Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

Alguns livros, se me permitem a analogia, são como os melhores vinhos maturados em barris de carvalho. Isto é, requerem tempo, bem como se beneficiam da experiência de pesquisa e dos conhecimentos acumulados ao longo dos anos por parte do autor, no caso da obra aqui resenhada autor-pesquisador, melhor esclarecendo: historiador. Para mim são os melhores livros, inclusive permitindo aos leitores descobrir numa passagem qualquer do texto ou, principalmente, nas notas de rodapé, o decorrer do tempo na “fermentação” e “decantação” da pesquisa, agregando leituras, fontes e dívidas ou trocas intelectuais. Há quase trinta anos atrás, em 1993, nas páginas da Revista USP (Dossiê Brasil/África), João Reis já havia nos apresentado em alguma medida o tema de sua investigação no artigo: “A greve negra de 1857 na Bahia”.2 Ainda recordo a sensação quando li este artigo: fiquei maravilhado. Até porque já havia iniciado minhas investigações sobre a escravidão na Amazônia oitocentista, particularmente no ambiente urbano de Belém, justamente compreendendo os escravizados como parte da classe trabalhadora, como parte da história social do trabalho. Lia, então, a história de uma greve feita por libertos, portanto ex-escravizados, e também por escravos, basicamente africanos (nagôs). “Que história fantástica!”, pensei, com a sensação de querer saber mais, me indagando se dali não podia sair mais coisa, quem sabe um livro. Em 2019, veio o livro: Ganhadores. Obra, portanto, que, no seu conjunto, se beneficiou da experiência historiográfica do autor no campo de investigação da escravidão, particularmente em Salvador (Bahia), quando, por exemplo, discute no livro os cantos de trabalhos dos africanos, quer libertos ou escravos, algo que já havia tratado alhures tal como em seu artigo “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição”, publicado em 2000, na prestigiada revista acadêmica Afro-Ásia. 3

Aliás, sobre o autor, João José Reis, um dos mais importantes historiadores brasileiros, sem exagero poderia ser dito que dispensaria apresentação. Mesmo concordando, ainda assim gostaria de dizer uma ou duas coisas, uma vez que não creio que se possa tratar da obra sem considerar o criador, ou, da mesma forma, pensar seu livro aqui resenhado descolado do conjunto de sua trajetória historiográfica. Primeiro, enfatizo, Ganhadores se insere no rol das obras de João Reis sobre o universo da escravidão, particularmente em sua feição urbana, se beneficiando largamente dessa experiência. É um livro sobre escravidão urbana no século XIX, a partir da investigação sobre uma categoria de trabalhadores com marcadores sociais (de classe/libertos e escravos/eventualmente livres), de gênero (masculinos) e étnico-raciais (negros/africanos/majoritariamente nagôs) bem delineados, ainda que longe de estáticos ou imóveis ao longo das décadas do século XIX (mudanças, aliás, apontadas pelo autor), que trabalhavam como ganhadores ou ao ganho no transporte de cargas e de pessoas, para sustento de seus senhores.4 Trata-se, então, de uma história social do trabalho, a partir das classes trabalhadoras com enfoque numa importante categoria que, durante 12 dias em junho de 1857, paralisando suas atividades no transporte de mercadorias, objetos ou encomendas e de gente, a bem dizer parou Salvador. Fizeram então uma greve, a primeira no Brasil a mobilizar toda uma categoria específica de trabalhadores, como parte da história de resistência dos ganhadores escravizados e libertos contra as medidas fiscais e de controle social dos africanos nas ruas de Salvador, por parte das autoridades constituídas, marcadamente a Câmara Municipal, que, além da imposição de cobrança de taxa para exercício do trabalho de ganhador no transporte de cargas e pessoas, que acabou revogada, impunha o uso pelos carregadores de uma placa de metal, a qual, contudo, mesmo com alguma resistência acabou vigorando por algum tempo, após a greve ter terminado em 12 de junho de 1857. O livro, por conseguinte, se insere na historiografia acerca da história do trabalho e das classes trabalhadoras, afinal a história do trabalho e das classes trabalhadoras não se iniciou após o fim da escravidão, da mesma forma que a história das lutas e de resistências dos trabalhadores à exploração capitalista, quer livres, libertos ou escravizados. Realidade também já investigada pelo autor em sua trajetória intelectual.

