Europa Medieval | Chris Wickham

Escrever um manual é sempre um desafio para um pesquisador, seja ele de qual área for. Um desafio sedutor, mas que bem poucos aceitam em função das numerosas escolhas e sacrifícios a serem feitos. Certamente, temas considerados relevantes ficarão de fora ou serão dispostos em poucas páginas para que outros igualmente relevantes sejam expostos com os cuidados que os nem sempre generosos limites editoriais permitirão. Em muitos casos, um equilíbrio demasiado tênue cujo resultado final pode agradar a alguns e desagradar a outros tantos. Não há como fugir disso. Ao concluir a leitura das trezentas e setenta e cinco páginas da edição portuguesa de Europa Medieval, acrescidas de algumas outras dezenas com notas explicativas, bibliografia consultada e sugerida e índice onomástico, ficamos com a sensação de que Christopher John Wickham, ou simplesmente Chris Wickham, concluiu de maneira exitosa o desafio ao qual foi submetido.

Atualmente professor de História Medieval da renomada Universidade de Oxford, depois de uma longa passagem pela Universidade de Birmingham, ambas na Inglaterra, Chris Wickham há décadas se dedica a temas relacionados à política e à economia em regiões específicas da Europa ao longo do medievo como, por exemplo, a Itália. Somente em anos mais recentes, manuais introdutórios de divulgação tornaram-se o ponto central de seu trabalho constituído pela publicação de dezenas de outros livros e artigos acadêmicos apresentados em congressos realizados em várias partes do mundo, além da própria docência universitária.

As referidas centenas de páginas que compõem Europa Medieval de Chris Wickham estão divididas em treze capítulos temáticos que se estendem do século V ao XV e vem acompanhadas de um farto conjunto de mapas e imagens presentes em um caderno colorido disposto bem no centro da publicação que sem dúvida é o manual de História Medieval mais recente de que temos notícia. Os mapas por si só já chamam atenção dos leitores e leitoras logo na partida, uma vez que saem do lugar comum do chamado “ocidente medieval” a adentrar pelas terras do leste e do norte da Europa. Trata-se de uma excelente contribuição para quem busca pesquisar e sobretudo ensinar as histórias deste período a partir de abordagens mais inclusivas e enredadas e menos contaminadas por mitos nacionalistas genealógicos.

De forma complementar a essa nova e necessária abordagem espacial, emerge das páginas de Europa Medieval uma das premissas que podem ser apontadas como um dos pilares da argumentação de Chris Wickham, a saber: por si só, o cristianismo não criou uma Europa mais homogênea em termos políticos e religiosos. Na verdade, este teve a sua importância, mas seus impactos foram muito variados nas diferentes regiões formadoras do continente. Com efeito, o não pensar o cristianismo de forma homogênea assim como as relações de seus representantes com os poderes políticos tradicionais estabelecidos é o fio condutor que atravessa boa parte dos capítulos iniciais do livro em questão. Ao se manter o tempo todo fiel a essa premissa, Chris Wickham saudavelmente alargou os horizontes espaciais europeus para muito além de habitual eixo formado por Inglaterra, França e Itália com rápidas olhadelas para a Península Ibérica e a Alemanha. Lamentamos apenas o fato de que o autor não tenha dedicado mais algumas páginas ou mesmo um ou dois capítulos às relações então existentes entre Europa e África e Europa e Ásia, algo que ficou subtendido em quase todo o livro e que certamente seria uma contribuição sobremaneira interessante, tendo em vista a sua proposta de superação das balizas eurocentradas que por tanto tempo delimitaram a historiografia sobre a História da Idade Média. São as escolhas a respeito das quais escrevemos logo no início da página anterior.

Ainda a respeito dessa questão, apenas no capítulo O longo período de expansão econômica, 950-1300, o autor refez alguns caminhos então percorridos e afirmou que o grande comércio conduzido pelas cidades mercantis italianas era dependente da produção egípcia, assim como também eram as cidades do norte da Europa que se destacaram em termos comerciais a partir dos séculos XII e XIII. Isso evidencia de forma clara a posição secundária europeia no contexto econômico da época cujo eixo central girava a partir das redes existentes entre o nordeste da África, o Oceano Índico e a China, um quadro que continuou a se manter para além dos limites temporais da Idade Média. Assim, aos olhos de Chris Wickham, as relações locais de curta distância foram a verdadeira base do comércio europeu ao longo dos séculos costumeiramente descritos pela historiografia como Baixa Idade Média, condição longeva que é negada apenas quando as análises criteriosas dão lugar a abordagens ideológicas internalistas.

Ainda no que se refere às escolhas geopolíticas feitas pelo autor, um outro ponto que merece a devida ênfase é o tratamento dado ao Califado de Córdoba posicionado ao lado do Império Bizantino na condição de “sistemas políticos mais eficazes da Europa no século X”. Segundo as palavras do próprio Chris Wickham, poderes devidamente consolidados e reconhecidos pelos próprios vizinhos cristãos no decorrer de vários séculos de convívio. Aliás, a valorização do Império Bizantino como uma parte crucial da história europeia na Idade Média é outro assunto a ser destacado no livro em foco, pois, também nas palavras de Wickham, trata-se de uma estrutura política, econômica, social e cultural que foi a mais rica e a mais complexa até pelo menos o final do século XI, algo que costuma escapar dos olhos de autores costumeiramente mais focados no que se passava no interior do ocidente latino.

