Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx – MORFINO (RFMC)

MORFINO, Vittorio. Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2016. Resenha de: LANCIATE, Diego. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 116-119, n.2, 2016.

Publicado pela Georg Olms Verlag em 2016, Genealogia di um pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx [Genealogia de um preconceito. A imagem de Spinoza na Alemanha de Leibniz a Marx] de Vittorio Morfino é resultado de um estimulante e rigoroso trabalho de fôlego em que a articulação entre Spinoza e spinozismo se faz pela efetividade de sua recepção, sua Wirkungsgeschichte, em terras germânicas. Assim, três grandes momentos são divididos: a refutação do spinozismo clandestino, o renascimento spinozano e, por fim, o Spinoza do Idealismo. Filósofos como Leibniz, Wachter, Bayle, Mendelssohn, Lessing, Jacobi, Kant, Herder, Goethe, Schelling, Hegel, Heidegger, Feuerbach, Marx, Engels até Plekhanov, Althusser, Pascucci, Negri, Fischbach et alii são mobilizados, porém, longe de um procedimento genético e historicista de apreensão do par significante spinoza/spinozismo, Morfino investiga genealogicamente, ou seja, é tal articulação que é posta em exame em seus efeitos. E, para tanto, podemos dizer que seu centro geométrico é localizado em Marx, cujo olhar míope sobre Spinoza é, em certa medida, efeito do spinozismo germânico. Assim, a questão posta por Morfino assume traços e contornos ímpares: Marx lê Spinoza, todavia, tal leitura, não é caracterizada por uma inadequação no sentido em que se diz do inadequado enquanto erro – um pressuposto de um sujeito empírico de conhecimento – tampouco que seja uma leitura cujo pressuposto seria um sujeito tout-court como epicentro, mas que se trata, antes do mais, de um efeito sujeito que a historialidade efetiva do spinozismo provoca na leitura de Marx. Como efeito de um discurso, Marx é atravessado em seu ver. Uma efetividade post festum que retroage certos sentidos do spinozismo e de Spinoza construindo uma narrativa linear capaz de evidenciar-se na contemporaneidade de Marx leitor. E é em tal narrativa evidente que se instaura a opacidade mesma de Spinoza, então, que a contemporaneidade da evidência, que se faz narrativa da historialidade efetiva da articulação spinoza/spinozismo, é o que permite Morfino rearticular o jogo complexo entre tais significantes pelo ato de ler como efeito desta narrativa. Marx viu através dessa narrativa límpida e linear e, por isto mesmo, não viu em Spinoza uma teoria da História e da Política. Como Marx não pôde ver, o não-visto de Marx é o início da trajetória genealógica de Morfino, por aí ele propõe-se a abrir os pontos de sutura do discurso que interpela Marx e que compõe a imagem de Spinoza através da contemporaneidade de certo sentido que faz seu não-visto, porém, que reintroduzida em sua não-contemporaneidade, i.e.¸ em seu Kampfplatz, abre-se a complexa trama de operações discursivas em sua pluralidade mesma. Ou seja, o sentido é atingido em sua equivocidade pela abertura das suturas que compõem a narrativa da imagem de Spinoza/spinozismo, então, tudo se passa como se a estratificação de conflitos discursivos, deslocamentos de sentidos e defasagens articuladas em temporalidades diferenciais nas quais se desvelam os níveis em ritmos entremeados produzissem certo efeito-imagem de Spinoza, cuja estruturação não seria outra que a produção de sua opacidade pela lógica de poder característica da ideologia/imaginário. A leitura que faz Marx, assim, é o “efeito da complexa história da presença e ausência de Spinoza em terra germânica”.

