Poder, Representação e Imaginários na Idade Média/Mythos – Revista de História Antiga e Medieval/2022

O Dossiê temático “Poder, Representação e Imaginários na Idade Média” apresenta artigos que abordam a diversidade das formas de poder, políticas, relações culturais, representações, imaginários e a construção de memórias acerca do Medievo. Os textos que compõem o dossiê objetivam instigar reflexões sobre a historiografia produzida no âmbito dos estudos medievais, discutindo suas singularidades, confrontando-as com questionamentos sobre os usos do passado; buscando compreender como esse passado tem sido revisitado, interpretado (e reinterpretado) pelos historiadores. Leia Mais

Eagles Looking East and West: Dynasty/Ritual and Representation in Habsburg Hungary and Spain | T. Martí, R. Quirós Rosado

En 2009 tuvo lugar el congreso internacional La Dinastía de los Austria. Las relaciones entre la Monarquía Católica y el Imperio, el cual, organizado por el Instituto Universitario “La Corte en Europa” de la Universidad Autónoma de Madrid, insufló un renovado brío a los estudios sobre los vínculos entre ambas monarquías de la casa de Habsburgo durante la Edad Moderna. En la estela de este multitudinario evento se han ido sucediendo con mayor frecuencia seminarios y congresos que han contribuido a solventar lagunas cognitivas alrededor de las relaciones del eje Madrid–Viena/Praga desde los planos de la política, diplomacia, ejército, sociedad, las artes y la cultura. Al albor de un nuevo impulso multidisciplinar, sale a la luz esta obra colectiva fruto de un encuentro científico enfocado en dichos lazos desde la perspectiva de la representación del poder y el ceremonial cortesano. De mano de la reputada editorial belga Brepols, se presentan en lengua inglesa las heterogéneas contribuciones que diversos especialistas de Hungría, España y la República Checa presentaran durante la conferencia de 2016 celebrada en Budapest The Representations of Power and Sovereignty in the Kingdom of Hungary and the Spanish Monarchy in the 16th–18th centuries. Esta cuenta con una cuidada edición a cargo de los coordinadores Tibor Martí y Roberto Quirós Rosado, dos jóvenes especialistas, el primero, en los vínculos entre el reino de Hungría y la Monarquía Hispánica durante el XVII y, el segundo, en la etapa peninsular del archiduque Carlos (III). Y qué mejor ilustración para encarnar esta obra que una de las imágenes conmemorativas derivadas de la serie encargada a Rubens y sus colaboradores con ocasión del célebre encuentro previo a la batalla de Nördlingen en 1634 entre los dos Fernandos. Una “reunión” que tenía lugar entre dos primos y representantes de ambos flancos de la Casa de Austria: el futuro emperador Fernando III como general de las tropas imperiales –con atuendo magiar en calidad de soberano de dicho reino– y el comandante al frente las fuerzas hispanas, el Cardenal-Infante Fernando. Haciendo gala de semejante carta de presentación, el volumen inserta su foco de atención en el conjunto de estudios sobre la representación, ceremonial y rituales dinásticos, tendencias cuyo interés sigue gozando de plena vitalidad en el presente. Sirvan a modo de ejemplo, por citar algunos casos más recientes, las publicaciones colectivas a cargo de Anna Kalinowska y Jonathan Spangler, Harm Kaal y Daniëlle Slootjes, o Erin Griffey. No se ignora que en los últimos años han venido incluyéndose en obras colectivas estudios comparativos del mundo habsbúrgico centrados en el ámbito representativo y ceremonial, pero este conjunto de ensayos tiene la innovadora vocación de fijar su mirada principalmente en estos campos. Leia Mais

Representação dos árabes e muçulmanos na televisão brasileira | César Henrique de Queiroz Porto

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César Henrique de Queiroz Porto | Imagem: Arquivo pessoal/UNIMONTES

A telenovela tem uma importância transcendental para a cultura brasileira. No ar há quase 70 anos2, o Brasil já se viu, por muitas vezes, representado nas inúmeras narrativas ficcionais produzidas e exibidas pelas emissoras brasileiras de televisão. Contudo, não foram apenas as telenovelas com enredos repletos de brasilidade que acompanhamos nesse longo período de teledramaturgia brasileira, haja vista que – dada a originalidade dos novelistas3 – também pudemos acompanhar tramas que trouxeram ao telespectador culturas e costumes de outros povos como, por exemplo, a telenovela O Clone, de autoria de Glória Perez, produzida e exibida entre 2001 e 2002, pela TV Globo.

O Clone foi exibida no emblemático ano de 2001, marcado não apenas pelo início do século XXI, mas também pelos ataques terroristas contra os Estados Unidos, promovidos pela organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda, liderada pelo saudita Osama Bin Laden. No dia 11 de setembro de 2001, os terroristas lançaram ataques suicidas – através de aeronaves – contra os prédios do Pentágono, em Washington, e no World Trade Center (também conhecido como Torres Gêmeas), em Nova York, resultando na morte de mais de três mil pessoas. Foi nesse contexto histórico que vinte dias após o atentado terrorista, em 01 de outubro de 2001, estreou a telenovela O Clone, trazendo em sua espinha dorsal toda a cultura muçulmana, além de outros temas tabus como clonagem humana e dependência química. Leia Mais

Figuras da História | Jacques Ranciére

Resenhista

Hilário Correia Ramos – Universidade Federal de São Paulo. Mestrando em História pelo PPGH da Unifesp (Guarulhos).

Referências desta Resenha

RANCIÉRE, Jacques. Figuras da História. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 2018. Resenha de: RAMOS, Hilário Correia. Negacionismo, Arte e História. Escrita da História, v.7, n.14, p.251-255, jul./dez. 2020. Acesso apenas pelo link original [DR]

Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012) – GARRIDO (FH)

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p. Resenha de: SILVA, Jonatan Gomes dos Santos. A representação do negro nos materiais didáticos. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.11-27, jul./dez., 2019.

O Brasil possui o maior programa de distribuição de livros didáticos do mundo. Só em 2017 foram gastos 1.295.910.769,73 de reais em 125.570.649 livros. Tais cifras ajudam a entender a importância dos livros didáticos no ensino do país, sendo uma das bases para a configuração dos currículos escolares e do planejamento de aulas. O processo de avaliação e distribuição desses livros é complexo, devendo ser feito com diálogo entre o Estado, as editoras, a academia e as demandas sociais.

