Fluxos Migratórios e Identidades / Dimensões / 2011

A Revista Dimensões anuncia neste número o empenho na internacionalização de quatro Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, respectivamente, de História, Ciências Sociais, Letras e Linguística e a Università Cà Foscari di Venezia. O eixo temático Fluxos Migratórios e Identidades é construído em torno de uma agenda de pesquisas que promove revisões sobre o fenômeno migratório, ontem e hoje, numa perspectiva interdisciplinar.

O fenômeno imigratório tem crescido em importância, em âmbito internacional, e se tornado uma presença constante nas páginas dos periódicos dos países centrais, mas também daqueles do chamado sul global. Quer por questões internas e pelas problemáticas inerentes à imigração – sobretudo em uma dinâmica de criminalização do imigrante – quer pelos problemas gerados pelo próprio fluxo de entrada de estrangeiros – que produz dificuldades de controle para os Estados Nacionais – o processo migratório é hoje um tema candente nas sociedades de acolhida e nos países de emigração. Também, os esforços das vozes subalternas em se fazerem ouvir, num mundo que denuncia as práticas colonialistas e neocolonialistas, trazem à luz os deslocamentos e trânsitos antes invisíveis e promovem releituras de identidades étnicas, de gênero, políticas e outras. Dessa forma, considerando que são as demandas sociais do presente que oferecem o input temático às pesquisas das Ciências Humanas, a imigração está ocupando, novamente, um espaço importante nas discussões acadêmicas e produzindo encontros e publicações em níveis local e internacional.

A problemática migratória não é nova na sociedade humana, poder-se-ia dizer que – inclusive – é um fenômeno milenar, mesmo que a chamada imigração de massa esteja fortemente vinculada à segunda metade do século XIX e à expansão da segunda revolução industrial pelo continente europeu. Nesse sentido, pensar os fluxos de indivíduos e de grupos étnicos ou sociais não está restrito ao tempo presente, mesmo que seja esta a temporalidade que nos impulsiona a pensar o problema imigratório. Pelo contrário, este fato social nos joga também para o passado, para compreender efetivamente a complexidade desses movimentos humanos nos quase 150 anos dos grandes deslocamentos de finais dos Oitocentos.

Ao se falar de uma relação que envolve a interação entre um eu ou nós e um outro, trazemos à tona as questões relativas às interculturalidades e à transculturalidade. Problematizamos a modernidade e suas metamorfoses; o Estado-Nação e seus limites; as ideologias e o poder; a memória, os projetos de vida e os sentidos da existência, de mulheres e de homens; discutimos a violência, a criminalização e a luta por reconhecimento; a pobreza, a insegurança; as políticas públicas, as identidades regionais e a ordem supranacional, os fluxos, enfim das gentes ontem e hoje, a reinvenção de si mesmos e do mundo entre a hostilidade e a hospitalidade.

O novo que chega gera conflito, como criou, também, no passado imigratório, pois rompe com uma pseudo-harmonia social que reina no mundo dos “iguais”. Os imigrantes trazem consigo a ruptura da ordem social, porque buscam um reconhecimento ao interno do sistema, porque acabam participando da pequena criminalidade quando não encontram espaços no mundo legal. O mesmo fez parte das dinâmicas imigratórias do passado, quando ao imigrante europeu era atribuído o conflito social, por meio de greves e organização de sindicatos: tornaram-se indesejáveis, pois não refletiam a cordialidade do braço nacional.

Com o artigo Costruire Strade in Brasile: immigrati liguri e piemontesi a metà dell‟Ottocento, de autoria de Chiara Vangelista, analisa-se o espaço do trabalho como mote do processo imigratório. Nesse sentido, a autora destaca – em uma dinâmica de deslocamento que antecede a imigração de massa, pois se estabelece na década de 50 do século XIX – os processos de integração e interação com a terra de acolhida, em uma experiência maiormente falimentar, característica comum às tentativas de atração de imigrantes efetuadas no período, devida ao estranhamento vivido pelos imigrantes e as condições inerentes a uma sociedade ainda fortemente escravista. Diferentemente da coesão étnica, marca dos estudos imigratórios do período imediatamente posterior, a autora destaca, neste caso, as fugas, a solidão e a experiência individual como elementos desta luta pela sobrevivência.

