da obra de Buber (cf. Buber, 2007 e 2001, entre outros) é acrescida uma apreciação teológica, fundada em suas raízes judaicas hassídicas. Essa apreciação ilustra a atenção às conexões entre o pensamento, as experiências, o pertencimento e a subjetividade dos filósofos observados, elementares em Philosophy, Dialogue, and Education. Em Buber, o hassidismo é o mote para ressaltar a convergência de todas as relações genuínas para o eterno, a partir da qual os seres humanos se relacionam com Deus. No campo da Filosofia da Educação, a teoria de Buber é enfocada para defender a importância das relações vivas, horizontais e inclusivas entre professores e alunos, fundadas em diálogo genuíno, de forma a impactar positivamente a motivação e a capacidade de colaboração.

A interpretação de Guilherme e Morgan sobre as ideias de Buber, no Capítulo Um, articula-se ao Capítulo Cinco, Emmanuel Levinas  dialogue as an ethical demand of the other [Emmanuel Levinas: diálogo como uma exigência ética do outro] Para Levinas (cf. Levinas, 1988a1988b2005, entre outros), em contraposição a Buber, a noção ética de diálogo compreende uma relação assimétrica e preconcebida, estabelecida para satisfazer as demandas do outro. O encontro com o outro, nominado por Levinas como “rosto”, implica uma exigência ética, instando o sujeito, de cima para baixo, a responder ao outro. Todavia, essa assimetria não deve ser depreendida como uma hierarquia das relações humanas, uma vez que é recíproca: o sujeito é instado a responder ao mesmo tempo em que demanda uma resposta ética do outro. A assimetria bilateral do encontro com o “rosto” caracteriza-se, ainda, pela presença de uma “terceira parte”, na medida em que toda a humanidade encara o sujeito através dos olhos do outro. Assim, enquanto para Buber o diálogo se dá desde o reconhecimento do outro como um par, por conta da igualdade com o sujeito, para Levinas, o diálogo existe porque o sujeito reconhece a alteridade absoluta do outro. A influência de Levinas para a Educação também se ancora na alteridade, no reconhecimento ético do encontro com um outro que é diferente do sujeito, causando-lhe inquietude, questionamento e inovação.

O outro também é central no Capítulo Seis, Maurice Merleau-Ponty – dialogue as being present to the other [Maurice Merleau-Ponty – diálogo como estar presente para o outro]. O capítulo discute a compreensão existencialista e fenomenológica de Merleau-Ponty (cf. Merleau-Ponty, 19962006, entre outros), para quem o diálogo configura um ‘estar presente’ para o outro. Ainda que guarde algumas afinidades com o pensamento de Buber e de Levinas, Merleau-Ponty apoia-se em premissas distintas. O diálogo necessita do encontro com um outro corporificado, presente numa relação em que o sujeito também está presente. No diálogo, as demandas e intenções desse outro tornam-se compreensíveis para o sujeito, como se este o “habitasse”. Por essa perspectiva, subjetividade e objetividade se encontram no corpo. Também por meio dessa “teoria da incorporação” o fenômeno do aprendizado é explicado como um hábito adquirido pelo corpo, e a aquisição de um hábito corresponde à apreensão de um significado. Trata-se de um processo que envolve os movimentos espontâneos e intencionais em interconexão com as experiências que solidificam os hábitos.

No segundo e no terceiro capítulo, Guilherme e Morgan tratam de dois pensadores russos influenciados pelo marxismo. Mikhail Bakhtin é referido ao longo do Capítulo Dois, Mikhail Bakhtin – the dialogic imagination [Mikhail Bakhtin – a imaginação dialógica]. Os autores aludem à noção de “imaginação dialógica”3 para desvendar uma filosofia na qual se notam inspirações em Kant, marcada pela insistência na relação, necessária e reciprocamente enriquecedora, entre o pensamento e a ação, e em Nietzsche, visível no conceito de discurso que espelha a ideia de diálogo. O capítulo leva em conta as ambiguidades percebidas em Bakhtin, especialmente sobre a arquitetura do mundo real, a estética como ação ou processo, a ética da política e, finalmente, a ética da religião. Essas ambiguidades suscitam uma reflexão crítica, na qual o filósofo do ato (cf. Bakhtin, 2010), da dialogia (cf. Volóchinov, 2017Bakhtin, 20082016, entre outros) e do plurilinguismo, vindica “o diálogo e a participação polifônica de vozes diferentes no intercâmbio de ideias por meio da linguagem e da literatura” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p. 24)4 ao mesmo tempo em que propõe Bakhtin como um pensador ético. A “imaginação dialógica” de Bakhtin sublinha que a linguagem só adquire significado no diálogo, obrigatoriamente no contexto social e cultural do qual faz parte. O entendimento do self é construído nesse diapasão, num diálogo conformado pelas mútuas e contínuas interpretações do outro. Essa perspectiva contribui grandemente para a Filosofia e para a Educação, uma vez que Bakhtin incentiva os sujeitos ao protagonismo na busca pelo conhecimento, não aceitando as coisas como dadas.

Isso pode ser cotejado à compreensão de Lev Vygotsky, objeto do Capítulo Três, Lev S. Vygotsky – dialogue as mediation and inner speech [Lev Vygotsky – diálogo como mediação e discurso interior]. Como mediação (cf. Vygostsky, 1999 1998, entre outros), o diálogo diz respeito à relação entre indivíduo e sociedade, intermediada por objetos, sinais e linguagem, ferramentas proporcionadas pela cultura. Também diz respeito à interação de cunho mais psicológico do indivíduo consigo mesmo, crucial para o desenvolvimento cognitivo humano, que Guilherme e Morgan afirmam ser “uma alternativa poderosa tanto ao behaviorismo pavloviano como para a ênfase piagetiana à maturação biológica cognitiva” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.39)5. O impacto do pensamento de Vygotsky para a Educação é captado desde as interpretações que privilegiam a análise social, até as que buscam entender o surgimento da consciência, relegando as relações sociais ao pano de fundo.

O prisma político do diálogo é examinado no Capítulo Quatro, Hannah Arendt – dialogue as a public space [Hannah Arendt – diálogo como espaço público]. Guilherme e Morgan acentuam a defesa de Arendt da expressão autêntica da democracia, possível quando os cidadãos se reúnem num espaço público de deliberação e decisão acerca dos interesses coletivos (cf. Arendt, 20072012, entre outros). A separação entre as dimensões do “labor”, do “trabalho” e da “ação” precede a exigência do espaço público, contexto no qual as pessoas defrontam-se umas com as outras, na qualidade de membros de uma comunidade, e desvelam seus pontos de vista em discursos e ações, concordâncias e discordâncias. Essa relação com os outros é pré-condicionada por outro tipo de diálogo, fundante da capacidade de pensar, interno, através do qual o indivíduo confronta a si próprio. Nesse marco, a educação objetiva propiciar um ambiente seguro às crianças, preparando-as para participarem da esfera pública. Entretanto, Guilherme e Morgan cogitam que escolas e universidades não venham conectando o público ao privado, tal qual divisado por Arendt. Isso é tributado a obstáculos enfrentados, como os processos de mercantilização, que transformam os cidadãos em consumidores, e o espaço público em mercado.

Igualmente, no Capítulo Sete, Simone Weil – dialogue as an instrument of power [Simone Weil – diálogo como instrumento de poder], o espaço público tem notada relevância. O diálogo é pensado por Weil em relações de poder dimensionadas, no espaço público, pela linguagem e pelas palavras (cf. Weil, 19912001a2001b, entre outros). O dinamismo da realidade é a fonte dos conflitos potenciais, porquanto os sujeitos leem o mundo utilizando uma linguagem imperfeita, não obstante expressiva de atitudes e práticas. O diálogo configura uma relação de poder que se presta à crueldade, mas também à justiça e à bondade. Esse instrumento é crucial para a Educação, assim como a atenção (a vontade de receber) e o silêncio (a reflexão sem recebimentos do mundo externo), pois o processo de conhecimento só pode ser atingido num percurso crítico que envolve desejo de saber, comprometimento, esforço e amadurecimento. Assim, é imperativo que a Educação propicie ao indivíduo o discernimento das ideias, o poder da escrita e do discurso, e seu uso não para a conquista e aniquilação do outro, mas para a justiça, particularmente para a justiça social.

O posicionamento de Weil pode ser comparado ao de Michael Oaekshott, sobre o qual Guilherme e Morgan discorrem no Capítulo Oito, Michael Oakeshott – dialogue as conversation [Michael Oakeshott – diálogo como conversação]. O diálogo é, aqui, visto como uma forma de conversa, imprescindível para o desenvolvimento da civilização (cf. Oakeshott, 1989, entre outros). Os valores civilizados estão radicados na capacidade das pessoas, pela conversa, adentrarem o diálogo, o que é fomentado por uma educação liberal. É indispensável que a experiência humana seja vivida, compreendida e refletida na forma de uma conversa do sujeito com seus pares, seres humanos. As vozes que tomam parte dessa conversa são as diferentes formas da experiência, de ver o mundo, históricas e práticas. Oakeshott considera a conversa como um diálogo aberto e polifônico, um intercâmbio entre as diversas funções e condições em que a humanidade se desenvolve – e aí reside sua importância para a Educação. O indivíduo aprende a ser humano enquanto participa dessa conversa, assimilando os múltiplos significados e propósitos que também a integram.

O nono e último capítulo, Jürgen Habermas – dialogue as communicative rationality [Jürgen Habermas – diálogo como racionalidade comunicativa] dedica-se ao conceito de diálogo como racionalidade comunicativa, depreendido da extensa obra do filósofo alemão (cf. Habermas, 19841987, entre outros). Guilherme e Morgan sublinham a crítica habermasiana ao cientificismo e às decorrentes abordagens positivistas, burocráticas e autoritárias predominantes nos estudos sobre as questões da esfera pública, o que resulta na “marginalização do diálogo público e do debate” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.141)6. O déficit democrático consequente é enfrentado, segundo Habermas, por duas formas distintas e interdependentes de ação: (i) instrumental, mensurada quantitativamente e percebida no trabalho e na construção material; (ii) comunicativa, aferida qualitativamente e percebida por meio da interação e do diálogo sociais. A racionalidade comunicativa é a chave para a ação, e o ato da comunicação, em si, já inicia um diálogo entre pares, parceiros abertos às possibilidades de acordo e ação social. A contribuição de Habermas para a Educação é defendida no que Guilherme e Morgan detectam como alinhamento à Pedagogia Crítica, segundo a qual o despertar de consciência dos sujeitos, dialeticamente, leva à ação social democrática e emancipatória. A responsabilidade dos educadores é criar condições para que essa ação ocorra, circunstanciando o ensino e o aprendizado como atos políticos e, no mesmo sentido, a não neutralidade do conhecimento.

Philosophy, Dialogue, and Education é uma obra densa, na qual os autores promovem uma reflexão teoricamente consistente e sofisticada, sem, contudo, sacrificar a leitura e a inteligibilidade. As concepções de diálogo são discutidas de forma articulada entre os pensadores, concatenadas aos aportes de outros teóricos e de comentadores, o que fornece um horizonte interpretativo rico e fundamentado.

