Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

Alguns livros, se me permitem a analogia, são como os melhores vinhos maturados em barris de carvalho. Isto é, requerem tempo, bem como se beneficiam da experiência de pesquisa e dos conhecimentos acumulados ao longo dos anos por parte do autor, no caso da obra aqui resenhada autor-pesquisador, melhor esclarecendo: historiador. Para mim são os melhores livros, inclusive permitindo aos leitores descobrir numa passagem qualquer do texto ou, principalmente, nas notas de rodapé, o decorrer do tempo na “fermentação” e “decantação” da pesquisa, agregando leituras, fontes e dívidas ou trocas intelectuais. Há quase trinta anos atrás, em 1993, nas páginas da Revista USP (Dossiê Brasil/África), João Reis já havia nos apresentado em alguma medida o tema de sua investigação no artigo: “A greve negra de 1857 na Bahia”.2 Ainda recordo a sensação quando li este artigo: fiquei maravilhado. Até porque já havia iniciado minhas investigações sobre a escravidão na Amazônia oitocentista, particularmente no ambiente urbano de Belém, justamente compreendendo os escravizados como parte da classe trabalhadora, como parte da história social do trabalho. Lia, então, a história de uma greve feita por libertos, portanto ex-escravizados, e também por escravos, basicamente africanos (nagôs). “Que história fantástica!”, pensei, com a sensação de querer saber mais, me indagando se dali não podia sair mais coisa, quem sabe um livro. Em 2019, veio o livro: Ganhadores. Obra, portanto, que, no seu conjunto, se beneficiou da experiência historiográfica do autor no campo de investigação da escravidão, particularmente em Salvador (Bahia), quando, por exemplo, discute no livro os cantos de trabalhos dos africanos, quer libertos ou escravos, algo que já havia tratado alhures tal como em seu artigo “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição”, publicado em 2000, na prestigiada revista acadêmica Afro-Ásia. 3 Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

O livro Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia foi lançado em agosto de 2019 e preenche uma importante lacuna da historiografia a respeito das greves promovidas por escravos ou libertos. Como homens e mulheres escravizados viveram o cotidiano da escravidão urbana? O autor, João José Reis (UFBA), especialista em contar como os escravos se revoltavam, nos oferece uma riqueza de detalhes sobre a vida desses homens que resistiram a uma maior exploração dos seus corpos numa grande cidade escrava. O final da história está no título do livro e representa o nome dado a esses homens que ousaram contra a municipalidade soteropolitana: ganhadores, pois também venceram uma batalha que durou 10 dias e que paralisou a cidade de Salvador. Além deles, com esse livro ganharam todos os interessados em discutir a escravidão, o trabalho, a liberdade e a cidadania negra no oitocentos. Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

Vinte e seis anos depois da publicação de um artigo no dossiê na Revista USP intitulado “A greve negra de 1857 na Bahia”, o historiador baiano João José Reis lançou resultados mais amplos desta ambiciosa pesquisa em “Ganhadores”, livro de subtítulo homônimo ao texto do dossiê. No próprio artigo da década de 1990 foi pontuado que aquele era só parte de “um estudo mais amplo” (REIS, 1993, p.8) que ele estava realizando. Portanto, o livro é o produto deste esforço quase trintenário do historiador, que revela o aprimoramento da análise das fontes ao longo deste intervalo, além do enriquecimento da perspectiva acerca do seu objeto, seja pelas outras contribuições historiográficas que acompanharam o processo desta pesquisa até a conclusão da obra, seja pela adição de novas fontes ao trabalho iniciado anteriormente.

O exercício do ganho entre os escravizados e libertos era comum desde o século XVIII e em outras áreas além da Bahia. Ele consistia na prática de venda, por parte do proprietário ou do próprio liberto ou livre, do seu serviço para variadas atividades na cidade, como carregamentos, transportes de palanquins, venda de alimentos, entre outras atividades. Nesta lógica, mesmo o escravizado receberia uma remuneração pela função de ganho desempenhada. João José Reis outras especificidades desta dinâmica laboral fronteiriça entre a escravidão e a liberdade no espaço de Salvador oitocentista, onde há a particularidade dos “cantos de trabalho”. Eles consistiam em agrupamentos de trabalhadores, além de constituir também mais um espaço associativo negro. Inicialmente, se compunham exclusivamente de africanos que se reuniam em locais definidos onde ofereceriam seus serviços. Tal organização seguia critérios de gênero, etnicidade, normas internas e públicas, definidas por posturas. Leia Mais

Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis

O autor João J. Reis em seu livro, Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia, apresenta-nos um retrato social dos chamados “ganhadores”, que ocuparam as ruas de Salvador ao longo do século XIX. A greve de ganhadores ocorreu em Salvador, no ano de 1857, e com ampla mobilização social da categoria colapsou o funcionamento da cidade. Em uma leitura fluída, agradável e densa as páginas conduzem para o dia a dia da lida desses trabalhadores africanos empregados ao ganho em Salvador na década de 1850. A maioria deles era composta por homens africanos nagôs, libertos ou escravizados, empregados ao ganho, responsáveis, principalmente, por carregar pessoas e mercadorias entre as ruas enladeiradas da capital baiana. Como indica o autor, “esse livro busca descrever e entender o que foi o primeiro movimento grevista envolvendo todo um setor sensível da classe trabalhadora urbana no Brasil, trabalhadores responsáveis pelo transporte, por toda cidade, de pessoas livres de vária ordem e objetos de todo tipo.” (p.17). Leia Mais

O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853) / João J. Reis

Na trajetória da História Social dos últimos 40 anos, o interesse dos historiadores abandonou a análise das estruturas –que produziam resultados cada vez menos capazes de apreender a complexidade da realidade histórica, e que falhavam em oferecer respostas satisfatórias a novos questionamentos –em favor de observações qualitativas, preocupadas em conferir como as pessoas reais lidaram com os desafios e condições de seu tempo. Diminuiu a convicção sobre teorias e modelos, já que a observação das experiências vividas punha em xeque a validade de tais postulados. Talvez a corrente historiográfica que mais fielmente tenha encarnado os novos valores da historiografia seja aquela rotulada de micro-história. Estudos ligados a essa metodologia buscam reunir eixos que haviam sido apartados: estrutura e experiência. A historiadora Hebe Castro -em artigo publicado na obra coletiva “Domínios da História” –afirma que tais estudos encontram “agentes históricos por trás dos discursos”, rompem “excessos de agregação e da simplificação das variáveis”, deixam claro a “liberdade e a inteligibilidade da ação humana na história”.

O “Alufá Rufino” de Reis, Gomes e Carvalho é um trabalho que enfeixa todas estas considerações historiográficas. Amparada numa extensa bibliografia e em documentação histórica levantada em três continentes e em vários estados do Brasil, a obra foi definida pelos autores como uma “história social do tráfico e da escravidão no Atlântico”. O que se observou não foi um Atlântico genérico, impessoal e ideal, e sim o Atlântico de Rufino José Maria, o contexto onde a vida tumultuada e incerta deste africano se desenrolou. Um Atlântico particular que, se por um lado estava marcado por condições que determinaram a trajetória daquele africano, ao mesmo tempo era espaço para suas manobras, negociações e decisões. Como resultado, os autores delinearam não um quadro mecânico, devorador de vidas e vontades ao sabor de suas leis, mas um espaço de possibilidades, uma demonstração do poder do indivíduo frente ao que se lhe impõe. A reboque destas realizações historiográficas, extraídas do emprego inteligente da micro-análise, os autores contribuíram ainda com “quadros” ricos de diversos aspectos do período estudado, observações que cobrem temas tão díspares quanto uma vida humana, uma “experiência”, pode abarcar.

Sobre a África de Rufino, para começar, a obra faz ver o tumultuado contexto de lutas étnicas que estabeleciam com o tráfico humano uma relação de estimulação mútua. No início do século XIX, a África Ocidental da região dos golfos de Benim e Biafra e seus sertões era uma colcha de retalhos étnica, onde grupos islamizados de diversos matizes (desde ortodoxos até aqueles mais abertos a sincretismos com as religiões tradicionais africanas), disputavam entre si pelo controle dos territórios e se sucediam no governo de pequenos reinos, estados e califados. Oriundo de um reino outrora poderoso mas então em crise, o africano que no Brasil viria a se chamar Rufino, membro de uma família malê (iorubá islamizada), foi aprisionado e remetido ao porto litorâneo por membros de outra etnia islamizada, que agora detinha o poder na região.