Esse necessário processo de ampliação dos horizontes espaciais é complementado por um olhar mais detido acerca das especificidades políticas e econômicas de cada uma das regiões apresentadas no fluxo dos capítulos que compõem a obra ora resenhada. Por conseguinte, o antigo modelo explicativo baseado em um sistema feudal construído a partir dos exemplos franceses deu lugar a propostas mais plurais. De forma sumária, isso está disposto nos capítulos A expansão da Europa cristã, Reconfiguração da Europa ocidental e O longo período da expansão econômica. Na verdade, o próprio termo “feudalismo” e outros correlatos apareceram pouquíssimas vezes em Europa Medieval e Chris Wickham mostrou-se um crítico mordaz deste, sobretudo quando serviu para a consolidação de amplos modelos interpretativos criados pelos pioneiros da História Econômica produzida ainda nos anos cinquenta e sessenta do século anterior e que tomavam como referências basilares as explicações que um dia tiveram como espelho o mundo industrializado dos séculos XVIII e XIX.

Um outro assunto que também é digno de nota e que está exposto nos capítulos acima citados e além é o uso do conceito “estado” para se referir a estruturas políticas que se constituíram no curso da Alta e início da Baixa Idade Média. O que seria objeto de muita polêmica entre historiadores em função de possíveis anacronismos, foi bem resolvido por Chris Wickham ao deixar claro para os seus leitores e as suas leitoras as razões de sua escolha. Para ele, embora a Europa nunca tenha sido na prática uma unidade política e administrativa durante a Idade Média, o uso da palavra “estado” em alguns contextos é adequado, pois, ainda que fossem quase todos fracos e limitados, os reinos pós-romanos mantiveram uma distinção relativamente clara e equilibrada entre o que era público e o que era privado em suas ações administrativas, com o segundo não se sobrepondo em demasia ao primeiro.

Já na parte final do livro, mais especificamente nas páginas do capítulo intitulado Definindo a sociedade, Chris Whickam deu amplo destaque às relações de gênero, às manifestações religiosas populares e ao campesinato, o que permite à leitora e ao leitor um maior contato com a história das mulheres e das massas trabalhadoras, algo pouco usual neste tipo de publicação sempre mais propensas a tratar de questões macro relacionadas à política e à economia praticadas pelos grupos senhoriais abastados. Em relação à Baixa Idade Média, o autor foi incisivo ao afirmar que, embora as mulheres não pudessem ocupar posições formais de poder, as sociedades cada vez mais complexas do ponto de vista político e econômico deram a elas novas possibilidades pela leitura e também pela devoção popular quando eram eleitas exemplos de fé e vida cristã.

Para encerrar, Chris Whickam trouxe para o primeiro plano de sua ampla e detalhada narrativa o refino das comunicações, o desenvolvimento das estruturas políticas com as suas respectivas capacidades burocrática e tributária cada vez maiores e mais eficientes e a ampliação de uma participação pública no campo da política como as características marcantes dos séculos XIV e XV. Ao fazer isso, Wickham pôs de lado as antigas narrativas de crise e decadência que por décadas dominaram a historiografia produzida acerca deste período a insinuar de maneira precipitada que a Europa aguardava ansiosa por um renascimento ou uma reforma para enfim retomar a sua caminhada em direção ao ser verdadeiro lugar. Isso tudo foi feito sem perder de vista as diferenças internas e a pluralidade cultural que tornaram a cultura europeia tão diversa, diversidade esta que se mantem até hoje.

Feita essa apresentação sumária, retornamos ao capítulo introdutório de Europa medieval intitulado Um novo olhar sobre a Idade Média. Logo na primeira página, os leitores e leitoras poderão encontrar a seguinte afirmação de Chris Whickam: “A história não é teleológica, isto é, a evolução histórica não vai para determinado ponto; ela parte de determinado ponto. […] na minha opinião, o período medieval, cheio de energia, é interessante por si só. Não necessita ser validado por quaisquer desenvolvimentos posteriores”. Em tom de aconselhamento, mas com um leve toque de advertência aos incautos de plantão, as palavras deixadas de Whickam foram dispostas a reafirmar algo extremamente importante: o quanto os medievais têm a nos dizer e ensinar, e não nós a eles. Em tempos de negacionismos extremos e ousados, expor isso à luz do dia é uma necessidade constante.

Às leitoras e aos leitores brasileiros que receberam de muito bom grado a publicação de O legado de Roma: iluminando a idade das trevas, 400-1000 do mesmo Chris Wickham no segundo semestre de 2019, fica o desejo de que tal obra seja em breve aqui traduzida e publicada para que o seu conteúdo possa ser igualmente multiplicado e os seus méritos devidamente aferidos por professores e professoras e alunos e alunas interessados pelas diferentes histórias da Idade Média, um patrimônio cultural que também é nosso.


Resenhista

Carlile Lanzieri Júnior – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

WICKHAM, Chris. Europa Medieval. Lisboa: 70, 2019. Resenha de: LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Signum- Revista da ABREM, v. 23, n. 1, p.110-114, 2022. Acessar publicação original [DR]

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