Fronteiras do Café: Fazendeiros e ‘Colonos‘ no Interior Paulista (1917- 1937) | Faleiros R. N.

O livro Fronteiras do Café: fazendeiros e ‘colonos‘ no interior paulista (1917-1937) resulta da tese de doutorado defendida por Rogério Naques Faleiros, em 2007, no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. A publicação deste trabalho, pela EDUSC, possibilita, aos leitores interessados, um bom texto que aborda o fado enfrentado pelos produtores diretos (empreiteiros e parceiros, ambos chamados pela literatura de colonos do café) no bojo da efervescente marcha leste–oeste dos cafezais, a qual transformou amplos sertões em verdadeiros mares de café.

A partir de minuciosa e exaustiva pesquisa calcada, sobretudo, no levantamento e análise de fontes cartoriais, que até agora pouco atraíram a atenção da historiografia do complexo cafeeiro, o autor estudou as relações de trabalho estabelecidas entre fazendeiros e colonos, no eito cafeeiro, de 1917 a 1937, ocasião na qual o alargamento da produção cafeeira, via incorporação de novas áreas à acumulação capitalista, e suas atividades correlatas, protagonizaram a expansão econômica brasileira e pautaram o processo de inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho de então. Faleiros consultou nada menos do que 2.047 escrituras de contratos de formação e trato de cafezais lavradas nos cartórios de 14 municípios do Estado de São Paulo. A escolha destas localidades foi pautada por alguns dados presentes no trabalho de José Francisco de Camargo [1], tais como: área agriculturável destinada ao café, número de unidades produtoras, número de cafeeiros e quantidade de arrobas produzidas. Tendo estas informações em vista, Faleiros estudou as seguintes localidades: Campinas, Rio Claro, Ribeirão Preto, Franca, São Carlos, Araraquara, Botucatu, São Manuel, Jaú, Novo Horizonte, São José do Rio Preto, Catanduva, Lins e Pirajuí.

O referido período (1917-37) ganhou relevo pela larga incorporação de ‘novas‘ terras promovida pela expansão da cafeicultura. Além da vigência, em diferentes momentos, de preços internacionais atrativos, a anexação de áreas ainda inexploradas pelo café ocorreu em função da redução do risco percebido pelos produtores, o que foi propiciado, por um lado, pela política governamental acerca da terra, que permitiu a apropriação fraudulenta da terra/legitimação da invasão de terras devolutas e, por outro, pela política de defesa do preço do café, nesta ocasião, inaugurada, em virtude de safras abundantes e das consequências da I Guerra, e só extinta em 1937, quando se estabeleceu a chamada ‘política da concorrência‘[2] . Tais artifícios estimularam os cafeicultores a expandir suas lavouras para toda a região que se abre em leque a partir de Campinas, ou seja, para o ‘oeste paulista‘. É nesta porção do Estado de São Paulo que se encontram os municípios acima mencionados. Aí, ao longo do período tratado, como o autor nos mostra, ocorreu a abertura de novas zonas produtoras, tais como a Alta Araraquarense, a Douradense, a Noroeste e a Alta Sorocabana e, também, a intensificação da atividade nas zonas mais antigas (Central, Mogiana e Paulista)[3]. Assim sendo, com exceção das regiões formadoras do ‘extremo oriente‘ do Estado de São Paulo (que incorpora Vale do Paraíba, a zona da Capital e o Vale do Ribeira) – que não foram contempladas por possuírem uma cafeicultura de pouca monta quando comparadas às demais regiões do Estado – as relações de trabalho foram perscrutadas nas mais relevantes localidades paulistas invadidas pela rubiácea.