O livro Escravo, africano, negro e afrodescendente, de Mírian Cristina de Moura Garrido, analisa essa relação na produção dos livros didáticos cujo conteúdo tem grande impacto na formação da identidade dos alunos. Para isso, propõe em seus três capítulos a análise das representações dos negros nos principais livros didáticos de história distribuídos nas escolas brasileiras entre os anos de 1997 a 2012, tendo como foco o tema pós-abolição. A autora não analisa apenas o seu conteúdo, mas também as etapas a serem cumpridas até a sua distribuição nas escolas, colocando em pauta a indústria de materiais didáticos e sua relação com o Estado, seu principal cliente. O livro foi publicado em 2017 pela editora Alameda, sendo fruto da dissertação de mestrado em História da autora, realizado na UNESP (campus de Assis) entre os anos de 2008 e 2011. Doutorou-se pela mesma instituição em 2017, também realizou estágio de pesquisa na University of Pittsburgh (Estados Unidos) e pesquisa de campo em Maputo (Moçambique). Atualmente, Garrido é pós-doutoranda em História pela Universidade Federal de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre as memórias da independência moçambicana.

No primeiro capítulo “O livro didático: contexto”, Garrido contextualiza os livros didáticos brasileiros a partir dos aspectos econômicos, editoriais e historiográficos, traçando um panorama do que sua obra discute. Para analisar essa relação entre representação e o complexo processo de criação do livro didático, a autora utiliza o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este é o responsável por avaliar e disponibilizar os livros didáticos das escolas brasileiras. A partir de seus editais de convocação, em geral lançados dois anos antes da circulação do livro na escola, é possível estabelecer todas as exigências a serem cumpridas pelas editoras e obras didáticas que desejam negociar com o Estado, as condutas dos livros didáticos e suas editoras, bem como os critérios de análise estabelecidos. Na última etapa do edital PNLD aparece o Guia de Livros, Garrido também o usa como fonte, pois ele fornece auxílio ao professor na escolha do livro didático, expondo os princípios e critérios de avaliação das obras didáticas e as resenhas dos livros aprovados.

O PNLD na obra de Garrido também é fundamental para seleção dos livros utilizados como fonte, uma vez que formula seus critérios:  a aprovação dos autores na versão 2008 do Programa Nacional do Livro Didático destinado ao Ensino Médio; a presença deles no mercado de didáticos antes do início das avaliações governamentais para o segundo ciclo do ensino fundamental, portanto, 1997 (PNLD 1999); e a representatividade desses autores entre docentes. Traçado esse perfil, três nomes emergiram: Gilberto Cotrim, Antonio Pedro e Mario Schmidt. (2017, p. 12)  A formação profissional desses autores diverge. Cotrim tem uma ampla e diversificada formação: graduação em História, Direito, Filosofia, e mestrado em Educação, Arte e História da Cultura. Também foi presidente da Associação Brasileira de Autores de Livro Educativo (ABRALE). Antonio Pedro tem uma carreira mais ligada à universidade, possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) em conjunto com a Columbia University. Schmidt, estranhamente, não tem formação comprovada, mas alega ter graduação em História na Alemanha Oriental, bem como ter iniciado os cursos de Engenharia e Filosofia sem completá-los, e ainda assim é uma grande referência no mercado de didáticos.

A autora articula o PNLD com a lei 10.639/03. Esta é fundamental para a representação do negro nos livros didáticos enquanto sujeito histórico, porque expõe a conquista de uma das mais antigas demandas do movimento negro contemporâneo: a incorporação de conteúdos sobre História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos currículos escolares. Não é uma simples incorporação de conteúdo, o que “está em pauta é o repensar de atitudes e valores, de ressignificação do ensino enquanto instrumento de valorização da identidade.” (GARRIDO, 2017, p. 175)  No segundo capítulo, “Livros do Ensino Médio aprovados no PNLEM: Cotrim; Schmidt; Pedro”, Garrido analisa os livros das duas gerações (1997 e 2008) dos autores selecionados. O método utilizado é a análise do conteúdo, portanto, a autora primeiro realiza a “desmontagem dos textos, fragmentando o corpo do texto para obter unidades lógicas; em seguida, essas unidades serão confrontadas com outros referenciais bibliográficos” (GARRIDO, 2017, p. 79), objetivando a emergência de novos significados. A desmontagem do texto inicial resulta em um segundo texto, um metatexto capaz de pluralizar a captação de significados do texto original. Assim, é possível ampliar as interpretações de leituras possíveis e evitar uma leitura superficial.

Os referenciais bibliográficos que Garrido utiliza para confrontar as fontes dialogam com uma revisão historiográfica que ocorre a partir da década de 1980, e que ainda perdura, propondo uma nova interpretação sobre o sujeito histórico. De forma geral, pensando na questão da representação do negro, pode-se dizer que essa historiografia emergente recusava “a predominância de um enfoque socioeconômico e estrutural passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre dominantes e dominados.” (GOMES, 2004, p. 159).

Portanto, as reflexões de Sidney Chalhuob (1990) e Walter Fraga Filho (2004) se destacam na obra de Garrido. Eles sustentam que o negro, escravizado ou livre, como agente ativo socialmente, é partícipe das transformações sociais mesmo com as limitações que lhe são impostas. Ocorre, pois, a sua valorização enquanto sujeito histórico, diferente da ideia de passividade e anulação pelo dominador que era propagada por modelos, marxistas ou não, que privilegiam os aspectos estruturais, resultando na coisificação do negro. Para isso, são empregados métodos e fontes que aproximam o historiador ao cotidiano da população negra – como as memórias, os processos criminais, testamentos –, documentos que de alguma forma dão voz à ela ou nos relatam sua participação na sociedade. Dessa forma, apesar das limitações sociais, é possível apreender as redes familiares e de solidariedade construídas por esse segmento social, os meios criados para a sua participação no mercado de trabalho, as negociações entre negros e ex-senhores. Além disso, como os autores trabalham com regiões diferentes, Rio de Janeiro e Bahia respectivamente, o diálogo entre eles possibilita contestar generalizações. Essa mudança teórico-metodológica, portanto, nos permite apreender o afro-brasileiro de forma dinâmica, participando ativamente da sociedade através de diversas formas de resistência.

A partir da análise do discurso focando na representação dos negros no pós-abolição, a autora se debruça sobre os livros didáticos de 1997 e de 2008 dos autores escolhidos, constatando que nas poucas páginas dedicadas, os conteúdos sobre o tema não estavam de acordo com a produção historiográfica em voga, isto é, não valorizavam o negro como sujeito histórico, tornando invisível sua participação na sociedade.

Nos livros didáticos da segunda geração (2008), Garrido considera que ocorreram melhorias, contudo foram poucas. Schmidt e Cotrim, no que tange à seção dedicada ao pós-abolição, fizeram mudanças pontuais nos textos da década de 1990, tentando se adequar aos requisitos do edital do PNLD 2008. Mas toda a argumentação da primeira geração continua intacta. O texto de Antônio Pedro é ainda mais preocupante, pois a única alteração no texto de 2008 é o acréscimo de uma palavra.

