Far-right revisionism and the end of history: alt-histories | L. D. Valencia-Garcia

Francisco Vazquez
Francisco Vázquez García | Foto: Universidad de Cádiz

A emergência de governos populistas e autoritários, como o de Donald Trump (2016 – 2021) e o de Jair Bolsonaro (2018 – 2022), bem como a repercussão e uso político das fake news, trouxeram ao debate questões fundamentais sobre a chamada “nova direita” e suas características organizativas, ideologias e práticas. Com a Pandemia da Covid-19, a noção de negacionismo ganhou destaque no debate público, na mídia, no meio acadêmico, referindo-se a determinados discursos de rechaço da ciência e da manipulação dos fatos, resgatando algumas das características de ilações e falsificação de fatos históricos que Pierre-Vidal Naquet, em seu Os Assassinos da Memória, atribuía aos revisionistas/negacionistas do genocídio hitlerista. Embora essas evidências estejam muito mais relacionadas a um debate do campo científico — ao endossar uma postura anticientífica próxima daquela iniciada nos anos 2000 quanto ao negacionismo do HIV/AIDS e das mudanças climáticas, e agora, em relação a Pandemia da Covid-19 — é no debate historiográfico que se pode perceber sua amplitude e interlocução política. A obra Far-right revisionism and the end of history: alt/histories, editado por Louie Dean Valencia-Garcia, se faz de suma importância para a compreensão do contexto em que é produzido o discurso negacionista, os diversos grupos da extrema-direita por todo o mundo e, sobretudo, a contribuição de historiadores revisionistas para a construção da chamada alt-history.

Composta por 20 artigos, a coletânea explora amplamente as configurações de uma história alternativa (alt-history) construída por grupos de extrema-direita em contextos como o da Espanha, Estados Unidos, Brasil, Rússia, Alemanha, Itália, Iugoslávia e Canadá. O que apresentam em comum? Para além da presença de retóricas que conduzem a práticas antidemocráticas de movimentos sociais e da opinião pública, uma característica inicial evidenciada na composição desses casos são as polêmicas geradas na abordagem de temas e personagens históricos. A partir disso, constatam-se as tentativas de recusa da história estabelecida e o oferecimento de uma suposta nova versão dos fatos, conhecida apenas por doutos especialistas ou por aqueles (especialistas ou não) que, na contramão dos consensos estabelecidos, se oferecem como vozes dissonantes. Uma primeira definição de alt-history, portanto, é aquela que fomenta:

(1) negação histórica, que pode incluir a rejeição abjeta de arquivos e evidências históricas; (2) crença na história cíclica, ou teleológica, que pressupõe para onde estamos indo ou onde estivemos; (3) narrativas de declinação, que assumem uma teoria da degeneração no lugar da compreensão da mudança; (4) mitologização, que é criada quando os fatos são substituídos por quimeras; (5) nostalgia, por um passado imaginado que muitas vezes supõe tanto uma declinação quanto tentativas de excluir ou sublinhar seletivamente fatos e narrativas históricas; (6) a-historicismo, baseado puramente na inverdade; e (7) através de formas muitas vezes fragmentadas e tendenciosas, a história é lembrada e retratada na memória pública popular (filmes, livros didáticos, programas de televisão, etc.). (VALENCIA-GARCIA, 2020, p. 9)

Essa definição não esgota outras possíveis atitudes céticas e manipulatórias, como o uso de teorias da conspiração para a explicação de fenômenos sociais e políticos. No entanto, a amplitude de sentidos da história alternativa se inscreve nas tentativas acintosas de distorções de fatos para o uso político e de mobilização da opinião pública. Posicionamentos contrários aos direitos humanos e que instigam a violência passam a ser debatidos e endossados com maior naturalidade na esfera pública.

