Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860 | Rafael de Bivar Marquese

No final dos anos 80 Ciro Flamarion Cardoso chamava a atenção para o fato de que a historiografia brasileira sobre a escravidão ignorava o que era produzido no restante das Américas sobre o mesmo tema e alertava para a necessidade de utilização do chamado método comparativo nos estudos sobre a escravidão. Desde então, livros como o de Eugene Genovese, sobre a escravidão nos Estados Unidos, de Moreno Fraginals e Rebeca Scott, sobre Cuba, de Emilia Viotti da Costa, sobre a Guiana Inglesa e o de C. R. L. James, sobre o Haiti, representaram avanços consideráveis no estudo sobre o tema. Quanto ao método comparativo, ele pode ser identificado nas recentes publicações de Célia Marinho Azevedo, sobre o processo abolicionista nos Estados Unidos e no Brasil, e na coletânea organizada por Manolo Florentino e Cacilda Machado. O livro de Rafael de Bivar Marquese, Feitores do Corpo, Missionários da Mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860, está situado na intercessão entre estas duas possibilidades de estudo, pois faz um balanço da produção historiográfica sobre a escravidão nas Américas e apresenta um estudo comparativo sobre os regimes escravocratas nas colônias inglesas, francesas, espanholas e portuguesa.

Rafael de Bivar Marquese é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo desde 2002. A sua dissertação, defendida em 1997, nesta mesma universidade, foi publicada em 1999, pela Editora HUCITEC, com o titulo Administração & Escravidão: idéias sobre a gestão da agricultura escravista no Brasil. Em 2001, Marquese organizou o “Manual do Agricultor Brasileiro”, de Carlos Augusto Taunay, que foi publicado pela Companhia das Letras. Um ano depois, concluiu o doutorado, também pela USP. Feitores do corpo, missionários da mente, resultado de anos de pesquisas sobre a administração dos escravos, é uma versão modificada de sua tese de doutorado.

A obra é um amplo painel sobre as idéias relativas à administração dos escravos, surgidas nas Américas, entre os séculos XVII e XIX. Em um livro denso, pautado em um recorte temporal e espacial de considerável amplitude, o autor faz a análise de textos impressos que se preocuparam (de maneira direta ou não) com o tema da administração dos escravos e que prescreveram normas sobre o assunto.

O livro está estruturado em três partes: na primeira parte, o autor analisa a “Teoria Cristã do Governo dos Escravos”, corrente nas Antilhas Francesas e Inglesas, bem como na América Portuguesa, no período de 1650 a 1720; a segunda parte aborda a “Teoria Ilustrada da Administração de Escravos”, disseminada por todo o “Novo Mundo”; e, na terceira e última parte, analisa a aplicação da “Teoria da Administração de Escravos nos quadros dos Estados Nacionais” no Império do Brasil, em Cuba e na República dos Estados Unidos.

O foco central de sua análise são os diferentes textos referentes à administração dos escravos, mas as constantes alusões ao contexto histórico circundam e interferem na publicação destes documentos. Na introdução, após uma breve explanação sobre a historiografia e uma exposição sobre o objeto, o corte cronológico e as fontes de seu trabalho, Marquese apresenta os seus dois objetivos principais: o primeiro, “examinar de que modo os senhores e letrados que escreveram sobre a gestão escravista, […] valendo-se das ferramentas mentais da economia política, propuseram uma série de mecanismos para aumentar a produtividade do trabalho escravo”; o segundo, “analisar como o principio da soberania doméstica […] adequou-se tanto às formas políticas patriarcais do Antigo Regime como às formas liberais dos Estados Nacionais oitocentistas” (p. 13-14). Também na Introdução o autor reporta-se ao debate sobre escravidão e modernidade, evidenciando que a escravidão era compatível com o ideal de racionalidade econômica proposta pelo mundo moderno.