Saindo de uma África deflagrada, Rufino se deparou, na Bahia, com mais conflitos: tratava-se da Guerra de Independência, que na região de Salvador opôs militares portugueses –que controlavam a capital –aos fazendeiros brasileiros entrincheirados na região do Recôncavo. O fato de ter sido vendido a um boticário de renome foi oportunidade para que os autores explorassem as particularidades desta atividade, demonstrando detalhes da medicina e do comércio da Bahia de inícios do século XIX.

É também seguindo Rufino para o Rio Grande do Sul onde, ainda na condição de escravo, ele acompanha o filho de seu senhor, que os autores acabam penetrando nas fímbrias da Revolução Farroupilha. Perseguindo a sinuosa trajetória daquele africano, que parecia destinado a viver em regiões belicosas, aproximaram-se da rotina de José Maria de Salles Gameiro de Mendonça Peçanha, o desembargador Peçanha, chefe de polícia da Província gaúcha. Peçanha seria o novo senhor de Rufino. Aproveitando-se desta parada na acidentada trajetória atlântica de Rufino, os autores oferecem um olhar sobre a Porto Alegre do início dos oitocentos, especialmente sobre as condições da escravidão naquela região, que tinha fama de ser dura com os cativos. Transparecem, por meio dos documentos policiais, dos relatos de viajantes, das informações colhidas em jornais daquele tempo, as táticas de resistência e repressão empregadas por escravos e senhores. Mostram ainda as faíscas iniciais, detectadas nos relatórios do senhor de Rufino aos seus superiores no governo, da grande rebelião que tomaria o sul do país por uma década, a Farroupilha.

Outro aspecto importante da obra, também ligado à trajetória de Rufino, é a discussão que se faz sobre as etnias africanas no Brasil, sua distribuição territorial e profissional, e sobre as representações feitas sobre elas pelos senhores. Escravos minas, chamados malês na Bahia, eram temidos e perseguidos naquele momento. Pairava sobre eles uma endêmica suspeita de conspiração, um medo que servia inclusive aos fins políticos dos conservadores, que se apoiavam nele para adotar medidas de exceção e perseguir seus oponentes (segundo a acusação dos liberais). O domínio da escrita e o emprego do idioma árabe eram fatores que tornavam os minas ainda mais perigosos aos olhos dos senhores e das autoridades.

O Rio de Janeiro, destino seguinte de Rufino, era uma “extraordinária Babel africana” (REIS et alii, 2010, p. 71), a maior cidade africana das Américas. Ali desembarcaram, nas três primeiras décadas do século XIX, entre 500 e 900 mil africanos. Apesar de serem minoria no Rio de Janeiro –cuja população negra era composta majoritariamente de africanos de Angola, Congo e Moçambique –os minas apareciam desproporcionalmente em documentos policiais. Eram também majoritários nas atividades de ganho, o que os tornavam mais aptos à conquista da liberdade. Nessa época, 45% das alforrias pagas beneficiaram africanos minas, que representavam algo em torno de 5% da população africana carioca. A massa africana no Rio de Janeiro provocava um clima de tensão e repressão constante, traduzindo uma intensa pressão emancipatória dos escravos. Na Bahia, a presença de africanos oriundos da Costa da Mina, falantes do iorubá e familiares a Rufino, era maior.

Segmento essencial da obra aparece após a alforria de Rufino, diante da decisão que este toma sobre o que fazer com a sua liberdade: é aí que se penetra nos bastidores do tráfico humano do Atlântico. Livre, Rufino ingressa no comércio de escravos, na função de cozinheiro assalariado (o que lhe dava a chance de ser também pequeno comerciante transatlântico). É oportunidade para que os autores desvendem as intrincadas tramas deste negócio lucrativo e, a partir de 1831, ilegal, que juntava interesses e fazia fortunas nos dois lados do Atlântico. Eles demonstram as condições aviltantes da travessia, onde a falta de espaço, de alimentação e hidratação corretas e os precários padrões sanitários vitimavam, em média, 12% dos cativos. Através da análise do caso de Rufino e de outros correlatos e coevos, demonstra-se o funcionamento interno de uma embarcação traficante clandestina, destacando-se a importância do papel do cozinheiro. Evidenciam-se os esquemas absurdos erigidos pelos traficantes para “enganar” as autoridades brasileiras, que na verdade faziam vista grossa para o movimento incessante do tráfico negreiro. Aparecem as nuances das redes internacionais do tráfico, as conexões entre traficantes radicados nas duas extremidades do Atlântico; demonstra-se o caráter familiar de muitos desses empreendimentos escravistas, passados de pai para filho. Os “patrões de Rufino” são desmascarados neste segmento, que revela os meandros da atividade escravista.

Finalmente, aparece o papel da repressão inglesa, devidamente desmistificada e vinculada a interesses nada humanitários. O pragmatismo da marinha inglesa, que por motivos jurídicos tentava preservar a “cena do crime”, contribuía para um aumento absurdo das taxas de mortalidade nos tumbeiros. Os autores apontam ainda o cuidado que os ingleses tinham para evitar que a repressão ao tráfico interviesse nos seus interesses comerciais: os navios negreiros quase nunca eram capturados antes de tocar o solo africano e trocar as mercadorias trazidas do Brasil (muitas delas de origem inglesa) por africanos escravizados. Transparece também o caráter negocial das apreensões de navios traficantes, cuja captura gerava bônus para os perseguidores e que, levados para Serra Leoa e leiloados, produziam lucros para os potentados locais.

Radicado em Recife na década de 1840, Rufino torna-se alufá, espécie de sacerdote, contando para isso com os ensinamentos que recebeu na comunidade islâmica em Serra Leoa, onde passou duas temporadas de estudos. Emerge neste ponto da narrativa uma reflexão sobre o processo de sincretismo, em pleno desenvolvimento, entre religiosidades multicontinentais. Ao islamismo africanizado de Rufino, marcado pelo apego a patuás e amuletos, somavam-se crenças, conceitos e ritos brasileiros, estes também já bastante marcados pelo contato com outras religiosidades. Analisando o depoimento de Rufino, tomado em 1853, os autores detectaram o emprego de termos usados comumente por negros católicos no Brasil. A parada de Rufino em Recife, outro ponto do Atlântico sinalizado por este viajante incansável, dá ensejo ainda a análises sobre o espaço urbano recifense e sobre as tensões sociais subjacentes a sua vida cotidiana.

Além de todo o trabalho detetivesco feito pelos autores, verdadeiro exercício de faro fino, e da reunião e análise de uma extensa bibliografia que desse conta dos contextos percorridos por Rufino em sua trilha atlântica, sobressai do trabalho grande nota de sinceridade, de reconhecimento de limites. Durante todo o trajeto, quando necessário, os autores deixam claro a fragilidade de suas constatações. Não raras vezes encontraram pontos cegos, ausências e falhas na documentação, vicissitudes que não permitiram apontar com precisão total os passos dados pelo protagonista ou por aqueles que o cercavam. Os autores, diante dessas lacunas, oferecem conjecturas e possibilidades, mas o fazem de maneira a permitir que o leitor acompanhe o raciocínio, pese as possibilidades e julgue por sua conta. A própria decisão de publicar como anexos documentos importantes ligados à trajetória de Rufino, na íntegra, demonstra essa escolha de exibir os caminhos que levaram a esta ou aquela interpretação, no lugar de oferecer um produto fechado, inviolável e que se deve aceitar no todo e sem questionamentos.

Ao explicitar o modus operandi de seu trabalho, mostrando as escolhas interpretativas que fizeram, os argumentos que sustentam suas afirmações, os autores fazem um convite à reflexão, levando o leitor a adotar uma postura crítica, que poderá ser estendida a todas as outras leituras que ele vier a realizar. A escolha da micro-análise, a perseguição do indivíduo e de sua experiência, o abandono das análises totalizantes, ao contrário do que alguns apregoam, é um caminho vantajoso para os estudos de história. Longe de impedir a formação de uma compreensão maior, o estudo da trajetória de Rufino demonstrou exatamente o contrário, que a análise qualitativa é capaz de oferecer dados sólidos para a compreensão de um determinado contexto. A obra é, afinal, um grande tratado sobre a escravidão africana, um contributo valioso para a historiografia sobre o tema.