A parte reservada às imagens e às atividades foi aprimorada, com destaque para Cotrim, que elaborou atividades para resgatar o conhecimento prévio dos alunos, não se limitando aos exercícios de memorização. Apesar das diferenças entre os conteúdos dos livros serem sutis, a autora destaca que Cotrim põe em xeque a liberdade dos negros, mas sem levar em conta, entre ex-escravizados, a plural significação desse conceito. Para entender essa condição para os egressos da escravidão, Garrido entra em concordância com Chaulhoub (1990) que defende que ser livre poderia significar autonomia de movimento e a constituição de relações afetivas. Com o texto de Walter Filho (2004) é possível sair do Sudeste e pensar essa relação na Bahia, onde a liberdade pode ser analisada pela forma como a interferência senhorial não foi tolerada, ela também aparece nas intensas negociações para manter e ampliar direitos que foram conquistados no período da escravidão.

Em seus livros, Schmidt, conhecido por sua posição marxista ortodoxa, busca evidenciar conflito entre os grupos sociais, porém trabalha com uma leitura que privilegia aspectos estruturais, não conseguindo “expressar percepções que singularizem o processo como estratégias e táticas de sobrevivência além da morte, do suicídio ou fuga, nem admitir outras formas de resistências que ocorram no cotidiano.” (GARRIDO, 2017, p. 103).

Sem dúvidas, Antonio Pedro foi o autor que mais recebeu críticas, pois praticamente não ocorreram mudanças em suas obras. Assim, além de conter generalizações, reedita a tese da anomia de Florestan Fernandes ao não considerar o negro como sujeito histórico quando argumenta sobre a marginalização, reforçando o mito do negro “indisciplinado e ocioso”, o que é totalmente nocivo à representação do afro-brasileiro.

Garrido dedica o terceiro capítulo, “História, Educação e Identidade: por um ensino aprendizagem possível”, à reflexão sobre as perspectivas e possibilidades para uma educação que não negligencie o debate sobre o racismo e a discriminação. A autora constata que a questão da valorização do afro-brasileiro está presente tanto na historiografia atual, quanto na base da Lei da 10.639/03 e nos editais de convocação do PLND, contudo os livros didáticos ainda não se atualizaram. Para compreender essa nociva permanência, Garrido primeiro problematiza as lacunas do PNLD e conclui que, por mais que os seus editais tenham se aprimorado com o passar dos anos, a falta de um critério de desqualificação referente a não incorporação de conteúdos atualizados gera uma brecha, permitindo a aprovação de livros desatualizados.

Em seguida, a autora reflete sobre o uso e a produção dos livros paradidáticos. Este gênero emerge entre as décadas de 1970 e 1980, quando ocorre uma expansão do saber acadêmico acompanhada de uma renovação do livro didático devido às novas propostas curriculares.

Num primeiro momento, o paradidático tinha como principal consumidor alunos da rede privada de ensino e alunos de graduação, mas com a criação do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1997, a clientela tem se reconfigurado, pois livros de diversos gêneros literários, entre eles o paradidático, passam a ser comprados e distribuídos nas bibliotecas de escolas públicas. Através dessa ação, o programa tem como principal objetivo incentivar a formação do hábito de leitura nos alunos da rede pública, modificando a histórica restrição à cultura letrada, propiciando “melhores possibilidades de acesso a essa cultura aos estudantes de escolas públicas do país” (GARRIDO, 2017, p. 161). O PNBE tem uma estrutura de funcionamento similar ao PNLD, inicialmente são lançados os editais de convocação, em seguida os livros são avaliados e selecionados por professores universitários, professores do ensino básico e profissionais de múltiplas experiências.

A obra de Garrido constata que os livros paradidáticos após 2003, se ocupam em explicar a África e suas relações com o Brasil e a herança dos afro-brasileiros, contemplando as exigências da lei 10.639/03. Vale ressaltar que os livros paradidáticos envoltos na temática “história e cultura africana e afro-brasileira” foram vencedores do Prêmio Jabuti na categoria didáticos e paradidáticos nos anos de 2007, 2009 e 2010, o que torna explícita a qualidade do conteúdo do segmento paradidático.

O que chama a atenção de Garrido é o fato de as editoras produzirem livros didáticos carentes de incorporação de conteúdos sobre o tema “África e afrodescendentes”, ao mesmo tempo em que têm em seus catálogos livros paradidáticos suprindo essas carências. Isso pode ser explicado como uma estratégia “na qual as editoras lucram com as compras governamentais duas vezes, no PNLD e no PNBE” (GARRIDO, 2017, p. 165). Para a autora, essa estratégia escancara a lógica da relação entre editoras e Estado, ou seja, enquanto estas buscam deliberadamente o lucro, as políticas públicas devem fundamentar a educação que pretendem efetivar através dos recursos disponíveis. Outro obstáculo, pois, para a valorização da população negra.

Portanto, a obra de Mírian Garrido traz importantes contribuições para a reflexão da representação do negro nos principais livros didáticos do país. Ao questionar o que vem sendo ensinado nas instituições de ensino sobre o pós-abolição, a autora aponta que a incorporação de conteúdos que valorizem o negro enquanto sujeito histórico reflete na construção da identidade negra. Também é importante que as políticas públicas se atentem à necessidade de promover dentro das escolas uma constante discussão da relevância e legitimidade de uma educação que não negligencie nenhuma das identidades.

Nenhum dos livros didáticos analisados pela autora renovou os conteúdos já consagrados, não se atendo a atual historiografia sobre o pós-abolição, tampouco sobre a demanda social da Lei 10.639/03. O ex-escravo continuou fadado à marginalização por sua passividade ou submissão. Essa postura conservadora pode ser entendida como uma opção dos autores e editoras. Apesar disso, ainda ocorreram melhoras significativas no material do produto didático e em certos “setores” dos livros: exercícios, textos complementares e no tratamento com imagens.

Pouco pode ser considerado de negativo na obra de Garrido. O conceito de memória, que é importante na discussão da autora, poderia ser mais desenvolvido, mas sabendo que o livro é fruto de sua dissertação de mestrado, espaço limitado e de prazo curto que tende a priorizar certos aspectos, essa carência torna-se compreensível. Além disso, não compromete a reflexão sobre a importância da representação valorativa do afrodescendente nos livros didáticos.

Referências

CHALHOUB, Sidiney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: Histórias e trajetórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. 2004. 363 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.