Na primeira parte do livro, resumida a apenas um capítulo, intitulado “Antilhas francesas e inglesas, América portuguesa, (1650-1720)”, o autor aborda a grande produção de textos impressos que apresentavam uma “teoria cristã do governo dos escravos”. Com exceção do Code Noir,salienta Marquese, os autores desses textos eram geralmente religiosos (jesuítas, dominicanos e anglicanos) e, no intuito de normatizar as relações entre senhor e escravo, mesclavam os discursos clássicos sobre agronomia e oikonomia ao preceito bíblico das obrigações recíprocas. O autor faz incluir, entre as obras pertencentes a este conjunto de “teorias cristãs”, os textos de Jean-Baptiste Du Tertre (1667 e 1671) e o Code Noir (1685), relativos às Antilhas francesas; os Atos de Barbados (1661) e a obra de Morgan Godwyn (1680), sobre as Antilhas Inglesas; e, em relação à América Portuguesa, os textos de Jorge Benci (1700) e João Antonio Andreoni, ou Antonil (1711). Com relação a este ultimo, temos a objetar a sua inclusão entre os autores da chamada “teoria cristã do governo dos escravos”, pois o método como Antonil apreende a realidade é pautado na racionalidade, na objetividade e na disciplina, o que evidencia a sua ligação estreita com o pensamento moderno. Comuns a todos estes textos foi o fato de que eles foram ignorados, em toda a América, pela classe senhorial, que se apegava ao principio da soberania doméstica, ou seja, do poder ilimitado dos senhores na gerência de seus escravos.

Na segunda parte do livro, Marquese analisa o impacto, nas teorias sobre o governo dos escravos, do Iluminismo e, em especial, de Jean Labat, cuja obra, datada de 1722, rompe com a Teoria Cristã. O texto de Labat fazia, ainda, referencia aos preceitos religiosos, mas trazia uma visão secularizada da relação senhor-escravo. Labat argumentava no sentido de que a preservação do bem material dos senhores passava pela boa observância para com os escravos. Todos os livros posteriores fizeram de alguma forma referência a esta obra.

O texto de Le Romain (1765), que se fez constar inclusive da Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, foi o primeiro a empregar, na abordagem sobre o governo de escravos, o binômio humanidade (noção central do Iluminismo) e interesse (coerente com o discurso mercantilista seiscentista). Nesta ótica podem ser incluídos, também, os trabalhos de Émilien Petit (1777), Jean-Barthélemy Dazille (1776) e Samuel Martin (1760). O livro de Martin foi um dos textos agronômicos mais editados durante a segunda metade do século XVIII. Segundo Marquese, sua importância “residiu no fato de ter sido o primeiro manual agrícola caribenho que combinou a defesa da escravidão, diante das críticas à instituição, com a defesa da melhoria do tratamento da força de trabalho escrava, valendo-se nos dois casos da fórmula ‘humanidade’ e ‘interesse’” (p. 104).

Neste mesmo período, torna-se corrente, entre os ingleses, a noção – para cuja difusão contribuíram as obras de Edward Long (1774) e Adam Smith (1776) – de que os franceses administravam melhor os seus escravos, pois produziam mais açúcar e não tinham grandes revoltas de escravos, como as que ocorriam na Jamaica. Consubstanciadas nessas idéias, já na década de 1780, uma melhoria no tratamento dos escravos pode ser observada, nas Antilhas Inglesas. Os textos de Wiliam Beckford (1793) e Bryan Edwards (1793) evidenciam essas mudanças.

Entretanto, convém ressaltar alguns pontos que Marquese não aprofunda (ou mesmo não destaca). Em primeiro lugar, o fato de que o próprio Adam Smith – ainda que de maneira dúbia, pois defendia a escravidão nas colônias americanas – argumentava já no sentido de que a administração do escravo era mais onerosa do que o trabalho livre. Em segundo lugar, o fato de que as idéias iluministas, em sua essência, foram contrárias à escravidão. Alguns anos após a publicação do texto de Le Romain, a Encyclopédie irá publicar dois artigos de Jaucourt, intitulados “Escravidão” e “Trafico negreiro”, que, se servindo de Montesquieu, condenavam veementemente o trabalho escravo. Por último, é preciso destacar a disseminação, a partir de meados do século XVIII, sob a influência do Iluminismo francês, do discurso antiescravista entre os letrados das Américas.