Aqui reside um caráter “perverso” dessa suposta pluralidade, a reivindicação de uma liberdade de expressão de falsas minorias. Primeiro, por mover ideologias radicais para a esfera pública, permitindo com que sua voz “dissonante” componha os espaços democráticos e deliberativos da política. Segundo, porque a participação desses grupos acaba sendo danosa à democracia, ao promoverem discursos de ódio e revanchismos que desrespeitam a memória coletiva (em especial de minorias, oprimidos e subalternos), os desenvolvimentos da historiografia e da ciência histórica, mas que, principalmente, utilizam-se da democracia para atentar contra ela mesma.

Reescrever o passado – algo que se diferencia do ofício de historiador – se configura por meio de um interesse escuso abarcado pela retórica de se estar realizando um revisionismo despropositado, em busca de versões mais consistentes da história. Sobretudo, por se deixar guiar pelas vicissitudes do tempo presente, construindo e, principalmente, acreditando em uma imagem de ficção orwelliana para a realidade, ocasionada pela realização de uma distopia autoritária, despreocupada com a verdade, antinacionalista (globalista) e subversiva quanto aos valores morais tradicionais

Desse modo, planeja-se uma inversão de vítimas e algozes, pois as histórias alternativas exaltam culpados e culpam grupos marginalizados. Com isso, há uma retomada de poder e de controle de narrativas dominantes, que há muito já eram contestadas graças às viragens historiográficas como a da Nova História. A história alternativa não apenas se distancia dos processos científicos e metodológicos da historiografia, mas passa a nutrir o campo dos conflitos pela memória, aproveitando-se dos silenciamentos e dos esquecimentos.

O público interessado encontrará na obra uma pluralidade de temas historiográficos recentes, mas organizados em três eixos bem definidos: a reescrita do passado, a história da esfera pública e as relações entre história, ciência e tecnologia. O primeiro eixo debruça-se nos casos das origens da Espanha e do revisionismo da cultura moura e sua recusa política, dos movimentos conservadores antifeministas, do surgimento do movimento Tea-Party norte-americano, e da história contemporânea da Rússia póssoviética. Em comum, a análise crítica de como o trabalho de historiadores pode ser fundamental para oferecer novas e fraudulentas historiografias, que congregam os mais diversos sentidos de busca de legitimidade de discursos anti-modernidade, racistas, sexistas e nacionalistas, e que, sobretudo, tencionam para que o futuro das disputas de poder esteja muito mais em aberto do que a própria noção de “fim da história”, suposta pelo triunfo das democracias liberais, poderia imaginar.

O segundo eixo de artigos, por sua vez, concretiza a percepção de que os temas historiográficos penetram no espaço público e que, por isso, necessitam ser pensados em suas raízes. Destaque para o artigo The problem of alt-right medievalist white supremacy, and its black medievalist response, de Cord J. Whitaker, que traz uma reflexão a partir dos atentado de Charlotesville, de 2017, dizem muito à respeito das bases neonazistas do pensamento dos grupos supremacistas brancos, que cresceram nos rincões americanos abandonados pela globalização cultural e que passam a nutrir-se de mitos como a de um medievalismo cristão originário, que compartilha de uma palingenesia do cristianismo e do judaísmo, a qual transforma-se em um tipo de populismo ultra-nacionalista. Em contrapartida, movimentos como o medievalismo negro satiricamente recriam as expressões político-culturais de crítica à palingênese, distorcendo o mito medievalista branco ao trazerem à tona valências diferentes da idade média para modernidade. O debate sobre a supremacia branca continua em Getting Medieval Post-Charlotesville: Medievalism and alt-right, de Thomas Blake, ao desmistificar as origens de um medievalismo “popular”, incorporado pela extrema-direita a partir de Game of Thrones, Viking e outras ficções.