Daniel Rincon Caires – Instituto Brasileiro de Museus –IBRAM.


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.15, p.250-254, 2013. Acessar publicação original. [IF].

O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853) | João José Reis e Flávio dos Santos Gomes

Nas últimas páginas de Alufá Rufino os autores ressalvam, talvez tardiamente, sobre as impressões que os leitores possam ter a respeito de uma inversão na imagem da escravidão atlântica, na verdade não uma inversão, mas outra versão, em que o binômio bom/mau se torna difuso. Tradicionalmente, a idéia de maldade para o catolicismo, o pecado (o mau) como oposição às coisas de Deus, como pensava São Tomás de Aquino, poderia ser aplicada para opor a religiosidade de Rufino, um Alufá – um mestre de sabedoria para uma corrente do islamismo – a sociedade branca oitocentista brasileira, mas não é o que acontece nas entrelinhas de sua história.

A religiosidade de Rufino não é vista neste livro como um fardo para o africano Rufino, ao contrário, tornar-se Alufá faz parte de uma série de escolhas que fizeram ímpar sua trajetória. Outros ex-escravos, vindos também da África e com uma vida dissonante da grande maioria, amealharam dinheiro, algumas vezes originário do tráfico negreiro, ou gozaram de certa relação privilegiada na comunidade, geralmente da relação com os cultos adivinhatórios, como mostrou João José dos Reis, um dos autores aqui, em seu livro sobre Domingos Sodré.

É preciso lembrar que os leitores referidos não são necessariamente historiadores ou aqueles que já leram as obras mais recentes que tratam da complexa rede que estruturou a escravidão, textos que discutem o fato de que não só na África houve comércio de escravos por negros. No Brasil, alguns libertos conseguiram adentrar, em pequeno volume, neste negócio.

Como o livro parece ter sido escrito para um público leitor maior do que o alvo de obras acadêmicas, as explicações sobre as nuanças mostradas sobre a vida de Rufino podem ter uma intencionalidade, talvez uma escrita que queira ser mais próxima de uma narrativa romanceada, com um personagem multifacetado que vai se modificando ao passar das páginas. Claro que Rufino não se transforma num personagem caricato aos moldes dos folhetins, suas experiências em diversas partes do Brasil e depois em navegações atlânticas o conduzem a uma série de oportunidades, como possivelmente ter aprendido o preparo de ungüentos com seu senhor, um boticário; ter se tornado um pequeno comerciante transatlântico e talvez de escravos; e ainda ter estudado em escolas islâmicas, aprendendo inclusive a ler e escrever árabe, o que provavelmente possibilitou sua condição de “mestre” em Pernambuco.

Estas oportunidades que levam Rufino a uma condição singular na história do tráfico negreiro do século XIX, também possibilita que os autores do livro o utilizem como um guia para diversos assuntos, como a empresa marítima do tráfico ilegal, a diversidade étnica e religiosa dos escravos e a sociedade branca brasileira, esta última através das páginas de jornal que noticiaram o caso da prisão de Rufino.

Algumas questões chamam a atenção neste livro, primeiro à alforria de Rufino, que além de inusual em sua forma, um documento que mais se aproxima de um alvará, o que podia ser uma forma também diferente dos padrões para um acordo com seu senhor, nos mostra sua desenvoltura na sociedade escravista, já que parece ter conseguido arrecadar o valor que se pagaria por um escravo no Rio Grande do Sul e assim comprar sua alforria. Segundo, a maneira que ele transitava no universo mercantil atlântico, com certas regalias, como a de levar caixas de goiabada numa embarcação, possivelmente de tráfico, para serem comercializadas na costa africana. E depois, continuar pleiteando os direitos a reparação de sua carga apreendida no Ermelinda, detida por acusação de tráfico de escravos.

Também é curiosa a certa tolerância de uma sociedade dominante cristã a religião do Islã praticada pelos africanos, sendo eles ladinos, mais experientes nas relações com os brancos, ou boçais, que deveria trazer suas convicções religiosas mais firmes, pelo menos com as práticas mais frescas na memória.

A curiosidade sobre a alforria de Rufino é que ele pode ter negociado sua liberdade através de um acordo muito particular, o que talvez justifique um documento que normalmente não serviria para este fim. Sendo Peçanha, senhor de Rufino, uma autoridade jurídica, atuando nesta peça como juiz e senhor, o documento tem até um peso maior, dando plenos direitos à liberdade, sem citar o valor de contrato. Isto mostra que havia um dinamismo na relação senhor-escravo2 que permitia certos acordos, os autores levantam a possibilidade que Rufino tenha pagado ao senhor 600 mil-réis, mas este dado não está incluído no documento por ser este um ato jurídico, como já dito, de uma atuação dupla, de autoridade e interessado ao mesmo tempo. Acredito que esta negociação pode ainda ter outros ingredientes que não foi possível demonstrar na pesquisa.

Se então Rufino pagou a importância declarada por ele, mostra que sua ladinização fora frutífera, talvez, como mostram os autores, ele já tivesse amealhado alguma importância ainda nas ruas da Bahia. A atividade comercial, feita por escravos de ganho, tornou-se tão disseminadas em algumas cidades brasileiras que gerou pressões de comerciantes sobre as autoridades. Em Salvador uma medida tentou regularizar a atividade comercial de rua, em 1835 a câmara da cidade editou lei que obrigava a fazer uma matrícula com nome, nome do senhor (caso fosse escravo), tipo de venda, tendo que ser atualizada mensalmente (Reis, p18, 1993).3

Sobre a capacidade de Rufino de utilizar as brechas existentes na sociedade escravagista brasileira é interessante também sua história atlântica, depois de ter vindo agrilhoado nos porões insalubres dos tumbeiros, alguns anos depois, já liberto, comandava a cozinha de embarcações que provavelmente alternavam sua carga entre mercadorias e escravos. A cozinha, como os autores destacam incisivamente, seria muito importante para o negócio ultramarino de cargas vivas, principalmente porque estar em alto-mar não permitia que as pessoas tivessem boas chances de permanecer vivas ante alguma doença violenta, as condições de transporte eram as piores possíveis. Uma provável condição de conhecedor das práticas de um boticário aumentaria o cartaz de Rufino, controlar a qualidade mínima dos alimentos e ainda ter algum tipo de conhecimento para aliviar um mal que pudesse ser tratado ali deveria fazer dele um profissional desejado pelas companhias atlânticas.

Decerto esta importância facilitou com que Rufino tivesse a oportunidade dele mesmo fazer um comércio atlântico, se ele conseguiu mesmo os 600 mil-réis que disse ter pagado por sua alforria, o preço médio de um escravo, não seria estranho pensar que ele tivesse certo traquejo para a negociação. O que também chama a atenção é que, de volta ao Brasil, seus contatos com os donos do Ermelinda não cessaram, provavelmente pelo interesse mútuo, se Rufino queria ser ressarcido por suas goiabadas estragadas, também seu nome constava como papel importante no processo de apreensão da embarcação.

Na última viagem de Rufino à África, ele continuou se aperfeiçoando nos estudos, desta vez o tempo que passou na escola de Fourah Bay parece ter sido suficiente para lhe preparar para ser um mestre islâmico, um Alufá, quando voltara para o Brasil. Apesar dos documentos que foram utilizados na pesquisa do livro se tratar de uma prisão e sua repercussão na imprensa, parece que em certa medida a religião de Maomé era mais tolerada que os cultos dos orixás. O que era estranho em vários sentidos, pois também praticavam adivinhações e uso de objetos rituais simbólicos em suas práticas.

Rufino, por exemplo, sobrevivia de curar males, prever o futuro e até mesmo retirar feitiço. E se a imprensa chamava quem praticavam tais atos de velhacos e oportunistas, é de se estranhar que Rufino tenha sido tratado diversas vezes por mestre ou por homem de sabedoria. Talvez a sua capacidade de escrever e ler árabe o colocasse numa posição diferente dos demais cultos, ou mesmo a sua clientela fosse a responsável por esta diferenciação. Ou seja, alguns brancos também acreditavam na capacidade espiritual do Alufá, não se sabendo quantos ou se os mesmo eram influentes.