Nesse contexto complexo, Guilherme e Morgan trabalham o diálogo permeado por relações de poder, pela história e pela cultura, por valores normativos e pela necessidade de um espaço comum. Os potenciais e os dilemas do diálogo, especialmente na Educação, são temas de renovado interesse, ainda maior quando os recentes eventos e as dinâmicas sociais colocam em xeque a capacidade de dialogar. Como apontam (2018, p.4), “o diálogo não é simples de obter; pelo contrário, depende da disposição e da situação e é frequentemente difícil de iniciar, ainda mais de sustentar”7. Cultivar essa disposição é, portanto, o desafio ético do tempo presente, ao qual a Filosofia da Educação não se furta.

1Traduzido livremente do original: “simplistic and reductionist ways of understanding dialogue which do not consider the relations involved in the dialogue”.

2Traduzido livremente do original: “range of complexities, dynamics, and effects implied and caused by dialogue that the simple notice of a process of questioning and answering does not capture successfully”.

3A expressão é claramente uma referência à coletânea de ensaios de Mikhail Bakhtin publicada em inglês com o título The Dialogic Imagination (BAKHTIN, 1981). Dela constam os ensaios (i) Epic and Novel: toward a Methodology for the Study of the Novel, traduzida em português como Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) (1993, p.397-428) ou O romance como gênero literário (2019, p.65-111); (ii) From the Prehistory of Novelistic Discourse – em português, Da pré-história do discurso romanesco (1993, p.363-396) ou Sobre a pré-história do discurso romanesco (2019, p.11-63); (iii) Forms of Time and of the Chronotope in the Novel: Notes toward a Historical Poetics – em português Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) (1993, p.211-362) ou As formas do tempo e do cronotopo no romance (2018, p.11-237); (iv) Discourse in the Novel – O discurso no romance (1993, p.71-210; 2015, p.19-242).

4Traduzido livremente do original: “dialogue and the polyphonic participation of different voices in the exchange of ideas through language and literature”.

5Traduzido livremente do original “provided a powerful alternative to both Pavlovian behaviourism and the Piagetian focus on cognitive biological maturation”.

6Traduzido livremente do original “marginalization of public dialogue and debate”.

7Traduzido livremente do original “dialogue is not simple to achieve; rather, it is dependent on disposition and on situation and is often difficult to initiate, let alone sustain”.

Referências

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Cibele Cheron – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; PNPD/CAPES; [email protected]

 

Glória Carneio do AMARAL, Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide, São Paulo, EDUSP, Maria Luiza Guarnieri Atik, Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso

Justiça em tempos sombrios: a justiça no pensamento de Hannah Arendt – RIBAS

RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios: a justiça no pensamento de Hannah Arendt. [?: Toda Palavra, 2019]. Resenha de: AQUIAR, Odílio Alves. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 23 – jan.-jun. 2020.

Tendo por eixo o tema da ruptura totalitária, Justiça em tempos sombrios faz uma instigante reconstrução das principais preocupações de Arendt, com o intuito de investigar o que ela teria a dizer sobre a justiça, a partir de suas reflexões sobre as questões políticas fundamentais que aparecem em sua obra.

Nesse desiderato, a autora passeia com desenvoltura pelo pensamento de Hannah Arendt, costurando caminhos a partir de um ponto focal: o julgamento de Adolf Eichmamn, em Jerusalém, relatado por Arendt em obra polêmica, de grande repercussão. O tema da justiça está, ali, subjacente, uma vez que, para Arendt, a realização da justiça é o propósito de um julgamento. Abordando os principais problemas jurídicos que o caso Eichmann apresentou, a obra apresenta a contraposição entre a percepção da justiça como uma virtude, própria da antiguidade, e a percepção da justiça como um valor, nascida com os modernos e vai encontrar seu apogeu na obra de Hans Kelsen. Para Christina Ribas, a ideia de que a justiça é um valor veio pouco a pouco a impregnar, de forma sub-reptícia, as diversas teorias contemporâneas da justiça. Como um valor entre outros, na imensa relatividade que caracteriza o contemporâneo, a justiça sofre uma espécie de perversão, perdendo seu significado e sua capacidade de iluminar o presente.

Isso fica evidente no julgamento de Eichmann, exatamente porque não haviam nem leis nem precedentes judiciais para o genocídio, brotando ali de forma contundente as perplexidades dos julgamentos do pós-guerra, relativos a crimes que se revestiam do manto da legalidade.

Nesse sentido, como afirma Celso Lafer, assinando uma apresentação na forma de Orelha, um juízo determinante, baseado na subsunção, seria inadequado no contexto da ruptura totalitária: “Isto não só porque não havia norma positiva aplicável mas também porque não cabia nem a analogia juris de princípios gerais, pois estes eram inexistentes e fugidios, nem a analogia legis, pois esta pressupõe a semelhança relevante, e nada, no passado dos precedentes, era semelhante ao Holocausto”. Para Arendt, o julgamento de Eichmann causou enorme perplexidade porque evidenciou que o sistema jurídico era não apenas insuficiente, mas completamente inadequado para lidar com o paradoxo de um crime legal.

A partir dessa constatação, aparece em Justiça em tempos sombrios uma reflexão interessante sobre a faculdade de julgar, central a Arendt nos últimos anos de sua vida, quando, após dedicar-se a pensar sobre a condição humana, ela voltou-se para a vida contemplativa, procurando investigar as faculdades fundamentais do espírito. Essa preocupação consubstanciou-se em The Life of the Mind, obra publicada postumamente, que deveria tratar do pensamento, da vontade e do julgamento, mas que não incluiu, como era o plano original de Arendt, esse último tema, uma vez que a morte a surpreendeu quando ela começaria a redigir a terceira parte da trilogia. Essa circunstância faz com que a obra de Christina Ribas enfrente um grande desafio, buscando investigar o tema da justiça, de que Arendt não tratou, a partir da reflexão de Arendt sobre a faculdade de julgar, por ela considerava a mais política das faculdades da mente, mas que ela não chegou a escrever.

Talvez por isso Tercio Sampaio Ferraz Jr., prefaciando a obra, que nasceu de tese de doutorado por ele orientada, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tenha afirmado que a justiça na obra de Arendt é “um não-tema”. Buscando apoio em textos anteriores e navegando pelo conjunto da obra de Arendt, Justiça em tempos sombrios nos apresenta a faculdade de julgar de forma oposta à tradição, ancorada na intersubjetividade, a partir do juízo reflexionante estético kantiano, de cujo pensamento Arendt, tão a sua maneira, se apropriou. Nesse sentido, o julgamento é uma faculdade que o pensamento libera, podendo ser desenvolvida, aprendida a partir da experiência e cuja validade, proporcionada pela mentalidade alargada, exige do julgador que assuma a posição de um espectador entre outros, cujas posições tem que considerar; os espectadores só existem no plural, vivendo num mundo de interdependência universal; para Arendt, a pluralidade é a lei da Terra.

Assim percebida, a faculdade do julgamento, para Christina, se traduziria na ponte entre o pensamento e ação, ou, se quisermos, entre a teoria e a prática, constituindo-se numa chave de leitura importante para a obra de Arendt. Daí o livro ocupar-se, em sua terceira parte, do próprio acusado. Como é sabido, Arendt percebeu em Eichmann sua impressionante superficialidade, uma ausência de pensamento, uma irreflexão que a deixou perplexa. Ela, que ao escrever Origens do totalitarismo havia tratado o mal que ali aparecera como radical, apresenta em Eichmann em Jerusalém a tese oposta, a tão célebre e frequentemente mal compreendida tese da banalidade do mal. Deparando-se com Eichmann, Arendt concluiu que apenas o bem pode ser radical, pois o mal não possui qualquer profundidade. Eichmann aparece como um exemplo da incapacidade de pensar que se espalha, de forma avassaladora, no mundo contemporâneo.

Entre o pensar e o agir, diz Christina, há um abismo, cuja transposição é complicada justamente porque o mal não é radical, de tal modo que “no fenômeno totalitário, quando os seres humanos se tornaram supérfluos, a sombra projetada por alguns […] ameaçou atingir toda a terra”.

Se a justiça é, como quer Hannah Arendt, e Christina Ribas ressalta, “a matter of judgment”, a importância da faculdade de julgar, tanto para a vida a vida contemplativa quanto para a vida ativa, torna-se imensa nas situações-limite, como aquelas que fizeram sua aparição nos períodos totalitários do século XX, mas que, a bem da verdade, se constituem em ameaças sempre presentes. Quando a Constitutio libertatis talvez nos falte, com o que poderemos contar? A obra procura compreender esse drama de nossos tempos, nas dobras de cujas sombras nos espiam imensas incertezas.

Odílio Alves Aguiar – Doutor em Filosofia pela USP, professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Ceará-UFC. E-mail: [email protected]

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Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt – ASSY (ARF)

ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva; São Paulo: Instituto Norberto Bobbio, 2015. Resenha de: DIAS, Lucas Barreto. Argumentos – Revista de Filosofia,, Fortaleza, n.14, jul./dez. 2015.

A interpretação de um pensamento talvez seja uma daquelas atividades da qual nunca se pode dizer ter chegado a um término. Mas a que fim se propõe o pensar? Se visado como possível de pôr fim a algo, não há qualquer fim, sua finalidade não se esgota, mas é sempre tema para um novo pensamento. Dizer que pensar é um constante repensar significa dizer que não há um ponto de chegada que o pensamento possa pretender alcançar. O que então, alcança o pensamento? Do que ele é capaz? Estas reflexões, próprias daquele tipo de vida que se acostumou chamar de contemplativa, podem soar dissonantes quando se tornam tema central de uma autora como Hannah Arendt, conhecida sobretudo por seus textos políticos. Talvez por isso seja pouco vista a utilização de sua última e inacabada obra – A vida do espírito – como bibliografia central para se interpretar o seu pensamento.

Ao se lançar a tal empreendimento sobretudo em razão das controvérsias geradas por Eichmann em Jerusalém, algo pode ser retido: a banalidade do mal (“conceito” que desponta na obra sobre o burocrata nazista) impulsiona Arendt a tentar compreender melhor o que ela chama de “plena capacidade de pensar” [thoughtfulness] em contraposição à “incapacidade de pensar” [thoughtlessness].

Porém uma das questões que surgem daí diz respeito a saber o que o pensar pode fazer para evitar o mal, não mais interpretado como radical, mas como fruto de uma banalidade. Antes mesmo, contudo, poder-se-ia ponderar: tem o pensar qualquer relação com os conceitos duais bem/mal? Pode o pensar nos guiar na vida prática? Há que se dizer que o debate sobre tal tema é por vezes evitado entre estudiosos de Arendt, isso porque frequentemente ou se cai em uma interpretação que beira a metafísica platonista em que o pensar guia o homem para o Bem, ou se nega qualquer possibilidade de o pensamento ter qualquer coisa a acrescentar- -nos acerca dos assuntos humanos. Falar sobre ética em Hannah Arendt, por conta disso, é provavelmente uma empreitada das mais escorregadias. O texto de Bethânia Assy, porém, traz algo que faltava à bibliografia brasileira sobre Hannah Arendt: uma interpretação que tem como foco central as questões éticas de seu pensamento presentes, sobretudo, nos escritos tardios de Arendt, sejam seus escritos decorrentes de seminários que ministrou e artigos acabados, sejam obras inacabadas, como no caso de A vida do espírito.

Dividido em cinco capítulos, os quatro primeiros parecem uma preparação que Bethânia Assy faz para o ponto central de sua interpretação presente no capítulo cinco: é possível uma ética que não derive seus princípios de ação de leis morais universais, mas que também não recaia em uma ética da impotência? Talvez seja esta a questão que toda sua obra tenta responder, porém como a própria autora formula primeiramente a questão:

minha preocupação é articular […] uma dimensão ética, cuja base remeta à visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas melhores intenções, transpareça a relevância ética da ação e da experiência (p.xxxvii).