Jonathan Gomes dos Santos – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Postmigrantische Perspektiven. Ordnungssysteme, Repräsentation, Kritik – FAROUTAN et al (ZG)

FOROUTAN, Naika; KARAKAYALI, Juliane; SPIELHAUS, Riem (eds.). Postmigrantische Perspektiven. Ordnungssysteme, Repräsentation, Kritik. Frankfurt : Campus Verlag, 2018. Resenha de: VÖLKEL, Jana. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 207-209, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Linguagens da identidade e da diferença no mundo ibero-americano (1750-1890) – NEVES et. al (LH)

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MELO FERREIRA, Fátima Sá; NEVES, Guilherme Pereira das (org). Linguagens da identidade e da diferença no mundo ibero-americano (1750-1890). Jundiaí: Paco Editorial, 2018, 322 pp. Resenha de: ARAÚJO, Ana Cristina. Ler História, v. 75, p. 284-288, 2019.

1 Este livro resulta do projeto internacional “Linguagens da identidade e da diferença no mundo ibero-americano : classes, corporações, castas e raças, 1750-1870”, coordenado atualmente por Fátima Sá e Melo Ferreira e por Lúcia Bastos. Procura identificar, na linguagem e nos conceitos dos personagens históricos, traços constantes que vinculam ideias, expectativas, convenções, práticas e representações comuns, ou seja, expressões coletivas e atuantes de modos de ser, pensar e dizer a realidade no mundo ibero-americano, no período compreendido entre 1750 e 1890. A cronologia de longa duração evidencia permanências estruturais e diferentes fenómenos de contágio político que encontram eco em linguagens e conceitos partilhados. Os marcadores de identidade e alteridade de que nos falam os organizadores do livro são precisamente os conceitos e as linguagens usados, nos planos territorial, étnico, político e social, para exprimir laços de pertença e desatar nós diferenciadores de formas de nomeação coletiva, como sejam, “brasileiros” versus “portugueses”, “pueblos orientales” versus “cisplatinos”, no processo de independência e união da região do Rio da Prata, “bascos” e “espanhóis”, na revista Euskal-Erria de San Sebastián (1880-1918).

2 Nos campos em que se buscam agregações convergentes ou divergentes de sentido – território, raça, formações nacionais ou transnacionais – os conceitos são encarados não como entidades estáticas ou atemporais mas como ferramentas de temporalização histórica. Daqui advém o potencial hermenêutico da linguagem para nomear o social. Existe, todavia, uma brecha entre os acontecimentos históricos e a linguagem utilizada para os dizer ou representar. A consciência da historicidade do intérprete, neste caso, do historiador, afasta a compreensão do passado do tradicional objetivismo factualista, centrado na pretensa evidência do facto. Por outro lado, na relação com as linguagens do passado, a noção de historicidade previne um outro perigo, o das extrapolações conceptuais fundadas na atualidade, fonte de anacronismos e de todo o tipo de “presentismos” deformantes e esvaziadores da memória histórica. Neste contexto, é aconselhável aliar a História analítica à História conceptual para responder às questões centrais colocadas por Reinhart Koselleck e pela tradição da Begriffsgeschichte.

3 Para simplificar, talvez se possam formular assim algumas das questões levantadas neste livro : qual é a natureza da relação temporal entre os chamados conceitos históricos e as situações ou circunstâncias que ditaram a sua utilização ? Os conceitos e especialmente os conceitos estruturantes, a que Koselleck chama “conceitos históricos fundamentais” (como, por exemplo, o moderno conceito de revolução), permaneceram na semântica histórica para lá do tempo em que foram formulados ? Será que cada conceito fundamental contém vários estratos profundos, ou várias camadas de significados passados unidos por um mesmo “horizonte de expectativa” ? Na resposta a estas questões, Koselleck assinala, no processo de construção da semântica histórica da modernidade, quatro exigências básicas de novo vocabulário, social, político e histórico : a temporalização, a ideologização, a politização e a democratização. Porém, como bem sublinham os organizadores deste livro, nem sempre são sincronamente documentáveis estas quatro condições nos processos analisados na era das revoluções no mundo ibero-americano.

4 A mudança conceptual no campo da história intelectual e das ideias é também valorizada tendo em atenção o contributo de Quentin Skinner que aponta para uma linha mais analítica e contextualista nos usos da linguagem, partindo da fixação lexicográfica consagrada nos dicionários. Ao estudar as técnicas, os motivos e o impacto das mudanças conceptuais valoriza também a utensilagem retórica, aquilo a que chama rethorical redescription, que consiste em usar relatos diferentes para descrever uma mesma situação, recorrendo a certas palavras e a certos conceitos que, pelo seu impacto social, instauram novas interpretações e se impõem como guias de compreensão de outros discursos. A ideia de um léxico cultural de base conceptual ilumina, numa outra perspetiva, o horizonte compreensivo da história intelectual, dado que os usos da linguagem não são desligados da intencionalidade dos autores e dos efeitos que os seus discursos produzem.

5 Neste livro, as questões relacionadas com a classificação e a nomeação preenchem a primeira parte da obra. Os três ensaios, da autoria, respetivamente, de Fátima Sá e Melo, Guilherme Pereira das Neves e Javier Fernández Sebastián, revestem-se de um carácter problematizador e sinalizam bem a abrangência do conceito mutável de identidade que, como explica Fátima Sá e Melo, começa por conotar, no século XVIII, aquilo que é similar, por exclusão do que é diferente, para, cem anos mais tarde, e segundo o Dicionário de Moraes Silva (1881), traduzir uma forma de autorrepresentação. A este respeito, Fátima Sá e Melo salienta que esta definição de identidade começa por ser fixada primeiro num dicionário espanhol de 1855, acabando por ser consagrada pela lexicografia portuguesa em 1881. Logo a seguir, coloca o problema da formulação do conceito de identidade na primeira pessoa e na terceira pessoa.

6 Na ausência de uma perspetiva individualista, fundada no autorreconhecimento do poder e vontade dos indivíduos, valiam as categorias jurídicas do Antigo Regime que fixavam, numa base particularista e corporativa, a visão do todo social (A. M. Hespanha). Nos umbrais das revoluções liberais o nós identitário forjado no mundo ibero-americano não se desfaz de um dia para o outro dos traços orgânicos e particularistas do passado colonial. Estes traços são bem evidentes no estudo de Ana Frega sobre a revolução artiguista de 1810-1820 e no ensaio de Lúcia Bastos Pereira das Neves que analisa “antigas aversões” reconstruídas no decurso do processo de independência entre ser português e ser brasileiro ou ter direito a ser brasileiro, por lei de 1823. A autora sublinha que apesar das persistências sociais e culturais, o discurso político da independência e em defesa da Constituição contribuiu para reconfigurar a sociedade brasileira pós-independência apontando para uma vaga identidade, forjada na variedade de povos e raças que compunham a população brasileira. Estes traços de autorreconhecimento foram objeto da retórica antibrasileira do jornal baiano Espreitador Constitucional, favorável à causa portuguesa, que lamentava, em 1822, que “os netos de Portugal – estabelecidos no Brasil – abandonassem os sobrenomes dos seus antepassados para adotarem orgulhosos os de Caramurus, Tupinambás, Congo, Angola, Assuá e outros” (p. 139).