Não-contemporâneo que se faz contemporâneo, a opacidade do real dada pela narrativa linear, pela sucessividade cumulativa de sedimentos discursivos, é submetida à desconstrução materialista por Morfino. Cada contexto pontual de disputa que se produz uma imagem sedimentada compondo a linearidade ideológico-discursiva do par significante Spinoza/spinozismo, sua trama interrelacional que produz o sentido desta narrativa, é submetida, então, ao exame e recontrução das interpretações que foram feitas de Spinoza nos três momentos principais. E, para tal reconstrução, Morfino suspende o juízo sobre a adequação dos objetos interpretados, i.e., não se trata de trazer um Spinoza como régua da adequação ou inadequação das interpretações que lhe são dadas, mas sim de examinar precisamente como tais interpretações se fazem e exercem um efeito na recepção de Spinoza e no spinozismo. Morfino analisa cada intérprete através da problemática que lhe é própria e não através da problemática do próprio Spinoza, e disto se pode dizer que cada problemática, cada estrutura de pensamento analisada, provoca significativas modificações e reafirma certas permanências da imagem mesma de Spinoza e do spinozismo. Mais ainda, trata-se de problemáticas não só de cada intérprete, mas também de sua dimensão conflitiva com problemáticas de intérpretes entre si, seu diálogo plural, tanto no que diz respeito à estrutura de pensamento de cada intérprete modificando a imagem de Spinoza e do spinozismo quanto no que diz respeito também ao ambiente de produção interpretativa. A tensão e conflitualidade entre problemáticas, os encontros entre os ritmos defasados, impõem-se na tarefa genealógica. Tal trama de problemáticas defasadas, que podemos chamar de sobreproblemática, é a interpenetração mesma das tramas problemáticas singulares, as quais configuram o presente de uma instabilidade discursiva de algo que, em sua posteridade, é tido como acabado, como ponto pacífico e suturado, ou seja, que se lê o presente passado pelo futuro já passado projetando-o teleologicamente – i.e.¸ pelos seus resultados sedimentados – num esquema genético de uma temporalidade histórica de sucessão, esquema cumulativo em sua opaca transparência, pois, em suma, também tais problemáticas sempre-já são interpenetradas por certo e determinado futuro anterior.

Daí que Morfino ausculta a materialidade textual em seu tecido através dos sintomas, da ausência e presença, os quais, por sua vez, são detectados em suas diversas roupagens. É, com efeito, a espectralidade mesma que faz dos significados sintomáticos procedimentos textuais no jogo entre as problemáticas e a sobreproblemática em sua historicidade tomada não mais geneticamente, mas sim genealogicamente, a saber, em sua historialidade efetiva. Sintomas tais que, em seu campo semântico, fazem-se como desvios de sentido, os quais são operados por mecanismos marcados, como a redefinição de conceitos, inversão de conceitos, os efeitos de tradução como sintoma da resistência de um campo problemático ao estranhamento de uma filosofia alheia em sua economia teórica o que força a “tradução criativa”, ou seja, força a tradução entre significantes tendo em vista a problemática de recepção, as remoções inusitadas como tecidos invisibilizados na própria materialidade textual de Spinoza e, sobretudo, dos efeitos destes movimentos de escritura que condensam a espectralidade em sua posteridade próxima como “imagemlimite”, como sentido retroagido capaz de transmitir-se como tal sob uma problemática de um intérprete futuro, um intérprete, de certo modo, do futuro anterior.

Morfino perquire a “imagem-limite”, ou a imagem de Spinoza/spinozismo, referindose a ela como pregiudizio, que podemos traduzir por preconceito, desde que considerando que aí se condensa o juízo dado pela inadequação de sua anterioridade temporal que se faz presente no ato de julgar – tenhamos em mente que preconceito está submerso no sentido propriamente spinozano de imagem, pelo que se remete aos mecanismos de superstição capaz de suscitar afetos e dominação.

Por trás da desconstrução materialista, são as teses de Althusser que Morfino não só mobiliza, mas que as aprimora consideravelmente em estado prático em sua genealogia. Assim, é à revolução teórica inaudita de Spinoza, segundo Althusser, que Morfino dá consequências: a história não se lê na evidência de seu discurso como um logos manifestando-se como a voz uníssona de uma estrutura sedimentada, contudo, que nesta presença mesma uníssona do logos a dissonância se faz pela sua ausência, pelo inaudível e ilegível. O ler, o escrever, o ouvir etc não são de modo algum indiferentes e atos neutros, e é a opacidade ela mesma em sua imediatidade ou, para utilizar-me de um oximoro, a translucidez turva do discurso uníssono manifesto, que exerce o efeito de modificação dos atos de ler, escrever, ouvir etc. Uníssono composto pela plural dissonância de uma contemporâneo não-contemporâneo, pelos ritmos diversos que compõe conflitantes os sentidos. Notável é que a revolução de Spinoza indicada por Althusser pela posição do problema do ler e do escrever tornou-se apreensível a partir da problemática do próprio Marx, pela sua estrutura de pensamento que mobilizou a articulação entre ideologia e política. É por isto que Morfino pôde escavar o subterrâneo dissonante suturado pela presença de uma narrativa de um preconceito, então, que ele pôde voltar Spinoza contra sua imagem que, com toda sua potência explicativa, fez da miopia de Marx o reconhecimento/ desconhecimento de Spinoza em sua problemática.

