Espaço e lugar privilegiado para formação de professores: Instituto de Educação “Fernando Costa” (1953-1975) | Aline de Novaes Conceição

A presente obra é fruto de uma dissertação de mestrado defendida em 2017 no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília. Neste livro, Aline de Novaes Conceição pesquisa como o Instituto de Educação (I.E) “Fernando Costa”, instalado em Presidente Prudente/SP, desenvolveu suas atividades, sobretudo, as finalidades previstas no Código de Educação do Estado de São Paulo.

O livro foi prefaciado por Macioniro Celeste Filho, professor permanente do Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília. A obra é dividida em três capítulos que analisam os diversos aspectos da formação de docente no I.E “Fernando Costa”. Leia Mais

Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX) | Diana Gonçalves Vidal e Paula Perin Vicentini

A composição predominantemente feminina da profissão docente é uma característica facilmente perceptível, sobretudo da educação básica. Segundo o Censo do Professor (2007), cerca de 82% do professorado brasileiro é composto por mulheres. Essa média se mantém no Estado de São Paulo (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007). Esses mesmos números foram retomados em matéria do site UOL (HARNIK, 2011), que apresentou as diferentes percentagens dessa característica de acordo com os segmentos de ensino. Destacou-se, nessa investida, a disparidade entre o número de professoras nos anos iniciais do ensino fundamental (82%) e no ensino médio (64%).

Em que pese a produção acadêmica sobre a História e a Sociologia da profissão docente e o seu recorrente foco nas condições de seu desenvolvimento profissional, proletarização2 e profissionalização3 (XAVIER, 2014, p. 830), são de longa data as colocações acerca da ocupação feminina da docência. É nesse esteio que Cláudia Vianna, ao tematizar “O sexo e o gênero da docência” (2001, p. 81-103), assinala para os contornos históricos desse processo. A autora liga a ocupação da carreira pública do magistério por mulheres à expansão do ensino primário público de modo que, já em inícios do século XX, as mesmas são maioria do contingente profissional. A despeito da efetiva publicação de estudos sobre o tema, a autora destaca que a incorporação do conceito de gênero aos estudos sobre a feminização do magistério no Brasil é relativamente recente (Ibidem, p. 87). A mesma destaca sua pouca tematização até meados dos anos 80 e, especificamente no campo de estudos educacionais, a demora na passagem do “feminino ao gênero”, movimento esse já percebido nos estudos sobre o trabalho na década de 90 (Ibidem, p. 88). Leia Mais

História Econômica e Social do Estado de São Paulo 1850-1950 | Francisco Vidal Lun e Herbert S. Klein

Em 1950, São Paulo era o mais importante centro econômico populacional do país. No século XXI, o estado de São Paulo poderia ser classificado como a 36a maior economia do mundo em termos do PIB gerado (450 bilhões de dólares, em 2010) e a 31a nação do mundo, em termos da população (41,2 milhões, em 2010).

Essas constatações, trazidas por Luna e Klein nas primeiras páginas do livro, tornam-se mais surpreendentes e contrastantes, quando os autores destacam que, um século antes, em 1850, São Paulo não tinha qualquer relevância econômica, populacional e política no Império ou na nação brasileira. Em menos de um século, São Paulo ascendeu à principal estado do país, posição consolidada com a República. Leia Mais

An Economic and Demographic History of São Paulo – 1850-1950 – LUNA; KLEIN (RBH)

Este livro é continuação do volume anterior, que tratava dos períodos colonial e imperial. Nesta nova obra, os autores estabelecem como balizas temporais os anos de 1850 e 1950. Juntos, os dois volumes buscam analisar as histórias econômica e social de São Paulo, desde o período colonial até a primeira metade do século XX. Leia Mais

Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964) – SILVA (RBH)

SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964). Curitiba: Prismas, 2017. 338p. Resenha de: SANTOS, Kauan William dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76 São Paulo set./dez. 2017

Uma visão clássica do anarquismo no Brasil e em algumas partes do mundo afirma que essa corrente política, predominante no movimento operário nas primeiras décadas do século XX, apresentou declínio evidente após 1920, sofrendo sua derrota em nosso país na Era Vargas, com suas mudanças no mundo sindical. Nas análises de certos militantes que buscam legitimar outras propostas de transformação, o anarquismo seria um movimento prematuro, com a ausência de alianças concretas e apresentando um projeto falho para a sociedade. Enquanto isso, para um número significativo de pesquisas atentas ao mundo do trabalho, reverberando em parte tal visão, o anarquismo quase desapareceu desde então e não apresentou grande influência para o movimento operário, principalmente depois da segunda metade do século XX.

Buscando rebater e relativizar tais visões temos em mãos Elementos inflamáveis, livro ligeiramente modificado da dissertação de mestrado de Rafael Viana da Silva, defendida em 2014 no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Aproveitando pesquisas recentes e também proeminentes que já apontaram a resistência dos anarquistas, seja no âmbito cultural ou sindical, durante os anos de 1930 e 1945, o autor tenciona mostrar a reorganização do anarquismo durante a chamada redemocratização, entre os anos 1945 e 1964. Sem ignorar o contexto para tal, Silva mostra como, em meio à crise do Estado Novo, os anarquistas vão aproveitar brechas para se organizarem de forma mais sistemática e tentarem aumentar sua influência entre as classes populares, assim como incrementar suas fileiras militantes, fato que se deu nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, em certa medida, no estado do Rio Grande do Sul.

Entre as primeiras atitudes dos adeptos da bandeira negra esteve a criação e a reativação de seus periódicos. Entre eles cita-se o Remodelações, que circulou entre 1945 e 1947 e era coordenado pelos militantes cearenses Moacir Caminha e Maria Iêda, contando também com militantes clássicos como José Oiticica. Em 1947 foi relançado o periódico A Plebe, um dos mais importantes para o anarquismo anos atrás e também essencial para a nova aproximação com as demandas sindicais. Outro importante órgão para a difusão da cultura política anarquista foi o Ação Direta, essencial para as propostas de organização interna do movimento.

Nesse último sentido surgem as primeiras contribuições importantes de Rafael Silva para o tema. Com a aproximação de diferentes gerações militantes concluiu-se em seus debates ser inadmissível ver as estratégias anarquistas como imóveis e imutáveis – era necessário encaixar as demandas libertárias aos novos condicionamentos. Esses militantes referiam-se principalmente à ausência de organização política entre os anarquistas durante as primeiras décadas do século XX, que seria uma das causas, nessa visão, da perda de suas influências. Os anarquistas brasileiros, diferentemente do que se observou em outros países, não conseguiram efetivar suas propostas de organização interna, chamadas de alianças ou partidos, que se protegeriam em momentos de refluxo e também garantiriam certa homogeneidade em suas práticas. Estando os anarquistas enraizados profunda e quase exclusivamente no movimento sindical, este quando foi transformado na década de 1930 garantiu o declínio da estratégia do sindicalismo revolucionário e da consequente influência anarquista, restando apenas seus grupos de afinidade dispersos para a continuação de suas propostas, perdendo assim o contato com os trabalhadores. Na perspectiva dos militantes anarquistas entre 1945 e 1964, portanto, antes de tudo era necessário se organizar politicamente e então garantir formas e estratégias diversas para recuperar esse e outros contatos.

Seguindo esse debate, Silva examina na primeira parte do livro as discussões e dilemas internos do anarquismo. No primeiro capítulo dessa seção, evidencia-se a importância da participação dos militantes em congressos internacionais, absorvendo e disseminando experiências transnacionais para o anarquismo em nível global. O autor segue analisando os congressos anarquistas no país, em 1948, 1953, 1959 e 1963, essenciais para a reorganização do movimento. No terceiro capítulo, debate-se a retomada da estratégia do sindicalismo revolucionário no papel da transformação da realidade para os anarquistas no período. Nesse sentido, longe de se ater principalmente a propostas culturais como se imaginou, a intentona majoritária anarquista continuou sendo, ao menos até 1959, o sindicalismo e o movimento operário, onde seus militantes dispensaram numerosas energias (p.182).

Percebemos que as principais referências metodológicas do livro nessa parte são os autores que desenvolvem as concepções de cultura política como Serge Berstein, já que é importante, para Rafael Silva, perceber o desenvolvimento do anarquismo dentro de suas próprias referências, da sua família política, suas leituras e dilemas. Já na segunda parte da obra o autor analisa como tais estratégias foram absorvidas e articuladas no movimento operário, em meio aos trabalhadores e, também, aos grupos militantes de outras vertentes ideológicas. Por isso, decide utilizar como referência Edward Palmer Thompson, inspirado nos estudos que mostram as ideologias e práticas como não estanques aos comportamentos de classe.

Seguindo essa tendência, no quarto capítulo, primeiro dessa seção, evidencia-se o importante papel dos jornais e impressos também para disseminar a influência do anarquismo e de seus debates externos com outras correntes políticas, assim como em sua adaptação ao contexto. Nesse sentido, até mesmo a forma de venda ou doação desses periódicos foi importante, como numa banca de jornais em frente ao posto de trabalho da Light.