7 Sobre a questão da adequação das classificações e marcas de linguagens pretéritas às classificações e conceitos do historiador, Javier Fernández Sebastián assina um esclarecedor capítulo, de cunho teórico. Segundo este historiador, o problema das classificações conceptuais reside em saber se é razoável usar retrospetivamente conceitos e categorias atuais que não existiam numa determinada época para classificar e dar sentido às linguagens do passado. Considera que o conceito de identidade forma com outros conceitos uma espécie de galáxia significante. O seu campo semântico convoca distinções jurídicas, étnicas, políticas, socioeconómicas e ideológicas. Assim, e apreciando cada contexto histórico focado neste livro, é razoável o uso do conceito de identidade associado a classes, etnias e territórios. Dois estudos documentam este ponto de vista. O primeiro remete para o enfrentamento da escravatura negra e da emigração branca em Cuba ao longo do século XIX. Como explica Naranjo Orovio, o ideal de cubanidade condensa elementos culturais e étnicos patentes nas linguagens de identidade insular, nas quais o estigma negativo e o medo do negro se combinam com a atração pelo discurso civilizacional dos reformistas criollos (1830-1860).

8 O binómio civilização versus barbárie aparece também associado à forma como são percecionados os afrodescendentes em Buenos Aires até 1853-1860. Segundo Magdalena Candioti, num primeiro momento, as diferenças físicas, morais e culturais atribuídas aos afrodescendentes limitam a sua participação política. Os negros e pardos são definidos como os “outros” do novo corpo soberano e excluídos da cidadania instaurada pela nova república, porque a abstração requerida pelo conceito de cidadania igualitária ou tendencialmente igualitária colidia com as marcas impressas pela natureza e pela cultura herdadas da colonização espanhola. Formalmente, a partir dos anos 20 do século XIX, os textos legais não estabelecem reservas especiais ao sufrágio dos negros libertos, contudo persistem as representações estigmatizadas sobre a negritude, impedindo, na prática, a consagração plena da cidadania política. Este tipo de exclusão viria a ser ideologicamente suportado pelas linguagens cientificistas da segunda metade do século XIX, inspiradas no positivismo e no darwinismo social. A visão evolucionista da sociedade, assente na constituição física, na hierarquia das raças e, consequentemente, na superioridade do homem branco, acabou por complementar, com outros argumentos, o binómio civilização/barbárie constitutivo das identidades em construção na Ibero-América. A mesma visão antinómica caracteriza as distinções gentílicas da nova entidade política e cultural nascida com a revolução Bolivariana, ajudando a forjar o mito da nação mista criolla na Venezuela, conforme salienta Roraima Estaba Amaiz.

9 A uma escala transnacional – e este é também um dado a destacar neste livro –, o desenvolvimento do conceito de raça no mundo latino-americano associa-se ao aparecimento do pan-hispanismo, que, de certo modo, retomou, numa perspetiva expansionista, a autoperceção etnocêntrica e neocolonial dos países de matriz hispânica da América do Sul, conforme detalha David Marcilhacy. Este tópico tem ressonâncias fortes e remete, a cada passo, para a porosidade entre discursos, ideologias e linguagens vulgares ou de uso corrente. Como sublinha Ana Maria Pina, o conceito de raça, entendido em termos biológicos, é tardio. Antes do século XIX andava associado à pecuária e era também usado para identificar linhagens, nações ou povos. No século XIX ganha uma conotação biologista e essencialista, porque se aplica à classificação de tipos humanos, distinguidos pela sua origem, cor de pele e características físicas. Para esta mutação muito contribuíram as teses racistas e poligenistas de Gobineau, bastante divulgadas na época, os tratados de Darwin e também as teses antropométricas de Paul Broca, fundador da Sociedade Antropológica de Paris.

10 O eco destas influências em Portugal é percetível em autores como Teófilo Braga, Júlio Vilhena e outros nomes menos conhecidos. Subtilmente, insinua-se na linguagem artística e na literatura, nomeadamente em Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. E se, antes deles, Almeida Garrett e Alexandre Herculano haviam sinalizado as idiossincrasias da raça portuguesa, foi, porém, Oliveira Martins quem melhor exprimiu a ideia da miscigenação de raças na raiz do ser português. Oliveira Martins estava genuinamente interessado em compreender a originalidade dos povos ibéricos e a originalidade da civilização que se desenvolveu, ao longo de séculos, na Península Ibérica, conforme assinala Sérgio Campos Matos. A História da Civilização Ibérica, título de uma obra de Oliveira Martins, engloba, num “nós transnacional”, portugueses, espanhóis e outros povos de descendência hispânica. Temos assim um conceito totalizante que fixa uma conceção de história, uma visão antropológica territorializada e uma unidade de experiência com sentido político, social, económico, cultural e moral para ele, Oliveira Martins, e para os seus contemporâneos portugueses e espanhóis.

11 O capítulo final de Sérgio Campos Matos convoca a atenção do leitor para a reflexão em torno da “história como instrumento de identidade”, tema também tratado por Guilherme Pereira das Neves. Este autor realça a ideia de que a história funcionou, desde o século XIX, no Brasil, como instância compensadora e conservadora de aspirações sociais e políticas das elites brasileiras, referindo a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o contributo da metanarrativa de Varnhagen. Questiona não só a ideia de história mas também o lugar do historiador, dos curricula liceais e das universidades brasileiras, desde os anos 30 do século XX em diante. Refere que com os governos de Getúlio Vargas se assiste à criação da Universidade de São Paulo, em 1934, e se institucionaliza a formação estadual de professores diplomados em história. Por fim, salienta que os maiores sucessos editoriais no campo da história no Brasil pouco devem à historiografia académica. Entre a ação e o discurso, entre a história que se faz e a linguagem que dela se apropria para uso público parece haver espaço para uma espécie de imaginário alternativo, fantasiado, é certo, envolvendo numa trama insignificante episódios históricos narrados livremente mas não totalmente desprovidos de marcas de identidade.

12 Em síntese, a leitura desta obra é fundamental pelo enfoque transnacional dos seus capítulos e pela perspetiva de história conceptual comparada que preside à reavaliação dos processos e linguagens de identidade e alteridade forjados no espaço ibero-americano, especialmente no decurso do século XIX. Sendo tributário dos caminhos de pesquisa abertos pelo Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, este livro concita também outros estudos, quiçá diferentes, mas igualmente indispensáveis para a compreensão das ideias e dos nexos sociais e culturais que presidiram à constituição e à renovação política dos territórios independentes ibero-americanos.

Ana Cristina Araújo – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected].

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Reference and Representation in Thought and Language – DE PONTE; KORTA (M)

DE PONTE, Maria; KORTA, Kepa. Reference and Representation in Thought and Language. Oxford: Oxford University Press, 2017. 304 pagesp. Manuscrito, Campinas, v.41 n.2 Apr./June 2018.

