Etnografia Nos Arquivos e a Produção de Conhecimento Sobre Populações Subalternizadas | Ofícios de Clio | 2021

Candangos na construcao de Brasilia 2 Arquivos
Candangos na construção de Brasília | Imagem: Senado Federal

Quando propusemos um dossiê dedicado a recolher etnografias nos arquivos, tínhamos como principal interesse interligar distintos estudos e objetos, pois entendemos que a escrita histórica alinhada à prática etnográfica é uma junção fundamental na produção de conhecimento científico, servindo como ponto de partida, ou mesmo como retórica, nas pesquisas dos profissionais das ciências humanas. Aqui, a categoria de “subalterno” e os conceitos derivados da ideia de subalternidade, contemporaneamente, ocupam os debates e servem de base aos estudos acadêmicos que se alinham aos trabalhos propostos por Gramsci (2002), Said (2007) e Spivak (2010), entre outros. Arquivos, textos jornalísticos e jurisdicionais, por vezes, denotam como determinados grupos eram – e alguns ainda são – tutelados, ordenados e reagrupados pelas instituições governamentais ou/e eclesiásticas.

Ao analisar os fenômenos históricos, sociopolíticos e culturais, os trabalhos que aqui se encontram reunidos, carregam e apresentam discussões que confrontam visões estabelecidas por instâncias de poder. Os textos, assim, refletem esforços analíticos centrados em alguns conceitos-chave, marcas de perspectivas voltadas à compreensão de processos e dinâmicas que envolvem atores e agências sociais em campos de disputas. Numa clave que abarca a Etnografia nos arquivos, percebemos o resultado de coletas de materiais de diferentes formatos que passam a compor acervos construídos com variadas intenções institucionais.

Nesse particular, ao associar a leitura etnográfica de documentos, passíveis de explicitar as relações de poder impressas na elaboração e utilização dos papéis, essa operação metodológica subverte as formas de entendimentos elaboradas pelas racionalidades administrativas que produzem e conservam os acervos documentais. Dessa forma, compreende-se que essa postura epistemológica levou ao desenvolvimento de abordagens críticas e imaginativas de fontes tradicionais. Como se verá, o principal objetivo desse dossiê é escavar vozes subalternas e silenciadas, resgatar ações (ou agências), percepções e pequenos gestos de resistência daqueles situados à margem dos registros oficiais (FERREIRA; LOWENKRON, 2020).

Na esteira dessas reflexões, torna-se preciso atentar para os conflitos e as contradições que permearam os modos pelos quais esses agrupamentos humanos se (re)organizaram em torno dos cenários econômicos e políticos da sociedade envolvente, indicando como cada coletividade atravessou as mudanças em suas configurações relacionais, não vistas enquanto elementos de “aculturação”, mas consideradas enquanto fenômenos sociais complexos que permitem compreender os protagonismos exercidos por esses sujeitos. Nessa perspectiva, a análise etnográfica de documentos considera os arquivos públicos ou privados como espaços de produção, circulação e preservação material. Entendemos que a escrita histórica alinhada à prática etnográfica é fundamental na produção de um conhecimento científico e reflexivo sobre as populações.

Ao propormos a “etnografia nos arquivos” como molde de “produção de conhecimento sobre as populações subalternizadas”, queremos trazer à tona questões recorrentes nos estudos antropológicos e historiográficos – temas tão caros para nossas áreas de interesse e estudo, como reflexividade, poder e desigualdade social. Ao abrir espaço para as inflexões dos pesquisadores que estudam, dialogam e escrevem sobre grupos diretamente afetados pelas relações estatais, com suas multifacetadas faces e interpelações de poder, queremos discutir o próprio processo de reflexão sobre os dados, as teorias, a etnografia e a posição do pesquisador em campo entendendo-as como partes integrantes da produção do conhecimento.