Rufino dá margem para pensarmos que a relação entre negros e a sociedade branca brasileira, pelo menos nos subterrâneos, era permeável e que possibilitava até mesmo uma inversão de lugares, o Alufá era o mestre que propiciava conhecimento a quem o procurava, como podemos imaginar pelo relato de Rufino não eram somente os negros.

O livro termina deixando claro que Rufino foi um personagem da história brasileira, ou de uma história atlântica, que soube utilizar as fissuras da sociedade para sobreviver à violência da escravidão. Alguém que reconstruiu seu espaço, se colocando num outro lugar da embarcação negreira, os autores mostram que ele literalmente mudou de lado em relação à caldeira.

Esta reconstrução do espaço, dentro de possibilidades, é claro, se deu não só na relação econômica, mas em sua atividade social, reafirmando sua crença islâmica, ser Alufá o colocou numa posição de destaque numa pequena comunidade de escravos e libertos malês, e em certa medida, também o destacava na sociedade dominante. Rufino foi um guia dos autores para revelar relações que ocorriam na penumbra, que não são percebidas num rápido passar de olhos, mas que são importantes para entendermos a formação da sociedade brasileira, que se pensarmos em Gilberto Freyre, se tornaria cada vez mais matizada.

Notas

2. Para compreender mais sobre essa relação ver CHALLOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3. João José Reis. A Greve Negra de 1857 na Bahia. Revista USP, 18, 1993.

Tissiano da Silveira1 – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim de. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822-c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Resenha de: SILVEIRA, Tissiano da. A trajetória singular de Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.2, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853) | João Rosé Reis e Flávio dos Santos Gomes

A história de Rufino … não foi de maneira alguma típica. O interesse em narrá-la decorre de que a história não é somente feita do que é norma, e esta pode amiúde ser mais bem assimilada em combinação e em contraste com o que é pouco comum. Foi, aliás, o que buscamos aqui fazer: nosso personagem nos serviu de guia para uma história bem maior do que caberia na sua experiência pessoal. Ele foge com enorme regularidade de nosso campo de visão para dar lugar ao drama colossal da escravidão no mundo atlântico no qual desempenhou seu pequeno mas interessante, às vezes nefasto, papel. (p.360)

Ao estudarem a trajetória de Rufino José Maria, João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho nos oferecem um extraordinário painel, no espaço micro e macrossocial, do que foi o tráfico transatlântico de cativos africanos para o império do Brasil no século XIX. Por certo o tema não é novo, mas a maneira como foi abordado, sem dúvida é muito inovador. Se houve, realmente, um considerável aumento no número de pesquisas sobre o assunto desde o final da década de 1980, que culminou com o primeiro centenário da Lei Áurea, além de se terem firmado novos marcos para a análise do sistema escravista e das políticas inclusivas no país, o tema do tráfico de escravos também recebeu revisão significativa, como indicam trabalhos como Em costas negras, de Manolo Florentino.

Nos Estados Unidos, assim como no Brasil e no Caribe, o tema do tráfico de escravos e do sistema escravista tem sido repensado, como indica Gerald Horne em O sul mais distante. Destoando dos estudos indicados, os autores deste O alufá Rufino deixam os dados quantitativos apenas como complemento, para abordarem a trajetória de um desses africanos que se tornou cativo nas Américas, onde alcançaria a alforria. Rufino tornou-se também traficante e dono de escravos, e nesse percurso transatlântico aprendeu a ler e escrever e cultivou a religião segundos as regras do Alcorão, praticando-a no Império do Brasil, motivo pelo qual foi preso. É bem presumível que a escolha do objeto deva-se não apenas à sua riqueza documental e exemplaridade, mas também às evidências que João José Reis trouxe com Domingos Sodré, um sacerdote africano. Contudo, diferentemente desse livro, em O alufá Rufino os autores aproveitam-se mais do que o personagem oferece para, a partir dele, reconstituírem certos nexos entre atores sociais que povoaram o mundo do tráfico de escravos. Circunstanciam os grandes comerciantes do período, descrevem suas principais embarcações e expõem como burlavam o bloqueio inglês nas costas do continente africano, como agiam quando eram capturados e que tipo de mercadorias levavam das Américas, para tornarem o negócio ainda mais lucrativo. Nesse ponto, habilmente os autores demonstram que quase toda a tripulação das embarcações fazia parte desse comércio, com caixas e rubricas próprias, como foi o caso de Rufino – embora até onde o acompanharam não tenham encontrado suas iniciais entre as mercadorias. Como cozinheiro, Rufino aproveitava o ensejo para comerciar doces – e até, provavelmente, comprar escravos – na África. Outra diferença entre os dois livros é que neste as afirmações seriam mais pautadas em suposições do que em comprovação documental.

Como mostram os autores, a “história dos africanos no Brasil do tempo da escravidão”, assim como a de Rufino, “em grande parte, é escrita a partir de documentos policiais” (p.9), que têm sido vasculhados de modo mais sistemático nas últimas décadas pelos pesquisadores brasileiros. Assim, com a história de Rufino os autores nos apresentam o perfil de alguns dos compradores de escravos no Império do Brasil, como João Gomes da Silva, homem pardo que exercia o ofício de boticário. Provavelmente, Rufino foi seu aprendiz por certo período, antes de seguir para Porto Alegre e lá ser vendido, porque é “possível que suas habilidades na cozinha viessem a ter alguma valia na preparação de remédios de origem animal e mineral” (p.31). No início da década de 1830, Rufino desce para o Rio Grande do Sul em companhia de seu senhor-moço, Francisco Gomes, que algum tempo depois o venderá para José Pereira Jardim, comerciante em Porto Alegre, onde “Rufino encontrou … alguma gente de sua terra escravizada ou já alforriada” (p.52). Em 1835, alguns meses após o levante dos malês na Bahia, ironicamente, Rufino alcançaria sua alforria pagando a quantia de 600 mil-réis.

Com a liberdade, Rufino passaria a figurar de volta na documentação, meses depois seguindo para o Rio Grande, “onde funcionava o governo legal antifarroupilha, talvez na companhia de seu ex-senhor, o desembargador José Maria Peçanha”, e lá “ficou … envolvendo-se com a comunidade muçulmana local até que, no final de 1838, teve lugar a ação policial em Porto Alegre contra aquela escola muçulmana” (p.69). Com isso, como sugerem os parcos documentos sobre ele, provavelmente seguiu para o Rio de Janeiro, entre o final de 1838 e o início de 1839, “e não três anos antes, como deixou transparecer no Recife em 1853, quando tinha boas razões para omitir a verdadeira história de sua saída do Rio Grande do Sul: preso por suspeita de conspiração, ele não podia revelar que suspeita semelhante já havia pairado sobre ele quinze anos antes” (p.70).

No Rio de Janeiro, “Rufino teria percebido que podia conseguir proteção e boa vida – além de dinheiro – alistando-se como trabalhador do tráfico” (p.81). Aqui, os autores demonstram como Rufino participará do comércio transatlântico de escravos, além de pormenorizarem o perfil de tripulantes dos navios negreiros e suas mercadorias (além das quantidades médias de escravos transportados na viagem de volta), e também circunstanciarem os principais organizadores desse mercado arriscado, em função da proibição inglesa, desde o início da década de 1830, mas, ainda assim, incomparavelmente lucrativo.

Nesse percurso, os autores nos apresentaram as histórias de vários personagens do tráfico da época, dos tripulantes aos chefes do comércio. Ao lado da Ermelinda, embarcação na qual Rufino trabalhou, eles indicam os destinos da escuna Paula, do patacho São José e da União (embarcação em que Rufino esteve antes de ir para a Ermelinda), quando estas foram confiscadas e julgadas pelos ingleses em Serra Leoa, juntamente com outras embarcações. Destaque-se ainda que havia muitas evidências, apesar da fiscalização inglesa, de que “traficantes e ingleses se irmanavam nos entrepostos do trato de gente”, pois “os verdadeiros ‘irmãos’ dos ingleses no terreno eram outros brancos, mesmo se traficantes, e não os negros traficados, de quem se diziam ‘irmãos’ os abolicionistas na distante Inglaterra” (p.157).