No quinto capítulo, Silva adentra com mais profundidade as relações e articulações políticas dos anarquistas em âmbito internacional e nacional. Na primeira parte, além de ver suas influências e ligações com a Federação Anarquista Ibérica (FAI) e a Solidariedade Internacional Antifascista (SIA), evidencia-se a recepção dos anarquistas aos imigrantes, principalmente saídos das ditaduras de Franco e Salazar, alguns com experiências na Revolução Espanhola. Esse contato foi essencial para a reformulação de estratégias e táticas e para alavancar o próprio movimento anarquista no país. Após isso, o autor nos mostra os embates no anarquismo com o Partido Comunista Brasileiro, principal força de esquerda do período. A principal crítica dos libertários ao partido se referia exatamente às posições do sindicalismo – os primeiros eram contrários a disputar a estrutura corporativista desses espaços, propondo novos organismos e frentes que respondessem aos interesses dos trabalhadores fora de um ambiente supostamente impregnado pelos mecanismos da classe dominante. O autor discorda da historiografia que viu os trabalhadores e militantes desse período como estagnados, presos à estrutura e aos condicionamentos do período, mas também rebate a corrente que afirma total liberdade e agência dos personagens em torno do sindicalismo do período. Sua posição é a de que os trabalhadores, de fato, negociavam e barganhavam em meio às regras do sindicalismo e da política do período, mas também, por vezes, se sentiam pressionados a essa estrutura e, além de não conseguirem alcançar seus alvos, também decidiam lutar recorrendo a outros instrumentos.

Esse debate se estende ao último capítulo da obra, no qual o autor adentra a inserção social do anarquismo. Na primeira parte, Rafael Silva analisa como as estratégias sindicais dos anarquistas foram recebidas e efetuadas na prática. Os anarquistas conseguiam dialogar com os marxistas críticos do stalinismo e sindicalistas independentes criando o Grupo de Orientação Sindical dos Trabalhadores da Light e deixando uma influência visível no Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, também de caráter combativo, convergindo, posteriormente, para a criação do Movimento de Orientação Sindical (MOS). A inserção libertária nesses ambientes garantiu posições nas manifestações importantes no período, como a greve dos 400 mil em 1957. Na última parte da obra, o autor mostra como as ações culturais dos anarquistas eram mediadas entre as culturas de classe dos trabalhadores e dos grupos subalternos, ainda os principais alvos do anarquismo. Nesse sentido, mostra-se a importância de espaços como o Centro de Cultura Social para a formação de novos militantes e de trabalhadores, principalmente informais. Os periódicos também foram importantes para a criação de centros de cultura e estudos, poemas e debates públicos, inserção que se dava muito fortemente entre os estudantes universitários. As táticas educativas e o apoio às ações culturais nesse período foram importantes para garantir um lugar a partir do início da década de 1960, quando os militantes libertários deixavam aos poucos os ambientes estritamente sindicais, interpretando que gastavam muita energia para barrarem o reformismo e a disputa com outras tendências de esquerda. O apoio a outros ambientes, dessa vez discutidos e minimamente organizados nos congressos citados, garantiu a sobrevivência mínima do anarquismo nas décadas posteriores, durante a Ditadura Militar, quando os anarquistas enfrentaram outros dilemas.

Tudo isso torna o livro de Rafael Viana da Silva uma importante contribuição a um período não muito estudado, inclusive entre os próprios anarquistas contemporâneos, que preferem visualizar o anarquismo áureo a se ater em épocas nas quais foi mais difícil implementar e articular suas estratégias. Ainda assim, aprendemos que quando o anarquismo não foi um elemento explosivo, certamente foi um elemento inflamável.

Kauan Willian dos Santos – Doutorando em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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[IF]

A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo

Alípio da Silva Leme Filho – Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Professor Titular de Cargo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Coordenador na Escola Estadual Reverendo José Borges dos Santos Júnior. E-mail: [email protected]


MAFRA, Janson Ferreira. A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo. São Paulo: BT Acadêmica/Brasília: Liber Livro, 2014. Resenha de: LEME FILHO, Alípio da Silva.  Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 18, p. 225-228, jul./dez., 2017.

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Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850 | Roberto Guedes

Analisar as vivências de libertos e seus descendentes através de um conjunto variado de fontes, e conseguir reconstituir trajetórias de famílias com ascendência escrava numa área de produção agrícola para o mercado interno – e, por isso mesmo, representativa de regiões agrárias do Brasil escravista do século XIX – foi o que propôs Roberto Guedes em seu livro.

Este trabalho é resultado de sua tese de doutorado defendida na UFRJ em 2005, e tem como recorte espacial a vila de Porto Feliz, na capitania/província de São Paulo, no período de fins do século XVIII e início do XIX (especificamente a primeira metade do século XIX), e como tema central a mobilidade social. O autor procurou analisar as estratégias de ascensão social empreendidas por libertos e seus descendentes, tais como o trabalho, a estabilidade familiar, a inserção em redes de socialização, dentre outros. Para isso, utilizou como método de abordagem o proposto pela micro-história, realizando um trabalho intenso com diversos tipos de fontes, onde utilizou a técnica do cruzamento onomástico: listas nominativas de habitantes, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem, testamentos e prestação de contas de testamentos, notas cartoriais, licenças expedidas pela Câmara Municipal, processos crimes, etc. Assim, foi possível ao autor acompanhar por mais de quatro gerações as trajetórias de libertos e descendentes como, por exemplo, o caso da família Rocha.

Além do trabalho com as fontes, vale ressaltar o cuidado do autor em dialogar com a historiografia no decorrer do livro – como os trabalhos e pressupostos da historiadora Hebe Mattos (1995; 2000), referência nos debates propostos – importante não só para situar sua abordagem, apontar questões que está de acordo ou não, como também para comparar os dados levantados para Porto Feliz com os de outras localidades. Algumas questões importantes para a compreensão de seu livro são o fato do autor entender a sociedade de Porto Feliz como uma sociedade com traços de Antigo Regime e a escravidão como sendo parte integrante dela, ou seja, uma sociedade com traços estamentais e escravista, onde a mobilidade social é entendida não só pela mudança de posição na hierarquia social estamental, mas também pelo viés intragrupal e ainda “não deve ser confundida apenas com enriquecimento” (Guedes, 2008, p. 87). Antes, o mais importante era a manutenção e/ou a redefinição do lugar ocupado na hierarquia social, para o que a riqueza podia colaborar ou não. Desta maneira, Guedes procurou entender como se deu a trajetória de forros e descendentes, apresentando seu livro dividido em cinco capítulos, que se destacam pela riqueza de detalhes não só na forma de escrever, bem como através de quadros, gráficos, diagramas, que nos permitem perceber de forma ampla e precisa a vila de Porto Feliz e sua população.

Primeiramente, é apresentada a paisagem agrária da pequena Porto Feliz, que até 1797 era a freguesia de Araritaguaba, quando foi elevada a vila. Durante todo o século XVIII, este lugarejo foi fundamental na rota fluvial das monções quando se descobriu minas de ouro em Coxipó-Mirim e Cuiabá. Já nos primeiros anos do século XIX, o comércio das monções teve sua importância diminuída devido ao surgimento de outras rotas, o que coincidiu com o desenvolvimento da economia canavieira no oeste paulista, desenvolvimento que Porto Feliz acompanhou, se inserindo entre os municípios situados no “Quadrilátero do Açúcar”, área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçú e Jundiaí.

Guedes mostra como o cultivo da cana-de-açúcar, voltado para o mercado externo à vila, estimulou o desenvolvimento de Porto Feliz, possibilitando o crescimento do “miolo urbano” com construção de algumas casas, instalação de vendas; influenciou também o aumento da população, principalmente da população escrava em função do tráfico de cativos para trabalhar nas lavouras; estimulou o mercado de animais e a criação de gado para alimentação e para moverem os engenhos, e também a produção de alimentos como milho, feijão, arroz, entre outros, destinados ao consumo próprio e comercializados na vila. Inicialmente, foram os pequenos escravistas que participaram plenamente da atividade açucareira, mas a partir de 1820-1824 os grandes produtores aumentaram sua participação e intensificaram a concentração da propriedade escrava. Para a montagem de um engenho era preciso cabedais, e o crédito foi fundamental para o financiamento, assim como o fato dos senhores de engenho se dedicarem a outras atividades como negócio de fazendas secas, lavouras, o comércio das monções, etc.

Ao verificar em seus dados levantados para Porto Feliz o exercício de outras atividades pelos principais da terra, Roberto Guedes estabelece um intenso diálogo com a historiografia, tendo o „trabalho‟ como questão importante. Assim, a partir do conceito de trabalho de Caio Prado Jr. no passado colonial/imperial no Brasil e da análise de outros estudos que seguem a mesma perspectiva, o autor matiza a idéia de que o defeito mecânico e a escravidão inviabilizaram o trabalho livre não só no sentido de ocupação de espaços nas esferas produtivas, mas também no de imputar estigma social a trabalhadores, em especial a forros e descendentes. Tendo como base estudos como os do historiador João Fragoso, comparando os dados levantados para outras localidades com Porto Feliz, Guedes constatou que as elites locais dedicavam-se a outras atividades como comércio e que não deixaram de ser estimados socialmente. Desta forma, podiam não ter uma ideologia negativa do trabalho e, por isso, afirma a importância de se analisar cada realidade local e temporal e “ressaltar as nuances que as noções de trabalho tiveram na colônia/império e entre distintos segmentos sociais” (Guedes, 2008, p. 76). Desta maneira, o autor concentra sua análise nos indivíduos que não eram membros da elite, especificamente forros e descendentes, analisando o trabalho como uma das estratégias, uma das várias formas de mobilidade social.

Para abordar este grupo, Guedes se baseou em concepções de Stuart Schwartz (1988) e Hebe Mattos, se fundamentando nas questões de que a escravidão impunha referenciais de hierarquia distinguindo social e juridicamente escravos, livres, forros e descendentes de escravos e que a transposição de uma categoria jurídica a outra e o posterior afastamento de um antepassado escravo pressupõem passos na hierarquia social, para o qual a cor da pele podia estar relacionada. Assim, o autor analisa através de listas nominativas e mapas de habitantes, o trabalho relacionado a cor/condição social, e verifica como a ocupação diferenciou forros e descendentes de escravos e ambos entre si, corroborando com evidências de que o trabalho propiciava mobilidade social expressas na cor.