Esta passagem da introdução nos remete diretamente para um dos maiores ganhos para as discussões sobre Arendt: a preocupação com o framework no qual se insere os conteúdos éticos do pensamento arendtiano, isto é, a busca por compreender o quadro teórico-metodológico que subjaz às suas concepções. Ainda que Bethânia não se dedique a explorar tais aspectos, ela ressalta recorrentemente a base fenomenológica das reflexões arendtianas de cunho existencial e hermenêutico.

A estratégia argumentativa se baseia em delinear o que Assy chama de uma “nova gramática ética” (capítulo 01) partindo das intuições que fizeram Arendt falar, em Eichmann em Jerusalém – da banalidade do mal como a incapacidade de pensar, para, aos poucos, sublinhar uma “Ética da visibilidade” (capítulo 02) que encontra suporte no texto arendtiano sobre a fenomenologia da vida contemplativa, A vida do espírito. Trata-se aqui, sobretudo, de sustentar a ética arendtiana tanto pela noção de aparência, quanto pelas atividades do espírito.

No entanto, embora Bethânia chame esta Ética da Visibilidade de uma ontologia política da aparência, seu principal enfoque não é a questão política, cuja eminência hermenêutica é tangencial. Dedica-se, inicialmente, às noções de responsabilidade pessoal/moral e responsabilidade política, postas em discussão no contexto da banalidade do mal e como posicionamento contrário à

teoria do dente de engrenagem”, a qual “postula que dentro de um sistema os sujeitos não agem como indivíduos, mas como engrenagens de uma máquina, de modo a tornar impossível atribuir-se individualmente qualquer culpabilidade moral ou legal. (p. 22).

Tal concepção tem como intenção não subsumir a culpa pessoal dos burocratas nazistas capazes da solução final, assim como sua responsabilidade coletiva, em uma falta de responsabilidade pessoal, como se desta última se derivasse uma impossibilidade de que suas ações e cumprimentos de ordens fossem julgados em tribunal.

É justamente para mostrar que tais indivíduos têm sim que ser julgados legalmente que Bethânia Assy, após expor o problema no capítulo 01, parte, em seguida, para considerações mais gerais acerca da noção de singularidade.1 É no segundo capítulo que se concentram os conceitos de Arendt mais vinculados à visibilidade, tendo como centro hermenêutico o conceito de aparência, este que é constantemente o ponto de partida e de chegada das discussões tanto relativas à vita activa quanto às da vida contemplativa. É nesse sentido que Assy compreende ser por meio do conceito de autoapresentação a melhor maneira de explicitar a formação da doxa em relação com a aletheia tendo em vista a singularidade com a qual aparecemos aos outros que compartilham o mundo conosco. Mostrando a reflexão arendtiana que não coloca doxa e aletheia como conceitos diametralmente distintos, o ganho, que Assy chama de epistemológico, resume-se a não repetir a perspectiva com a qual a tradição do pensamento ocidental pôs em lados opostos o chamado verdadeiro ser frente à mera aparência. Arendt, em A vida do espírito, nega à razão a possibilidade de se chegar à verdade, deixando ao campo fenomênico tal atributo junto também da possibilidade do falso. Isto confere ao mundo o estatuto de ser a base na qual tanto o verdadeiro quanto o falso aparecem, isto é, a verdade e a falsidade pertencem ambas ao domínio da aparência. Assim, ainda que a opinião não se identifique diretamente com a verdade, ela também não é reduzida meramente à falsidade.

A formação da doxa, no entanto, não pode prescindir da pluralidade humana, isso porque a própria apreensão das aparências por cada um de nós depende também do fato de que outros confirmam aquilo que meus sentidos percebem.

É justamente por a doxa se relacionar à aparência e sua apreensão depender de um contexto compartilhado com outros que confirmam a mim a aparência percebida – criando o que Arendt chama de sensação de realidade [reallness] – que Assy afirma que “a doxa é o própria significado ontológico da pluralidade no domínio das aparências.” (p. 47) o que nos levaria a uma “fenomenologia da ação política, […] [uma] valorização ontológica da experiência visível.” (p. 49) Bethânia afirma que de tais considerações acerca da doxa e da aletheia2 decorre uma dupla implicação para a ética que visa expor: 1) conferir à visibilidade o critério pelo qual as doxas de cada um são expostas aos demais, de modo que a ética passa a não ser enquadrada na “boa pessoa, mas, sim, em termos do que significa agir consistentemente e de forma responsável” (p. 50, 52) retirando a ética do domínio puramente do self, Arendt dá uma forte dimensão interpessoal à doxa e a põe no contexto do cidadão visível no domínio público.

O esforço de Bethânia, a partir disso, será o de analisar os papeis desempenhados pelas três atividades do espírito na formação da doxa e como isso se reflete no campo dos assuntos humanos, mas, com ênfase maior, na ética. Bem se sabe que o modelo que Arendt elege para a figura de pensador é Sócrates, personagem que também figura de maneira central em suas discussões sobre ética.

Frente a isso, Bethânia define três tópicos que considera como principais na discussão entre a faculdade de pensar e a Ética: a) pensar como espanto; b) pensar como consciência de si; e c) pensar em sua relação com a faculdade de julgar e com a doxa. Esta maneira de compreender a atividade de pensamento nos conduz a uma forma de entendê-la como um modo de vida, isto porque é um pensar cônscio de ser sempre vinculado a um mundo, isto é, aquilo que Taminiaux denominou de “paradoxo do pertencimento e da retirada”. Embora se retire do mundo das aparências para efetuar o diálogo da alma consigo mesma, o pensador não deixa de ser uma aparência entre tantas outras. Além do mais, no pensamento o homem é capaz de encontrar, se não uma pluralidade, já uma dualidade que representa que mesmo a atividade considerada como a mais solitária não é realizada por um self puro, mas indica o significado originário da palavra reflexão: tal qual me divido em dois em um reflexo meu em um espelho, me divido em dois ao pensar. O espanto frente a um acontecimento exige minha retirada do mundo para pensá-lo, decisão que me faz dividir-me em dois e me torna cônscio de mim mesmo, preparando espaço para o juízo e, assim, à formação da doxa frente ao que me aparece, ao dokei moi.

É disso que Assy irá aos poucos dar um passo importante em sua interpretação sobre a ética arendtiana, formulando aqui uma primeira versão que denomina de uma “ética de emergências”, ou, ainda, de uma “ética de não participação.” (p. 73) que Arendt – em Basic Moral Propositions – chama de uma ética da impotência (p. 86). Ainda que em uma versão preliminar do pensamento ético de Arendt, já temos aqui uma contraposição ao normativismo ético e às duas perspectivas éticas da filosofia continental: a procedimentalista e a comunitarista. Não se trata aqui de criar uma teoria moral, seja com pretensões de alcançar princípios universais, seja visando constituir uma comunidade de valores. (p. 100-101). A ética da impotência pode ser caraterizada como “uma ética desprovida de prescrição.” (p. 103), ela não demanda o que fazer, mas apenas indica um ‘parar e pensar’. Daí Bethânia assinalar como propriedades-chave do pensamento os critérios de consistência e de pluralidade, ambos compreendidos a partir do modelo socrático de pensar. A pluralidade, ainda que primária, provém no pensamento do dois-em-um, do diálogo da alma consigo mesma, onde Arendt põe o questionamento de “com que eu gostaria de conviver”? Tal questionamento demanda a consistência do pensar com o agir, afinal, “gostaria eu de conviver com um assassino”? É justamente neste sentido que o pensar não origina uma teoria prescritiva da moral, mas é, ao menos, capaz de incapacitar o sujeito que pensa de realizar uma ação que o tornaria incapaz de conviver consigo mesmo.

Dados tais aspectos, Bethânia inicia em seu quarto capítulo uma investigação que tem como objetivo compreender como o indivíduo decide como agir.

Talvez seja esse o ponto mais controverso do texto. A controvérsia não é à toa, afinal, os problemas acerca da faculdade da vontade em Arendt se tornam complicados de serem tratados se lembrarmos que em seus textos políticos ela critica as concepções que conferem à Vontade a característica de ser o órgão mental que produz a liberdade. Porém, como bem pontua Assy, um dos maiores ganhos com a discussão de Arendt sobre a Vontade é trazer de modo forte a contingência como cerne do argumento.

Embora não resolva efetivamente os percalços da relação entre a liberdade compreendida como proveniente da vontade e sua relação com a liberdade política, Bethânia Assy dá um passo importante para a discussão. Isso porque, segundo a intérprete, compreender aqui a contingência relativa à vontade significa compreender a factualidade presente já nessa faculdade, pois “a contingência implica inevitavelmente em factualidade.” (p. 123). Se lembrarmos de como Arendt interpreta o conceito de aparência, a importância de trazer à faculdade do espírito o elemento de contingência se torna latente junto à sua factualidade. A contingência assume, diferente do que costumou ser interpretada na tradição, um aspecto positivo e ativo, pois “não se define como mera privação, deficiência ou acidentalidade”, isto é, “a contingência é um modo positivo de ser.” (p. 123). É justamente este o ponto que Bethânia usa para reforçar o argumento central de tal capítulo: a “de que neste atributo da vontade, de agir ou não agir, se assentaria o fundamento ontológico da liberdade política.” (p. 124). Para tanto, Bethânia assenta tal assertiva não com o intuito de afirmar ser a liberdade da vontade já uma liberdade política, mas que o fundamento da liberdade política se encontra na capacidade da vontade de decidir algo novo. Sabe-se largamente que um dos principais conceitos políticos de Arendt é o início, isto é, a capacidade proveniente da natalidade que o homem tem de começar algo novo, de trazer novidade, deste modo, para Assy, “assim como a ação anuncia o milagre da natalidade na vita activa, a virtude criadora da vontade anuncia o milagre da natalidade na vita contemplativa.” (p. 130), isso para poder afirmar que “nossa faculdade de querer nos impele, de certa forma, à ação” (p. 131).

A vontade, nessa compreensão, é o fundamento não-político da liberdade política e “adquire uma dimensão ética mais direta que a atividade de pensar” (p.132), pois dela decorre o que Bethânia chama de uma ética da responsabilidade, ou seja, um passo à frente da ética da impotência. Isso, claro, não significa que qualquer prescrição normativa provenha da vontade, a negatividade da ética compreendida pelo pensar não dá espaço para a criação de princípios morais, mas, agora, por meio do querer, é capaz de legar à ação a dimensão da natalidade. A promessa, junto ao amor mundi, são, a partir disso, vistos como aspectos que atrelam a vontade à responsabilidade pessoal, pois, segundo Arendt, enquanto o Pensar se relaciona com o passado sob a forma de memória, o Querer se relaciona com o futuro. A promessa é a maneira pela qual Arendt vê a possibilidade de se comprometer com o mundo e com o outro. Junto a isso, a Vontade também diz respeito ao modo pelo qual cada um se individua, isto é, a singularização de cada um de nós, a decisão de quem eu decido ser e que responsabilidades eu assumo ao mostrar-me.