É o “trabalho spinozano sobre a linguagem da tradição” em sua conjuntura de produção e seu horizonte semântico que intervém como uma máquina filosófica combatente em seu Kampfplatz. Uma máquina de guerra filosófica que Spinoza opera pela posição do problema da Histórica e da memória, ou seja, é sua teoria da imaginação e sua teoria da História que são confrontadas com a imagem do spinozismo alemão em seus três momentos. Não é que a memória, para Spinoza, seja mero conhecimento inadequado, mas que ela é, simultaneamente, hábito, o que implica a eficiência de suas formas discursivas, de sua “história sacra”, como diz Morfino, na história real. São, por isto, os ritmos dos ritos, dos gestos e comportamentos, em suma, dos corpos que são materializados e efetivados na atualidade de um presente, de sorte que a pluralidade dos hábitos, a defasagem de seus ritmos todos, permitem a Spinoza desconstruir a temporalidade linear, simples e contínua de uma narrativa teológico-política. Daí a articulação entre a causalidade imanente e a opacidade do real (teoria da imaginação) permitir conceber a história “como construção conceitual que mostre o estatuto imaginário de cada autobiografia dando relevo ao complexo intrincamento de causas naturais e sociais que produzem a simplicidade de uma história.”

Aparente circularidade, Spinoza contra o spinozismo em terras alemãs, põe em questão a adequação deste Spinoza que permite abrir as suturas da narrativa do preconceito. De fato, o Spinoza que Morfino lança sobre o percurso genealógico seria a imagem de certo Spinoza? Seria a imagem de Spinoza composta pelo que podemos chamar de “segundo renascimento spinozano” datado, mais ou menos, dos meados do século XX na França até os nossos dias? A lição deste Spinoza materialista a que o século XX foi capaz de começar a dar outra voz através de Cavaillès, Guéroult, Deleuze, Chauí etc e, mais próximos de Morfino, de Althusser, Macherey e Balibar, é a de que justamente os ritmos plurais da história, suas defasagens e deslocamentos, em suma, a pluralização das temporalidades da história também produzem e são produtos de uma intervenção política em filosofia, ou seja, que a genealogia de Morfino não só nos presenteia com uma obra imprescindível de erudição e aprendizado de sua laboriosa empresa teórica, mas também e, sobretudo, que ela é a posição política que o materialismo do século XXI apenas começa a colocar em nosso atual Kampfplatz. Ademais, o trabalho de Morfino nos instiga à possibilidade de confrontar a desconstrução materialista com a tradição anglo-saxônica que hoje se faz presente e potente em nosso Kampfplatz, ou melhor, de desconstruir a posição das formas dominantes de interpretação idealista de Spinoza que repercutem com força em nossa conjuntura.

Genealogia di um pregiudizio é um acerto de contas do materialismo em geral e do materialismo de Spinoza em particular com a história que, simultaneamente, deixa seu rastro da vitalidade e força na impura conflitualidade constitutiva da filosofia entre materialismo e idealismo. Mas não só um acerto de contas. O trabalho de Morfino abre positivamente a articulação teórica imprescindível e demarcatória do próprio materialismo hodierno: trata-se de pensar a “fábrica Spinoza-Marx”, como escreve, visando construir uma ontologia da relação sob o primado das indicações do materialismo aleatório de Althusser e, ainda, pensá-lo sob o primado da teoria das temporalidades plurais. O problema fundamental aqui é pensar o compor-se e decompor-se de toda e qualquer estrutura em termos relacionais, de toda e qualquer história, o que implica diretamente a inteligibilidade do campo de ação política. Não só inteligibilidade, mas a intervenção teórica de Morfino é ela mesma política, pois, como dizia Althusser, filosofia é, em última instância, luta de classes em teoria, ou seja, filosofia e política são de certo e determinado modo – não idênticas – mas coextensivas. O êxito e rigor de Genealogia di um pregiudizio é um convite para a desconstrução materialista, para a posição materialista em filosofia e, também, um convite para enfrentar sob este prisma o desafiante e imprescindível problema da articulação entre História e Política.

Diego Lanciate – Doutorando Universidade Estadual de Campinas.

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