No capitulo “Escravismo da Ilustração: a administração antilhana dos escravos”, a partir da análise dos textos de Collins (1803), Jean Samuel Guisan (1788), Poyen (1792) e Jacques-François Dutrône (1791), Marquese conclui: “Escorando-se em categorias retiradas do discurso da economia política, os autores deste período erigiram um saber especificamente voltado para a organização do processo de trabalho escravo” (p. 147).

Não se advogava, nas Antilhas, um modelo paternalista de administração, tal qual havia no Brasil e no sul dos Estados Unidos. Entretanto, foram observadas melhorias nas condições de trabalho do escravo. A razão para isso, segundo Marquese, estava na preocupação dos senhores em relação à gestão dos escravos, que “acabou por dar origem a uma teoria articulada, isto é, um corpo sistemático de idéias que seguiam princípios uniformes destinados a explicar e a guiar a pratica gerencial” (pág. 163).

O capitulo “O governo dos escravos na América Portuguesa e nas Antilhas espanholas (1750-1815)” está centrado na análise sobre Brasil e Cuba. Marquese salienta que, não só no Brasil, mas também em Cuba, o tema do governo dos escravos não foi uma preocupação sistematizada, ou mesmo um objeto de estudo e discussão entre os senhores e explica: “Isso ocorreu por razões distintas: em Cuba, porque não existia uma economia escravista de plantation; na América Portuguesa, porque as pregações jesuíticas foram silenciadas pelos senhores rurais” (p. 173). No Brasil, uma mudança de orientação pode ser observada na tentativa de modernização cultural, proposta pelo Marquês de Pombal, que acabou trazendo para o Brasil influxos da ilustração européia e influenciou decisivamente as obras de Manuel Ribeiro Rocha (1758), José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu (1781), Baltazar da Silva Lisboa (1786), Luis Antonio de Oliveira Mendes (1790) e Luis dos Santos Vilhena, (1798 e 1800). Todos estes autores, cuja base teórica estava na economia política, argumentavam no sentido contrário à interferência na soberania domestica dos senhores e demonstravam uma grande preocupação com as técnicas produtivas das plantations escravistas. Essas mesmas disposições podem ser observadas em obras posteriores, como na coleção “O Fazendeiro do Brasil”, editada entre 1798 e 1806 pelo botânico e frade mineiro José Mariano da Conceição Velloso.

Escapa ao foco de abordagem de Marquese o fato de que as principais idéias antiescravistas disseminadas no Brasil, na primeira metade do século XIX, por autores como João Severiano Maciel da Costa (1821), Antonio José Gonçalo Chaves (1822), José Bonifácio de Andrada e Silva (1825) e José da Silva Lisboa (1851), eram também fortemente influenciadas pela ilustração. Este ultimo é o mais emblemático desses autores, pois transita entre a conivência com a escravidão – como em uma carta de 1781, analisada por Marquese – e a sua negação – como pode ser observado em seus textos de 1851.

Em relação às colônias espanholas de Cuba e Santo Domingos, Marquese analisa as reformas impetradas por Carlos III, que trouxeram profundos impactos sobre a administração. O “Código Negro Carolino” (1784) e a “Real Célula” (1789), que visavam ordenar a administração dos escravos, eram instrumentos legais de interferência do Estado espanhol na soberania doméstica dos senhores do Novo Mundo. Não é de se estranhar, portanto, que a oligarquia senhorial cubana tenha se oposto veementemente a este conjunto de leis e conseguido impedir a sua implementação não só em Cuba, mas também em Santo Domingos, Caracas (Venezuela) e Louisiana (Estados Unidos). Assim sendo, “tal como seus pares ingleses, franceses e luso-brasileiros um século antes, os senhores cubanos lograram consagrar, na passagem do século XVIII para o XIX, o princípio da soberania doméstica como mantenedor da ordem escravista” (p. 216).