Porém, a formação da doxa não é efetivamente executada pela faculdade da vontade, assim como permanece incompleta através do pensar, visto não ser ainda uma doxa capaz de expor um posicionamento positivo por meio do pensamento, mas apenas negativo, a ética da impotência, tendo apenas uma parcela de positividade proveniente do Querer efetuado pela vontade, que nos legou o princípio de uma ética da responsabilidade. A hipótese anunciada já na introdução por Bethânia é a de que “as atividades do espírito […] não conduzem a juízos determinantes, à boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais autônomas” (p.xxxiii), sendo, por isso, necessária uma interpretação que ultrapasse tais questões em vistas de uma “ética de responsabilidade pessoal […] ligada à visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez, estão associadas ao cultivo de um éthos público”, o que nos leva a tentar entender “como o sujeito se singulariza na comunidade política.” (p.xxxiv). Tais pontos, embora apareçam tangencialmente nas demais atividades do espírito, só encontram morada hermenêutica na faculdade de julgar.

Em seu último capítulo, Bethânia tem como preocupação chegar a uma ética da responsabilidade baseada em figuras que por vezes são postas como excludentes: o ator e o espectador. A teoria do juízo arendtiana é aqui compreendida como a possibilidade de não se recair na normatividade ou no puro agonismo, leituras feitas por Benhabib e Villa. Cabe tanto ao espectador quanto ao ator a capacidade da mentalidade alargada, o ser capaz de pensar simulando os olhares de outros, assim como a capacidade de pensar por si mesmo. É assim que certas noções de Arendt ganham destaque aqui:

o prazer desinteressado, […] a mentalidade alargada, o sensus communis como o cultivo de sentimento público, a estreita ligação entre aletheia e doxa, a validade exemplar […] e a questão da companhia”, isto é, o “com quem desejo ou suportaria viver junto? (p. 145).

Em diálogo constante com a terceira crítica kantiana, Assy, então, esmiúça a teoria do gosto com a intenção de superar o egoísmo a fim de “conduzir-nos a uma dimensão afetiva comum” para “elucidar a pluralidade de nossos juízos” (p. 149), os quais, assim, liberados do mero interesse privado, podem se dar através de um interesse desinteressado. Tal tomada de postura possibilita a cobrança aos outros desta mesma maneira de julgar, não, com isso, buscando uma validade universal, mas, sim, geral. Trata-se de julgar “o mundo em sua visibilidade e na comunalidade dos afetos.” (p. 157) sem com isso pretender se chegar a qualquer juízo consensual universal. O gosto não se reduz a uma mera preferência subjetiva, mas provém de uma sensação de prazer acerca de algo que aparece aos demais e que será por eles alvo de aprovação ou desaprovação. Dada a possibilidade de ser julgado pelos demais que compartilham um mesmo espaço de aparência, Assy sublinha como critério da (des)aprovação tanto a comunicabilidade como a publicidade.

O interessante aspecto que aparece neste ponto do texto é o de incutir, ainda que talvez não propositalmente, uma caraterística do pensamento hermenêutico de Arendt: a admiração que se segue à aprovação de um juízo de gosto expresso é capaz de realizar um ajuste à vida social; esse ajustar-se se vincula não ao conhecimento de propriedades do que é admirado, nem à publicidade fenomenicamente cognoscível, mas porque o acesso a um senso público faz aparecer o meio intersubjetivo no qual a doxa se forma, como diz Bethânia: O prazer ou desprazer que um juízo reflexivo evoca não se arbitra meramente pela sensação imediata de satisfação ou insatisfação, e sim à medida que aprovamos ou desaprovamos nosso deleite, à medida que nosso prazer/desprazer se apropria do interesse público. (p. 165).

O que é relevante aqui é o significado/sentido que provém do prazer/desprazer, não de uma cognoscibilidade objetal, e embora o conhecimento empírico seja também mediado pela pluralidade, é o sentido de como se é afetado por algo que tem relevância para a comunidade ético-política, daí a importância do sensus communis, o sentido intersubjetivo que nos auxilia a nos ajustar à vida compartilhada.

Por fim, gostaria de comentar a fenomenologia da exemplaridade, tal como nomeada por Assy e que serve como fechamento de sua interpretação, ao acrescentar a denominação de a ética arendtiana ser uma ética da experiência. Após a breve passagem de uma ética da impotência tendo em vista a ética da responsabilidade, por em relevo a experiência e o papel do juízo – após se sublinhar os papeis do pensar e do querer – para a formação da doxa serve como modo de dotar a ética aqui, sem cair em prescrições ou normas, de uma dimensão positiva.

Na escolha de “com quem gostaria de viver”, o outro critério a ser acrescido à validade geral é o da validade exemplar e seu atrelamento às experiências. Junto à mentalidade alargada em que torno presente para mim as considerações dos outros, penso neles sobre o signo da exemplaridade a partir das preferências públicas, isto é, junto ao exemplo se soma o interesse desinteressado, o interesse pelo bem comum, a preocupação pelo mundo: o amor mundi.

É assim que, para Bethânia Assy, em Arendt se é capaz de desenvolver uma teoria ética que é chamada pela intérprete de uma teoria crítica do juízo baseada em um juízo político dos afetos comuns. É este comprazimento com o mundo comum e o ajuste pelo sensus communis à pluralidade humana que Bethânia defende uma ética da responsabilidade que se vincula, pelos afetos comuns, a um sentimento de justiça ou injustiça, e não há associação massiva a eventos que vão de encontro à pluralidade e à dignidade humana que libere o homem de sua responsabilidade pessoal. A experiência nos propicia pensar, julgar e direcionar nossa vontade para a ação. A teoria ética de Arendt ganha um ótimo ponto de apoio e discussão com esta obra de Bethânia Assy.

Notas

1 Tal estratégia visa preparar o terreno para os três últimos capítulos, os quais seguem a estrutura na qual A vida do espírito deveria ter sido escrita caso Arendt não tivesse falecido: o primeiro versa sobre o pensar, o segundo, sobre o querer, e o terceiro, sobre o julgar.

2 Bethânia, todavia, dá enfoque aqui a uma dimensão mais epistemológica do que fenomenológica. Tal compreensão não parece ser condizente com o texto de Arendt, sobretudo porque parece não dar espaço para uma das principais distinções conceituais de A vida do espírito e que perpassa toda a obra arendtiana: a diferença entre Pensar e Conhecer que serve como base para o desmantelamento das falácias metafísicas.

Reduzir tais aspectos a uma epistemologia parece tender para a indistinção entre a cognição e o pensamento, levando a uma perda não apenas a nível conceitual e filosófico, mas, sobretudo, às características éticas e políticas.

Lucas Barreto Dias – Doutorando do Programa em Pós-graduação da UFMG. Professor da Faculdade Católica Rainha do Sertão. E-mail: [email protected]

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Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (RFA)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: MELLEGARI, Iara Lúcia. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.917-924, jul./dez, 2014.

Hannah Arendt é uma importante e polêmica pensadora política contemporânea. Sua obra pode ser compreendida como uma resposta ao que ela considerou o problema mais crucial do seu tempo, o fenômeno totalitário. Esse evento, sem precedentes históricos, teria ocasionado, segundo ela, uma ruptura com a tradição filosófica, uma vez que colocou em questão os critérios morais e políticos tradicionais para opor-lhe “antídotos eficazes” (DUARTE, 2000, p.25). Arendt constatou, nesse evento, a instauração de uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização burocrática de massas, no terror e na ideologia, que demandava uma extrema dificuldade de compreensão, em razão da lógica de paradoxos contida em sua estrutura. Movida pelo sentimento de compreender o que teria possibilitado a ocorrência de tal fenômeno, era preciso repensar toda a tradição no sentido de encontrar os recursos teóricos que permitissem sugerir algumas alternativas políticas à catástrofe totalitária.

Contudo, à diferença da maioria dos filósofos, ela não se preocupou em elaborar um sistema teórico rígido, inflexível. Sua teoria política, como um todo, defende a importância da diversidade de opiniões e procura evitar a repressão do livre intercâmbio das ideias, comum em governos totalitários. Por isso, ao enfatizar a importância de perspectivas novas e diferentes que surgem continuamente no mundo, sua teoria é um constante esforço em entender a multifacetada natureza da vida política.

Mencione-se, ainda, que distintamente de renomados filósofos de seu tempo, que usavam uma linguagem tipicamente filosófica, Arendt era uma escritora de linguagem clara que, com frequência, escrevia para o público em geral, não se restringindo aos leitores do mundo acadêmico, tornando, assim, muitas de suas ideias apreciáveis pelos recém-chegados ao seu pensamento. Entretanto, por ser uma escritora extremamente fértil, que tratou de diversos temas, é quase impossível a compreensão rápida da visão do seu pensamento (FRY, 2009, p.11) Nesse sentido, Adriano Correia propicia com seu livro, Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, um importante instrumento de auxílio para a compreensão da teoria política de Arendt, passando, assim, a fazer parte do elenco daqueles autores cujas obras tornam-se leitura indispensável para quem deseja conhecer e, sobretudo, entender o pensamento arendtiano.

O livro que ele nos apresenta, composto de oito capítulos, em suas duzentas páginas, trata com muita propriedade de temas fundamentais da teoria política de Hannah Arendt. Com erudição e muito fiel ao espírito arendtiano, examina questões como o liberalismo e a prevalência do econômico; a biopolítica; a diluição da distinção entre a esfera pública e a esfera privada com a consequente ascensão do social; o conceito de poder; as análises das Revoluções Modernas sob o prisma da liberdade política, tão cara a Arendt; os sistemas de conselhos; entre outros. Mas o foco principal do livro são os temas da alienação e perda do mundo, e a vitória do animal laborans, reflexões centrais de Arendt em sua obra A Condição Humana. Preocupada com a desestabilização do mundo e com o progressivo desinteresse do homem moderno pela ação política, ela propõe, em A Condição Humana, “refletir sobre o que estamos fazendo” (ARENDT, 2008, p.13). A hipótese geral de Correia é que o movimento final dessa obra de Arendt, notadamente no que concerne ao que ela denomina a “vitória do animal laborans”, conserva seu vigor para uma critica do presente, e que certos fenômenos, a exemplo da prevalência do consumo cada vez mais intenso na definição das formas de vida, fazem parte do movimento de alienação do mundo (CORREIA, 2014, p.XXX).

Na era moderna, ocorre o que Arendt entende por alienação de mundo, na medida em que a tecnologia, o progresso científico e a introspecção, conjugados com o primado do trabalho, acarretarão a perda do senso comum. A alienação acontece em duplo sentido: tanto no do abandono da Terra, desencadeado a partir da invenção do telescópio, que impulsionou a conquista do espaço e descobertas para além dos limites da Terra, quanto no da alienação do homem para o interior de si mesmo, iniciada por Descartes, que teria aberto o caminho para uma relação intrínseca entre certeza e introspecção, sendo levada a cabo pela Reforma Protestante “na sua alienação em direção a um mundo interior, coroando a desterritorialização com a universalização do indivíduo humano enquanto ser racional” (CORREIA, 2014, p.46). Arendt chama a atenção para o fato de que, nesse cenário moderno, a ação humana não ocorrerá mais no campo político, mas no âmbito técnico-científico e na crescente esfera social, ditada pelas necessidades privadas. Correia perpassa, com acuidade, o percurso arendtiano que conduzirá à perda de mundo e à vitória do animal laborans, que vão se operar, na visão de Arendt, na articulação entre a condição humana, o surgimento da sociedade e a prevalência de uma mentalidade atrelada ao mero viver por meio do trabalho e do consumo (CORREIA, 2014, p.71).