This book explores many different issues and aspects of the various ways by which we talk, think and represent the world. On the side of language, philosophers and linguists offer new insights on proper names, descriptions, indexicals and anaphora which will interest anyone working on semantics, especially in the direct reference framework. On the side of thought, the book contains chapters on the representation of time, cognitive dynamics, selfhood, and on de se attitudes. Mediating between them is a chapter on salience, a now much discussed notion that concerns both language and thought. In what follows, I present the central elements of each chapter as succinctly as possible, commenting briefly on them when I see fit.

The first two chapters deal with the prototypical referring expressions, i.e., proper names. In “Names, predicates, and the object-property distinction”, Genoveva Martí takes issue with predicativism1. Roughly, predicativists hold that the semantics of names do not differ essentially from that of common nouns like ‘horse’ or ‘refrigerator’. Just like those nouns, names express a property, namely, the property of bearing the name. For Martí, however, predicativism is wrong at a fundamental level: it fails to capture how language expresses the basic metaphysical distinction between objects and properties. The grammatical subject-predicate distinction is not enough. Descriptions in subject position can single out objects all right, but they do so by appealing to their properties. Only truly referring names can abstract objects from their attributes. As she puts it, names are devices for expressing “the separation of the object from its properties – from all of its properties – that is required to distinguish the object, the substance, from its attributes” (p. 16). Predicativism does not give us that.

Martí’s chapter discusses some of the central aspects of direct reference in an engaging manner, and it offers us plenty to discuss despite its short length. One thing needs clarification, though. She appears to conflate the notion of an object (or substance) with that of a substratum (or bare particular). In the passage quoted above, for example, she seems to think that the notion of an object is that of a thing abstracted from all its properties. But this is not, strictly speaking, the notion of an object, but of a substratum. If this is right, then the underlying metaphysics referential semantics would capture is that of substratum-property distinction. But I doubt this is correct. It is prima facie reasonable to be a referentialist and a bundle theorist or a hylomorphist, and both views eschew substrata. But if an object is not something abstracted from all its properties, it is not obvious why predicativists should feel threatened. Her other objection, that predicativism presupposes that names are referential devices (pp. 18-19), however, is much more compelling.

Eros Corazza, in his rich contribution “Proper names: gender, context-sensitivity, and conversational implicatures”, discusses how names can systematically convey more information than merely their semantic content, and how that information is exploited by anaphoric reference. All this without abandoning Millianism, because this information is non-semantic: it is extrinsic or stereotypical, and hence not part of truth-conditional content. For example, the semantic content of ‘Sue’ is just an individual, but the name also imparts the information that its referent is female. That information, however, is cancellable, as illustrated by Johnny Cash’s song A Boy Named “Sue”: Sue’s dubious father does not violate any grammatical or semantic rules by naming him so. Thus, stereotypical information may be allocated in “the category of [Gricean] generalized conversational implicatures” (p. 28). We often exploit stereotypical information in anaphoric reference, as when we say ‘Sue said she isn’t coming today’, even if we are unsure of Sue’s gender. Stereotypical information, then, provides us with default interpretations in anaphoric reference. Corazza also discusses the context-sensitivity of gender-silent names like ‘Chris’ and ‘Kim’, as well as other relevant issues often neglected in philosophy of language. In sum, the chapter is an example of how rich and resourceful – and not the barren landscape oftentimes depicted by its opponents – Millianism can be.

The next three chapters focus on indexicals. As the editors say, “they offer key insights on self-knowledge, action, consciousness, subjectivity, and so on. Understanding them is essential for understanding both reference and representation” (p. 5). In “Indexicals and undexicals”, John Perry offers a new account of good old indexicals like ‘today’ and ‘tomorrow’. In short, Perry analyzes what he calls undexical uses of these expressions. An undexical use occurs when the input for the arguments of the relevant expression does not come from the Kaplanian context (the 4-tuple of agent, time, location and world), but rather from a different source. Consider:

  • (1) Whenever we are in Ireland, the local bars miss us.
  • (2) Wherever one is in Ireland, the local bars are friendly.
  • (3) I’m going to be in Cushendale next week. The local bar is very friendly.

In (1), the input location for ‘local’ comes from the context of the utterance, and so ‘local’ functions indexically. In (2), the input is provided by the quantifier ‘wherever’, and so ‘local’ functions like a bound variable. In (3), the antecedent sentence provides the relvant location for ‘local’, and so it is used anaphorically. Thus, ‘local’ is used undexically in (2) and (3). Perry argues that the same phenomenon occurs with other indexicals like ‘past’ and ‘tomorrow’: when their inputs are supplied by the context, they function indexically; when not, they function undexically, as in ‘Never put off until tomorrow what you can do today’ (this example is discussed at length). Also, he points out that expressions have a default indexical use when they are normally used indexically rather than undexically (e.g. ‘today’). In the final part of the chapter, Perry discusses the cognitive advantages of undexical uses and how they are based on default indexical uses. He also introduces the concepts of roles and of role linking, and claims that intelligent life is based on them (p. 53). Unfortunately, his discussion is rather brief for too deep an issue; it would definitely benefit from a longer treatment elsewhere.

Kent Bach’s “Reference, intention, and context: Do demonstratives really refer?” defends the unorthodox view that demonstratives (e.g. ‘this’ and ‘that’) do not have semantic reference, and hence are not genuine context-sensitive expressions. For Bach, there is a fundamental difference between demonstratives and automatic indexicals like ‘I’ or ‘today’. Automatic indexicals are genuinely context-sensitive and semantically refer because their meanings suffice to determine reference as a function of context. They refer on their own, so to speak. Demonstratives do not. Their meanings are insufficient to determine reference; at most, they restrict what can be literally referred to. For instance, the meaning of ‘that dog’ restricts reference to dogs, but it cannot determine a particular dog by itself. In Bach’s terms, we refer by an expression when the expression itself is able to refer; we refer with an expression when we use it merely as an aid to reference. Because demonstratives do not have semantic reference, we only refer with them, not by them. The leading alternative to this picture is semantic intentionalism. Basically, semantic intentionalism holds that the meanings of demonstratives are sensitive to speaker intentions, and that these intentions make demonstratives semantically refer2. However, Bach argues, speakers only intend to refer with a demonstrative; they do not also intend for the object to be the semantic value of the demonstrative. The first intention has no semantic relevance, and thus cannot help intentionalism; the latter would make it work, but it is simply not part of the mechanics of demonstrative reference.