No capítulo “O governo dos escravos na América inglesa continental e nas décadas iniciais dos Estados Unidos da América, 1750-1815”, concernente à teoria ilustrada da administração dos escravos, Marquese afirma que inexistiam textos normativos sobre a administração dos escravos na América Inglesa Continental, o que teria levado a uma espécie de consenso, nessas regiões, sobre a forma de governar os escravos. As explicações para isso resultam da associação dos seguintes elementos: “residência permanente do senhor na colônia e o conseqüente envolvimento na gestão da propriedade rural, o controle da política interna da colônia, os contatos freqüentes entre os senhores necessários para a sua reiteração, o ethos patriarcal e o principio da soberania domestica” (p. 226). Existem, entretanto, textos pertencentes à esfera domestica dos senhores (cartas, diários…), dos quais se destacam a documentação de Richard Corbin (1759), Landon Carter (1752-78), Thomas Bacon (1750) e Samuel Davies (1758).

No período posterior ao processo de Independência, o mais importante trabalho sobre o governo dos escravos é o tratado Arator, publicado em 1813 por John Taylor. Este tratado, destacado por Marquese, foi a primeira manifestação oitocentista norte-americana acerca da administração dos escravos:

Alguns de seus elementos mais importantes estiveram presentes aqui, notadamente a defesa da escravidão por meio da afirmação de sua compatibilidade com a ordem republicana, o endurecimento das clivagens raciais, a elaboração de um ethos paternal como resposta aos ataques antiescravistas e como programa de incremento agrícola, a melhoria dos padrões de vida material dos escravos (p. 256).

Na última parte do seu livro, “A teoria da administração de escravos nos quadros dos Estados nacionais”, Marquese inicia a discussão a partir do Império brasileiro. Uma das grandes novidades deste momento é que senhores escravistas começaram a escrever sobre o assunto, a exemplo de Miguel Calmom du Pin e Almeida (1834), Carlos Augusto Taunay (1839) e Francisco Peixoto de Lacerda Werneck (1846). A teoria oitocentista brasileira sobre a gestão dos cativos conjugava o paternalismo com a disciplina. Fazia referências diretas aos textos antilhanos e compartilhava, com as teorias antilhanas, uma matriz conceitual comum, baseada na economia política. Mas o ideal paternalista, presente no Brasil, inexistia nas Antilhas. A existência desse paternalismo nas Américas, vale ressaltar, não resultou da cordialidade e a benevolência dos senhores para com os escravos, mas sim da necessidade de disciplinar e justificar moralmente um sistema de exploração. Para os escravos, as “concessões” senhoriais eram conquistas, defendidas com muito sacrifício, e, em alguns casos, se transformavam em “tradições”, costumes, e “pseudodireitos”.

No capítulo dedicado a Cuba, Marquese destaca as transformações ocorridas na economia açucareira a partir de 1820 – como as melhorias técnicas, a integração ao mercado industrial e a abertura para o mercado mundial. Neste contexto, surge a Real Sociedade Patriótica de Havana, a partir da qual autores como Francisco Javier Troncoso (1823) Cecílio Ayllon (1825), Honorato Bernardo de Chateausalins (1831) e Andrés de Zayas (1836) publicaram textos sobre administração dos escravos. São pontos comuns nos seus textos a ausência do ideal de paternalismo (tal qual existia no Brasil e nos Estados Unidos) e uma preocupação acentuada com a produtividade do trabalho escravo:

a preocupação com a extração de muito trabalho dos escravos, com o controle disciplinar rígido deles (construção de barracões em substituição aos bohíos, incomunicabilidade dos cativos com o mundo externo à plantation), a ausência de um ideal de paternalismo, o silencio sobre o casamento como mecanismo disciplinador e, em conseqüência disso, poucas considerações sobre o crescimento vegetativo da escravaria (p. 316).

No último capitulo, Marquese analisa os textos sobre a administração dos escravos publicados no período republicano dos Estados Unidos (1820- 1860). Publicados em periódicos como American Farmer (1821), Southern Agriculturist (1828) e De Bow´s Review (1846), esses textos pautavam-se, principalmente, pela defesa da escravidão e pela difusão do saber agronômico. Todos os textos procuravam conjugar o binômio disciplina-paternalismo, que, tal qual no Brasil, constituiu um dos pilares da teoria oitocentista norte-americana da gestão escravista. Esses textos ofereciam, segundo Marquese, “uma visão positiva do escravo, a defesa da escravidão, a conjugação entre disciplina estrita e paternalismo senhorial, tudo isso confluindo na busca de um ‘sistema de administração’” (p. 353) e buscavam associar a tríade interesse-humanidade-religião. Marquese dedica dois longos capítulos (5 e 8) à descrição da história da escravidão norte-americana e argumenta no sentido da especificidade do processo de construção do sistema escravista nos Estados Unidos e da singularidade da formação social escravista nos Estados Unidos. Para Marquese, a existência, ali, de um certo “consenso” sobre a maneira de administrar os escravos dispensava a existência de textos normativos.