Animal laborans é a expressão utilizada por Arendt para designar a condição humana, cujas atividades correspondem ao processo biológico do corpo humano, no qual o crescimento espontâneo, o metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades do processo vital. Tal atividade, presa ao ciclo da natureza, não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade natural de sobrevivência, de modo que o homem nessa condição não passa do animal humano. Distintamente, a condição humana do trabalho, correspondente à atividade do homo faber, relaciona-se à fabricação, ao artifício humano que constrói coisas que servem de uso para os homens, traduzindo, por sua vez, a capacidade propriamente humana de edificação de mundo. Corresponde, assim, à condição humana da mundanidade, na qual é possível reconhecer vidas individuais e não apenas a vida da espécie (CORREIA, 2014, p.87). Nessa atividade, bem observa Adriano, não se trata mais de sintonizar o ritmo da existência ao ritmo da natureza, como naquela do animal laborans, mas de dispor da natureza para extrair dela material para a edificação do mundo. O homo faber, portanto, já vive uma vida humana, mesmo que não na plenitude de suas potencialidades, uma vez que esta somente será alcançada no mundo politicamente organizado, no qual a aparição das singularidades, por meio da ação e do discurso, promove o intercâmbio das diferentes perspectivas que constituem o sentido do mundo (CORREIA, 2014, p.88). A ação é, pois, para Arendt, a única atividade política por excelência, uma vez que ela é exercida diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens — e não o homem — habitam o mundo. Dessa forma, a pluralidade é a condição específica de toda a vida política (ARENDT, 2008, p.15).

Entretanto, o moderno movimento em direção à desqualificação da vida contemplativa, na passagem da ordem do Ser para a do Conhecer, associada à inversão de posições entre a ação e a fabricação, resultará na vitória do animal laborans sobre o homo faber. Ditado pelo progresso e impelido pelo avanço da tecnologia em um mundo capitalista em ascensão, o engenho do homo faber será canalizado para o ciclo produtivo, no qual a exigência do desejo de consumo e de produção se ampliará com uma velocidade ímpar, fazendo com que a condição do homo faber, de sujeito do processo de produção, transforme-se em instrumento desse processo. O animal laborans, na medida em que incorpora a engenhosidade do homo faber, vê ampliado o horizonte de suas necessidades e carências, bem como o da sua produtividade, por intermédio da divisão do trabalho e da mecanização. Com a emancipação do trabalho proporcionada pelo homo faber, o animal laborans, transfigurado pelo uso da técnica, vai promover constantemente “o crescimento artificial do natural”. Nesse movimento, labor e consumo voltados para a sobrevivência e satisfação seguirão um ao outro em um processo contínuo e serão apenas dois estágios do ciclo incessante da vida biológica. Assim, os ideais de permanência, estabilidade e durabilidade do homo faber serão vencidos pelo ideal de abundância, que o animal laborans compreende como felicidade (CORREIA, 2014, p.97). Correia elucida como o conceito de processo foi devastador para uma atividade que extrai o seu sentido da relação meios-fim. A diluição da fronteira entre uso e consumo e a consequente ilimitabilidade de um consumo desatrelado das necessidades vitais imediatas, em um “modo de vida” artificialmente natural, promove a desertificação do mundo do homo faber de modo análogo ao do terror, no âmbito da dominação totalitária, com o mundo comum do homem de ação (CORREIA, 2014, p.103).

Na concepção de Arendt, o princípio da utilidade que prevalecia nos primórdios da modernidade, cuja condição de meio servia para a produção de coisas no mundo, foi substituído pelo princípio da felicidade, representado pela priorização da produção e consumo. A redução do espaço público pela conquista de interesses dessa natureza e o desaparecimento das atividades propriamente políticas da ação e do discurso abriram caminho para dominações totalitárias, que são a ausência de política. A promoção de uma vida radicalmente antipolítica — aquela do trabalhador consumidor — fomentou essa dominação. Por essa razão, Arendt é contra e nunca acreditou no liberalismo. Ao defender a liberdade em seu sentido negativo — como não impedimento — o liberalismo separa a liberdade da política, concepção que se opõe ao conceito de liberdade defendido por Arendt, que pensa a liberdade como um fenômeno eminentemente político, representado pela ação livre dos indivíduos no espaço público.

A vitória do animal laborans, segundo Arendt, está relacionada à promoção do trabalho decorrente do advento social, quando o antigo abismo entre o restrito domínio do lar e o elevado domínio político foi progressivamente preenchido por uma “organização pública do processo vital”. Com a diluição da divisão entre a esfera privada e a pública, as questões sociais e interesses privados adquirem relevância pública, ou seja, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamentos, uma vez que se impõem “inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, de modo a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária” (ARENDT apud CORREIA,. 2014, p.89). Nessa perspectiva, a vitória do animal laborans, não coincide com “classe social” alguma, mas com uma “mentalidade”, ou ainda, na indicação de Correia, com um paradoxal “modo de vida” extraído das condições do mero viver. Por isso, para compreender a relação entre economia e política na era moderna, é preciso atentar para esse outro sentido da expressão animal laborans como “modo de vida”, assim como no do produto de uma sociedade atomizada.

A ascensão do social e a prevalência do econômico no espaço público têm como resultado a redução da ação política livre, que passa a ter como foco a administração de questões oriundas da esfera privada. Isso destoa da concepção de política de Arendt, pois para ela uma ação genuinamente política não envolve questões de natureza social ou econômica, uma vez que estas estariam restritas aos assuntos do âmbito privado. E aqui surge uma questão polêmica na teoria de Arendt, que Adriano Correia enfrenta com muita honestidade: a dificuldade da filósofa “na compreensão dos vínculos estreitos entre economia e política no âmbito do capitalismo” (CORREIA, 2014, p.100). Apesar de reconhecer nas questões sociais as necessidades dos mais pobres, Arendt não deixa claro qual o mecanismo ou o procedimento pelos quais essas questões seriam admitidas no domínio político sem provocar a sua ruína ou se converter em uma usurpação do espaço público por interesses privados. De forma coesa, Adriano promove um diálogo com os críticos de Arendt, visando elucidar tais problemas.

Nesse contexto, a política se transforma em biopolítica, uma vez que suas atividades voltam-se exclusivamente ao gerenciamento de questões relativas à sobrevivência da vida em suas necessidades biológicas e de consumo. Tema que Correia aborda sob a ótica das teorias de Arendt, Foucault e Agamben, traçando as proximidades e distâncias entre esses autores. Nesse sentido, lembra as reflexões de Michael Foucault ao apontar o processo por meio do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica:

por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente (AGAMBEN, 2004, p.11).

Para Foucault, a sociedade civil torna-se o correlativo da tecnologia liberal de governo, pois na medida em que o soberano, pautado pela tese liberal de que o Estado deve manter distância da economia, ele não pode governar o homo economicus. Por essa razão, a governabilidade só pode ser garantida no campo da sociedade civil. As conclusões de Correia sugerem que Foucault e Arendt, ainda que por caminhos argumentativos distintos, julgam que a modernidade pode ser compreendida politicamente como o primeiro período na história em que o mero estar vivo assume relevância política e é alvo da gestão estatal.

Em sua parte final, após tratar do conceito de poder em que articula um diálogo com a concepção de Arendt e Habermas, o livro trata de questões como a liberdade política, direitos humanos e o sistema de conselhos, capaz de proporcionar a participação de todos os cidadãos na vida política. A questão da liberdade, aqui tratada, está inserida no contexto das Revoluções Modernas, principalmente a americana e a francesa, as quais Arendt analisa destacando suas diferenças, seus aspectos comuns positivos e seus fracassos. Tomando como ponto de partida a afirmação “a tradição revolucionária e seu tesouro perdido”, feita por Arendt em Sobre a revolução, bem como sua concepção de que a liberdade política só pode significar a efetiva participação no governo, Adriano Correia vai reconstruir o pano de fundo dessas convicções, examinando, sobretudo, os vínculos entre liberdade, engajamento e participação (CORREIA, 2014, p.175). Como um ponto comum entre as revoluções, cita que em ambas a ideia central da revolução é a de fundação da liberdade, isto é, a “fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer” (ARENDT apud CORREIA, 2014, p.179). Um de seus fracassos, contudo, estaria relacionado à sua incapacidade de converter em forma de governo a experiência do sistema de conselhos, vale dizer, “um novo espaço público para a liberdade que se constituía e se organizava durante o curso da própria revolução” (CORREIA, 2014, p.206). Esse novo tipo de organização política permitiria eventualmente a todos os cidadãos participar ativamente do governo.

A despeito de todas as razões e dificuldades, que segundo Arendt impediram a efetivação plena do espírito revolucionário, ela nunca duvidou da capacidade de resistência à opressão. Nesse sentido, Correia observa que “os movimentos recentes em várias partes do mundo em grande medida reverberam a convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além das demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenham delas” (CORREIA, 2014, p.195). As análises e interpretações efetuadas por Adriano Correia trazem à luz e revelam a atualidade do pensamento de Arendt, e reavivam a promessa de que a liberdade pode ser restituída como uma experiência política e se afirmar em oposição à prevalência de uma vida que não almeja sair do estrito âmbito da satisfação das necessidades.

Referências

AGAMBEN, G. Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. Tradução de H. Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

CORREIA, A. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

DUARTE, A. O Pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

FRY, K. A. Compreender Hannah Arendt. Tradução de Paulo Ferreira Valério. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

Iara Lúcia Mellegari – Doutoranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (ARF)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: JOSINALDO, Cícero. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

No livro Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira, Adriano Correia se propõe a percorrer com Hannah Arendt as distinções conceituais que operam como um dos principais expedientes metodológicos em sua reflexão política. Particularmente no que concerne à sua relação crítica, mas também ambígua com a modernidade. Para explicitar a acuidade e a relevância do procedimento de distinção conceitual assumido por Arendt, sem descurar, no entanto, do exame crítico de sua reflexão política (exemplificada na abordagem da “questão social”), importa para Correia considerar tanto as distinções mais sutis quanto os desdobramentos de certas equações negligentes. E isso sob a aposta no “vigor heurístico” da análise arendtiana acerca “mundo moderno”, em parte instituída por este procedimento.

No prólogo, sob o título “A necessidade de conhecer”, Correia começa por registrar o decisivo distanciamento que Hannah Arendt procurou manter da filosofia política tradicional no bojo da qual, exceto por algumas exceções, desde Platão, sob o impacto da morte de Sócrates, resta “o desconforto dos filósofos com a pluralidade, a fala persuasiva e o modo de vida ativo” (p. XII). O autor lembra que apenas muito recentemente, no ambiente de hostilidades políticas sem precedentes que marcam o século XX, Arendt teria detectado um tipo de interesse filosófico pela política, particularmente distinto das inquietações que desde Platão configuraram uma tradição filosófica. O aspecto marcante do novo interesse filosófico pela política foi o fato de que, mobilizado por certos acontecimentos avaliados como crises da civilização no século XX, incitou a reabilitação do vínculo entre pensar e agir. No registro de Adriano Correia, a interpretação de Arendt de que isso equivale à renúncia do filósofo ao papel de sábio no trato com a política, tem em conta a oportunidade criada pelo fenômeno para reavaliar as concepções tradicionais à luz de certas experiências e condições humanas básicas que a filosofia hostilizou.