Embora não tenha sido condenada, apesar das tentativas na reunião de indícios que a apontassem como embarcação de tráfico negreiro – o que de fato era -, os prejuízos foram evidentes para a Ermelinda, sua tripulação e seus donos. Ainda que extraordinariamente rica a exposição dos autores, não há como em tão poucas linhas circunstanciarmos todas as ramificações e detalhes desse empreendimento e suas consequências, ao serem capturadas as embarcações e levadas até Serra Leoa, onde foram julgadas.

De Serra Leoa para o Recife, Rufino, como toda a tripulação e os comerciantes do trato de gente, teve de computar os prejuízos do empreendimento, não levado a cabo em função da captura inglesa nas costas do continente africano. Em Recife, Rufino se fixaria na rua da Senzala Velha, nome representativo para um ex-cativo e traficante, como ele. Os autores fazem uma primorosa análise do perfil e das características das práticas religiosas na Recife do século XIX, onde Rufino não estaria sozinho, haja vista a pluralidade étnica, cultural e religiosa ali presente. Como alufá, Rufino conhecia os meandros de sua religião, e a sua prática o ajudou a ultrapassar aquele período conturbado. Quando foi detido em meados de 1853 pela prática de rituais religiosos, Rufino manteve uma atitude serena, apesar de a “preocupação das autoridades pernambucanas” ter sido “atiçada não só porque sabiam que na Bahia os rebeldes possuíam papéis escritos em árabe como aqueles encontrados com Rufino, mas também porque, segundo as notícias que circularam o país, muitos dos rebeldes malês eram africanos libertos e nagôs como ele” (p.331). Dito isso, vale destacar ainda que “Rufino certamente desenvolveu uma visão cosmopolita de um mundo dificilmente alcançada pela maioria dos africanos e, menos ainda, dos brasileiros seus contemporâneos” (p.355), o que torna mais representativa sua trajetória.

Portanto, os autores nos oferecem a interpretação de um personagem rico e complexo, inserido no próprio núcleo do movimento dinâmico do tráfico de cativos do século XIX. Desse modo, tracejando pela microanálise (com a trajetória de Rufino) e pela macroanálise (com o estudo pormenorizado do tráfico de escravos), o texto também sugere avanços e traz inovações sobre o uso desses instrumentais metodológicos de análise das fontes e apresentação dos dados.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História (UFPR), bolsista do CNPq. Departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) – Campus Amambai. Cidade Universitária de Dourados. Caixa Postal 351. 79804-970 Dourados – MS – Brasil. E-mail: [email protected].


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 481p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011. Acessar publicação original

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Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX | João José Reis

Estudos biográficos de indivíduos que experimentaram a escravidão – e mais ainda daqueles que conseguiram superá-la – representam um gênero narrativo de crescente interesse. Esses estudos se referem, sobretudo, ao complexo escravista do Atlântico Norte. As biografias de africanos e de seus descendentes permitiram perceber sob um novo ângulo, e de maneira mais humana, o movimento amplo da história, seja do tráfico de escravos, da ascensão e queda da escravidão no Novo mundo, da reconfiguração do Velho mundo pela colonização e pelo escravismo, enfim da formação de sociedades, economias e culturas atlânticas. É possível fazer dessas histórias pessoais uma estratégia para entender o processo histórico que constitui o mundo moderno e, em particular, as sociedades plantadas na escravidão que dele brotaram. Prospera, também no Brasil, o interesse por estudos biográficos desse tipo […] do sujeito que viveu na sombra do anonimato, de quem não se tem memória constituída, ou cuja memória pertence mais ao mito do que à história […]. (REIS, 2008, p. 315-6).

Com essas palavras, João José Reis justificou, no início do epílogo de seu novo livro Domingos Sodré, um sacerdote africano, o estudo que empreendeu para analisar a trajetória deste na Bahia escravista dos 800. Leia Mais

Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX – REIS (RBH)

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 461 p. Resenha de: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29 no. 57, JUN. 2009.

João José Reis é merecidamente um figurão da historiografia brasileira. Seus livros, desde o pioneiro Rebelião escrava no Brasil, modificaram o estado da arte dos estudos sobre escravidão, sobre rebelião escrava e movimentos sociais, não só no país, mas internacionalmente. Esse pesquisador meticuloso e apaixonado, esse amante dos arquivos, das bibliotecas, dos documentos e dos livros acaba de lançar mais uma obra, um livro já saudado efusivamente em várias resenhas de especialistas no campo dos estudos sobre escravidão, no campo da chamada História Social: Domingos Sodré, um sacerdote africano. O livro se propõe a fazer um exercício de micro-história, pois toma como fio condutor da análise a vida de um africano liberto que viveu na Bahia do século XIX, e a partir da biografia desse ex-escravo que se tornou uma importante figura entre a população africana da cidade, desse sacerdote preso por ser acusado de práticas religiosas heréticas e diabólicas, o autor traça um amplo panorama das intrincadas relações sociais, das relações de poder, das atividades econômicas e culturais vivenciadas pelos libertos, por essa parte da população que, vivendo nas fímbrias do sistema escravista, sendo resultado dele, mas em muitos aspectos a ele se opondo, é pouco levada em conta quando se trata de contar a história da escravidão brasileira. A trajetória do liberto, do papai Domingos Sodré, que provavelmente nasceu em Onim ou Lagos, na atual Nigéria, por volta do ano de 1797, que morreu em 1887, com estimados noventa anos de idade, que deve ter desembarcado na Bahia, como escravo, entre os anos de 1815 e 1820, até por sua longevidade, por ter atravessado quase todo o século e por ter transitado entre as condições de escravo e de homem livre, permite pensá-lo como um sujeito encruzilhada, sujeito que foi se constituindo e se transformando à medida que transitava por distintos territórios sociais e culturais, que elaborou e vestiu distintas máscaras identitárias, que encarnou distintos lugares de sujeito, que entrou em conflito e teve de negociar com distintas forças e personagens sociais, que conviveu, fez parte e recorreu a distintas instituições sociais, tanto formais como informais, que fez parte tanto do mundo dos pretos, da cidade negra, quanto dos brancos, da cidade oficialmente dita branca e aristocrática. Através de sua vida, João Reis tentou acompanhar as pistas que levam àpresença e àprática do candomblé, na Bahia do século XIX, bem como dar conta da dura repressão que ele sofria, em dados momentos, por parte das autoridades policiais e judiciais, e como, ao mesmo tempo, essas práticas conseguiam resistir e sobreviver por terem, muitas vezes, o apoio de membros das elites e até mesmo das próprias autoridades que deviam combatê-las.

No que tange à contribuição deste livro para o estudo da escravidão, da liberdade e do candomblé, outros autores já se manifestaram e não sou eu o mais habilitado para avaliá-la, já que não sou especialista no tema, nem milito no campo da História Social. Os motivos que me levam a resenhar esta obra, a indicá-la, portanto, como leitura obrigatória para todos os historiadores, independentemente do tema com que se ocupem, do campo da disciplina em que militem, é que a considero uma obra exemplar do que seriam, hoje, as regras que presidem a operação historiográfica; considero-a uma obra exemplar na observância dos procedimentos que dariam estatuto científico ao nosso ofício, mas também a considero exemplar no que tange aos impasses, aos dilemas, aos debates acalorados que dividem, nestes dias que correm, a comunidade dos historiadores. Assim como aborda um sujeito encruzilhada, ela é, também, uma obra onde as encruzilhadas em que está colocado nosso ofício emergem com nitidez. Ela é uma obra exemplar do caráter narrativo da historiografia, do papel que a narrativa desempenha na elaboração e inscrição da história; é obra exemplar das artes e artimanhas que são requeridas de todo historiador, na hora que tem de transformar a pilha de documentos compulsados, as inúmeras pistas e rastros encontrados, num enredo que faça toda essa poalha, essa dispersão, fazer sentido; ela é exemplar do uso do que alguns preferem chamar de imaginação histórica, para não dizer o uso da ficção na escrita da história, ficção entendida não como o oposto da verdade ou da realidade, mas como a capacidade poética humana de dotar as coisas de sentido, de imaginar significados para todas as coisas, sentidos que são sempre, em última instância, uma invenção humana, já que as coisas não trazem em si mesmas um único significado, nem gritam ou dizem o que significam. As evidências nem falam, nem são evidentes; elas são levadas a dizer algo por quem as diz, elas são levadas a serem vistas por quem as põe em evidência.