A ênfase no estranhamento também está presente em Trajetórias Migrantes: ambivalência na interação „Nós‟ e os outros, de Maria Cristina Dadalto. A autora busca analisar o encontro com a alteridade, que envolveu os diferentes grupos assentados no estado do Espírito Santo, ao longo do processo de formação histórica da região, a partir do século XIX. Através do uso das fontes orais, Dadalto discute as experiências de ser estrangeiro em diferentes contextos do território capixaba. Em um percurso diacrônico de estudo, a relação entre estabelecidos e outsiders é percebida tanto no âmbito inter-étnico – que marca o passado do processo de ocupação – quanto naquele do estilo de vida, do comportamento social – que assinala as relações presentes na contemporaneidade.

Edenize Ponzo Peres, em Aspectos da imigração italiana no Espírito Santo: a língua e cultura do Vêneto em Araguaia, também mergulha em uma análise da relação entre um nós e um outros, colocados nas interações do tempo presente. No entanto, a autora destaca os elementos que compõem a identidade italiana na região, enfatizando um processo de permanência, entrelaçado pela forte marca da perda de elementos percebidos como componentes importantes desta cultura. Utilizando-se da metodologia da linguística variacionista, Peres procura estudar essa sensação de perda contínua – sobretudo no que tange ao modo de comunicar do grupo de imigrantes – vivida pelos membros da comunidade de Araguaia.

A problemática da perda também é discutida por Susanna Regazzoni, no artigo Italia Argentina una historia compartida: Syria Poletti inmigrante italiana, escritora argentina. Destacando a importância do elemento feminino no processo de transculturação presente no fenômeno imigratório italiano, na Argentina, Regazzoni analisa a experiência ficcional como parte de um processo de recuperação identitária, a partir do reviver da experiência de expatriação. Através do estudo da obra literária de Syria Poletti, pode-se compreender as misturas que fundam uma identidade híbrida, na qual a italianidade e a argentinidade são compartilhadas. Nesse sentido, pensa-se em uma identidade argentina que é marcada pelos aportes culturais trazidos pela massa de italianos que, em diversas décadas, foi irrigando o tecido social daquele país.

Silvia Camilotti, em Writing from and on the border. Christiana de Caldas Brito’s narratives, também nos oferece uma leitura sobre a análise dos processos identitários a partir da produção literária. Está-se diante de um fenômeno diferente, pois se trata de uma imigração brasileira contemporânea – década de 80 do século XX – e de menor expressão quantitativa, se comparada com aquela italiana na Argentina; todavia, o texto de Camilotti não deixa de falar dos processos plurais de construção de identidade. A autora destaca, no entanto, trabalhando mais especificamente com uma das coletâneas de contos de Christiana de Caldas Brito, Qui e là, o conceito de fronteira – entendido como espaço de sofrimento, mas, também, de tomada de consciência – e a ideia de um duplo pertencimento.

Na perspectiva das mudanças nos processo migratórios EuropaBrasil, Luis Beneduzi, em Uma aliança pela pátria: relação entre política expansionista fascista e italianidade na comunidade italiana do Rio Grande do Sul, trata da década de 1930, anos que antecedem a invasão da Abissínia pelas tropas italianas, num conturbado quadro internacional, no qual a Itália fascista é punida com sanções econômicas por parte da Sociedade de Nações. O exame do Jornal Staffetta Riograndense, lido por diferentes camadas sociais dentre os imigrantes italianos, atenta para a aproximação afetiva-identitária entre a comunidade ítalo-brasileira no Rio Grande do Sul e a madre pátria que teve sobretudo no esforço de guerra italiano a re-elaboração da experiência imigratória, com a produção de sua narrativa épica. Nota que a Abissínia é dada a conhecer aos colonos como rica, mas sob o mando de um povo bárbaro, legitimando-se a ação violenta de Mussolini e de seu exército, capaz, porém, de atrair jovens voluntários ítalo-brasileiros e de reforçar o laço entre os italianos no mundo, não mais apenas emigrados, mas cidadãos distantes e laboriosos.