Por sua parte, com a crise da tradição metafísica que procurava extrair as razões últimas dos fenômenos, conferir-lhes sentido ou “salvá-los”, a filosofia moderna se concentrou em revelar suas forças ocultas na conexão que mantêm com os processos do conhecer. Expediente moderno que lança os fenômenos numa profunda carência de sentido, e esta, por consequência, na falta de dignidade própria. Tal maneira moderna de “salvar” os fenômenos, “esta falta de jeito para lidar com o particular teria consequências políticas desastrosas para a capacidade de compreender, notavelmente em tempos sombrios” (p. XVII).

Daí que, como nota Correia, contra a falta de jeito da modernidade para lidar com a singularidade e a contingência, Arendt proponha “exercícios de pensamento político”: o exame dos acontecimentos ou o compromisso de “pensar o que estamos fazendo” (conforme Correia, a insígnia articuladora do pensamento de Arendt) que mediante tentativas, isto é, de forma ensaística, começa por suspender a questão da verdade, particularmente assumida como os pressupostos fundamentais e incontestados da tradição, em especial os que sucumbem à novidade dos eventos em categorias ou processos gerais e abrangentes, como se a história fosse um processo fadado a repetições.

Se o pensamento é provocado pela experiência, o empenho em compreender que a ela segue articulado, não se vê amparado por certas categorias tradicionais. Antes admite a “precariedade” e a condição da compreensão ensaística que opera por tentativas, consoantes aos fenômenos de onde parte para articular significativamente as experiências que se vivencia. Entre outros meios, foi por uma espécie de “fenomenologia genealógica” (p. XXII) complementada pela distinção conceitual, segundo Correia, que Arendt se lançou ao desafio de “pensar sem corrimão” (para usar uma expressão que lhe é bastante cara); de pelo testemunho da linguagem reencontrar nos fenômenos o sentido das experiências humanas, e assim resistir à inclinação a submergi- -las em “mais do mesmo.” No capítulo um, sob o título “Vícios privados, prejuízos públicos”, Correia, na companhia de Arendt, problematiza o “privatismo burguês” prenunciado na obra A fábula das abelhas de Bernard Mandeville, efetivamente consolidado pelo Imperialismo e mobilizado pela organização nazista do terror.

Antes de explorar diretamente a hipótese anunciada no título do capítulo (e de acordo com a proposta geral de seu livro), o autor reconstitui a distinção conceitual no horizonte da qual, na interlocução com Carlton Heynes, Hannah Arendt considera fundamental refletir acerca das condições subjacente ao agenciamento totalitário das massas: Hannah Arendt julga indispensável à compreensão desses fenômenos evidenciar as distinções entre a ralé, as massas e o povo, principalmente para indicar a novidade representada pelo surgimento das massas. A ralé “é fundamentalmente um grupo no qual são representados os resíduos de todas as classes” e “é isto que torna tão fácil confundir a ralé com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais”. Não obstante, julga que as distinções são suficientemente agudas para serem desconsideradas, e a principal é que enquanto nas grandes revoluções o povo luta por um sistema que de fato os represente, a ralé sempre clama pelo “homem forte”, pelo “grande líder”. Enquanto o provo, por meio das revoluções e das pressões por reformas nos regimes políticos, busca fazer-se representado no sistema político, a ralé tende a desprezar o parlamento e a sociedade dos quais está excluída, aspirando, em sua atração por movimentos que atuam nos bastidores, por decisões plebiscitárias e ações extraparlamentares. (p. 6).

Na trilha das distinções arendtianas, Correia enfatiza que o engajamento das massas mediante a organização dos líderes emergidos da ralé teve como pano de fundo o colapso do sistema partidário numa Alemanha assolada pela derrota militar, o desemprego e a inflação. E por isso tendo de lidar com o desespero das massas, “uma turba de indivíduos unidos unicamente pela convicção de que os partidos e seus líderes eram perniciosos e desonestos” (p.10). Daí que a mobilização totalitária das massas por líderes da ralé, não signifique, como destaca o autor, a saída da indiferença ou o despertar dos interesses por questões públicas, mas antes a canalização da ira contra aqueles que no sistema partidário se passavam por seus representantes políticos.

Ao reiterar com Arendt que os líderes das massas provinham da ralé, como ilustram os casos Hitler e Stalin, e que o partido nazista era quase que exclusivamente constituído por desajustados, Correia examina o interesse peculiar de Arendt no caso de Eichmann. Himmler, que em suas palavras “‘era mais normal’, mais filisteu do que qualquer outro chefe do partido. Distintamente de toda sorte de pervertidos que se toraram líderes no regime totalitário” (p.13). Himmler tipifica o “privatismo burguês” que ele mesmo teve em conta ao organizar o sistema nazista de terror. Zeloso para com os deveres de pai de família, na fidelidade à esposa e na proteção e garantia de um futuro decente aos seus filhos, Himmler concebeu uma organização burocrática cuidadosamente estruturada para absorver a solicitude do pai de família na organização de tarefas quaisquer que lhe fossem atribuídas, e para dissolver a responsabilidade pessoal em procedimentos de extermínio em que o perpetrador de um assassinato era apenas a extremidade de um grupo de trabalho. (p. 13).

Adriano Correia explora, enfim, a consagração que na falta de uma palavra melhor, Arendt nomeia do tipo “burguesa” aos interesses privados. O homem de massa que Himmler mobilizou para a perpetração dos maiores crimes da história, se aproximava menos da ralé do que do filisteu, disposto a tudo sacrificar em nome de seu “privatismo burguês”.

Ainda no contexto da temática esboçada no capítulo anterior, o segundo capítulo, intitulado “O liberalismo e a prevalência do econômico”, examina o movimento que vai da emergência à consagração filosófica das teorias éticas, políticas e econômicas do “egoísmo”, a saber, as teorias utilitaristas, que tanto para Arendt quanto para Foucault encontram no liberalismo sua mais vigorosa expressão. Antes de retraçar a avaliação que (para dizer de um modo bastante geral e esquemático) Arendt e Foucault têm em comum acerca do liberalismo como prevalência do econômico sobre o político, Correia faz notar que não parece ser coincidência o fato de a este respeito tais autores estabelecerem uma interlocução crítica com David Hume, particularmente acerca da obra Uma investigação sobre os princípios da moral.

Quando no âmbito de suas distinções conceituais entre trabalho e fabricação Arendt identificou a vitória moderna do animal laborans, isto é, do trabalhador- consumidor sobre o construtor-utilizador (que ela chama de homo faber), detectou na “revolução” da teoria ética utilitarista de David Hume, com que Jeremy Bentham concebeu “o cálculo dos prazeres”, um momento decisivo de ascensão do princípio da vida sobre o princípio de utilidade e o mundo. Pois o critério supremo das ações ou a “felicidade” de que fala Bentham, no fim das contas definida como a busca do prazer, é a mais autêntica expressão filosófica da instrumentalidade do animal laborans. Seu critério de utilidade, a subordinação de tudo ao processo vital, é totalmente desconexo e alheio ao mundo em que está situado.

Igualmente fundado sobre o princípio do interesse próprio, embora deslocado para o âmbito coletivo do domínio social, o liberalismo constitui a forma coletivizada do egoísmo, que nem por isso assume o caráter de interesse público.

O decisivo para Arendt, como enfatiza Correia, é que essa forma coletivizada do interesse individual representada pelo liberalismo, e cuja insígnia é a própria prevalência do econômico sobre o político, confira à vida mesma, à vida coletivizada como processo a ser mantido, incentivado e gerido, a distinção de critério supremo do empenho político.

Quanto a Foucault, o autor pontua que a menção àquilo a que Hume é citado por Arendt tem em vista seu esboço para a história do homo oeconomicus, compreendido como a história econômica do sujeito de interesses cuja mecânica, dada a sua heterogeneidade constitutiva, é intransfigurável ao plano jurídico-político pela figura fundadora do contrato:

O homo oeconomicus caracteriza-se justamente, na análise do empirismo e da economia nascente, como um sujeito de interesse cuja ação egoísta, multiplicadora e benéfica, é valorosa na medida mesma em que intensifica o interesse próprio. Com isso em vista, Foucault indica o quanto o homo oeconomicus não apenas não se deixa transfigurar na imagem do homo juridicus como também lhe é inteiramente heterógeno. O liberalismo constitui-se assumindo como pressuposto essa heterogeneidade, ou a “incompatibilidade essencial entre, por um lado, a multiplicidade não totalizável dos sujeito de interesse, dos sujeitos econômicos, e por outro lado, a unidade totalizante do soberano jurídico. (p. 30).

No curso da argumentação desenvolvida por Foucault com base na obra de Adam Smith, Correia destaca que os dois princípios fundamentais do liberalismo implicam a interdição de qualquer concepção de interesse comum, mas também a desqualificação de qualquer soberania arrogada sob o pretexto de conhecer a dinâmica da identidade natural de interesse individuais: O princípio de invisibilidade, notável na obra de Adam Smith, assenta- -se na hipótese de que uma vez que não se pode calcular o que seria um bem coletivo, sua busca é tanto infundada quanto danosa. Ocorre que não apenas o agente econômico não é capaz de mobilizar sua racionalidade para além da sua conduta atomística, também ao soberano é vedado o conhecimento da mecânica da identidade natural de interesses, de modo que “o poder político não deve intervir nessa dinâmica que a natureza inscreveu no coração dos homens”. (p. 30).

Nas palavras de Correia, “na interdição à interdição”, na limitação inflexível do econômico ao político, “é a própria noção de soberania que é posta em questão, portanto, na medida em que [a ignorância econômica] produz no soberano uma incapacidade essencial” (p. 31). Como o homo oeconomicus é aquele que para além de estabelecer limites ao poder soberano (como no caso do homo juridicus), é também de certo modo aquele que o destitui, ao impor o princípio de que lhe é vedado a intervenção no mercado, o poder soberano se vê diante da paradoxal impossibilidade de governar o homo oeconomicus. Foi pela concepção de “sociedade civil”, explica o autor, que na análise foucaultiana a governamentalidade liberal pôde “dissolver” a aporia que a prevalência do econômico lançou sobre a soberania política. A “sociedade civil” é o expediente da arte liberal de governar que emerge do princípio de que o homo oeconomicus é ingovernável. Ela “não é, portanto, uma realidade primeira e imediata, mas nota Foucault, o correlativo da tecnologia liberal de governo.” (p. 32).

Em sua análise final, o autor afirma que para Arendt e Foucault, a despeito de diferenças notáveis na progressiva imbricação de âmbitos tão distintos como o econômico e o político, está igualmente em jogo a questão da liberdade: “trata-se ainda da recusa da concepção de que a liberdade se traduz na conduta do sujeito de interesses que busca realizar os propósitos emanantes da sua vontade mediante o emprego de uma razão calculadora.” (p. 43-44).

Com o propósito de explicitar alguns dos aspectos mais fundamentais da crítica de Hannah Arendt à sociedade moderna, no terceiro capítulo com o título “Do uso ao consumo: alienação e perda do mundo”, o autor reconstitui e explora com argúcia aquela que é talvez a distinção conceitual mais original e mais preciosa de todo o pensamento arendtiano, a saber, a distinção entre trabalho e fabricação.

A recuperação das inversões que a modernidade operou no quadro geral da vita activa é empreendia, num primeiro momento, a partir do referencial constituído pela ciência moderna, no que tem de decisivo para o fenômeno da “alienação”. Conceito carregado de tradição, mas cujo sentido político preciso em Hannah Arendt traduz, como insiste o autor, uma perda do mundo humano de consequência ímpar.