Bach’s thesis has serious implications for standard truth-conditional semantics, for demonstratives would not make any determinate contribution to semantic content. He suggests that the same problem plagues “other putative context-sensitive expressions and constructions, such as gradable adjectives, epistemic modals, predicates of personal taste, relational nouns, genitive phrases, noun-noun pairs, and quantifier phrases” (p. 59). His argument, then, has far-reaching consequences for the debate on contextualism. I wonder, however, whether it affects the so-called Bare-Bones theory of demonstratives3. Basically, it holds that the context provides objects, not intentions, as inputs for demonstratives. Bare-Bones semantics, then, is intention-free, both in context and in character. Hence, it is not obvious that Bach’s argument applies to it as well.

In “Semantic complexity”, Maite Ezcurdia offers an insightful discussion of what distinguishes referring from quantificational noun phrases. The standard distinguishing criterion is that referring expressions are rigid by their nature, whereas quantificational expressions are not. Stephen Neale adds another criterion: referring expressions must also be semantically unstructured. This is what Ezcurdia calls the “noun phrase thesis” (NPT). For NPT, noun phrases are either semantically unstructured rigidly referring expressions or semantically structured restricted quantifiers. But what about complex demonstratives (e.g. ‘that man in the corner’)? They seem to refer, but their form strongly resembles that of descriptions. Are they referring or quantificational? For Neale, they are referring. Yet, if NPT is true, they must be semantically unstructured, and hence the nominals contained in them are semantically otiose. For Ezcurdia, however, this is implausible. She argues that we have no good reasons to hold NPT, and that complex demonstratives can be both referring and semantically complex. She claims that we must distinguish two kinds of semantic complexity: one, exhibited by quantificational expressions, shows up in the truth-conditions; the other, exhibited by complex demonstratives, stays only at the level of linguistic meaning. These two kinds of complexity are related to the two semantic roles nominals can play in noun phrases: in quantificational phrases, their role is predicative, i.e., they restrict the range of the quantifier; in referring phrases, their role is individuative, i.e., they determine the extension of an expression for further predication. Hence, the nominals contained in complex demonstratives are not semantically otiose; they just have a different semantic function.

Ezcurdia’s chapter is rich, well-argued and generous to Neale’s thesis. The only thing I want to point out is that the difference between predicative and individuate roles for nominals could have been spelled out in a bit more detail. Ezcurdia claims that nominals in complex demonstratives are not predicative because “they are not saying something about an object that an expression […] has previously selected. Rather they aid in the selection of the object itself […]” (p. 81). But the nominals in a description in subject position seem to be doing this as well. In other terms, they too select an object so that the grammatical predicate can ‘say something about’ it; they just do it by a different semantic mechanism. In a sense, then, they are also individuative. Thus, the notion of ‘not saying something about a previously selected object’ seems too general to distinguish the individuative role from the predicative role.

In the chapter “Donnellan’s misdescriptions and loose talk” Carlo Penco argues against “the standard view” of definite misdescriptions. According to this view, we cannot state something true in a referential use of a definite description if the description fails to fit; whatever truth is conveyed is conveyed by implicature. Penco, however, thinks this is mistaken: we can indeed state a truth even if nothing fits the description. He calls this thesis “Donnellan’s intentional strong claim” (DISC), and offers a defense of it. Donnellan’s insight, according to Penco, is that referential uses involve a type of social intention, an “intention to use a descriptive content fit for the context of utterance” (p. 112). This intention cannot be divorced from what speakers should expect their audience to understand in the relevant context. And, crucially, this intention is part of what is said, of what is stated, and not merely of what is implicated. Hence, Penco claims, we can already find in Donnellan a theory of loose talk, as discussed by Sperber and Wilson (1986), and a rejection of the Gricean “two-stage” analysis according to which we state a falsity and implicate a truth. As Penco notes, this reading makes Donnellan a precursor of contextualist ideas. Based on Donnellan’s isights, Penco argues that “what is said by a referential description depends on the grade of looseness required by the context” (p. 119), and that “looseness is motivated by the pursuit of relevance” (p. 115). All in all, it does not matter whether Penco’s reading of Donnellan is accurate or not; his proposal is original and interesting in its own right and deserves further discussion.

The linguist Yan Huang is the author of the next contribution, entitled “Pre-semantic pragmatic enrichment: The case of long distance reflexivization”. Consider this sentence:

  • (4) *John1said that Bill loved himself1

In English, (4) is ungrammatical: the pronoun cannot be bound by ‘John’. However, in languages such as Japanese, Chinese and modern Greek, for example, this long-distance binding is allowed. That is, reflexives can be systematically bound outside their local syntactic domains. Marshalling evidence from a variety of languages, Huang explains the phenomenon of long-distance reflexivization with his version of the neo-Gricean pragmatic theory of anaphora. In broad strokes, he argues that long-distance binding is “pragmatically enriched for reference pre-semantically” (p. 126), and thus helps determining what is said.

In “The interplay of recipient design and salience in shaping speaker’s utterance”, Istvan Kecskes employs his sociocognitive approach (SCA) to account for the mechanisms of speaker’s utterance production. Very roughly, SCA aims to integrate and explain the relation between the individual traits (prior experience; salience; egocentrism; attention) and the social traits (actual situational experience; relevance; cooperation; intention) that are brought to bear in communication exchanges. More precisely, Kecskes wants to show how the interaction between subconscious salience and recipient design – the model a speaker builds of the hearer’s relevant knowledge in the context – shape speakers’ production, and why “speaker-hearer rationality should include not only cooperation but egocentrism as well” (p. 161). The concept of salience has recently drawn a lot of attention in various debates – including in the debate about indexicals and demonstratives -, and Kecskes makes a valuable contribution to our understanding of it.

In the following chapter, “New thoughts about old facts”, María de Ponte and Kepa Korta point out what they take to be some mistakes in Arthur Prior’s argument against B-theories of time (i.e. theories holding that pastness, presentness and futurity are not objective features of reality). The gist of Prior’s argument – and of many others like it – is that B-theories offer “no grounds for tensed thoughts and tensed emotions” (p. 164). Prior asks us to consider which of the following sentences we would use after a root canal operation:

  • (5) Thank goodness the root canal is over [now].
  • (6) Thank goodness the date of the conclusion of the root canal is Friday, June, 1954.
  • (7) Thank goodness the conclusion of the root canal is contemporaneous with this utterance.

For him, only (5) is adequate. Why? Because only the proposition expressed by (5) involves the property of being over (an A-property). Thus, to make sense of why we say (5), and not (6) or (7), we must count A-properties as objective features of reality. In short, Ponte and Korta read Prior’s argument as being committed to three theses:

  • i. Utterances (5)-(7) express different propositions.
  • ii.Utterances (5)-(7) are associated with different thoughts.
  • iii.The proposition related to utterance (5) and its associated thought require the existence of an A-property of events (p.170).