É válido ressaltar a preocupação do autor em relação ao cuidado que se deve ter durante a análise desses documentos, no que diz respeito à questão de quem atribuiu ou auto- atribuiu a cor e de quem faz o registro, além da variação nas fontes, etc, pois nem sempre há consonância entre os termos utilizados por autoridades que elaboraram os mapas e os utilizados por recenseadores que fizeram as listas, mesmo que ambos se referissem a uma mesma cor/condição social. No geral, Guedes constatou, por exemplo, que a escravidão influenciou nas cores das pessoas em Porto Feliz e que o trabalho influenciou na oscilação da cor, o que era frequente. Em relação ao registro da cor, percebeu que o termo mulato pode ter tido um sentido pejorativo, e que ser caracterizado como branco marcava uma diferenciação fundamental em relação aos escravos e um distanciamento maior da escravidão em relação aos pardos. Enfim, na análise proposta pelo autor, a hierarquia e a posição social manifestas na cor eram fluidas e dependiam de circunstâncias sociais.

Vista pelo autor como o primeiro passo na hierarquia social, a alforria era onde os forros se diferenciavam dos escravos, por isso Guedes também procurou analisar como se dava essa passagem da escravidão para a liberdade, bem como alguns caminhos que conduziam à liberdade e seus momentos posteriores. O autor compreende a alforria como uma troca equitativa entre senhores e escravos, mas obviamente baseada na desigualdade, ou seja, uma relação de troca assentada na reciprocidade, sem esquecer que reciprocidade não é sinônimo de equivalência. Assim, nesta relação, do ponto de vista do escravo, o autor destaca a questão da submissão, que implica reconhecimento do poder senhorial, que juntamente com a obediência e os bons serviços prestados, podem ser vistos como estratégias de mobilidade social, uma vez que submissão não deve ser entendida apenas de forma unilateral, sendo necessário atentar para o interesse do submisso pela submissão, através das quais se podiam alcançar vantagens.

Outras formas de alforrias, de estratégias, destacadas pelo autor foram casos que, segundo ele, não eram frequentes, de ascensão social de cativas e/ou de seus filhos derivada de relações sexuais/afetivas com seus senhores, onde as ex-escravas e/ou seus filhos, além da liberdade, também herdaram alguns bens dos senhores. O matrimônio foi outro exemplo de forma de alforria, pois existiram casos de casamento de libertos(as) com escravas(os), onde a última foi alforriada. E uma vez inseridos na nova condição jurídico social, foi importante estabelecer relações sociais, as quais tinham sempre que ser reatualizadas para manutenção da nova posição, seja pelos forros ou seus descendentes.

É no último capítulo que percebemos a análise do autor por completo, pois através das trajetórias de algumas famílias ele comprova todas as suas hipóteses: a mobilidade social, seu tema central, relacionada conjuntamente ao trabalho, estabilidade familiar, mostrando a solidariedade intragrupal e a inserção em redes de sociabilidade, como as alianças com potentados locais, tudo isso associado à mudança no registro da cor da pele. Foram nessas trajetórias que o autor propôs aplicar o método da micro-história, e realizou o cruzamento de diversos tipos de fontes, analisando a mobilidade social dos egressos da escravidão, onde as trajetórias foram descritas passo a passo a fim de apreender tais estratégias.

Encontrando pontos em comum nessas trajetórias, o autor mostrou que o trabalho podia ser percebido de forma positiva e ainda poderia propiciar margens de autonomia e ascensão social para forros e descendentes, não só em termos materiais, mas também no que diz respeito à reputação, às questões de reconhecimento e atuação social. Sobre a família e a inserção em redes de sociabilidade, os vínculos se percebem, por exemplo, nas relações de compadrio, e mesmo os que conseguiram ascender à condição de escravistas, não implicava o afastamento em relação aos seus iguais. Estes mantinham as relações horizontais, já que não havia porque fechar portas em um mundo instável, apadrinhavam filhos ou eram testemunhas de casamentos de escravos ou forros, mas para apadrinhar seus filhos preferiam pessoas com títulos como donas, tenentes, capitães, etc. Assim, Guedes nos fala da “transformação” de alguns pardos em brancos, como alguns pardos conseguiram se inserir no mundo senhorial, mostrando os fatores associados à mobilidade social também como um processo geracional.

O livro de Roberto Guedes, portanto, mostra como a mobilidade social contribuía para a manutenção de hierarquias sociais, não estando acessível a todos, mas tornando possível a forros e seus descendentes atuarem numa sociedade caracterizada pela desigualdade. O trabalho de Guedes contribui para estudos sobre a escravidão que se voltam para substituir a ideia de “vítima” pela de “agente social”, ou seja, o escravo como um ser ativo na dinâmica da sociedade. Também é importante para estudos que buscam entender a participação social de libertos e seus descendentes, deixando de lado a visão de uma sociedade bipolarizada entre senhores e escravos, com aquele grupo incluído entre os vadios, os desclassificados sociais, com poucas chances de ascensão social; estudos que se voltam para a análise dos usos e significados sociais dos designativos de cor, bem como os que abordam a alforria, principalmente com enfoque para áreas rurais, o que pode servir também para estudos comparativos entre regiões urbanas e rurais.

Referências

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

______. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Iara de Oliveira Maia – Mestre, licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4762-4836


GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008. Resenha de: MAIA, Iara de Oliveira. Os significados da mobilidade social para forros e seus descendentes. Caminhos da História. Montes Claros, v.22, n.2, p.121-125, jul./dez.,2017. Acessar publicação original [DR]

Operários da empreitada: os trabalhadores da construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil (São Paulo e Mato Grosso/ 1905-1914) | Thiago Moratelli

Thiago Moratelli, natural de Bauru, quilômetro zero da Noroeste do Brasil (NOB), graduou-se em História pela Universidade do Sagrado Coração e é mestre em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, onde defendeu sua dissertação em 2009, que resultou neste brilhante livro sobre os trabalhadores da construção da NOB.

Durante a graduação, Moratelli estagiou no Museu Ferroviário de Bauru e passou a visitar o Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Ferroviárias de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, para consultar fontes sobre os sindicatos de ferroviários, objeto de seu trabalho de graduação, em um contexto ainda impactado pelo processo avassalador de privatização da Rede Ferroviária Federal que provocou demissões em massa na NOB. Leia Mais

Nas margens da boiadeira: territorialidades, espacialidades, técnicas e produções no noroeste paulista | Humberto Perinelli Neto, Sedeval Nardoque, Vagner J. Moreira

O livro de organização de Sedeval Nardoque, Humberto Perinelli e Vagner Moreira é uma obra coletiva que envolve trajetórias individuais de pesquisa. É uma importante contribuição aos estudos da região Noroeste paulista em termos econômicos e sociais. Sua gênese está no ano de 2010, com trabalhos concedidos por pesquisadores da área de geografia.

A partir de pesquisas documentais, e fontes orais dos personagens que moldaram este espaço segundo experiências vividas na região Noroeste paulista, a obra apresenta aspectos sociais, antropológicos e históricos que configuram esta região, problematizando a vivência no campo nos termos que envolvem a dinâmica agromercantil da pecuária e a agricultura organizada entre os séculos XIX e XX. O foco principal é os espaços que se constituem as cidades de Jales e Fernandópolis conhecida como “grande Oeste”. Leia Mais

Fronteiras do Café: Fazendeiros e ‘Colonos‘ no Interior Paulista (1917- 1937) | Faleiros R. N.

O livro Fronteiras do Café: fazendeiros e ‘colonos‘ no interior paulista (1917-1937) resulta da tese de doutorado defendida por Rogério Naques Faleiros, em 2007, no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. A publicação deste trabalho, pela EDUSC, possibilita, aos leitores interessados, um bom texto que aborda o fado enfrentado pelos produtores diretos (empreiteiros e parceiros, ambos chamados pela literatura de colonos do café) no bojo da efervescente marcha leste–oeste dos cafezais, a qual transformou amplos sertões em verdadeiros mares de café. Leia Mais

A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República | Leda Maria P. Rodrigues

“Outro prazer (do historiador), este excitante prazer de decifrar, que não passa na verdade de um jogo de paciência.”

Georges Duby

A arte de vasculhar o passado, as memórias, as histórias fazem com que a oficina da História seja eternamente uma fonte de estudos e olhares, ciência e interpretações. O fato de sempre estar alerta às obscuridades e aos silêncios impele uma entrada investigativa em campos (inter)disciplinares como é a interface entre História e Educação, seguir os rastros empoeirados de velhos e esquecidos corpus documentae (sejam eles textuais, orais ou visuais), vozes silenciadas e, ainda assim, observar possíveis armadilhas que as intempéries e o uso de registros oficiais podem armar no processo de construção/reconstrução da História. Tudo isso indica-nos a difícil aventura percorrida neste campo do saber e tendo em vista que é produto da elaboração do conhecimento histórico/historiográfico.