Nas “Considerações Finais”, o autor discute a relação entre escravidão e modernidade e afirma que, a partir do final do século XVIII, as teorias leigas sobre a administração dos escravos nas Américas, baseadas nas ferramentas da economia política, romperam com a teoria cristã. O autor reitera também que não há contradição entre liberalismo e escravidão, ou seja, que a escravidão negra não era totalmente incompatível com a modernidade econômica e a política liberal. De fato, a escravidão era uma instituição racionalizada, que dava lucro e precisava ser gerenciada da melhor maneira possível. Neste sentido, o liberalismo, ao oferecer as ferramentas para uma maior racionalização do trabalho escravo, e liberais, como Adam Smith, ao defenderem a escravidão nas colônias americanas, davam uma importante contribuição para as teses sobre a administração do trabalho escravo. Entretanto, é preciso também destacar que esse é um dos aspectos mais contraditórios do liberalismo e dos liberais que, ao mesmo tempo, defendiam o trabalho livre e condenavam todo tipo de trabalho servil.

Nessas considerações finais, o autor se preocupa em abordar particularmente a relação escravidão e liberalismo, mas poderia também dedicar-se a analisar os elementos comuns nas teorias (e textos) sobre o governo dos escravos. Afinal, uma das riquezas do seu livro é justamente a possibilidade de verificar as similaridades e diferenças entre os documentos analisados. Até o momento nenhum autor pôs lado a lado tantos textos sobre a administração dos escravos e nem se propôs a analisá-los de forma comparativa.

Entre os pontos de congruência dos documentos está, em primeiro lugar, a idéia da religião como elemento disciplinador, idéia essa presente principalmente na teoria cristã, mas também nos escritos influenciados pela Ilustração e nos escritos do século XIX. A necessidade de cristianizar os escravos estava latente em textos religiosos, como os dos jesuítas, mas também em textos laicos como o Code Noir; e mesmos os textos que, baseados nas ferramentas da economia política, defendiam o “governo econômico” assinalaram a necessidade de medidas de disciplinarização ideológica, entre as quais a difusão da religião seria a mais eficaz.

O segundo ponto de convergência está na associação entre disciplina e aumento de produtividade. De tal associação resulta, como destaca Marquese, que não havia incompatibilidade entre a política liberal e a escravidão, pois também entre os industriais ingleses acreditava-se que a disciplinarização do operariado tornaria as indústrias mais produtivas.

Um terceiro ponto comum a ser destacado é a reafirmação, em todos os períodos e em todas as colônias do Novo Mundo, do princípio da soberania doméstica. A classe senhorial não aceitava ingerências externas, seja da metrópole seja de “estranhos”, como os jesuítas. Se as leis e os preceitos escritos são expressão de um mundo desejado, ordenado segundo a vontade dos governantes e dos letrados que escreveram sobre a administração dos escravos, a realidade cotidiana das colônias era muito mais dinâmica e se constituía em um grande campo de disputas. Isto não quer dizer que em algum momento a classe senhorial não tenha ouvido os “conselhos” presentes nestes tratados, pois melhorias nas condições do trabalho escravo foram observadas em muitas partes da América.

Cumpre, por fim, salientar a importância do texto de Marquese para o estudo da escravidão nas Américas. Afinal, se, por um lado, o período por ele escolhido é demasiadamente longo, como assim também o é a documentação, por outro, a sua forma de abordagem aponta para o fato de que a escravidão foi uma instituição atlântica e que, para melhor entendê-la, é preciso pensá-la de maneira global.


Resenhista

Washington Santos Nascimento – Professor de História da América da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Resenha de: NASCIMENTO, Washington Santos. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 4, n. 1, p. 243-252, 2004. Acessar publicação original [DR]

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