Por outro lado, lembrando que não só de conteúdo se faz um bom livro, mas deve ser bem escrito com uma narrativa fluente, o autor, que já recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura por sua obra A morte é uma festa, 5 bem como foi agraciado em 2017 com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra literária não ficcional de natureza histórica, é um historiador/escritor de “mão cheia”. Dono de um estilo de escrita marcado pelo coloquialismo e ironia, bem pontuados ao longo da narrativa, sem perda do rigor metodológico e acadêmico tão caro à prática historiográfica, o historiador João Reis não se esconde por trás ou detrás do texto. Vejamos alguns exemplos: “eu repito” (p. 84); “A algazarra eu até entendo, mas não entendo como o lojista fazia para perceber as obscenidades que, se ditas, certamente o eram em nagô ou outra língua africana” (p. 89); “se bem entendi” (p. 93); “Retenha o leitor esta última frase porque o tema ocupará o centro da cena daqui a pouco” (p. 95); “Abro o Diário da Bahia de um dia qualquer de 1857 e na página comercial leio o anúncio de Souza & Irmão…” (p. 141); “Refiro-me à…” (p. 335); “Posso vê-los, pois, combinando um com o outro se submeterem juntos à operação que marcaria seus corpos talvez para sempre” (p. 347).

Na relação dialógica com o leitor e seus pares historiadores, ainda que seguro sobre o que sabe, João Reis não esconde as incertezas dos percursos da pesquisa histórica e seus desafios e limitações, quando, por exemplo, nos diz: “Não consegui localizar tal documento” (p. 247); “Acontece que não tenho certeza” (p. 307); “em circunstâncias que também não sei” (p. 325); “Aprendi em O Almotacé” (Nota 39, p. 369); “Trabalho aqui com a hipótese razoável de que os ganhadores brasileiros continuavam reunidos em cantos na época em que Nina [Rodrigues] fez suas observações” (Nota 13, p. 396). Lembrando aqui, então, as lições de Marc Bloch quando dizia que o historiador ignorando determinada coisa, deve dizer que ignora ou não sabe, mas não tem o direito de inventar.6 A honestidade e a ética intelectuais tão caras ao trabalhado do historiador, como para qualquer pesquisador, impregnam as páginas do livro de Reis, fazendo de Ganhadores igualmente uma leitura importante sobre o fazer metodológico da pesquisa histórica.

Ao longo de sua estrutura narrativa, o livro está dividido em 15 capítulos, além do prologo e epílogo, apresentando a geografia urbana de Salvador oitocentista (litoral e portos, parte baixa e parte alta com suas ladeiras e ruas,…), mas, principalmente, da inserção e formas de viver e de trabalhar dos ganhadores carregadores de coisas e gentes, organizados em suas companhias de trabalho denominadas como cantos (sobre o que ainda volto a tratar), sob a liderança de um capitão (líder do grupo) escolhido entre eles. Trata então de uma cidade que também lhes pertencia, apesar dos senhores e das autoridades que lhe imprimiam políticas de controle social e de exclusão. Lembrando que cultura e trabalho não são práticas indissociáveis, muito ao contrário, temos um livro sobre os mundos do trabalho urbano de uma categoria de escravizados e libertos, em grande parte africana, em sua maioria nagô, que trabalhando também estavam vivendo e compartilhando experiências e visões de mundo, calcadas em sua “economia moral”, conceito thompsoniano adequadamente usado por Reis e deveras importante em sua compreensão da escravidão e das formas de resistência escrava.7