Quando nos deparamos com o amplo recorte geográfico e o período adotados por Faleiros, surge um dos aspectos que atribui importância ao seu livro. Para o estudo das relações de trabalho no ‘oeste paulista‘, como já evidenciamos, o autor, corajosamente, optou por não restringir a pesquisa a apenas um município ou região, mas sim açambarcar, concomitantemente, importantes centros produtores e acompanhar, nestas diferentes frentes, o movimento ininterrupto de expansão, retração e retomada da cultura cafeeira e suas consequências para os trabalhadores agrícolas envolvidos nesta atividade. Neste movimento investigatório, Faleiros, além explicar as dimensões quantitativas deste processo, evidenciou os antagonismos e contradições que o determinavam. Além disso, o contexto – ocasião e lugar – no qual este trabalho se inscreve permite ao autor explicar um elemento essencial para o entendimento da dinâmica da atividade cafeeira, qual seja: a lógica do avanço da fronteira agrícola. Esta, segundo Faleiros, residia, naquele momento, no tipo de relação de trabalho firmada entre fazendeiros, empreiteiros e parceiros. O autor evidencia, ao longo dos diversos capítulos de seu livro que, para o rebaixamento dos custos monetários de formação e trato dos cafeeiros, fazia-se necessário oferecer algum tipo de acesso à terra aos trabalhadores os quais, por sua vez, o valorizavam muito – sobretudo as terras entre as fileiras dos cafeeiros em formação, pois estas não acarretavam a perda de capacidade de trabalho, já que a família do colono não teria que ser dividida entre diferentes talhões, pois dali retirariam sua subsistência e eventuais excedentes. Para viabilizar estas relações contratuais pautadas, principalmente, pelo acesso a terra e não por transações monetárias, era necessária a existência de uma fronteira agrícola em contínuo movimento. A agregação de novas porções de terra (recorrentemente usurpando terras devolutas, processo que explica, diga-se de passagem, parte importante da imensa concentração fundiária brasileira) ao complexo capitalista agroexportador, permitia ao fazendeiro formar lavouras com baixos custos. Assim sendo, sem a expansão da fronteira a produção, no limite, ficaria engessada, uma vez que os fazendeiros teriam que ampliar seus gastos, em decorrência de aumentos salariais os quais, consequentemente, ampliariam o grau de monetarização da economia, atingindo-se a base desta sociedade. O argumento proposto por Faleiros que, em grande medida, corrobora parte importante das análises dedicadas ao complexo cafeeiro, pode ser assim resumido: no âmbito da produção paulista de café, a dinâmica de suas relações de produção mais imediatas, necessitava a constante incorporação de novas terras, objetivando a redução dos custos monetários, com vistas à ampliação do potencial de acumulação dos fazendeiros e dos demais capitalistas que atuavam nesta economia. Em síntese, Faleiros nos diz: “a fronteira avançava em função dos preços internacionais, avançava para compensar produtividades cadentes [nas zonas antigas] e avançava para viabilizar um alto grau de exploração do trabalho neste complexo econômico, garantindo sua viabilidade”[4].

Outro ponto relevante do trabalho em questão é a discussão proposta acerca das diferentes facetas que caracterizavam a exploração dos colonos. O autor, ao debruçar-se sobre os documentos que levantou, elaborou um diagnóstico detalhado e acessível da rapinagem sofrida por estas famílias. Faleiros empenhou-se em chamar atenção para o fato de que os trabalhadores da lavoura perdiam parte dos seus excedentes ao comercializá-los com os fazendeiros por uma série de mecanismos, tais como: as cláusulas de ‘preferência‘ de venda, os custos de transporte, a taxação sobre carros de outro comprador que adentrasse a fazenda, a obrigatoriedade de transferir gratuitamente determinada quantidade de sacas de alimentos para o fazendeiro e pela criação de artifícios monetários com raio de ação limitado que impunha a obrigatoriedade de liquidação daquela ‘moeda‘ somente aonde fosse aceita: na venda da fazenda emissora. Além disso, segundo o livro Fronteiras do Café, outros dois processos organizaram a reiterada exploração dos produtores diretos. São eles: a) os juros escorchantes decorrentes dos empréstimos concedidos aos trabalhadores, muitas vezes sob a forma de crédito nas mercearias ou vendas das fazendas, rebaixavam severamente sua capacidade de negociação na ocasião das colheitas, pois uma parcela considerável de seu café e de seus gêneros alimentícios era direcionada para o pagamento destes juros e do principal; b) outra forma de exploração, que perpassa todas as regiões pesquisadas por Faleiros, foi a utilização da estrutura da fazenda para reduzir a parcela de café e/ou de alimentos que caberia, segundo os contratos firmados, aos trabalhadores. Nos diferentes municípios pesquisados, os fazendeiros cobravam taxas para os colonos terem acesso às diferentes fases do processo de beneficiamento (utilização das máquinas de beneficiar, das tulhas e dos terreiros de secagem). Tais cobranças evidenciavam como a modernização das fazendas potencializava a exploração dos trabalhadores. A dinâmica que perpassa a interação entre colonos e a estrutura da fazenda, demonstra que as inovações mecânicas apropriadas pelos fazendeiros de café não aliviaram a labuta diária dos ‘lidadores‘, pelo contrário, acabaram por encurtar ainda mais a parte da jornada de trabalho que o produtor direto percebia para si, com o fim de ampliar a acumulação do fazendeiro.