Em várias passagens do livro, o caráter lacunar das fontes, a falta de documentos sobre a vida de Domingos Sodré e o silêncio dos arquivos sobre a vida dos de baixo obrigam João Reis a imaginar, a ficcionar, a tentar adivinhar como poderia ter sido, o que poderia ter acontecido com o papai Sodré e seus companheiros de condição na cidade da Bahia, em tal ano e em tal situação. Ele não se contém em imaginar que papai Domingos poderia ter estado em dado lugar, conhecido alguns de seus vizinhos, participado de dadas cerimônias, conhecido algumas autoridades, tivesse tomado algumas medidas, sabido de dados eventos e notícias, sempre fazendo questão de deixar claro, nesses momentos, como pesquisador sério e honesto que é, que se tratava de viagens ou visagens de sua própria lavra. Imaginação, ficção que na historiografia é limitada pelas próprias informações que se tem, pelo conhecimento que o historiador tem do período que estuda, por aquilo que sabe sobre o funcionamento da sociedade e da cultura que está estudando. Imagina-se o provável, ficciona-se o possível de ocorrer naquele tempo e lugar, com as pessoas que vivem em dada situação social e segundo dados códigos culturais. No entanto, sem essa capacidade de imaginar, sem a habilidade de criar, de inventar sentidos e significados para os restos do passado que chegam até o presente, a historiografia seria impossível. O próprio João Reis admite o parentesco existente entre o historiador e o adivinho. O historiador, às vezes, também tem que ser um papai, tem que jogar os coloridos búzios das significações que acha possível serem dadas a um evento, tem que exercer suas artes divinatórias, deixar a intuição trabalhar, estabelecer ligações entre os eventos que não estão explicitadas na documentação. Afinal, faz certo tempo que os historiadores sabem que os documentos não dizem tudo e que eles são capazes de provar as teses mais díspares, dependendo dos significados que a eles se atribuem, da leitura que deles se faz.

No epílogo do livro, João Reis vai fazer uma afirmação que é muito reveladora da própria consciência que o autor tem da importância da narrativa, da construção do texto para a versão da história que constrói. Estamos muito longe, aqui, de certa visão ingênua de que é possível estabelecer uma versão definitiva dos eventos e que essa seria a verdadeira versão do passado. O autor vai afirmar que se as informações que se tinha sobre um figurão popular como Domingos Sodré eram poucas e esparsas, o que se sabia sobre a vida de Maria Delfina da Conceição, que foi sua esposa por cerca de dezenove anos, era ainda menos expressivo. Essa mulher que acompanhou os passos, que dividiu a vida, a casa e possivelmente a crença com o papai, deixou pouquíssimos rastros de sua passagem pela história. Se soubéssemos mais sobre ela, diz Reis, o enredo dessa história poderia ser diferente. Nessa passagem, o autor admite, explicitamente, que a história que acabou de contar tinha um enredo: ela foi enredada, tramada, os eventos foram interligados por uma atividade narrativa, por uma arte de contar história. Ao contrário do que alguns historiadores ainda supõem, o enredo da história de Domingos não foi descoberto, encontrado pronto nos arquivos pelo historiador baiano. Ele não está no próprio passado, embora este seja uma referência para criá-lo, embora pequenos pedaços de enredos, pequenas tramas, também narrativas, também escritas tenham chegado até nosso pesquisador. O que Reis está afirmando é que o enredo foi feito no presente, por ele, com as informações que encontrou. Se ele afirma que o enredo poderia ser outro, não é que a história em si mesma pudesse ser outra. Sabemos que o passado não pode mais ser alterado pelo simples fato de que passou, mas o enredo poderia ser outro, pois, de posse de outras informações, de informações sobre a vida da companheira de Domingos, ele poderia escrever a história que escreveu de outro modo, o livro poderia ser diferente do que este que está publicado. A estratégia narrativa podia ser outra, outras as personagens, outras as ligações entre os eventos, outras as tramas, outras as explicações e significações.

O livro Domingos Sodré, um sacerdote africano é uma obra modelar no uso das artes, artimanhas e mandingas de nosso ofício, por isso deve ser bibliografia obrigatória nos cursos de metodologia da pesquisa histórica. Nele estão presentes todas as regras que presidem a operação historiográfica e que permitem que nosso ofício reivindique o estatuto científico: a narrativa mediante documentos; a pesquisa ampla e meticulosa de arquivo, onde o autor expõe nosso parentesco com os detetives; a crítica rigorosa das fontes; o concurso de uma ampla bibliografia na área de estudos a que pertence, incluindo desde obras clássicas, até obras mais recentes, trabalhos sequer publicados; um domínio fino da teoria e da metodologia faz com que ela sustente a análise, esteja presente na carpintaria, na estruturação do texto e de todos os passos da pesquisa, sem que precise aparecer atravancando o texto, em digressões que costumam ser xaroposas e pedantes. Essa leveza, essa fluência, essa beleza do texto, que já fez de Reis um autor premiado, é parte desta outra dimensão inseparável da operação historiográfica, aquilo que Certeau nomeou de escrita, a dimensão artística de nosso ofício, a dimensão ficcional que a narrativa histórica convoca. O bom livro de história, o clássico em nossa área não se faz apenas às custas do tema que se escolhe e da pesquisa documental que se faz, pois a história só existe quando escrita, é no texto que ela se realiza, bem ou mal. Afirmo, e talvez ele nem considere isso um elogio, que grande parte do sucesso dos livros de João Reis se deve à forma como são escritos, à sua habilidade narrativa, a despeito de serem todos fruto de exaustiva pesquisa e do estudo metódico e rigoroso de temas inovadores, muitos deles pouco tratados ainda.

João José Reis possui uma consciência da centralidade da narrativa em nosso ofício, como poucos. Seus livros explicitam as estratégias narrativas que escolheu. Domingos Sodré é um livro que, se fôssemos adotar as sugestões de Hayden White, diríamos vazado no enredo romanesco. É uma trama em que embora Domingos opere como uma metonímia de seu tempo, bem a gosto da micro-história italiana, que inspira teoricamente e metodologicamente o livro, ele é descentrado e disperso por uma dezena de outros personagens que vêm ocupar o seu lugar na trama sempre que as informações sobre ele escasseiam. João Reis deixa explícito que irá adotar na narrativa esse procedimento analógico. Como num romance, o livro de Reis não é um livro de teses, embora defenda algumas ideias, aliás faça algumas conclusões, mas estas não aparecem explicitadas, e sim implícitas, imanentes à trama que ele arma. Ele convoca a nós, leitores, a que cheguemos às conclusões antes que ele as exponha, a partir do enredo que ele elabora. Ele homenageia a inteligência dos leitores, jogando no tabuleiro os seus Fás para que a gente os decifre, para que leiamos a mensagem que quer nos fazer chegar. Em vários momentos da obra, a metonímia Domingos é substituída por outros personagens que atuam como se fossem metáforas do velho sacerdote, outros personagens ocupam o lugar desse sujeito e o dispersam, fazendo-o aparecer com diferentes rostos, em diferentes corpos, em diferentes situações, para em seguida, em outro movimento, tal como ocorre com o Menocchio de Carlo Ginzburg, em quem parece se inspirar, deixar de ser um ser singular, único, para ser um sujeito exemplar, um sujeito resumo de seu tempo, de sua sociedade e de sua cultura. Sua figura, que se dispersa num primeiro momento, no segundo momento unifica, homogeneíza, encarna a situação do liberto na Bahia, no século XIX. Em ambas as situações o caráter ficcional do procedimento é notório, para o mau humor do historiador italiano, que não cessa de fazer diatribes azedas contra a presença da ficção no ofício do historiador. Mas sem a ficção não haveria trama, não haveria enredo, não haveria compreensão, não haveria saber histórico. Tanto no momento em que outros libertos vêm agir, se comportar, falar, como Domingos, tanto no momento em que o autor supõe que se um liberto realizava tais práticas, o papai como um liberto que era também possivelmente fazia a mesma coisa, passava pela mesma situação, quanto no momento em que o sacerdote singular, excepcional, tão único que chegou a merecer biografia escrita por outro figurão da cidade, torna-se um representante de todos os libertos, que sua vida se torna similar à de todos de sua condição, que suas práticas de crença se tornam análogas às de outros praticantes desses rituais, é a imaginação, é a ficção, é a capacidade de dar sentido, de raciocinar por imagens, por figuras, de estabelecer configurações, por parte do historiador, que está agindo. É o historiador João Reis que está produzindo esse enredo, essa versão para o passado, a partir de seu olhar: um olhar formado pela disciplina histórica, pelas regras da disciplina, um olhar informado por dados pressupostos teóricos, um olhar informado por dadas posturas políticas, éticas e morais, e, por que não admiti-lo, um olhar constituído por dados códigos estéticos, por uma dada maneira de figurar o mundo, de vê-lo e de dizê-lo, um olhar tropológico, além de ideológico. A história é um saber de encruzilhada entre o fato e a ficção, entre o feito e o contado, entre a ação e a narração, entre o que se vê e o que se imagina, entre o rastro e o sonho, entre o resto e o desejo, entre o que se lembra e o que se esquece, entre o achado e o perdido, entre a fala e o silêncio, entre o signo e a significação, entre o material e o etéreo, entre os homens e todos os deuses.