O artigo que abre este dossiê é uma verdadeira empreitada frente aos documentos judiciais e aos conflitos entre as classes sociais, ou seja, entre dominantes e trabalhadores, entre patrões e seus subordinados. Trata-se de uma análise riquíssima sobre as relações de trabalho em Santa Maria, Rio Grande do Sul. O período escolhido, como aponta o autor do texto As disputas em torno da legislação do trabalho, no contexto da Segunda Guerra Mundial (1943-1945), Luiz Eduardo Domingues dos Santos Souza da Silva, compreende o intervalo temporal entre 1943 e 1945, e é um relato claro das repercussões do Estado Novo na constituição do próprio estado nacional e suas novas diretrizes no campo econômico como também na geopolítica. Vale destacar, e é ponto analisado pelo graduando em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que em 1942, o Brasil embarca na Segunda Guerra Mundial ao lado da Aliança que confronta as tropas nazi-fascistas na Europa. Esta decisão política e militar tem reflexos em solo brasileiro, muito embora os campos de guerra fossem noutro continente, nossa população sentiu os efeitos da guerra, mesmo antes da entrada oficial do país no conflito. A criação de decretos governamentais restabeleceu e reorganizou as relações patronais nacionais de maneiras ambíguas. As transformações na legislação vigente repercutiram na organização trabalhista, criando um cenário de contenção e também de resistência nas arenas judiciais no lócus da pesquisa.

No trabalho seguinte, intitulado Dois candangos: Trabalho, morte e indenização na construção da Universidade de Brasília (1962), percorremos as insígnias das lutas travadas pelos trabalhadores em seus ambientes de trabalhos. O caso emblemático do processo judicial de indenização instaurado por uma das viúvas de um dos dois operários mortos durante a construção da Universidade Federal de Brasília (UnB) em abril de 1962, demonstra como o acesso a acervos tão ricos podem colocar em relevo e subverter a lógica histórica que tende a não enxergar os candangos como sujeitos partícipes dos processos históricos. Ramon Lamoso de Gusmão, recém graduado em História pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), nos revela um documento inédito e precioso sobre o processo indenizatório e avança numa análise sobre as condições e relações trabalhistas na capital do país, permitindo ao leitor uma constituição sobre memórias que não se apagam. Tendo em vista que um dos objetivos do artigo é exatamente denotar como a narrativa sobre o soterramento destes dois candangos preencheu, de certa forma, a memória coletiva daquelas cercanias mesmo tendo sobreposições de outras memórias sobre esta.

No artigo Relações de gênero e direitos na história da hotelaria pelotense: Estudo de processos trabalhistas envolvendo mulheres entre 1940 e 1960, a graduanda em Turismo pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Renata Duarte propõe uma instigante reflexão sobre os cargos e atividades desempenhadas pelas mulheres nos hotéis em Pelotas, suas principais solicitações na Justiça do Trabalho, e o desfecho de tais atuações. Neste percurso, ela analisa documentalmente 15 processos trabalhistas da Justiça do Trabalho de Pelotas entre 1940 e a primeira metade da década de 1960, que envolvem mulheres nas posições de “reclamantes” ou de “reclamadas”, verificando a existência de salários mais baixos para as mulheres. Da mesma forma ressalta a importância da pesquisa documental nos processos trabalhistas por tratar diretamente da relação empregador-empregado, trazendo as reinvindicações do período selecionado, bem como o surgimento de cargos, atribuições e a existência de desigualdade salarial e melhor compreensão das relações de poder. A autora nos leva em direção à necessidade de evidenciar a atuação das mulheres enquanto força de trabalho no ramo hoteleiro, bem como sua participação na justiça frente à luta por seus direitos trabalhistas.

No manuscrito “E insuflou-me a espancar”: Relações de gênero e violência em Sant’Anna do Catú no pós-Abolição, Bahia, Larissa Cheyenne Nepomuceno de Jesus, mestranda em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e Tainara Cecília Pereira Santos, graduanda em Letras Vernáculas pelas Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), trabalham com a importante interseccionalidade entre gênero, raça e classe, a partir do estudo de um caso de espancamento de Felicidade Maria de Santana, mulher negra e ex-escravizada, ocorrido em Catu em 1910, trazendo uma análise historiográfica sobre as práticas de violência contra mulheres ocorridas no município nas primeiras décadas do pós-abolição e da República na Bahia. As autoras nos lembram que não existe racismo sem sexismo, e que a colonização foi generificada, ou seja, a dominação colonial foi também uma dominação de gênero que, mesmo com o fim do colonialismo, a subordinação da mulher (em especial a mulher negra e pobre) ainda é vista com naturalidade. Dialogando com as feministas negras e mostrando a força da reflexão epistemológica que vem destes estudos, as autoras ressaltam que muitas vezes, conscientes do papel que ocupavam na sociedade e como a mesma as enxergavam, muitas mulheres negras não se submeteram a supremacia masculina.