Como expressou Georges Duby em seu livro A história continua: “cabe perguntar se o historiador encontra-se alguma vez mais próximo da realidade concreta, dessa verdade que anseia por atingir e que lhe escapa permanentemente, do que no momento em que tem diante de si, examinando-os atentamente, esses restos de escrita que emanam do fundo das eras, como destroços de um completo naufrágio, objetos cobertos de signos que podemos tocar, observar na lupa.”[1]

Este percurso por estudos que cruzaram as fronteiras da História e da Educação brasileiras tem um ponto em comum e um eixo fundante: a pesquisa desenvolvida por Leda Maria Rodrigues, ainda nos idos dos anos 60 e que reforçaram toda a produção posterior através de dissertações, teses, artigos e comunicações que partem de seu trabalho como referência da revisão historiográfica. Com seu doutorado intitulado A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República, a historiadora Leda (mas também conhecida como Madre Maria Ângela) cria um marco na produção sobre a temática. Reconhecida pelas Escolas Profissionais Salesianas, de São Paulo, em 1962, conclui este estudo e faz extenso levantamento das principais inovações introduzidas no ensino particular feminino paulista durante o último quartel do século XIX, com destaque para o advento da Proclamação da República, ademais de ampla documentação para o Estado de São Paulo (elenco de colégios e dados fornecidos sobre educação feminina até 1889 é uma fonte demográfica/histórica de grande contribuição). Menciona desde ações governamentais que marcaram o período até a chegada de ordens religiosas ao Brasil e à Paulicéia. Alvo de sua atenção foram duas biografias em especial: Martha Watts e Marie Rennotte na Piracicaba dos anos 1880.

Das preceptoras às primeiras letras, das coleções de livros ao latim e às disciplinas “femininas”, das instruções “encomendadas” às primeiras ações políticas e religiosas que marcariam profundamente o projeto para um Brasil republicano. Das inúmeras instituições aos projetos profissionalizantes e técnicos; das exemplares professores/investigadoras até os mais remotos lugares de educação no interior do Estado foram alvo da tinta e da cuidadosa investigação promovida na tese.

Ao procurar narrar o cotidiano destas mulheres, formadas e educadas a partir dos princípios católicos de mãe cristã, Rodrigues marca o uso de categorias e fontes diferenciadas na construção da história regional. De um lado, há um ideal paradigmático de boa moça e do qual a mulher urbana não escapa, moldado para sua inserção funcional na nova sociedade brasileira, seguidora de normas do dever ser. Por outro, as experiências cotidianas demonstram existir uma certa tensão nesta relação, assentada nos costumes, nas maneiras originais pelas quais assimilaram ou não na sua formação os elementos prescritos, coercitivos e normatizadores, agravados pelos caminhos de um progresso acelerado decorrente do pós-guerra e que exigia a definição imediata dos novos papéis sociais para a mulher.

A tentativa de observar as transformações sócio-culturais ocorridas nos finais do século XIX e primeiras décadas do XX impõem, efetivamente, o inevitável esclarecimento de projetos ideológicos em vigor. No campo educacional, as discussões se exasperam no afã de adaptar a sociedade brasileira às constantes mudanças advindas do processo de republicanização e assentamento de novas relações no país. A trama republicana lançava os pilares de ordem e do progresso, contidos no ideário da Escola Nova, encontrando apoio nos princípios de desenvolvimento e de civilização, incentivando o surgimento de inúmeros agrupamentos em prol da formulação de políticas educacionais e médico-sanitaristas, incumbidos de traçar os rumos “inovadores” pelos quais a Nação deveria guiar-se. Confirma em sua tese que, no período anterior, justamente se caminhava na contra-mão: “na própria metrópole não havia escolas para meninas, apenas recolhimentos que visavam o ensino de afazeres domésticos e a mentalidade era considerar a instrução feminina como algo supérfluo e mesmo perigoso.”[2] Sua proposta doutoral indicou caminhos e possibilidades a outros estudos e detalhamentos. Não só como investigadora, mas sobretudo como integrante do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, Irmã Leda – como era conhecida nos corredores – abriu múltiplas referências e oportunidades de entender, compreender e analisar melhor os matizes do projeto civilizador/civilizatório para educação e formação feminina dentro da história contemporânea brasileira.[3]

Um desses esforços, para além de suas orientações e trabalhos como educadora, foi verificar as contribuições realizadas a partir de seu marco. Pode-se mencionar aqui que um número especial da “Projeto História”[4] mostrou-se uma contribuição proeminente, não só pela temática apresentada, como por introduzir debates historiográficos que circundam ambos os temas. Nesta obra, a diversidade pode ser detectada a partir das perspectivas das autoras – de áreas acadêmicas distintas –, que enriqueceram a teoria e a historiografia em torno de temas tão “marginalizados”.

Em Educação e Gênero no Brasil, Fúlvia Rosemberg ressalta que a escola brasileira enfrentou um processo de “feminização”, causados por diversos fatores e que podem estar atrelados às “modificações culturais nas relações de gênero, os processos de urbanização, modernização, terceirização da economia e as crises econômicas poderiam estar provocando um aumento de escolaridade das mulheres e modificações no padrão de organização familiar”. Ademais, podemos citar como elementos constituidores deste processo de ampliação da escolaridade feminina: “a participação no mercado de trabalho, diminuição da fecundidade e retardamento da idade de casamento; diminuição da taxa de mortalidade infantil; ampliação de sua participação na esfera política.”[5]

Fruto também de diálogos com Leda Rodrigues, Rosemberg assinala contradições nos processos educacionais e que perpassam por questões de gênero, sendo exemplificado através da divisão curricular (conteúdos humanísticos para mulheres e técnicos para homens), ocasionando maior assimetria entre os sexos e apontando a escola como um centro de manutenção e reprodução da ordem estabelecida, seja esta na família, nos meios de comunicação ou no mercado de trabalho.

Outra assertiva é a de Eliane Lopes, cruzando História da Educação e Gênero e resgatando Michel de Certeau ao afirmar que a História é a escrita do “encontro de contingências, de decisões e de práticas”. Descreve os caminhos e fronteiras do ofício do historiador – desde o manuseio das fontes, passando pelo Scandere/Découper (decomposição/divisão) dos fatos históricos, pressupondo arte da inquirição e construção de categorias analíticas. “Categorizar, atrevo-me a uma definição, é a tarefa de organizar o material coletado, a partir de perguntas, para dar inteligibilidade ao problema posto. […] servem a problemas e a pesquisadores específicos, em realidades e tempos sociais determinados.”[6]

Talvez esta tenha, realmente, sido uma das maiores contribuições do trabalho original de Rodrigues e referência para as produções seguintes: a formulação, o uso de categorias de análise que possibilitem reconstituir culturas, memórias e histórias múltiplas. Concomitantemente, a tese envereda e articula a questão da história e educação feminina no Brasil, que será nas décadas seguintes alvo de inúmeros projetos e pesquisas. Apesar de uma ênfase na história das mulheres, sua tese ainda não se aproximava das contribuições sobre a categoria gênero.

Guacira L. Louro, em Uma leitura da História da Educação sob a perspectiva do gênero, demonstra séria preocupação nas questões concernentes ao gênero e a História da Educação, tendo como objetivo vislumbrar a abordagem histórica da educação sob tal perspectiva e com base teórica em Joan Scott e Michelle Perrot.

Após a introdução ao tema, Louro caracteriza a História da Educação: esteve sob o domínio de 1º) um paradigma experimental-positivista e, posteriormente, 2º) a articulação da educação com o todo social. Justamente neste ponto de transição e discussão epistemológica e teórica, a tese de Rodrigues marca seu tempo: ênfase dada aos estudos de instituições educacionais masculinas ou femininas, introduzindo uma abordagem embasada na categoria gênero, ampliando uso de fontes possíveis de investigação, além de contribuir para a elaboração de visões históricas. Para além do descritivo e cronológico, seguindo essa argumentação, a tese serviria como uma escrita comprometida e bastante detalhada de documentação sobre História e Educação feminina.

“Só podemos avançar em nossa leitura da história (e da história da educação) sob a perspectiva do gênero, na medida em que efetivamente aceitarmos que essa categoria é, ao mesmo tempo, social (portanto histórica) e biológica.”[7]

Outros foram continuidades e podem ser destacados: dissertação de Maria Cândida dos Reis Delgado sobre o período posterior ao estudado por Leda Rodrigues e avançando nas primeiras décadas da República. Também outros recortes e abordagens, tais como a escolarização profissional feminina, buscando “a relação histórica entre o dentro e o fora.”[8]

Outra questão revelada na leitura da tese é a relação Igreja e Educação. Ao dedicar um estudo sobre os libertários, existindo forças assimétricas na realidade feminina: “de um lado a Igreja, a força conservadora que coloca a mulher na secular ignorância, impedindo o seu acesso à educação e à ciência, pontuando o universo feminino de superstições, pregando a resignação e conformação. De outro lado está a educação, capaz de despertar a sua consciência crítica, apresentando-lhes um universo científico e racional, que a leva ao questionamento, sendo uma força de transformação de sua condição.”[9]

Uma resenha da tese e dos caminhos abertos por Irmã Leda são sinônimos. Seu doutorado é uma pesquisa original, inédita, útil e válida [10] e a revelação de suas potencialidades estão não só restritas ao número de citações, comentários e referências, mas aos impactos que tiveram e continuam a ter, mesmo depois de quase cinqüenta anos de distância temporal. ANPUH, ANPED, Programas de pós-graduação e graduação – especialmente nas áreas de História e Educação – continuam a mencionar a escrita de Leda Rodrigues. Rigor, compromisso, escrita criteriosa foram componentes de seu texto e de sua vida como educadora. Seu reconhecimento vem pelo acesso, disponibilidade, impacto, mas, sobretudo, por criar e potencializar uma área de interconexão nas Humanidades que resultou em diversas linguagens, pesquisas e continuidades.

Notas

1. DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994, p. 17.

2. RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a proclamação da República. São Paulo, 1960, p. 18. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”.

3. CAVALCANTI, Vanessa R. S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929-1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

4. ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994, p. 9.