Portanto, Domingos Sodré, um sacerdote africano é um bom exemplo de como a “história vista de baixo” é uma impossibilidade, já que ela, como todas aquelas escritas por historiadores, é fruto do olhar do historiador e não do personagem que nela é tratado. No livro de João Reis não lemos a história contada do ponto de vista de Domingos, até porque este está morto e quase nada pode nos dizer para além do pouco que ficou registrado, sempre por outras pessoas, pois, como é comum entre os de baixo, na época tratada por Reis, ele era iletrado, e até os documentos que registram sua presença são escritos e assinados por outros. A história é vista por Reis, não por Domingos, embora caiba ao historiador, esta é uma das mandingas do ofício, tentar adivinhar, imaginar, fabular, idear, intuir o que pensava e sentia o papai. Talvez, quem sabe, João Reis até gostaria de ser um cavalo em que viesse se encarnar o papai Domingos, o mandingueiro famoso, mas, nas artes divinatórias da história, quem frequenta essa encruzilhada costuma fazer seus próprios despachos, encomendar seus próprios feitos e contados. João Reis faz, como todas, uma “história vista de cima”, já que, pelo menos até hoje, em nossa sociedade, os historiadores costumam ocupar os estratos considerados superiores da sociedade. É ele quem olha para Domingos do alto de sua sabedoria, de sua posição social, de seu lugar institucional, de seu lugar de classe, de seu lugar de letrado e doutor, de seu lugar de branco, né meu rei! Sobre a vida do velho sacerdote joga sua rede discursiva, o aprisiona em dados sentidos que estão agora à disposição da comunidade de historiadores para que sejam discutidos, debatidos, repensados, refeitos, reabertos a novas interpretações, a novas invenções. Mas, por isso mesmo, o velho mandingueiro baiano virou de vez figurão, passou a fazer parte da história do país, da história desta ignomínia, desta chaga que não pode deixar de ser reaberta para que continue doendo na consciência dos homens que foram capazes e ainda são capazes de perpetrá-la: a escravidão. Só por isso a invocação e a evocação do preto velho, a sua reencarnação narrativa nas páginas deste livro magistral, escrito por um mestre do ofício de historiar, que pode botar banca como seu personagem negro fazia na cidade da Bahia, já é merecedora de elogios e de leitura atenta. E quando tal intenção política e tal postura ética dão origem a uma narrativa primorosa como o deste Domingos Sodré, deve ser motivo de recomendação, não apenas para todos os santos, não apenas para todos os iniciados nas artes e ofícios da historiografia, mas principalmente para os neófitos, os que ainda estão realizando os atos preparatórios para entrar na nossa seita, os que ainda não estão de cabeça feita, que precisam passar pelos rituais de introdução a este fascinante mundo do sacerdócio, por isso mal remunerado, em nome do passado. Aceitem o sorriso convidativo do autor em sua rede e se enredem no fascínio deste livro escrito com competência científica e sensibilidade artística.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior – Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador CNPq. Departamento de História – Campus Universitário, BR-101, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. E-mail: [email protected].

Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX / João J. Reis

De africano escravizado a liberto na Bahia. Senhor de escravos e chefe de junta de alforria. Sacerdote de candomblé, sendo afamado babalaô, e homem católico, membro de irmandade negra. Essas são algumas facetas da vida de Domingos Sodré, narradas pelo historiador João José Reis, conhecido especialista da escravidão. Se a Bahia já possuía tradição em estudos sobre o candomblé, o livro de João Reis apresenta uma nova perspectiva.

Amparado em ampla pesquisa documental e utilizando a metodologia micro-histórica, o autor descortina a vida desse personagem, ao mesmo tempo em que analisa a formação do Candomblé na Bahia do século XIX.

No capítulo inicial, “A polícia e os candomblés no tempo de Domingos”, Reis apresenta ao leitor o aparato policial da Bahia oitocentista, responsável por reprimir as práticas culturais dos africanos, em especial os batuques e principalmente o candomblé, visto pelas elites como um obstáculo à civilização almejada na província. Mas o perigo representado pelo candomblé e sua supressão não era ponto pacífico entre as autoridades. As políticas de repressão e permissão em relação às praticas religiosas de matriz africana foram pontos delicados. Como mostra o autor, “as autoridades policiais com frequência se desentendiam” (p. 25), e subdelegados eram amiúde acusados de permissividade em relação aos candomblés que batiam alto sob seus olhos e ouvidos.

Entretanto, outras autoridades estavam especialmente decididas a extinguir tais práticas do seio da população, adotando uma linha dura contra os candomblés. Temos como exemplos o chefe de polícia Antônio de Freitas Henriques e o subdelegado da freguesia de São Pedro, Pompílio Manoel de Castro, responsáveis pela prisão de Domingos Sodré em 25 de junho de 1862. Mas a despeito da repressão mais ferrenha de alguns personagens em particular, o candomblé conseguiu sobreviver na Bahia oitocentista. Como explica João Reis, “a tolerância constituía um movimento discreto entre os envolvidos com o candomblé e as autoridades diretamente responsáveis pelo policiamento nos diversos distritos da cidade, fossem subdelegados ou inspetores de quarteirão” (p. 52), isto é, gente que lidava mais diretamente com os “sacerdotes, devotos e clientes”.

No capítulo seguinte, “De africano em Onim a escravo na Bahia”, João Reis narra as aventuras e desventuras de Domingos entre as duas margens do Atlântico, desde seu nascimento no final do século XVIII na cidade de Onim (atual Lagos, Nigéria), passando pelo conflito que envolveu os meio-irmãos Osinlokun e Adele pelo trono de Lagos, em 1823, até seu desembarque na Bahia. Domingos foi adquirido pelo coronel de milícias Francisco Maria Sodré Pereira, vivendo durante esse período em escravidão no engenho Trindade, no Recôncavo baiano, ao lado de uma maioria de escravos que, como ele, eram nagôs, o nome étnico dado aos africanos falantes de iorubá, convivendo ainda com escravos de outras nações africanas. Embora não tenha encontrado informações sobre essa época da vida do africano, o autor utiliza informações referentes a outros escravos que trabalhavam nesse engenho para recriar a atmosfera em que vivia Domingos – recurso frequentemente utilizado pelo autor, como mostrarei adiante.

A alforria de Domingos data de 1836, concedida após a morte de seu senhor. E como liberto, Domingos teria agora de se adaptar mais uma vez às novas condições. A paranóia que se seguiu ao levantes dos malês (1835) tornou a vida dos africanos libertos – e dos nagôs, em particular – ainda mais difícil, com o recrudescimento de medidas de controle, como a repressão aos festejos e comemorações africanas, os chamados batuques. Diante de toda essa legislação anti-africana, o autor conclui que “quando se tratava de africano, uma linha tênue dividia a condição de escravo daquela de liberto” (p. 92).