Ao longo dos capítulos, algo que também devo comentar, o autor faz uso da análise de elementos ou objetos da cultura material (esculturas, cadeiras de carregar gente) e de fontes iconográficas, gravuras e fotografias da cidade e de seus ganhadores, além de mapas e plantas, inseridas contextualmente. Não sendo algo menos importante saber usar e dialogar ao longo da obra com as fontes iconográficas e da cultura material, afinal são discursos visuais ou imagéticos ou, ainda, legados de uma dada memória de um passado. Afinal, os historiadores não pesquisam apenas documentos na forma de texto escrito ou impresso em arquivos físicos ou on-line, mas fazem uso dos acervos que existem em museus, como, por exemplo, a cadeira de arruar peça do Museu de Arte da Bahia, comentada pelo autor. Da mesma forma que as imagens sobre os carregadores são significativas para melhor entendimento da natureza de seus trabalhos. As fotografias de suas fisionomias, tal qual a que vem na capa da obra, além de outras, sensibilizam nossos olhares para uma vida de trabalho duro até uma idade avançada. Morrer trabalhando parecia ser a sina que lhes estava selada. Enfim, observando suas fisionomias, às vezes conseguindo olhar nos seus olhos, um diálogo mudo se fazendo presente, eu me sensibilizo com a narrativa visual dessas fotografias para além da intencionalidade do registro fotográfico de quando foram feitas.8

Ainda sobre as fontes utilizadas, em que pese a sua variedade, quer visuais, quer manuscritas ou impressas, dentre as quais os jornais (importante para o estudo da greve de 1857), os relatórios dos governos provinciais e a legislação, quero, no entanto, deixar destacado dois corpos documentais. Um deles, a legislação orçamentária provincial baiana e municipal de Salvador que taxava as atividades dos ganhadores, promovendo aquilo que o autor vai acertadamente indicar como uma “guerra fiscal” aos ganhadores africanos, libertos ou cativos, visando não apenas taxar para se obter rendas para os cofres públicos, mas como parte de uma política contrária aos africanos visando sua exclusão do mercado de trabalho urbano e da própria cidade. Penso que fazendo uso da documentação de natureza tributária, Reis faz um importante trabalho de investigação de história social. Sobre esse tipo de documentação, infelizmente, acredito que ainda seja pouco explorado pelos historiadores sociais, inclusive nos estudos acerca da escravidão e do abolicionismo. Outro corpo documental, largamente utilizado, principalmente nos últimos capítulos, foi o Livro de Matrículas de 1887 dos ganhadores que atuavam na capital baiana, com a identificação dos cantos de trabalho e de seus trabalhadores. Documentação estupenda para a história social do trabalho e das gentes da classe trabalhadora, inclusive já utilizada por outros pesquisadores com os quais Reis dialoga em seu livro. Causa “inveja” não termos algo parecido (disponível, se é que existiu) para Belém.

Ainda quero também, antes de encerrar esta resenha, dizer algo mais sobre o assunto do livro. Primeiro penso que a obra de Reis, não apenas renova os estudos de escravidão urbana, revisitando temas e propondo outros, a partir da investigação de história social de uma categoria específica de trabalhadores que, revelando níveis de organização e de identidade de classe, fizeram a greve negra de 1857, em Salvador. Mas, penso que o livro se insere no rol da historiografia acerca das histórias de luta das classes trabalhadoras contra a exploração capitalista no âmbito do mundo Atlântico; afinal, ao longo das páginas de Ganhadores, Reis está olhando para o outro lado do oceano em direção à África Ocidental, estabelecendo filiações étnicas entre as formas de organização de trabalho, portanto cultura de trabalho, entre os africanos de lá e os de cá, que daquelas paragens vieram escravizados. Assim sendo, como não recordar os “rachadores de lenha e tiradores de água” estudados pelos historiadores Linebaugh & Rediker em sua fantástica obra A hidra de muitas cabeças, sobre “marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário”.9 Se inseriam então os ganhadores africanos nessa tradição de resistência e de lutas, acredito que sim.

Também quero dizer que senti falta da historiografia acerca da escravidão urbana mais ao norte do Brasil oitocentista, quando no livro se faz referência à escravidão em outros lugares, ainda que não seja obrigatório esse diálogo. Mas, pensando o trânsito de escravizados entre a Bahia, de um lado, e o Maranhão e o Grão-Pará, de outro, via tráfico interno, ainda na primeira metade do século XIX, fico imaginando alguns desses “rebeldes” oriundos da Bahia interagindo com os libertos e cativos de outras paragens, como Belém ou São Luís. Aliás, lembrando como esse mundo é pequeno, para minha surpresa encontro na página 205 o relato feito por Francisco Araújo Barbosa acerca da boa índole do liberto africano Sansão que foi “escravo do Padre Eutíschio Pereria da Rocha, que sempre o abonou muito”. Pois bem, em meados do século XIX, Padre Eutíquio acabou vindo para Belém exercer o sacerdócio, bem como o jornalismo, atuando na educação, sendo membro da maçonaria e politico, fora vereador pelo Partido Liberal, o que causou sua briga com o bispo Dom Macedo Costa, morrendo suspenso de suas funções sacerdotais. Nascido na Bahia, chamado de “cônego africano” por seus desafetos, Padre Eutíquio descendia por linhagem materna de uma africana escravizada.10 Então, ainda na Bahia, Padre Eutíquio fora dono do escravo africano Sansão, a quem alforriou ao que parece antes de sua ida para a província paraense.