5. ROSEMBERG, op. cit., 1994, p. 9.

6. LOPES, 1994, p. 21. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

7. LOPES, op. cit., 1994, p. 40.

8. OLIVEIRA, 1994, p. 58. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

9. PRACCHIA, 1994, p. 76. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

10. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

Referências

CAVALCANTI, Vanessa R.S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929- 1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”).

ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994.

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti – Pós- doutora em Humanidades pela Universidade de Salamanca, Espanha (CAPES, 2011 e CNPq, 2008). Doutora em História – Universidad de Leon (2003). Mestrado em História Social pela PUC-SP. Professora e pesquisadora da Universidade Católica do Salvador no Doutorado e Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea. Integrante do Núcleo de pesquisa e estudos sobre juventudes, identidades, cidadania e cultura (NPEJI/UCSAL) e do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – PUC-SP.


RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”. Resenha de: CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Conexões históricas para além de uma geografia paulista: educação, gênero e instituições. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.5, 2010. Acessar publicação original [DR]

Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) – SILVA (RBH)

SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. 216p. Resenha de: ABRAHÃO, Eliane Morelli. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009.

O fogão a lenha, utensílio obrigatório nas casas até meados da década de 1930, estava presente nas cozinhas e não raras vezes tinha sobre si o grande tacho de cobre a cozer vagarosamente os doces de abóbora, de mamão ou cidra, dentre as muitas iguarias preparadas pelas famílias. Esse cômodo da casa traz à tona nossas lembranças de infância e desvenda nossa memória gustativa repleta de aromas e sabores.

João Luiz Máximo da Silva no livro Cozinha modelo, originário de sua dissertação de mestrado, instiga-nos a pensar sobre os hábitos cotidianos desempenhados pelas senhoras, suas escravas e, posteriormente, suas empregadas no preparo dos alimentos que seriam servidos à família no dia a dia ou em ocasiões especiais. É um livro sobre história da cultura material e revela-nos aspectos interessantes dos impactos trazidos às cozinhas das casas paulistanas pela introdução do gás e da eletricidade. Mostra, também, como as donas de casa aderiram a essas novidades. Mas seu interesse vai além dos artefatos e procura entender a dimensão física, sensorial, “que perpassa todos os domínios do existir humano”, segundo as palavras do prefaciador, Ulpiano Bezerra de Menezes.

O autor percorre vasta quantidade de documentos – relatórios de diretoria das empresas concessionárias de gás e eletricidade, relatórios técnicos, notícias de jornal, legislação e normas –, focando três grandes temas: história das empresas concessionárias de energia, tecnologia doméstica e habitação. Silva aborda questões de natureza política, sanitária, econômica, tecnológica, cultural e social, além de temáticas diversas, como a arquitetura e o urbanismo, a administração pública e a legislação, os investimentos estrangeiros, os novos equipamentos integrados às redes de fornecimento de energia e ainda os serviços técnicos, as relações de gênero e a publicidade.

Ao tratar da introdução das empresas de energia e das inovações proporcionadas pela eletricidade, Silva tece um amplo discurso sobre os avanços tecnológicos e econômicos e resgata todo o processo de instalação e os mecanismos de expansão das duas redes de infraestrutura urbana: o gás e a eletricidade. O autor relata a atuação da empresa de capital estrangeiro The São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited (Light), com concessão pública para a exploração da energia pública e doméstica e do transporte urbano, desde finais do século XIX. Em 1912, essa empresa também passaria a controlar a distribuição do gás ao incorporar a The San Paulo Gás Company.

Silva faz uma abordagem atraente dos avanços proporcionados pela introdução da energia elétrica e do gás à paisagem da cidade de São Paulo, descreve o incremento da indústria e do comércio e sua repercussão no dia a dia dos moradores, sobretudo o impacto do uso do gás pelas famílias paulistanas.

Quanto à urbanização, nesse período a administração pública implantou um novo Código de Postura que disciplinava a abertura de ruas, os alinhamentos das construções etc. Porém, com o crescimento demográfico e econômico vivido por São Paulo, essas medidas públicas não foram seguidas. A demanda por habitação para todas as camadas da população fez crescer a malha urbana consideravelmente. As redes de fornecimento de iluminação e gás não atenderam a todos os novos bairros, percebendo-se então uma segregação espacial na cidade.

Nesse cenário de transformações urbanas as companhias de gás anunciavam seu produto nas revistas femininas com o intuito de conquistar as famílias para as novas tecnologias. Esses anúncios ofereciam ‘progresso e civilização’ e combatiam a antiga tradição da cozinha brasileira – os fogões a lenha –, impondo a mecanização da área de serviço e colocando como ator principal o fogão a gás, símbolo de cozinha moderna, limpa, ordenada e arejada.

Em busca de seu público consumidor – as donas de casa –, as empresas ofereciam cursos especialmente destinados às cozinheiras, ensinando culinária e o manejo dos fogões. Na década de 1910, as revistas femininas publicavam artigos que orientavam as donas de casa na escolha correta da alimentação e na forma de seu preparo, tendo em vista as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias – fogão a gás, panelas de ágata e de ferro –, todas as vantagens que o novo modelo de cozinha representava.

Contribuíram com os anseios das companhias distribuidoras de gás as questões sanitárias implantadas pelo poder público. Em 1918, o Código Sani tário focalizou a questão da higiene e da salubridade dos cortiços e discutiu explicitamente o papel da cozinha na casa e, mais ainda, de seus principais equipamentos, como o fogão. Pouco depois o Padrão Municipal de 1920 dedicou todo um item à organização da cozinha. Antes espaço da casa desprestigiado porque vinculado aos trabalhos braçais, a cozinha passou a ser o alvo principal das autoridades escudadas pelo saber médico. Este a considerava espaço essencial, que deveria ser agregado ao corpo principal do lar e à lógica imposta pelos ideais de urbanização e consumo.

Essas alterações sanitárias não mudaram a realidade, e, por muitos anos os fogões a lenha conviveram com os fogões a gás, não só pelo hábito e pelo conhecimento empírico adquirido no seu manuseio – acendimento, tempo e formas de cozimento –, mas também pela questão econômica, uma vez que a lenha era muito menos onerosa que o gás.

O aparecimento deste novo equipamento, o fogão, é exaustivamente analisado pelo autor de Cozinha modelo, que aborda a sua evolução, de meados do século XIX até a década de 1930, e também a forma de funcionar desse aparelho doméstico. Silva é minucioso em suas descrições e aponta as diferenças entre os fogões tradicionais e os de ferro fundido – estes também conhecidos como ‘econômicos’ –, os quais usavam lenha, carvão vegetal ou coque e cujo modo de funcionamento e combustão os diferenciava completamente dos fogões a gás.

Os espaços domésticos mereceram atenção do autor em questões que ultrapassam as alterações arquitetônicas e chegam às diferentes formas de moradias, divididas por ele em quatro categorias – os palacetes, as casas médias (com mais de três cômodos), as casas populares e os cortiços. Suas análises sobre a cozinha recaem não só em sua localização – no caso dos cortiços, por exemplo, ela inexistia ou era improvisada –, mas também em sua preconizada modernização. Substituía-se a imagem da cozinha bandeirista, que sugeria trabalho pesado e sujo, desenvolvido longe das áreas de estar em razão de fumaça, cheiro e fuligem, por um modelo limpo, com novo mobiliário, visando eficiência no trabalho.

As novas relações que se tramam entre o espaço privado e o espaço público por intermédio da cozinha criam uma articulação inédita com o espaço urbano. Nas palavras do autor: “A viabilização e comercialização de uma nova tecnologia, aplicada ao trabalho doméstico e distribuída por meio de redes, trouxe um grau de dependência da casa a novas relações, que extrapolaram os antigos limites desse espaço” (p.94).

A difusão do uso de novas práticas e técnicas domésticas estava fortemen te associada aos novos padrões urbanos de embelezamento e sanitarização. Para isso, era necessário romper com o passado colonial e com tudo o que ele representava. A nova cozinha higiênica exigia a participação efetiva da mulher, com novas formas de organizar o tempo e o espaço doméstico, a racionalização de seu espaço e seu gerenciamento econômico. Silva entende que essa ‘importância’ da dona de casa relegou a empregada ao papel de mera executora, cabendo à mulher a administração do lar num sentido mais amplo. Estudos de gênero recentes têm revelado que as mulheres nas primeiras décadas do século XX já controlavam o orçamento e as despesas familiares, e esses estudos apontam para uma tendência ao consumo de novidades tecnológicas que facilitassem os afazeres cotidianos do lar, o que sem dúvida satisfazia os anseios das companhias de gás.

No que tange à cultura material, a descrição dos novos artefatos à disposição das donas de casa foi pouco explorado pelo autor. Para apreender os objetos, as novidades tecnológicas que compunham o arsenal de utensílios existentes nas casas paulistanas, faz-se necessária uma pesquisa aos inventários post mortem do período, uma vez que são fonte documental essencial para esses estudos por seu caráter descritivo. Os inventários registram todos os bens da pessoa falecida e que foram objetos da partilha. Nos autos de avaliação, por exemplo, são discriminados os ‘bens móveis’ – utensílios domésticos, móveis, objetos de decoração e de trabalho – e os ‘bens imóveis’, ou ‘de raiz’ – casas, terrenos e plantações. Os aparelhos introduzidos com o advento da eletricidade – torradeiras, cafeteiras e chaleiras, por exemplo – poderiam ter sido mais bem explorados se o autor não se houvesse detido apenas nos anúncios publicitários e na lista de leilões, porque nessas fontes há apenas a indicação dos objetos disponíveis no mercado.