Em Sociabilidade e lazer no cotidiano dos populares da Comarca de Bragança-PA (1910-1920), o graduado em História e mestrando em Ciências do Patrimônio Cultural pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Filipe de Sousa Miranda, costura de forma substancial a imputação criminal aferida sobre os agrupamentos mais vulneráveis da sociedade bragantina. As festas, as brincadeiras e as danças populares tinham desfechos policiais devido aos conflitos que transpareciam nesses espaços. A narrativa contida nos Autos Criminais levantada pelo pesquisador aponta que o perfil dos envolvidos nas queixas era de indivíduos que não sabiam ler ou apenas assinavam os nomes e que residiam distantes do centro moderno da cidade. Ao colocar não somente os substratos dos arquivos que revelam tais conflitos, o autor apresenta um conjunto de elementos constitutivos do próprio cotidiano dos grupos envolvidos. Ao elencar os momentos de lazer e sociabilidade em espaços como as tavernas, botequins, igrejas ou nas residências, as conhecidas rodas de conversação e interação social revelam o que Norbert Elias (1992) destaca como práticas de lazer, como uma série de atividades em que os indivíduos administram suas emoções e manejam aprovação social.

Fechando o dossiê, temos a mestranda em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) Lais Schillim da Silva, que nos propõe uma instigante reflexão sobre os motivos que levam produtores rurais a adotarem a produção agroecológica, tendo seu recorte geográfico nas cidades de Pelotas e Canguçu em seu manuscrito “Segurança alimentar, proteção familiar e pensando no futuro do nosso planeta”: Narrativas de produtores agroecológicos nas cidades de Pelotas e Canguçu no contexto de pandemia. O artigo consiste em analisar historicamente a agricultura com viés capitalista, indicando a insuficiência do modelo pautado no agronegócio e a emergência das discussões sobre segurança alimentar, frente ao contexto pandêmico. Valendo-se da metodologia de história oral, a autora traz depoimentos de produtores ecológicos, dentro das disputas de poder que ocorrem no campo da agricultura apresentando alternativas não apenas políticas, mas epistemológicas, para se pensar na necessidade da construção de estudos mais democráticos, que enfatizem as vivências de produtores e suas demandas sociais, alimentares e ambientais.

Este dossiê trata de como o uso de arquivos enquanto base reflexiva sobre a realidade estudada pode apresentar níveis de resistências sociais, alçar inflexões sobre questões de gênero, e correlacionar em diferentes escalas às relações patronais. Nesse sentido, reflexões sobre raça, classe e segurança alimentar são alguns dos temas utilizados pelas autoras e autores. Para tanto, estes trabalhos e as pesquisas apresentadas manuseiam as memórias dos sujeitos históricos para dar conta das complexidades destes constructos. Corroborando com a assertiva de que a aproximação entre a antropologia e a história deve partir de uma perspectiva crítica (COMAROFF, 2010).

As abordagens aqui reunidas buscam ampliar novos insights para a construção de uma antropologia histórica, pois cabe à prática empírica constituir estes objetos e os sentidos políticos, culturais e sociais que, por vezes, resultam das relações de forças dos distintos grupos que integram o Estado-nação. Mais uma vez destacamos que diante da constituição deste campo eminentemente político é que notamos, enquanto pesquisadores, que as representações autorizadas sobre o passado e o presente tomam significados diferentes, particularmente visíveis e sinalizados nos arquivos.

Referências

COMAROFF, J; COMAROFF, J. “Etnografia e Imaginação Histórica”. Revista Proa, 2(1):1-72. Tradução de Iracema Dulley & Olívia Janequine, 2010.

ELIAS, N. A busca da excitação. Lisboa: Difusão Editorial, 1992.

FERREIRA, L; LOWENKRON, L (Orgs.). Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2020.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SAID, E. O Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. 3ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SPIVAK, G. Pode o subalterno falar? 2ª. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


Organizadores

Érika Catarina de Melo Alves – Doutoranda de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA-UFRRJ. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Território e Identidade (GETI-PPGA-CNPq) e do Laboratório de Estudos em Processos Técnicos (Téchnai-NDIHR-CNPq).

Marianna de Queiroz Araújo – Doutoranda em Antropologia – PPGA-UFPB. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Território e Identidade (GETI-PPGA-CNPq) e do Laboratório de Estudos em Processos Técnicos (Téchnai-NDIHR-CNPq).


Referências desta apresentação

ALVES, Érika Catarina de Melo; ARAÚJO, Marianna de Queiroz. Apresentação. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 6, n.10, p.13- 18, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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