No mesmo conjunto de artigos, Vinícius Bivar, em Long Live the Polarization: The Brazilian Radical Right and the uses of the past under Jair Bolsonaro, debate como o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, se valeu de uma retórica de apoio à ditadura civil-militar brasileira na construção de sua carreira política. Essa retórica se fundamenta na ideia de que a intervenção militar foi, sobretudo, uma realização do desejo do povo, de sua vontade coletiva. Bolsonaro encontra no ex-Coronel do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, um ponto de apoio versado na voz dissonante que chancela o golpe militar, desconsiderando suas mazelas, torturas e violações de direitos humanos – fatores que ganham força após a derrocada do Partido dos Trabalhadores e a crise do governo de Dilma Rousseff. Embora não se tenha uma tradição nacionalista no Brasil, esse período cria algo muito específico: um discurso nacionalista e liberal composto por conspirações comunistas lideradas pelo Foro de São Paulo. Esse arcabouço se complementa com o ganho de poder de autoridades religiosas neopentecostais e do destaque evidenciado nas redes sociais ao Movimento Brasil Livre (MBL), o que permite que o uso do passado que flerta com a ditadura seja colocado, frente-a-frente, com a era petista. A contribuição do artigo, portanto, se dá em perceber como esses movimentos normalizaram uma retórica de extrema direita ao imporem uma derrota ao consenso democrático e, mais do que isso, por promoverem uma atualização da “ameaça comunista”, em que Bolsonaro aparece como uma revisão do golpe de 1964, defendendo os valores da família brasileira e sua moralidade.

A última parte do livro debate as relações entre direito, ciência e tecnologia, de modo a apresentar diversas nuances de como a história do tempo presente se configura com o uso de mídias sociais. É possível perceber, por um lado, como o faz Curtis Dozier em Hate Groups and Greco-Roman Antiquity Online: To rehabilitate or reconsider?, que discursos de ódio se embasam no prestígio da grandiosidade da Antiguidade Greco-Romana, construída nos imaginários populares, entendendo sua posterioridade como marcada pela decadência e degeneração. O artigo de Marc Tuters e do Open Intelligence Lab, Esoteric Fascism Online: 4chan and the Kali Yuga, atenta-se para compreender as derivações da alt-right que se baseiam no esoterismo ocidental e outras obscuras tradições da história do pensamento político, de modo que é no 4chan que visões de um “fascismo esotérico” – que de acordo com o ciclo Hindu dos tempos a Kali Yuga seria uma era de declínio humana e que, por isso, necessitaria ser combatida por guerreiros – encontram um campo fértil de seguidores. Seguindo essa linha, Louie Dean Valencia-Garcia, em The Rise and Fall of the Far Right in the Digital Age, entende que é na internet que diversos grupos nacionalistas brancos e neofascistas tem se socializado e criado redes, gerando uma espécie de “comunidade digital imaginada”, a qual permite uma reconstrução do neofascismo contemporâneo, com novas referências teóricas e políticas.

Ao suscitar o debate sobre os movimentos neofascistas, tradicionalistas, conservadores e supremacistas brancos, ou seja, todos aqueles que podem ser relacionados com a matriz da alt-history, a obra ultrapassa os limites de uma compreensão historiográfica e lança uma luz sobre o tempo presente, atualizando a compreensão de manipulação do passado reconstruído por meio dessas visões. Além disso, o uso das mídias sociais tem sido fundamental para o fortalecimento da alt-history, não mais se configurando como um espaço secreto ou restrito à deep web, mas que ganha notoriedade pública em redes sociais mais conhecidas, ou que, em contrapartida, se enraízam através de novos espaços digitais com o discurso de liberdade de expressão. Essa leitura desafia a contextualização global desses movimentos, que paulatinamente se afastam do fascismo do século XX ao estabelecerem novos comportamentos sociais e políticos e ao desafiar os instrumentos metodológicos e interpretativos da História e das Ciências Sociais.


Resenhista

Pablo Emanuel Romero Almada – Doutor em Democracia no Século XXI pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2015). Graduado em Ciências Sociais – Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (2007) e Mestrado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2009). Pós-doutorando em Sociologia no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), junto ao projeto CEPID/FAPESP “Building Democracy Daily: Human Rights, Violence and Institutional Trust”. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3729-8360


Referências desta Resenha

VALENCIA-GARCIA, L. D. (Ed.). Far-right revisionism and the end of history: alt /histories. New York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2020. Resenha de: ALMADA, Pablo Emanuel Romero. O negacionismo além da história: um olhar sobre a alt-history. Projeto História. São Paulo, v. 74, p. 238 – 243, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.