Com narrativa clara e convidativa, Silva nos estimula a percorrer os caminhos da passagem do fogão a lenha para o fogão a gás. Expõe os sentimentos contraditórios em relação à nova tecnologia – crença em seus poderes curativos e terapêuticos, ao lado do medo de intoxicação – e a ideologia de progresso subjacente à propaganda do gás e da eletricidade para o interior das casas. E, sobretudo, revela como a cozinha foi redesenhada em torno do fogão ‘moderno’, transformando as relações entre patroas e empregadas e a dinâmica no preparo e na escolha dos alimentos. O autor fornece pistas sobre uma possível ligação entre essa nova cozinha e o desenvolvimento da gastronomia e, de forma pontual, aborda a alteração do cardápio que deveria atender aos novos ritmos urbanos, com refeições rápidas e subordinadas a horários específicos. Algumas deficiências podem ser observadas neste trabalho, relaciona das às próprias escolhas temáticas e das fontes, uma vez que o autor se deteve muito na história das empresas concessionárias e pouco nas transformações dos aparelhos elétricos e no surgimento de novos utensílios domésticos.

Eliane Morelli Abrahão – Doutoranda em História Cultural. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Universidade Estadual de Campinas (CLE/Unicamp). Rua Sérgio Buarque de Holanda, 251, Barão Geraldo. (Caixa Postal 6133). 13083-970 Campinas – SP – Brasil. E-mail: [email protected].

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Da União à Fundação. A História da Panificação em São Paulo | Cristina Nilmara Perissini

A presente resenha se faz pertinente porque através dela coloco algumas preocupações referentes às normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), citações de fontes e revisão textual. Questões que ficaram evidentes na obra “A História da Panificação em São Paulo”, da autora Nilmara Cristina Perissini.

Com o livro em mãos, tive o primeiro contato com o resumo do currículo da autora, que é formada em História pela UNORP (Centro Universitário do Norte Paulista), e também autora dos seguintes livros: “Do Trigo ao Pão Sem Complicação”, lançado em 2003, e “Palestra Esporte e Clube. Histórias e Memórias”, lançado em 2000. É também responsável pelo Memorial da Panificação de São Paulo desde 1995. Além disso, vem de uma grande família de padeiros. A referida obra eleita para resenha possui dez capítulos e cento e setenta páginas, onde são narrados os principais acontecimentos que envolveram um dos mais antigos alimentos: o pão.

As padarias foram e são ao mesmo tempo um misto de comércio e indústria, e enfrentaram durante as décadas de 10 e 20 a concorrência de outros comércios, como os “quiósques”, que se dispunham a vender pão ao meio de moscas, bebidas alcoólicas, café, leite, cigarros de palha, fumo de corda, biscoitos, balas, jornais, bilhetes de loteria, graxas, cordas para sapateiros, entre outras mercadorias, que prejudicavam o aroma, o sabor e a higiene do pão. Estas e outras questões fizeram com que um grupo de panificadores liderados por Carlos C. Calia, Manuel R. Ladeira e Bignardi Albano fundassem a União Cooperativa dos Proprietários de Padarias de São Paulo, em 11 de fevereiro de 1915, e mais tarde, em 6 de junho de 1935, o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria.

Essas organizações foram bastante importantes, pois defendiam a classe patronal dos panificadores, assim como também organizavam as relações com os padeiros. A maioria dos panificadores era de italianos, portugueses e espanhóis. Essa pequena diversidade de nacionalidades resultava também em uma diversificação na fabricação de pães.

As padarias das famílias italianas e espanholas faziam pães que pesavam entre um a dois quilos, e eram conhecidos como filões, roscas ou panholas.

Esses pães foram chamados de caseiros, pois eram feitos com fermentação natural, o que os tornava mais saborosos no dia seguinte. A maioria dos fregueses adquiria pão para dois ou três dias, permitindo assim que a padaria pudesse ficar fechada um dia por semana, oferecendo descanso semanal aos empregados, uma polêmica discussão sobre os direitos trabalhistas de padeiros e de funcionários ligados ao ramo panaderil.

O final da década de 20 e início da década de 30 marcou a presença das padarias chamadas “francezas”, que eram comandadas por portugueses.

Essa denominação estava relacionada à fabricação de pães que utilizavam o fermento biológico, esse derivado da cana de açúcar e do amido extraído da mandioca. Esse sistema de trabalho para a produção de pães permitiu aos padeiros fabricarem várias fornadas diárias, com pão quente toda hora.

Essa forma portuguesa de trabalhar inovou o modo de administrar as padarias, que a partir de então poderiam revezar os funcionários em turnos de trabalho, e garantia o funcionamento sete dias por semana à disposição do freguês, 20 horas por dia aproximadamente.

Havia também já no início do século XX as confeitarias de luxo, que se localizavam no Largo do Rosário e na Rua XV de Novembro. Temos como exemplo desse período a Confeitaria Castelões, que ficava aberta até às dez horas da noite. Outras de destaque foram a Fasoli, a Nagel, a Brassiere e Progredior, todas localizadas na rua XV de Novembro. Algumas delas como a Fasoli tinham até apresentação de orquestra.

A presente obra traz uma imensa contribuição para a área de humanas, sobretudo aos historiadores. Foi de suma importância a leitura deste livro para a pesquisa, e continua a ser relevante e pertinente às discussões no Núcleo de Estudos da História Social da Cidade – NEHSC – da PUC-SP, pois Nilmara consegue dar um panorama sobre tão importante tema, ainda mais quando traz à tona os problemas da história da panificação em São Paulo.

Isso posto, o motivo dessa resenha é chamar a atenção para as lacunas deixadas na obra que, sem dúvida, é de suma importância.

De início, algo chamou a atenção quando a autora narra sobre a alimentação portuguesa na ocasião do “descobrimento” do Brasil. Segundo a sua narrativa, houve um choque de paladar entre a base alimentar estruturada no pão, vinho e azeite, e os novos alimentos e sabores da culinária indígena, em que o consumo de mandioca e seus derivados, como a farinha, predominaram sobre a farinha de trigo.

Nessa discussão, a autora cita uma frase de José de Anchieta no século XVI: “Já deu trigo mas não o querem… Apenas semearam alguns grãos para hóstias e bolinhos…”

A citação acima não é devidamente indicada na presente obra resenhada. De onde foi tirada? De um livro? De uma carta? De um jornal? A dúvida sobre a fonte ficou eloqüente. A referida citação encontra-se na obra de Ernani Silva Bruno (1984, p. 33).

Nilmara continua a narrar sobre essa relação do homem com o pão, a escassez do trigo e hábitos alimentares. Assim, aponta que por volta de 1616, a Câmara Municipal de São Paulo registrou em suas Atas diversos pedidos de licenças para a instalação de moinhos. Mas também a autora não indica a localização das referidas atas [1], como também não indica a fonte documental sobre o trabalho feminino das chamadas padeiras, as quais era permitido fabricarem e venderem pães.

Mais adiante, a autora afirma que nos meados do século XIX, a sociedade paulistana estava influenciada pela presença dos imigrantes italianos na fabricação do pão de trigo. Com as famílias desses imigrantes surgiram as padarias italianas, como a Padaria Santa Tereza, fundada em 1872 e instalada na rua Santa Tereza, próxima à Praça da Sé; a Padaria Ayrosa, fundada em 1888, no Largo do Paissandu; a Padaria Popular, fundada em 1890, da família Di Cunto, na Rua Visconde de Parnaíba.

Após breve citação dos logradouros panaderis, a historiadora apresenta um depoimento oral do Senhor Alfredo Di Cunto, mas também não esclarece a fonte da entrevista. Algumas indagações surgiram: quando foi realizada a entrevista? Quem o entrevistou? A entrevista foi publicada na íntegra? O que foi perguntado ao Senhor Alfredo? Qual a importância desse cidadão no processo de panificação de São Paulo? O documento se perde por não ser devidamente apresentado.

Após esses e outros dados narrativos, o livro segue com um caderno de seis fotos, respectivamente: a Padaria Franceza; a Santa Tereza; a Nova Padaria Franceza; a Confeitaria da Sé; a Padaria União Brasileira; e a carrocinha de entrega de pão. Nenhuma das fotografias possui indicativo de arquivo, se este é público ou particular, e as datas das respectivas imagens são incertas. Por exemplo: por volta de 1900; por volta de 1910; entre outras questões lacunares sobre o trabalho com iconografia.

As atividades do ramo panaderil envolviam muitas questões a serem resolvidas e muitos problemas a serem enfrentados, desde a relação com a exportação do trigo quanto ao preço e venda do pão.

Com essa discussão, a autora cita um documento que se refere à Alimentação da Classe Obreira de São Paulo. Também não se sabe se é um livro, uma Tese, uma Dissertação, ou outro tipo de fonte documental, nem tão pouco a data e o local de publicação.

São inúmeras as citações de livros, Atas, depoimentos orais, revistas, jornais, relatórios de congressos e cartazes de cursos de panificação que não apresentam indicação de fontes, e o que existe de indicação está fora dos padrões da ABNT.

A autora não apresenta Bibliografia no final do livro, como também organização dos documentos utilizados como fontes. Alguns poemas e crônicas que foram utilizados também não estão devidamente apresentados. Vale ressaltar que a documentação eleita pela autora é variada e rica.

Outra questão que está em evidência é a falta de revisão textual, onde o revisor com o olhar atento deve corrigir os erros de digitação e impressão gráfica.

Ocorre que os historiadores têm uma responsabilidade muito grande com a transmissão da História, seja pelo ensino e/ou pela pesquisa, como também com os resultados obtidos por este ofício, expressos em artigos, resenhas, Teses, Dissertações, livros, comunicações, palestras, aulas, oficinas entre outros. Deve-se pensar como contribuir com qualidade e de forma diferenciada para a produção do conhecimento.