O livro que ora resenhamos dedicou-se a abordar as relações de trabalho no interior de uma atividade já largamente investigada. Muito já foi escrito e reescrito sobre os mais variados aspectos envolvendo o café. Diversos estudos já discutiram a sua economia e geografia, a sociedade peculiar que criou, o exercício do poder político por parte daqueles que dispunham dos meios de produção, comercialização e financiamento vinculados ao café, a cultura popular e erudita que nele se inspirou, as relações de trabalho aí consubstanciadas etc. Talvez, sobre nenhuma outra mercadoria brasileira tenha sido derramada tanta tinta. Fronteiras do Café: Fazendeiros e ‘Colonos‘ no Interior Paulista (1917-1937), não poderia, portanto, se furtar a dialogar com parte desta produção. Assim, cabe a pergunta: em que medida este texto veste a roupagem de um trabalho historiográfico? Ou seja, como este livro avaliou as análises anteriores que teve como referência? Primeiramente, para respondermos a pergunta, é importante notarmos que Faleiros não utiliza a vasta documentação que levantou para fazer uma espécie de ‘revisionismo‘ dos estudos consagrados. É relevante observarmos isto, pois, assim, afastamos do nosso campo de discussão querelas vulgares que, em última instância, advogam a estagnação do conhecimento, pois identificam o fazer historiográfico simplesmente com a revisão de proposições anteriores e avaliam negativamente este processo, como se as conjecturas consolidadas fossem irreparáveis. Aparada esta aresta, podemos recolocar a pergunta anterior da seguinte forma: quais as fragilidades, lacunas e excessos identificados pelo autor de Fronteiras do Café na bibliografia que consultou? Percebemos no texto de Faleiros, três aspectos importantes que destoam da literatura da especialidade, quais sejam: a) o argumento de que a franja produtora seria mais atrativa não só por conta de uma maior disponibilidade de espaço para o plantio intercafeeiro, uma vez que se tratava de lavouras em formação, mas também por conta de uma maior fertilidade da terra e consequente maior produtividade dos cafeeiros, é questionado. Faleiros argumenta que, de fato, as condições para os cultivos intercalares eram facilitadas nas fronteiras, o que exercia forte poder de atração sobre os trabalhadores, porém, em termos de produtividade, não se pode afirmar que as terras mais avançadas fossem de melhor qualidade. Tal proposição é corroborada com dados que evidenciam que a alta produtividade, inicialmente verificada nos municípios novos, decai rápida e severamente após algumas colheitas robustas; b) Outro ponto que a bibliografia parece ter subestimado é a importância das cláusulas envolvendo pagamentos em dinheiro. Fronteiras do Café evidencia a existência de expressiva diferença entre as regiões de fronteira (notadamente a Noroeste) e as regiões mais antigas. Nas zonas mais velhas predominavam contratos de parceria, onde a remuneração dos ‘parceiros‘ era composta unicamente por uma parte da produção dos cafeeiros sob seus cuidados e reduzido acesso à terra para a garantia de sua subsistência. O autor nos mostra que, em escrituras que versam sobre a formação de cafeeiros nas zonas novas fora recorrente o acerto de uma determinada quantia em dinheiro por cada cova formada, ao passo que em municípios de cafeicultura mais antiga, tal proporção era bem mais modesta. Portanto, não era apenas o acesso a um espaço mais amplo (e conjugado com os cafeeiros) para o plantio de alimentos que determinava a preferência dos colonos pela fronteira, as cláusulas que estabeleciam o pagamento de certa quantia por cada cova formada também jogavam importante papel; c) O último aspecto historiográfico do livro que gostaríamos de chamar a atenção diz respeito ao fato de diferentes trabalhos sobre a dinâmica de ascensão social dos colonos aceitarem que a produção de gêneros alimentícios fora um dos principais meios pelos quais estes trabalhadores teriam garantido seu acesso à condição de pequeno proprietário rural. A leitura do livro ora comentado nos permitiu apreender que tal sugestão é problemática, pois este processo está sujeito a uma infinidade de variáveis. A ascensão social encontrava-se subordinada: à época em que trabalharam, às formas de comercialização do excedente, se atuava diretamente no mercado (e a dimensão deste mercado), a fertilidade e localização das terras, ao tamanho do grupo familiar, à qualidade dos grãos produzidos, ao tipo de contrato, ao grau de frugalidade, à capacidade de poupança, ao direito a ter criações etc. Assim sendo, qualquer posição fechada sobre esta questão acaba sendo reducionista, além do que, dependendo das circunstâncias, a vida de um pequeno sitiante ou chacareiro poderia ser pior do que a de um parceiro ou colono. Deter uma pequena propriedade não era, necessariamente, sinônimo de ascensão social.