Mas, os bons livros são assim mesmo, nos deixam querendo mais. Enfim, retomando a analogia feita no início desta resenha, tais quais os melhores vinhos, nos permitem saboreá-los viajando pelas histórias que nos contam, imaginando ou tecendo paralelos ou outras possibilidades de enredos históricos.

Notas

2 REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, Dossiê África, n. 18, 1993, p. 6-29.

3 REIS, João José. De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição. Afro-Ásia, n. 15, 1992, p. 100-126.

4 Escravos ao ganho era uma categoria de trabalhadores urbanos escravizados, ao lado dos escravos domésticos e de aluguel, ainda que as fronteiras entre elas não fossem sempre nítidas ou precisas, havendo escravos domésticos que podiam ser alugados a terceiros ou exercendo as atividades domésticas podiam labutar nas ruas, da porta de casa para fora, realizando atividades ao ganho, sendo exemplo disto as mulheres cativas que cuidando da casa de seus senhores também saiam às ruas para a venda de comidas e bebidas em tabuleiros, enfrentando então uma dupla jornada de exploração de seu trabalho. Os ganhadores ou escravos ao ganho, o rosto público da escravatura urbana, eram justamente aqueles que morando na casa de seus donos ou por conta própria, inclusive se sustentando com seu trabalho, deviam sustentar aos seus senhores lhes pagando em data determinada os jornais, ou seja, uma quantia em dinheiro produto de seu trabalho nas ruas ou a serviço de terceiros como, por exemplo, pedreiros, carpinteiros, funileiros, entre outras possíveis profissões, possuindo ofício, ou como trabalhadores braçais sem domínio de algum ofício, como no caso daqueles que faziam o transporte de cargas, desde uma carta até pesadas caixas ou barris, até mesmo pianos, bem como levando e trazendo pessoas carregadas em redes ou cadeiras pelas ruas da cidade. Sobre a escravidão urbana já existe significativa e importante historiografia, além do que já foi escrito pelo próprio autor do livro resenhado, portanto, me limito a citar apenas alguns: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SOARES, Luís Carlos. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro; 7Letras, 2007; ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente. Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivencias ladinas. Escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo: Hucitec, 2009.

5 REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

6 Ver a respeito BLOCH, Marc. A terra e seus homens. Agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Textos reunidos e apresentados por Étienne Bloch. Bauru/SP: EDUSC, 2011. Especialmente na página 452 quando diz: “O historiador tem o direito de ignorar, não de inventar”.

7 Ver, por exemplo, THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Bem como, sobre a historiografia acerca da escravidão no Brasil e a relação com a obra de E. P. Thompson, o importante artigo de LARA, Sílvia Hunold. Blowin’ in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História, São Paulo, 12, outubro/1995, p. 43-56.

8 Sobre o assunto ver, por exemplo, KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo. Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2010. Bem como: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Zoológicos humanos. Gente em exibição na era do imperialismo. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2020.

9 Ver: LINEBAUGH, Peter & REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças. Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

10 TAVARES, Kelly Chaves. Padre Eutíquio: Clérigo, Maçom e Político no Pará do Século XIX. Belém: Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia/Universidade Federal do Pará, 2020. Dissertação de Mestrado.


Resenhista

José Maia Bezerra Neto – Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará-UFPA. Pesquisador do CNPq. Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará-IHGP.


Referências desta Resenha

REIS, João José. Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: BEZERRA NETO, José Maia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 08, n. 02, p. 275 – 279, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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