Sem dúvida, Nilmara Cristina Perissini tem dado grandes contribuições à historiografia, e com respeito e admiração pela colega de oficio, ouso resenhar a sua obra de forma crítica, pois a mesma trouxe-me preocupação com a referida documentação apresentada de forma lacunar e, por isso, não pude saborear melhor o saber sobre a história de um dos alimentos mais antigos do mundo, o pão!

Nota

1 As referidas atas encontram-se no Arquivo Municipal Washington Luiz, localizado na cidade de São Paulo, local por mim pesquisado recentemente.

Referência

BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo: arraial de sertanistas (1554-1828). São Paulo: Hucitec, 1984. v. 1.

Márcia Barros Valdívia – Professora Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integra o Núcleo de Estudos da História Social da cidade – NEHSC – da PUC-SP. Atualmente desenvolve projetos de pesquisa junto ao NEHSC, entre eles “Padeiros Portugueses em São Paulo”, “Padarias na Cidade de São Paulo”, “Cantinas Portuguesas e a Cidade de São Paulo” e “História da Vila Madalena.


PERISSINI, Cristina Nilmara. Da União à Fundação. A História da Panificação em São Paulo. São José do Rio Preto: Mundial, 2005. Resenha de: VALDÍVIA, Márcia Barros. Para escrever e fazer pães: a necessidade da técnica e do método. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

 

Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901) | Denize Bernuzzi de Sant’Ana

Tema original, pouco apresentado na Historiografia contemporânea brasileira, onde pelos caminhos próprios de um estudo crítico, a competente e jovem historiadora Denise Bernuzzi de Sant´Anna nos apresenta este ousado e sugestivo trabalho, resultado de uma criteriosa e brilhante pesquisa, que foi objeto da sua Livre Docênci, defendida em Dezembro de 2004, no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Obteve para tanto financiamento do CNPq, além de bolsas concedidas a alunos de Iniciação Científica e Aperfeiçoamento Técnico, sendo uma parte das investigações sobre higienismo realizada durante o curso de Pós-Doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, Financiado pela CAPES.

Agora, esta pesquisa é transformada em livro pela Editora SENAC, para alegria de seus leitores/alunos, e como uma substanciosa contribuição para aqueles estudiosos da temática Cidade, como é o caso dos integrantes do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – do Departamento e do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da referida, acima citada Universidade, e por nós coordenado, além de outros interessados no tema.

Desde a primeira década do Século XIX, os habitantes da feia e provinciana São Paulo utilizavam-se de rios, bicas, chafarizes, córregos, tanques e regatos para suas necessidades básicas, até os inícios dos primeiros anos da República, quando foram construídas as usinas no rio Tietê. Com essa baliza cronológica, que surgiu inspirada no momento da Independência do Brasil realizada por Dom Pedro, o príncipe regente, às margens do Riacho do Ipiranga (1822), até o estabelecimento da Hidrelétrica de Parnaíba (1901), no Rio Tietê, variados reflexos sobre esse imenso “continente aquático” fazem das páginas deste livro uma história muita bem narrada e interpretada do abastecimento ou não de água na cidade, que hoje é uma megalópole.

Enriquecidas reflexões são trazidas pela autora sobre usos, costumes e abusos sobre a água, suas funções, seus hábitos de higiene do corpo, da casa, das ruas e das calçadas, quando ainda não havia a tecnologia dos séculos que se seguiram. Personagens desfilam, e o olhar atento da pesquisadora não os perde de vista, embora alguns não sejam conhecidos na atual conjuntura. E, se o foram, jazem esquecidos pela maioria da população, que sequer imagina que esta cidade tinha o dom de ter um rico mapa geográfico de águas. Até o Estado a que pertence é atravessado por um dos importantes rios paulistas que, nascendo em Salesópolis, interior do Estado de São Paulo, vai despejar suas águas no rio Paraná, e não no Oceano Atlântico, como a maioria dos outros rios, que despejam suas águas no mar. Uma premonição da importância do deslocamento de fronteiras paulistas, pela interiorização do homem, transformando-as em locais de sociabilidade. A cidade de são Paulo tinha um imenso volume de águas, e uma rica cultura gerada pela presença delas no espaço público.

A historiadora transporta o seu leitor para períodos difíceis da vida da cidade, pois apesar dessa imensa turbulência aquática, houve momentos em que o racionamento da água gerado por períodos de seca, ou problemas de saúde pública, gerados por imensos temporais que alagavam e castigavam a pobre urbe, transformavam a pacata cidade em um caos social, fato que até hoje ainda ocorre.

As águas da cidade contribuíram para as mudanças dos hábitos higiênicos e da cultura do cidadão, pois vão trazer novas crenças, curiosidades no cotidiano, e preocupações de médicos em relação a doenças, e de engenheiros que tentam “dobrar” a natureza.

Muito rica e interessante é a narrativa construída pela autora, que leva de forma envolvente o leitor a refletir junto com ela as mazelas relativas ao abastecimento urbano da água, e os desafios políticos para resolvê-lo. Do uso dos banhos nas bacias domésticas às sofisticadas casas de banho que surgiram com os primeiros restaurantes no decurso do Século XIX (sobretudo, no período após a criação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), até às pescarias onde pululavam peixes os mais variados, a atenta historiadora documenta as agravantes cenas do cotidiano urbano relativo às águas, à eletricidade e ao seu consumo, além de captar o comportamento social dos moradores na cidade de São Paulo, como as noções de higiene, as novas condições de vida, oriundas de um progresso quase que “homeopático”. Diferente do olhar do paulistano de hoje, cujo comportamento social rotineiro não é sustentado pelos cursos fluviais. Difícil entender que esta “terra da garoa” de ontem, burgo de estudantes, foi durante décadas “um lugar com muitos veios de água, apoiada por uma rica cultura material, relacionada à construção de samburás, barcos, moringas de barro, fontes, pinguelas e pontes de madeira” (Sant´Anna, 2007, p. 13). Vai cuidadosamente a autora desvelando as ruas que foram portos, como a Ladeira Porto Geral, da Tabatinguera e a da Figueira, no rio Tamanduateí, hoje pavimentado. Além dos pequenos riachos que, soterrados, deram origem às ruas que hoje abrigam importantes centros comerciais, livrarias, cafés etc.

Muitas enchentes destruíram valores acumulados, mas em contrapartida, do fundo desses rios saíram materiais úteis, que edificaram esta cidade. Um exemplo desse progresso arquitetônico foi o Edifício Martinelli, durante muitos anos o mais alto de São Paulo, erguido em 1922, e finalizado em 1929, em plena crise da Bolsa de Nova York, que utilizou areia e outros materiais extraídos do rio Tietê e trazidos ao porto por barqueiros.

As águas paulistanas contribuíram para momentos fundamentais da vida dos habitantes desta cidade. Tristezas, alegrias, vidas em construção, devoções profanas e sagradas. Mas também trouxeram os miasmas que preocupavam os higienistas, que os combatiam com estudos e projetos para a saúde pública, tendo suas origens nas primeiras leis de Saúde Pública, assunto por nós já rastreado.

A Professora Doutora Denise Bernuzzi de Sant´Anna utilizou uma farta documentação, entre as quais se destacam as Atas da Câmara Municipal; queixas e reivindicações dos moradores, localizadas na Coleção dos Papéis Avulsos do Arquivo Municipal; Ofícios e Requerimentos enviados ao Governador da Província; Artigos dos jornais O Correio Paulistano e o Diário Popular; processos criminais; teses sobre Higiene e Salubridade; memorialistas e viajantes.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, a autora trabalha com A Visibilidade da Água, que ocupa uma deslumbrante narrativa que se estende da página 15 à página 185. Na segunda, Do Visível ao Invisível, que se inicia à página 187 e se completa de forma inteligente e eloqüente à página 296. No total, com Agradecimentos, Introdução, Bibliografia e Fontes, o livro contém 318 páginas, além de uma belíssima capa, que ostenta um Óleo sobre Tela de José Wash Rodrigues de 1922, retratando a Igreja e Pátio da Misericórdia em 1840, Acervo do Museu Paulista da USP fotografado por Hélio Nobre e José Rosael.

Esta obra, além de ser uma rica leitura para pesquisadores da área, uma excelente fonte para estudos de temas semelhantes na cidade de São Paulo, é um incentivo à leitura para jovens paulistanos que desejam conhecer a história de sua cidade, que é narrada em estilo simples, que foge ao academicismo, sem prejudicar o seu rigor científico, pois se apresenta de forma ainda profunda e inédita.

Estamos nós todos da Academia Paulistana de parabéns, por recebermos esta excelente contribuição de uma historiadora cuja carreira promissora muito ajuda a difundir a história  desta cidade de São Paulo, e a contribuir para o enriquecimento da Historiografia nacional contemporânea, onde tal temática foi pouco explorada até então.

Yvone Dias Avelino – Professora Titular do Departamento e Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. Possui experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: Cidade, Cultura, História, Memória e Literatura. Coordena o Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – da PUC-SP, existente há mais de 15 anos.


SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: SENAC, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Narrativas Citadinas: São Paulo das Águas. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.1, 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922) / Ana L. Martins

A utilização de jornais e revistas como fontes no trabalho de pesquisa é algo corriqueiro no fazer historiográfico. Vez por outra recorremos a eles para verificar dados, analisar discursos, relacionar idéias dominantes de um período ou personagem que buscamos conhecer. Poucas vezes, no entanto, vemos esses veículos de comunicação no centro da cena. A busca dos significados de sua criação e dos detalhes de suas relações com a cultura e sociedade da época não é tratada com o rigor necessário, sendo subdimensionada na pesquisa.