O exame de Adriano Correia mostra que o potencial alienador da ciência moderna, sob a concepção de Hannah Arendt, envolve um complexo conjunto de aspectos cuja consequência é a configuração de um pano de fundo sobre o qual a cena que se desdobra é a inversão da relação hierárquica entre vita contemplativa e vita activa. Inversão operada com base no que é, por assim dizer, o elemento fundante da ciência moderna:

a “fé no engenho das próprias mãos” humanas: A transferência, levada por Descartes, do ponto de vista arquimediano do conhecimento de um ponto fora da Terra para a própria mente humana canalizou a confiança humana exclusivamente para os processos que desencadeava e controlava. Esta fé no engenho das próprias mãos configura o pano de fundo entre o qual se desenrolará a inversão da posição hierárquica entre a vita contemplativa e a vita cativa. A inversão não é, a rigor, uma alternação de posições entre contemplação e ação em que esta ocuparia o espaço de destaque antes conferido àquela no pensamento clássico. A contemplação, no sentido de contemplar a verdade, perdeu todo e qualquer sentido. (p. 49).

O decisivo, como sublinhado por Correia, é que a partir daí registre-se uma subordinação das demais atividades humanas básicas às atividades de fazer e fabricar, as atividades características do homo faber. O que é especialmente válido para a ciência, já que agora aposta antes de tudo no “gênio experimental do cientista aliado ao uso da tecnologia, e a partir daí conhecer e fazer uso de instrumentos passam a ser momentos complementares”. Tanto mais que “o experimento, por outro lado, reforça a compreensão moderna que o homem só pode conhecer realmente o que ele mesmo pode desencadear.” (p. 47). O autor explica que a perda do mundo mediante a dignificação suprema do homo faber decorre justamente do fato de que o conceito de “processo” seja o substituto moderno para o antigo conceito de “Ser”: “é como se, do ponto de vista do homo faber, o processo de fabricação fosse mais importante que o produto acabado, como se o método fosse mais importante que qualquer fim singular.” (p. 48).

Mas à vitória moderna do homo faber se seguirá ainda a quase imediata vitória do animal laborans e a sua correspondente forma ainda mais radical de alienação do mundo. É naturalmente no âmbito da distinção entre trabalho e fabricação que o autor explora a segunda inversão no interior da vita activa. “A compreensão da atual fusão conceitual de tais atividades [trabalho e fabricação] permite”, nas palavras do autor, “um maior aprofundamento no que seria a ‘essência’ da era moderna.” (p. 51). Pois a absorção da fabricação, da atividade com que o homo faber constitui o mundo durável de coisas, pelo trabalho, o empenho infindável com que o animal laborans resta sempre adstrito aos imperativos vitais, deflagra outro tipo de processo pelo qual o homem se vê mais agudamente alienado do mundo: a concentração em torno ao processo vital.

No cerne da fusão moderna entre trabalho e fabricação em favor do trabalho, figura a diluição progressiva das fronteiras entre público e privado, o advento do social ou o surgimento de “uma sociedade completamente ‘socializada’, como a sociedade de massas de trabalhadores, a conceber todas as coisas como funções do processo vital”. Em tal sociedade em que “a distinção entre fabricação e trabalho passa a não existir.” (p. 60), a substituição do uso pelo consumo é a expressão radical de alienação e perda do mundo dinamizada na forma de imperativo econômico.

“Quem é o animal laborans?” é o quarto capítulo consagrado ao problema de precisar a ampla significação de tal conceito na obra de Hannah Arendt.

Refinando ainda mais o crivo de suas análises acerca das distinções e aplicações conceituais na obra arendtiana, interessa ao autor examinar o conceito de animal laborans como correlato da condição humana da vida, mas também como elemento conceitual unificador de suas transfigurações modernas. Daí que seu trajeto envolva as considerações sobre o animal laborans como personagem correlata à “dimensão fundamental da existência condicionada pela vida”, como “produto da sociedade atomizada” e como “mentalidade ou ‘modo de vida’ extraído das condições do mero viver.” (p. 71). Trata-se de considerações que o autor julga necessárias à compreensão da relação entre política e economia na modernidade. É nesse contexto que no espírito do capítulo precedente amplia a discussão em torno ao animal laborans como tipo vencedor na modernidade. Correia ainda tangencia e pondera com clareza a intrincada e ainda não resolvida questão da crítica de Arendt ao pensamento de Marx.

Como dimensão fundamental da existência condicionada pela vida, o conceito de animal laborans indica que

Enquanto viventes, […] somos sempre […] condicionados pelo processo vital biológico a realizar as atividades do trabalho e do consumo, abandonados no âmbito da estrita privatividade das funções corporais e do lar no qual a vida é o bem supremo. Presidida por uma temporalidade cíclica tipificada no incessante metabolismo com a natureza, no ciclo de esgotamento e regeneração, a atividade do trabalho não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade sem o auxílio de capacidade reificadora do homo faber, hábil na produção de objetos, dentre os quais cabe destacara as ferramentas e instrumentos que vêm em auxílio do animal laborans com vistas a sua liberação do aprisionamento ao imperativo da necessidade. (p. 88).

Como produto da sociedade atomizada animal laborans é o conceito que traduz a transformação moderna dos agentes políticos mediante o advento do social ou a organização pública do processo vital, pela qual também a vida em comum, politicamente organizada, passa a ser orientada segundo determinações do necessário à vida considerada como fenômeno coletivo. Somente do âmbito social como espaço para os empreendimentos coletivos no interesse da vida (portanto nunca da esfera pública na qual a ação imprevisível se norteia pela ideal de liberdade) é que se pode esperar a uniformidade comportamental que se presta à predição estatística.

Nessa esfera social, os interesses privados adquirem relevância púbica, ou, mais propriamente, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamento, na medida em que se impõe ‘inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária. Assim, para Arendt, esse gênero moderno de igualdade redunda necessariamente em uniformidade, na medida em que se baseia no conformismo constitutivo da sociedade’. (p. 89).

Daí que a terceira significação do animal laborans referida ao “modo de vida” vitorioso na modernidade extraído das condições da vida em sua elementaridade fundamental, só possa resultar para o autor como paradoxal no contexto das reflexões arendtianas. “Paradoxal porque o caráter compulsório da necessidade que está na base do mero viver, comparável à violência da tortura, não permite que se conceba um modo de vida, isto é, uma forma de vida livremente escolhida no âmbito das possibilidades humanas de autoconfiguração deliberada”. A transfiguração moderna da condição de animal laborans em “modo de vida” além de paradoxal é também apequenadora, já que da sujeição à necessidade resulta, nas palavras do autor, “implicações altamente danosas à dignidade humana, indissociável da singularidade e da capacidade de distinção de cada indivíduo.” (p. 102).

“‘A política ocidental é cooriginalmente biopolítica?’ – um percurso com Agamben” é o quinto capítulo em que (um pouco na continuidade do capítulo quarto quanto à discussão acerca da paradoxal tradução da vida em modo de vida) trilhando o caminho de Giorgio Agamben, mas ladeado por Hannah Arendt e também Michel Foucault, o autor pretende examinar a tese daquele reformulando-a de saída no tom contestatório da interrogação.

[…] A política ocidental é, portanto, cooriginalmente biopolítica”. A implicação fundamental dessa afirmação, em Agamben, é a suposição de que desde a pólis há uma imbricação entre vida biológica e política, em vista isso, não podemos conceber uma réplica política à modernidade biopolítica na história política ocidental. (p. 125).

À hipótese de Agamben de que o mais decisivo na modernidade não é tanto o ingresso da zoé na pólis, […] tão antiga na política ocidental, mas a diluição da fronteira entre exceção e regra e a consequente indistinção entre espaço da vida nua e espaço político, e entre zoé e bíos. (p. 108).

Correia opõe principalmente as insistentes posições em que Hannah Arendt registra o abismo entre os domínios público e privado como ancorado no modo como os gregos conceberam a distinção entre bíos e zoé. É neste espírito que o autor evoca, por exemplo, a representatividade que Arendt a este respeito reconhecia no testemunho de Aristóteles. Está em questão o fato de que em tal distinção os antigos “tinham por fundamental à política a demarcação entre as demandas naturais da sobrevivência e as demandas políticas da liberdade, que falavam ambas no cidadão”. Correia sublinha que é por ter em conta registros como os de Aristóteles que Arendt apreende o fenômeno político originário como o espaço para o desenvolvimento de uma segunda natureza, “não uma zoé transfigurada, mas uma segunda natureza, em acréscimo à vida privada natural que jamais suprimimos.” (p. 119).

Em Arendt e Foucault (e neste, desde o primeiro volume da História da sexualidade) o autor encontra os elementos em comum para pensar a imbricação entre vida e política no início da tradição ocidental da política, mas como um dos fenômenos inaugurais da modernidade:

Seguramente Arendt e Foucault, que não conheciam as obras um do outro, tinham juízos distintos sobre o significado da política e do poder, para mencionar o mais flagrante. Todavia, ambos julgavam que não podemos apreender os fundamentos da modernidade política sem percorrer a trilha privilegiada que traz à vista a progressiva implicação biológica no poder político. (p. 126).

Fiel à proposta de seu livro, no sexto capítulo, “A esfera social: política, economia e justiça”, Correia analisa o conceito arendtiano de “social” à luz das análises críticas mais importantes e em contraste com o que ele julga ser “uma rígida distinção entre as esferas pública e privada, inspirada principalmente por sua interpretação do significado da pólis e do pensamento aristotélico.” (p. 130).

A despeito da ligação entre a vida privada e a vida pública ser indicada para Arendt, de acordo com Correia, pela vitória sobre as necessidades da vida relegadas ao âmbito da privatividade do lar constituir a condição para o exercício da liberdade no âmbito da pólis, a demarcação fundamental entre os dois âmbitos resta dada pelo fato de a necessidade ser o princípio ordenador da esfera privada e a liberdade o princípio ordenador da esfera pública. Para ao autor importa notar que na interpretação arendtiana o espaço da pólis é não apenas distinto do espaço do lar, consagrado à vida privada, como também foi desde o início concebido em completa oposição a ele. “A pólis, com efeito, não equivalia à localização física da cidade-estado, mas à organização das pessoas que resulta do agir em conjunto; correspondia ainda ao espaço da aparência no qual os cidadãos aparecem uns aos outros”, ao espaço “onde os homens existem não meramente como as outras coisas vivas ou animadas, mas fazem explicitamente seu aparecimento” (p. 132), por meio da ação e do discurso como modos exclusivos de condução dos assuntos públicos. Portanto, nunca como meios para perseguir interesses privados.

Ora, é justamente a moderna instrumentalização do domínio público pelos interesses privados que implica, na compreensão de Arendt, a recomposição das esferas correlatas à necessidade e à liberdade na esfera híbrida que ela chama de “social”, que Correia avalia ser “um dos elementos mais significativos, e por vezes mais incômodos, para a compreensão de A condição humana.” (p. 132).

Esse caráter devorador que Arendt confere à esfera social, conforme assinala Correia, decorre do fato de que “as questões privadas em sua dimensão coletiva (ainda que com implicações políticas), não constitui um espaço próprio, terceiro em relação ao público e o privado. O social seria como um câncer, que expande seu espaço na medida em que se espraia sobre o privado e o público” (p. 133). A “sociedade” é, enfim, o fato da dependência mútua em prol da sobrevivência e da acumulação, de objetivos em nome dos quais as atividades privadas adquirem relevância pública.