Finalmente, concluímos este comentário reiterando que este livro trata-se de um belo trabalho de história econômica. O estilo é fluente e objetivo, sem muitos lugares para meios tons. O autor fez uma leitura atenta e atilada das relações de trabalho entre fazendeiros e colonos no ‘oeste paulista‘. Ao abordar tal temática, o estudo em pauta não escolheu o caminho das dicotomias fáceis, mas entrou num labirinto de interpretações e proposições vastas e complexas. Contudo, Fronteiras do Café encontrou uma boa saída ao afastar-se do palco e ir aos bastidores, às coxias, para levantar importantes documentos até então pouco explorados, que evidenciam a fortuna enfrentada pelos produtores diretos abocados ao café no ‗oeste paulista‘. A rica teia tecida, com base, principalmente, nas fontes primárias levantadas, dentre outras coisas, desvenda alguns aspectos que foram tradicionalmente subestimados ou sobrestimados pela ampla constelação de trabalhos que abordaram o tema.

Notas

1. CAMARGO, J. F; Crescimento da População no Estado de São Paulo e seus Aspectos Econômicos.

2. DELFIM NETTO, Antonio, em O Problema do Café no Brasil. São Paulo, FEA-USP, 1959, discute importantes aspectos acerca da extensão no tempo das políticas de sustentação do preço do café. Tais proposições dialogam com o recorte estabelecido por Faleiros.

3. As regiões do interior de São Paulo, de acordo com Sérgio Milliet (1939) e José Francisco de Camargo (1952) foram tradicionalmente definidas e batizadas pelo nome das estradas de ferro que as talhavam, definição esta que até os dias atuais persiste no imaginário paulista. Faleiros manteve a nomenclatura regional derivada das estradas de ferro.

4. Faleiros, R. N. Fronteiras do Café: Fazendeiros e ‘Colonos’ no Interior Paulista (1917-1937), Bauru, Ed. EDUSC. pág. 25.


Resenhista

Gabriel Almeida Antunes Rossini – Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC – SP – Departamento de Economia.


Referências desta Resenha

FALEIROS, R. N. Fronteiras do Café: Fazendeiros e ‘Colonos‘ no Interior Paulista (1917- 1937). Bauru: EDUSC, 2010. Resenha de: ROSSINI, Gabriel Almeida Antunes. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 08, n. 26, p. 205-212, agosto, 2011. Acessar publicação original [DR]

 

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