A historiadora Ana Luíza Martins resolveu inverter essa lógica. Centrando foco na imprensa periódica das quatro primeiras décadas da República, através do estudo específico das revistas, a pesquisadora acabou compondo um verdadeiro painel da cultura e dos meios literários e jornalísticos paulistanos entre os anos de 1890 e 1922. O resultado pode ser conferido em Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), produto de sua tese de doutorado na USP.

Utilizando-se de uma narrativa prazerosa, a autora busca recompor para nós, como num quadro, as condições conjunturais que permitiriam o florescimento e consolidação das revistas. Um dos méritos do trabalho, aliás, é essa recomposição, pela riqueza em detalhes. O que vemos é uma São Paulo, em plena virada do século, no compasso do desenvolvimento de sua agricultura movida pelo café e de uma indústria e comércio emergentes. A velocidade das transformações no espaço urbano corria no ritmo de trens e vapores e, mais tarde, no das rotativas, de onde surgiriam, em cores, as páginas de dezenas de títulos de revistas.

Estas traziam em seus textos e ilustrações a idéia de progresso e “civilidade”, profundamente inspiradas pelo periodismo francês. Muitos dos títulos, nos primeiros tempos, eram produzidos por brasileiros da elite agrária em seus escritórios em Paris. Essa relação foi fundamental para a divulgação de hábitos e produtos em voga na França, através da publicidade. A realidade das casas reais européias, o embevecimento com os hábitos aristocráticos e a vida elegante e refinada da nobreza, em permanente lazer, serviam como alimento para o panorama Belle Époque vivido em São Paulo. A cidade era assim vendida como a “Capital Artística”, a “Paulicéia”. O papel couché e a arte, presente nas riquíssimas gravuras, procuravam dissipar os rastros de tensão entre as classes e os conflitos urbanos em um espaço que se pretendia saneado e ordenado.

Num país onde 80% da população ainda era analfabeta, São Paulo destacava-se pelos investimentos públicos na esfera escolar, embora para a maioria da população, isso não representasse mais que aprender a ler, escrever e contar. O “saber ler” era chave para a participação do “cidadão” nas decisões políticas e no mundo da informação. Sem a presença de uma indústria livreira e com a dificuldade de acesso e entendimento dos jornais, “paladinos da verdade”, a revista com seus textos leves, ligeiros e profusão de ilustrações e gravuras, depois fotografias, seduzia pelo encanto da leitura facilitada e atraente, feita para entreter. Não era à toa que as revistas eram chamadas de “sorriso da sociedade”.

Do ponto de vista da história da imprensa brasileira, a pesquisa de Martins é de fundamental importância por recuperar um momento de transformações no fazer jornalístico. Isso se dá tanto no plano das condições estruturais para o desenvolvimento industrial – produção de papel, formação de pessoal qualificado para o trabalho em oficinas gráficas, estratégias de divulgação e venda dos produtos – como também no campo das representações ideológicas sobre esse fazer.

As contendas entre literatos e jornalistas são situadas nesse contexto de mudanças. O trabalho nas redações feito, em grande parte, por escritores, exigia a adaptação a um regime mais rígido de horários e novas formas de texto. A figura do jornalista boêmio dava lugar ao profissional disciplinado, apto a responder às necessidades de produção de um mercado competitivo e, a partir dali, remunerado.

O debate estimulante entre jornalismo e literatura no Brasil pode encontrar ali o seu elo perdido, uma vez que estamos tão acostumados a pensar essa questão, através da bibliografia norte-americana. A autora relata como a mercantilização imposta aos jornais vai gerar um mal-estar entre os literatos.

Subjugados em sua arte pelo “vil metal”, estes vão procurar nas revistas a maneira de se expressarem com integridade, obtendo a qualificação e o reconhecimento desejados como artistas e não como “operários da notícia”.

O trabalho de Ana Luíza Martins também nos fornece pistas para pensar a questão da linguagem jornalística propriamente dita, a partir da contribuição literária das revistas aos campos da reportagem e opinião. Mas a forte presença dos escritores e poetas nas revistas não estava retratada apenas nos contos, crônicas e sonetos publicados pelas ilustradas. Está também na publicidade e propaganda que estabelecia relação direta do comércio e indústria com essas publicações, afinal “o reclame é a vida do comércio”.

Quem imaginaria Olavo Bilac como um dos nossos primeiros publicitários, divulgando em sonetos as vantagens do xarope Bromil? A revista era a embalagem ideal para a divulgação de bebidas, medicamentos e novidades tecnológicas da indústria em seu começo.

O papel das revistas como formadoras e mesmo educadoras da sociedade paulistana pode ser depreendida do escrutínio feito pela autora nas bibliotecas de três importantes colaboradores das revistas e agitadores culturais nesse momento: Eduardo Prado, Lima Barreto e Mário de Andrade. Imbuída dos instrumentos da história da leitura, ela esmiúça e analisa as várias formas de consumo e utilização dessas publicações para os interesses de grupos culturais diversos na cidade de São Paulo, nos dando uma idéia do ecletismo desse veículo de comunicação. Ficamos sabendo que, para muitos dos intelectuais da época, as revistas ocuparam um papel tão importante quanto os livros.

As várias imagens de São Paulo, unificadas pela idéia do progresso e modernidade, nas publicações destinadas à agricultura, ciência, comércio, agremiações literárias, ligas de operários e ao público feminino, são cuidadosamente analisadas na pesquisa. O livro nos brinda ainda com ilustrações de capas, anúncios e gravuras, retirados de algumas das publicações estudadas. Estes elementos gráficos e artísticos só vêm somar informações ao texto denso e bem trabalhado de Ana Luíza Martins nessa que, sem dúvida, pode ser considerada obra de referência na história da imprensa brasileira.

Ana Rita Fonteles Duarte – Universidade Federal do Ceará.


MARTINS, Ana Luíza. Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp / Fapesp / Imprensa Oficial do Estado, 2001. Resenha de: DUARTE, Ana Rita Fonteles. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945 | João Fábio Bertonha

A emergência e afirmação de regimes políticos autoritários, impulsionados por idéias e princípios antidemocráticos, constituíram duas das características mais evidentes do entreguerras, a tal ponto que o “breve século XX” de Eric Hobsbawm já tinha sido batizado de “século das ideologias” por diversos historiadores que o precederam. Nesse conjunto de regimes autocráticos, o regime fascista inaugurado por Mussolini representou, sem dúvida, um paradigma do antiliberalismo, representando — tanto do ponto de vista prático como teórico — o protótipo do que ele mesmo chamou de “Estado totalitário”, termo depois estendido por Hannah Arendt para cobrir a modalidade soviética de poder político absoluto. Muitos historiadores e cientistas políticos, entre eles François Furet de O passado de uma ilusão, consideram aliás que o fascismo se desenvolveu especificamente em reação ao bolchevismo, dele retirando entretanto diversos elementos substantivos e formais, pois que combinando o estatismo do planejamento socialista e o monopólio do poder pelo partido único com uma ideologia anticapitalista e supostamente igualitária, como no caso da ideologia marxista. Leia Mais

Médicos italianos em São Paulo (1890-1930): um projeto de ascensão social | Maria do Rosário Rolfsen

Alfonso Bovero, Antonio Carini, Alfonso Splendore, Alessandro Donati, Carlos Foá, Mário Artom, Archimede Busacca, Carlos Brunetti e tantos outros deixaram suas marcas na saúde pública de São Paulo e no curso de medicina da Faculdade de Medicina de São Paulo. Todos eram médicos italianos vindos para São Paulo no final do século XIX e começo do século XX.

O livro de Maria do Rosário Rolfsen Salles responde a nossa curiosidade em saber por que esses e outros médicos deslocaram-se para São Paulo e como se inseriram no mercado de trabalho, ou melhor, em que setores eles desenvolveram suas carreiras para cumprirem o objetivo da ascensão social. O livro soma-se ao de Carlos da Silva Lacaz, Médicos italianos em São Paulo: trajetória em busca de uma nova pátria , e traz novos elementos à história da saúde pública e da ciência médica em São Paulo. Leia Mais

Poder e saúde: as epidemias e a formação dos serviços de saúde em São Paulo | Rodolpho Telarolli Júnior

Nas duas últimas décadas no Brasil, foram produzidos vários estudos históricos e sociológicos sobre o tema da saúde pública na Primeira República. Esses trabalhos tiveram fundamental importância no desenvolvimento da história da saúde e da ciência no país. Algumas dessas obras constituem leituras obrigatórias para este período de nossa história: os modelos econômicos e políticos, os movimentos pela reforma da saúde e seus líderes, as ideologias da ordem ou de mudança, os diferentes níveis de centralização ou descentralização do poder político, o processo político decisório que produziu instituições de saúde pública no Brasil. Por abordar alguns desses tópicos, Poder e saúde constitui, sem dúvida, uma contribuição importante à literatura republicana.

Rodolpho Telarolli Junior apresenta um estudo sobre a história da saúde pública na Primeira República, em especial, sobre o processo de criação de políticas públicas na área de saúde e a formação das práticas sanitárias no estado de São Paulo, no contexto mais amplo da organização política, econômica e social. Leia Mais

Ciência e sociedade na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903 a 1916 | Luiz Antônio Teixeira

A história das ciências no Brasil, apesar do desenvolvimento significativo dos últimos anos, é uma área incipiente. Em especial, muitas das instituições científicas brasileiras estão ainda à espera de pesquisadores que se dediquem ao estudo de sua trajetória.

É com grande satisfação que vemos editado o livro de Luiz Antônio Teixeira, Ciência e sociedade na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903 a 1916, resultado de sua pesquisa para o mestrado realizada no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Leia Mais