Atentos igualmente às dinâmicas históricas dos fluxos migratórios, relacionando-os aos debates da identidade e do mundo do trabalho, Maria Izilda Santos de Matos e Alfredo Moreno Leitão, em seu artigo Portugueses em São Paulo: trabalho e ação política, analisam as relações cotidianas e as lutas políticas dos imigrantes lusitanos na São Paulo do período que separa as duas guerras mundiais. Os autores salientam – mesmo registrando o aspecto plural dos sujeitos imigrantes – as transformações políticas que os portugueses aportaram à realidade social brasileira, com novas formas de luta e resistência, e sobrevivência, diante da política de expulsão dos indesejáveis, característica da Era Vargas. No entrelaçamento de experiências imigratórias, novas identidades sociais vão sendo forjadas, internas ao grupo étnico e, também, em um contexto inter-étnico.

Em Um povo que caminha: notas sobre movimentações territoriais guarani em tempos históricos e neocoloniais, Celeste Ciccarone fala-nos da longa duração da história das migrações do povo Guarani desde o período pré-colonial até a atualidade, destacando os Guarani-Mbya cujo mundo é seu território, isto é, os caminhos percorridos por sua gente, desde os remotos antepassados, tendo como único limite o mar. Sua cosmologia desconhece fronteiras geopolíticas ou quaisquer visões estáticas de territorialidade, entretanto, sob os paradigmas e parâmetros ditos civilizados (brancos) são obrigados a viver, ao mesmo tempo em que resistem às políticas de Estado, que lhes impõem o confinamento e a sedentarização, sob a idéia de tutela.

Em Intelectuais no exílio: onde é a minha casa?, Adelia Miglievich Ribeiro apresenta outra faceta da imigração, pensada como experiência individual e vinculada à marca do exílio. Traz-nos Adorno e Said para pensar a escrita como a morada do intelectual exilado. Retrata as experiências de Mario Benedetti, Ángel Rama e Darcy Ribeiro. Nos trânsitos provocados pelas ditaduras militares do Cone Sul, expõe como os intelectuais públicos reconstruíram sua pátria no ideal da integração latino-americana. Entre dinâmicas que envolvem a perda e o não-reconhecimento, estuda as marcas do desassossego nos intelectuais exilados no subcontinente que fomentam o pensamento crítico, aquele que nasce apenas no entre-lugar, do contato com a alteridade e dos pontos de vista inéditos, produtos dos hibridismos.

Assim é que Jurema Oliveira apresenta-nos em Relações literárias entre o Brasil e o Império Português na África o intercâmbio intelectual havido entre a literatura brasileira e aquela do império português na África desde o século XIX, criador de redes de cumplicidades de efeitos políticos na luta anticolonialista no continente, já no século XX, quando brasileiros exilados também habitaram os países africanos numa confluência de expectativas cujos movimentos literários, a exemplo de Cabo Verde, Angola e Moçambique expressavam nalguma medida, de modo a se fazer ler a palavra transgressora presente no brado do martinicano Aimé Césaire ou no Negrismo cubano a desafia, em África, os cânones eurocêntricos.