Mas há que se notar que na ponderação de Correia, à luz das mais expressivas críticas à rigidez e/ou incongruência da posição arendtiana acerca da questão social (às quais o autor não deixa de ter também suas reservas críticas), manifesta-se as dificuldades internas da relação entre as esferas pública e privada para assegurar o exercício da cidadania, assim como as dificuldades para se pensar a justiça a partir da referencial arendtiano:

As dificuldades surgem quando passamos a examinar questões pungentes de nossos tempos, com ampla repercussão na vida de todos e implicações no exercício da cidadania, mas que parecem não encontrar abrigo confortável na esfera pública tal como Arendt a compreende. A pobreza, tal como aparece na obra Sobre a revolução, por exemplo, é compreendida como danosa quando acolhida no domínio público, na medida em que poderia ser mais bem resolvida por expedientes técnicos e disposições administrativas, por um lado, e em que opera como um canal para o translado dos interesses privados para a esfera política, assim como da violência necessária para suplantar as necessidades vitais.

Compreendendo que nenhuma revolução resolveu a questão social e levando a crer que a tentativa de fazê-lo por meios políticos conduz ao terror, a lançar as revoluções à ruína, Arendt insere algumas dificuldades na já complexa relação entre as indispensáveis condições pré-políticas da cidadania e o engajamento dos cidadãos nos assuntos públicos. (p. 137).

No sétimo capítulo que tem por título “O caso do conceito de poder – Arendt e Habermas”, Correia se concentra em precisar o sentido e a singularidade do conceito de poder em Hannah Arendt num diálogo crítico com sua apropriação moduladora e associada às “incorreções” das interpretações empreendidas por Jürgen Habermas.

Para Habermas, a objeção fundamental que se pode fazer ao conceito de poder definido por Hannah Arendt é a de que “a política não pode ser idêntica […] à práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em comum”. Com efeito, seria necessário separar a gestação do poder, na qual pode ser aferida a legitimidade, do exercício legítimo do poder, que frequentemente supõe interações entre o governo e os cidadãos orientadas pela coerção e pela relação estratégica mando/obediência, que claramente têm de ser rejeitadas na práxis que presidiu a fundação da comunidade. (p. 162).

Correia destaca que a compreensão da crítica de Habermas ao conceito de poder em Hannah Arendt (que envolve um deslocamento interno ao próprio diálogo habermasiano com o pensamento político de Arendt), só pode ser compreendido à luz do que ele mesmo, num movimento apropriador, identifica como uma espécie de transposição do conceito arendtiano de poder do âmbito normativo ao nível descritivo/realista. Mas o que o autor não tarda a destacar é que Habermas emprega uma terminologia que Arendt seguramente denegaria:

Arendt, em seu exame do fenômeno do poder político, jamais pretendeu fazer teoria social ou ciência política, stricto sensu, mas também não almejava erigir um ideal normativo regulador. Em vista disso, seguramente para ela não seria uma objeção legítima a indicação da inaplicabilidade dos seus conceitos de ação, poder e política para a descrição da sociedade moderna. Para os leitores de A condição humana fica claro que, para Arendt, essa inaplicabilidade apenas reforça suas hipóteses com relação ao declínio da política na era moderna. (p. 163).

Operando sempre no âmbito da distinção conceitual, o pensamento de Arendt, conforme sublinhado por Correia e para lembrar o prólogo do seu livro, ao demarcar tais diferenças almeja a compreensão de fenômenos e não a descrição da realidade. Em todo caso, é parte do seu procedimento metodológico de distinção o fato de que ela busca indicar antes de tudo que nenhum poder advém da coerção violenta e nenhuma comunidade política pode se assentar estrita ou fundamentalmente na coerção – e é por isso que afirma que ‘a violência é a arma mais da reforma que da revolução. (p. 164).

Na contramão da compreensão de Habermas para quem o conceito arendtiano de poder é operativo apenas no sentido de precisar heuristicamente a maneira legítima de sua gestação, restando inválido para apreender a conservação das instituições e o exercício do poder, Correia assinala a insistência com que Arendt na obra Sobre a revolução registra que “não pode haver em uma comunidade política legítima uma ruptura entre a práxis que gesta o poder e a práxis que é o próprio exercício do poder” (p. 166), como pretendido por Habermas. E isso sob pena da nova ordem política, de espaço para a liberdade na forma de participação pública, se converter logo após a fundação em administração dos interesses sociais.

Com a tarefa adicional de mitigar o tentador diagnóstico de um traço “antimoderno” no pensamento de Hannah Arendt (conforme promessa firmada no capítulo sexto em que se examinou o conceito de esfera social como elemento decisivo para a relação de Arendt com a era moderna), o oitavo e último capítulo intitulado “Revolução, participação e direitos”, tem em mira o exame dos vínculos entre liberdade, engajamento e participação como expediente para reconstituir o pano de fundo sobre o qual Arendt afirma em Sobre a revolução, que “a liberdade política só pode significar a participação no governo”.

Um empreendimento que Correia procura levar com atenção focada “na oposição arendtiana à compreensão liberal de liberdade.” (p. 176) Daí que o referencial arendtiano para a reflexão sobre a liberdade seja justamente a experiência revolucionária, no marco da qual registra-se uma relação à parte entre a pensadora e a modernidade. Para Arendt, conforme Correia,

Apesar das imagens diferentes entre os acontecimentos e convicções dos dois lados do Atlântico, os revolucionários partilhavam o fundamental, isto é, “um interesse apaixonado pela liberdade pública”. O que os franceses chamavam de liberdade pública, como tradução da libertação do domínio despótico, os revolucionários estadunidenses já denominariam “felicidade pública”, em grande medida por já experimentarem essa liberdade aspirada pelos franceses. Sabiam, portanto, que “não poderiam ser totalmente ‘felizes’ se sua felicidade se situasse e fosse usufruída apenas na vida privada”. Concordavam que a liberdade pública consistira na participação nas atividades ligadas às questões públicas, que tal participação proporcionava “aos que se encarregavam delas um sentimento de felicidade que não encontrariam em nenhum outro lugar” e que “as pessoas iam às assembleias de suas cidades […] acima de tudo porque gostavam de discutir, de deliberar e de tomar decisões”. (p. 178).

A despeito das respectivas dificuldades que os revolucionários franceses e americanos tiveram para bem orientar a luta pela liberdade e para assegurá-la após a experiência política da fundação, em ambos os casos, conforme os registros de Correia das posições assumidas por Arendt, “a ideia central da revolução é a fundação da liberdade, isto é, a fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer.” (p. 125). Portanto, restava em qualquer caso a compreensão comum de que a liberdade política não é, por exemplo, equivalente à experiência interior da vontade, mas antes algo que, à luz da antiga compreensão de liberdade, somente se efetiva mediante o engajamento ou a participação ativa de cada um no espaço público, nos assuntos comuns que ocupam o governo.

Não obstante o malogro dos empreendimentos revolucionários devido em parte também ao fato de que “a busca da felicidade não teve seu caráter público claramente definido”, tendo enfim operado ambiguamente “desde o início como canal para a confusão entre felicidade pública e bem-estar privado” (p. 179), a liberdade pública, para Arendt, é algo a que os seus agentes realmente aspiraram. Mas o ideal revolucionário, como assinalado por Correia, não pôde resistir em nenhum dos dois lados do Atlântico aos clamores da “questão social”, quer em sua feição francesa, quer em sua feição americana.

Mais uma vez, em ambos os casos, a consequência derradeira foi a dissolução da liberdade política em direitos civis.

[…] a questão social interferiu no curso da Revolução americana com o mesmo grau de intensidade, embora não tão dramática, que teve no curso da Revolução francesa”. A questão social nos EUA aglutina-se na obsessão com a abundância: “nesse sentido, a riqueza e a pobreza são apenas as duas faces da mesma moeda; as cadeiras da necessidade não precisam ser de ferro: podem ser feitas de seda”. Com efeito, “o crescimento econômico algum dia pode se revelar uma maldição, e não uma benção, e em nenhuma hipótese ele pode levar à liberdade ou constituir prova de sua existência. (p. 181; grifos do autor).

Há que se notar, contudo, o empenho de Correia em registrar que a “convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além de demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenha delas.” (p. 195).

No epílogo à obra, partindo de considerações que exorcizam os derradeiros resquícios da recepção caricatural de Sobre a revolução, quando de sua publicação em 1964, Correia mostra que no âmago da tese de Arendt acerca da perda do espírito revolucionário (que se traduz no fracasso para consolidar uma forma de governo capaz de preservar a liberdade), figura a constatação do ressurgimento recorrente do sistema de conselhos como os espaços políticos revolucionários para a participação direta. Elemento reiteradamente derrotado das revoluções, o espírito revolucionário, explica Correia, tem se “cristalizado no sistema de conselhos ou [n]a oportunidade de salvar a república ao ‘salvar o espírito revolucionário por meio da república.’” (p. 200-201).

Dentre as ressurgências que manifestaram o espírito revolucionário para além da das revoluções francesa e americana na forma de sistemas de conselhos que elas mesmas conceberam, constam no âmbito das indicações de Arendt apontadas pelo autor: a Comuna de Paris de 1871, as Revoluções Russas de 1905 e 1917, o movimento Alemão de 1918 e 1919 e a Revolução Húngara de 1956.

“Para Arendt”, conforme afirma Correia, “são várias as razões para que os sistemas de conselho, que desempenharam um papel decisivo nas revoluções, não tenham ainda se convertido em uma forma de governo consolidada”.

Dentre as razões identificadas por Arendt o autor considera particularmente esclarecedora para a questão que intitula o epílogo, a oposição entre o sistema de conselhos e o sistema partidário. Há de se notar que, que desde os fenômenos revolucionários até os últimos ressurgimentos do sistema de conselhos, é flagrante a ideia reacionária do sistema partidário que reconhece nos conselhos apenas “organizações transitórias a serem suplantadas junto com o próprio processo revolucionário.” (p. 203). Contra as insistentes reações à espontaneidade do sistema de conselhos, mas também contra toda expectativa de interdição da capacidade humana de iniciar algo novo de que este movimento espontâneo é apenas um testemunho, é o caso de se registrar com Adriano Correia que

Arendt, que jamais acreditou no progresso e inclusive o julgava uma ofensa à dignidade humana, nunca tomou parte no catastrofismo ou em qualquer outra convicção de que o futuro pudesse estar predeterminado e de que a liberdade só poderia se dar paradoxalmente em alguma pretensa dinâmica predeterminada da história. Pensava que na modernidade como em épocas anteriores poderíamos estar à altura de nossa dignidade como agentes livres, a testemunhar a singularidade de cada um e a pluralidade que articula a todos. O espírito revolucionário, um tesouro a ser encontrado, conformou para ela a mais flagrante imagem moderna da liberdade, a unir liberdade e começo, ruptura e fundação, o iniciar e o levar a cabo em conjunto. Reaviva-se assim a promessa de que a liberdade possa ser restituída como um experiência política e se afirme em oposição à prevalência de uma vida que não aspira redimir-se do aprisionamento ao âmbito da necessidade, ampliado pelo crescimento não-natural do natural que é também marca distintiva da era e do mundo modernos. (p. 209).

Adriano Correa – Professor  de  filosofia  em  estágio  pós-doutoral  na  Faculdade  de  Filosofia  (FAFIL)  da  UFG.  Bolsista  do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-CAPES).

Acesso à publicação original

Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault – DUARTE (ARF)

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: FERNANDES, Antônio Batista. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.135-140, 2012.

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