Domingos conseguiu negociar alguns espaços de autonomia na sociedade escravista, o que lhe permitia atuar como adivinho. Esse é o tema do capítulo seguinte. No quilombo de Domingos – foi assim que as forças policiais descreveram as moradias coletivas de africanos – as autoridades policiais encontraram “diversos objetos de feitiçaria”. O autor descreve os objetos rituais encontrados na casa de Domingos – roupas, jóias, panos-da-costa etc. -, mas presta especial atenção aos objetos de culto e seus significados. Esse, aliás, é um ponto alto do livro. A desenvoltura com que o autor navega na bibliografia africanista – e mais especificamente naquela referente à religião tradicional dos orixás, o èsin ibílè – é realmente notável. Graças a esse conhecimento e sensibilidade etnográfica, foi possível a João Reis imaginar – ou em seus próprios termos, “adivinhar” – o significado dos objetos rituais, a exemplo dos búzios, contas e “santos de pau”.

Domingos atuava principalmente como adivinho, “babalaô”, um sacerdote de Ifá, divindade da adivinhação, sendo provavelmente um maioral entre eles, um “papai”, como se referia o jornal O Alabama aos líderes dos candomblés. Ele sem dúvida adaptou e inovou certos procedimentos rituais na diáspora, embora mantivesse certas regras de adivinhação, que trouxe da África. Sua competência como babalaô seria testada pelos seus parentes de nação, os nagôs, “acostumados com estavam a consultar constantemente adivinhos em suas próprias terras” (p. 136).

Domingos Sodré foi preso por sua prática de adivinhação e suposta feitiçaria, cuja relação é analisada no capítulo 4. O Código Criminal do Império não tinha uma legislação específica sobre essas práticas, vistas como “superstições” no discurso desqualificador da época. Além disso, candomblé e feitiçaria era uma combinação perigosa, pois através de sortilégios os escravos adquiriam remédios para “amansar senhor” e promoviam a alforria à revelia senhorial – a principal chave na qual aparentemente atuava Domingos.

Após sua prisão, Domingos teve de assinar um termo de obrigação no qual se comprometia a “mudar de vida”, abandonando a vida de “candomblé e feitiçaria”, sob pena de ser expulso para a África, dispositivo utilizado pelas autoridades para punir os africanos envolvidos em candomblé, sobretudo seus líderes. Alguns tiveram esse destino, como Grato e Gonçalo Paraíso. A liberta nagô Constança do Nascimento também foi deportada para a África, mas não sem antes protestar bastante, levando o caso até o ministro da Justiça. Apesar dessa ferrenha repressão, o candomblé conseguiu resistir, entre outras razões, graças ao recrutamento de gente poderosa, branca e “engravatada”.

Em “Feitiçaria e alforria”, João Reis examina, através do processo movido por Domingos Sodré contra Elias Seixas, a atuação do papai enquanto chefe de uma junta de alforria, organização de crédito que visava a libertar africanos escravizados. Era provavelmente baseada no esusu, instituição de crédito iorubá. Sua atuação como chefe de junta de alforria é exemplo do respeito e importância enquanto líder religioso que Domingos usufruía entre outros africanos. Mas as atividades de Domingos, seja como adivinho ou como chefe de junta interferia num domínio exclusivo dos senhores, a alforria, expediente fundamental da política de controle paternalista, algo que preocupava as autoridades baianas.

Na introdução do livro, João Reis afirma que “o leitor perceberá que nosso personagem sai frequentemente de cena para dar lugar ao seu mundo e a outros personagens que o povoam, através dos quais sua história é em grande medida contada” (p. 16). É exatamente o que acontece no sexto capítulo, “Uns amigos de Domingos”. Nele, o autor narra a história de três africanos libertos, também envolvidos com candomblé: Manoel Joaquim Ricardo, haussá, envolvido com o tráfico de escravos enquanto ainda era ele mesmo um cativo, tornando-se mais tarde um próspero comerciante e um dos libertos mais ricos da época; Cipriano Pinto, também haussá, que teve seu candomblé invadido em 1853 e terminou sendo levado para o Aljube e posteriormente deportado para a África. Por fim, Antão Pereira, liberto bem sucedido, mas que terminou preso no final de 1872 sob a acusação de estupro, embora pesasse sobre ele também a fama de candomblezeiro. Terminou seguindo a sina de outros líderes de candomblé: a deportação para a África.

Os três casos reforçam a ideia de que os libertos lideravam o candomblé oitocentista, talvez em virtude da mobilidade e capacidade de levantar recursos. Ademais, demonstram como as fronteiras étnicas não impediam o contato entre as lideranças, com a circulação de pais e mães-de-santo de diferentes grupos étnicos, como Domingos, nagô, Joaquim Ricardo e Cipriano Pinto, haussás, Mariquinhas Velludinho, jeje, e tantos outros.

O capítulo final, “Domingos Sodré, africano ladino e homem de bens”, destrincha outras passagens da vida do liberto, como sua experiência no grêmio católico, embora não abandonasse sua atividade como sacerdote do candomblé. Domingos tinha as religiões como complementares, e não como sincréticas. Embora nascido na outra margem do Atlântico, Domingos lutava para legitimar-se membro da nação brasileira, como se comprova pelo ato de vestir uma farda de veterano da independência no momento de sua prisão. E assim como outros libertos, africanos ou não, Domingos também era senhor de escravos, embora fosse um pequeno escravista. Suas escravas eram todas nagôs como ele, tendência comum entre os libertos, que escravizavam gente da mesma nação. Mas Reis questiona se realmente essas escravas eram “sua própria gente”, isto é, se ele escravizou gente vinda de Lagos ou não. Caso sim, ele abandonou certas regras africanas de escravização.

Com o fim do tráfico transatlântico de escravos, Domingos buscou novas atividades para investir, como os bens imóveis. Mas na década de 1880, já velho e provavelmente doente, o liberto depositou certa quantia na Caixa Econômica, instituição financeira privada.

Entretanto, ao morrer em 1887, com estimados noventa anos, não deixou muito para sua esposa Delfina, presa com ele em 1862. Ela morreria em agosto de 1888, na miséria, após anos auxiliando seu marido, quem sabe até ritualmente.

Em sua conclusão, João Reis faz uma crítica ao conceito de crioulização, que poderia ser utilizado para definir a vida de Domingos Sodré. Ele poderia ser ainda definido como “crioulo atlântico”, outro termo consagrado na bibliografia internacional. Para substituí-los, João prefere o uso da noção de ladinização. Na sociedade escravista, o ladino era o africano que já tinha aprendido a língua e os costumes dos brancos, sem esquecer necessariamente seus valores da África. Nesse sentido, o uso de ladinização serve para “todas as gerações de africanos natos que […] tiveram com o tempo de adaptar, reinventar e criar de novo seus valores e práticas culturais, além de assimilar muitos dos costumes locais, sob as novas circunstâncias e sob a pressão da escravidão deste lado do Atlântico” (p. 317). E por sua grande capacidade de adaptar elementos culturais do mundo dos brancos às práticas que trouxe da África, negociando posições e cultivando relações dentro e fora da comunidade africana, Domingos era um mediador cultural, “um perfeito ladino” (p. 319).

Depois de ler essa obra e escrever essa resenha, posso afirmar que estamos diante de um trabalho cuidadoso, na melhor tradição da história social, onde personagens se cruzam todo o tempo no universo social e cultural de Domingos Sodré. O leitor encontrará profundidade analítica, num texto que realça as conexões entre África e Brasil – uma tendência nos estudos sobre a escravidão -, sobretudo para os libertos como Domingos. Há de acentuar também o trabalho etnográfico desenvolvido nesse livro, que buscou interpretar os significados dos objetos de culto relacionados ao biografado, bem como aos outros líderes do candomblé na Bahia oitocentista. Aliado a esses aspectos, o texto apresenta uma narrativa leve e fluida, característica presente em outros trabalhos de João Reis. Enfim, só nos resta agora aguardar e tentar adivinhar qual a próxima surpresa o autor terá a nos oferecer.

Carlos Francisco da Silva Jr. – Mestrando em História (UFBA). E-mail: [email protected].


REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. 463 p. Resenha de: SILVA JR., Carlos Francisco da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.287-291, 2010. Acessar publicação original. [IF].