As relações entre África e Brasil são, sumamente hoje, tratadas como políticas públicas dos respectivos países. Não gratuitamente, Brasil e PALOP, conforme trata Neusa Gusmão, em “Na Terra do Outro”: presença e invisibilidade de estudantes africanos no Brasil, hoje, articulam a vinda para as universidades públicas brasileiras de tais estudantes. O tema sociologicamente relevante traz especificidades. De um espectro, tem-se o significado desses jovens na política de Estado de seu país de origem, para o qual sua formação faz parte de um projeto nacional de desenvolvimento e há de se perguntar: qual? Sob outro ângulo, importa atentar para a subjetividade desses estudantes que não se reconhecem como imigrantes mas como passageiros, ainda quando somam a graduação à pós-graduação e constituem aqui sua família, parecendo, porém, manter-se fora de lugar, num misto de visibilidade e invisibilidade, e como diz Sayad, numa vida sempre provisória, o que reporta à história mais geral da diáspora africana. A autora estuda o cotidiano desses estudantes em Campinas (SP) e em Fortaleza (CE), ressaltando ainda o ser negro, mesmo que estrangeiro, num Brasil racista.

Ana Liési Thurler tematiza a migração interna brasileira hoje sob a perspectiva das relações de gênero. Elege o grupo das mulheres migrantes que deixam situações de violência doméstica em seu lugar de origem e chegam a Planaltina, cidade-satélite do Distrito Federal para trabalhar comumente como empregadas domésticas em Brasília, Capital da República. Descontroi, em sua percepção de que as migrações são necessariamente racializadas, etnicizadas e sexuadas, o senso comum de que, ora, as mulheres não se opõem à dominação masculina, ora, que a principal motivação dos deslocamentos femininos seja a questão econômica. Põe em xeque ainda o binarismo atraso e progresso e faz notar os desafios de uma vida digna para as migrantes em alto grau de vulnerabilidade numa sociedade, lá e cá, sexista e injusta.

Elisabetta Pernigotti, em Monoparentalité et immigration au féminin en France: une question publique, analisa a monoparentalidade migrante na França a revelar igualmente relações de gênero, de classe e relações étnicas, advindas do passado, colonial a estigmatizar e legitimar desvantagens sociais para a mulher migrante, mãe, desacompanhada de homem. Para tal grupo, a violência doméstica, as barreiras no mercado de trabalho, a negação do reconhecimento agudizam-se, e a Europa vê-se diante do terceiro mundo dentro dela mesma. Assim, a autora focaliza as ações públicas voltadas ao empoderamento das mulheres migrantes e das famílias monoparentais que orientam uma nova moralidade econômica.

Por fim, trazemos Juan Andrés Bresciano, em Identidades Migrantes en contextos de globalización. Recursos Digitales para su abordaje heurístico, que nos fala de uma imigração não expressiva quantitativamente, mas que exerce uma grande influência econômica, mas também social e cultural, nos países de acolhida. Discutindo algumas questões que envolvem os estudos das imigrações contemporâneas, como o uso de fontes digitais, como a internet, o autor encaminha questões teórico-metodológicas para a análise da expatriação de empresários de importantes sociedades que decidem se deslocar para os chamados países emergentes. Dessa forma, busca analisar os processos de integração nas sociedades de acolhida e a forma como essas diferentes interações – muitas vezes fruto de sucessivas re-emigrações – atua na construção das identidades dos atores sociais envolvidos.

A diversidade das abordagens do Dossiê Fluxos Migratórios e Identidades confirma a aposta na relevância desta agenda de pesquisa e convida a todos à partilha de suas conclusões e ao aprofundamento e desdobramento de suas análises que põem em xeque a idéia mesma de fronteiras, não apenas as territoriais, mas, desta vez, as de conhecimento. Assumimos, portanto, o desafio do diálogo a partir de contextos diferentes e procuramos erguer pontes, jamais muros, entre eus e outros, no concerto dos pesquisadores reunidos nesta publicação. Aos leitores, fazemos votos dos melhores deslocamentos e trânsitos.

Luis Fernando Beneduzi

Adelia Maria Miglievich Ribeiro

Os organizadores.


BENEDUZI, Luis Fernando; RIBEIRO, Adelia Maria Miglievich. Apresentação. Dimensões. Vitória, n.26, 2011. Acessar publicação original [DR]

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