Ponte and Korta partly agree with (ii), but reject (i) and (iii). First, being referentialists, they claim that sentences (5)-(7) express the same proposition. Nevertheless, the way in which (5)-(7) express this proposition is different. As they put it, these sentences “are associated with different motivating thoughts (some of them A-thoughts, others B-thoughts) and present different cognitive routes for their respective audiences” (p. 172). They have different cognitive significance, but the same referential content. This is why they can express different thoughts. Second, Ponte and Korta argue that the move from the fact that we have tensed thoughts and emotions to the reality of tensed properties is unjustified and superfluous. In sum, their chapter is an attempt to clarify Prior’s argument and undermine its supposed ontological import by showing how the puzzling phenomenon can be explained by a more sophisticated epistemic and semantic theory. In fact, it is hard to see how linguistic and epistemic considerations can reveal something about the nature of time. Ponte and Korta’s thorough effort to untangle these issues is a welcome antidote to this sort of idea.

In “Cognitive dynamics”, François Recanati develops and clarifies several aspects of his influential theory of mental files. In broad strokes, Recanati’s view is that mental files can play some of the roles of Fregean senses: they determine reference, they explain cognitive significance, and they enable coreference de jure. They determine reference relationally, i.e., in virtue of standing in some relation to the file’s reference, and not satisfactionally. This allows them to contain misinformation and still refer to the same thing. The different cognitive significance of ‘Hesperus is Hesperus’ and ‘Hesperus is Phosphorus’ is explained by the deployment of different files: in the first case, the subject deploys the same file twice, while in the second two distinct but coreferring files are deployed. Finally, coreference de jure is enabled when the subject deploys the same file in a chain of reasoning: it explains why the inference from ‘Hesperus is bright’ and ‘Hesperus is a star’ to ‘Hesperus is a bright star’ is warranted and rational. Onofri (2015) and Ninan (2015), however, object that mental files cannot explain cognitive significance and enable coreference the jure simultaneously. Recanati stands by his position and thoroughly addresses their worries.

The last two chapters tackle the issue of self-representation. In “The property theory and de se attitudes”, Wayne Davis argues against the so-called property theory of de se thoughts, originally proposed by Lewis and Chisholm, and recently advocated by Neil Feit4. The problem this theory attempts to solve is the following. An amnesiac Lingens can have the belief that he himself is lost while not believing that Lingens is lost. We would express this unfortunate situation with these sentences:

  • (8) Lingens believes that he himself is lost
  • (9) Lingens believes that Lingens is lost

The problem is that, if attitudes are taken to be dyadic relations between subjects and propositions, and propositions are taken to be singular propositions or sets of possible worlds, then both sentences express the same relation to the same proposition. The special character of the de se attitude is missing. To solve this, the property theory denies that believing is a propositional attitude; rather, believing is seen as self-ascribing a property. Davis, however, thinks this move fails to yield a satisfactory account of attitudes, and offers his own account. First, he puts forth ten objections against the property theory. Second, he argues that we should take attitudes to be relations to conceptual propositions, i.e., entities made up of concepts, and not to objectual propositions, i.e., singular propositions or sets of possible worlds. In addition, he claims that part of what made the problem of de se attitudes “seem insoluble […] was the erroneous Fregean assumption that ‘conceptual’ elements must be descriptive” (p; 214). For Davis, the missing element in the explanation is a non-descriptive indexical self-concept. Thus, de se attitudes differ from other attitudes precisely because they are attitudes towards a conceptual proposition having an indexical self-concept as constituent.

In the last chapter, entitled “Selfhood as self-representation”, Kenneth Taylor proposes a middle ground between Cartesian and eliminativist/fictionalist accounts of the self. Contrary to Cartesians, he rejects the existence of a metaphysical sui generis entity that is supposed to be the self (something akin to a thinking substance); contrary to eliminativists/fictionalists, he believes that “there really and truly are beings organized as selves” (p. 225-6). For Taylor, selves are just beings psychically arranged in such a way that they bear the property of selfhood. And bearing selfhood consists in having the very special capacity to have self-representations. Taylor’s central idea is that self-representations are distinct from other representations not because of what they represent, but because of how they represent it. Thus, for Taylor, to bear selfhood is not to be in possession of some mysterious inner entity or to have a “mental CEO” that constitutes the content of self-representations. It is rather to have “the capacity to deploy […] a de se device of explicit coreference” (p. 224, fn. 1). Taylor frames his position in a broader context, discussing Locke’s, Hume’s and Kant’s views on the matter.

The editors of Reference and Representation in Thought and Language can only be commended for taking the pain to organize this volume. Its major merit is, to me, the great diversity of the themes discussed in the chapters. The selection admirably shows how issues surrounding reference go well beyond traditional topics in semantics, and how they intersect (or fail to intersect) with deep philosophical problems in metaphysics and in the philosophy of mind. And when it comes to traditional problems in semantics, the chapters offer novel solutions and often discuss underexplored aspects of our referential devices in an engaging and sophisticated manner. Anyone working on how language and thought relate to the world will surely enjoy this book.

Referências

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Notas

1 Fara (2015) is the most worked out defense of predicativism to date.

2Cf. Stokke (2010)King (2014).

3Cf. Caplan (2002) and Predelli (2012).

4E.g.: Feit (2008).

5Article info CDD: 401

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Máquinas/dispositivos/ agenciamientos. Arte/afecto y representación | José Luis Barrios

Ante este libro del Dr. José Luis Barrios, resulta problemático acudir a la operación acostumbrada cuando uno hace las veces de reseñista. Aludo, pues, al bosquejo realizado, con más o menos fortuna, en el que uno intenta pergeñar un marco de referencia. Y resulta problemático porque en el libro que nos ocupa el contenido está poniendo en tela de juicio este angosto y manido continente: se apela a una transgresión anatemática de la noción de marco en uno de sus emplazamientos críticos. En concreto, aquel que pone a dialogar la obra de Melanie Smith con la de Kazimir Malevich (Cuadrado rojo, imposible rosa): transgresión que resulta revulsivamente estético-política. En este sentido, quiero que se entienda este, de raíz torpe, conato de acuñar un marco de referencia en la dirección rizomática que plantea el propio libro (esto es, contra sí misma): un marco que es contigüidad copular en lugar de claustro, abertura que –en virtud de la vocación que le es inherente–, desata de modo recursivo las potencias suturantes que, contrarias a su naturaleza desplegada, pudiere albergar hacia noveles flujos semánticos. Leia Mais

Reel bad arabs: how Hollywood vilifies a people | Jack G. Shaheen

Questões políticas geralmente influenciam o cinema, logo, desde o início do século XX, embates desta natureza são refletidos por esta indústria. Atualmente, acompanhamos a luta de alguns grupos por representatividade neste meio, assim, homossexuais, mulheres e negros, por exemplo, tem lutado por mais espaço e por uma representação digna em Hollywood. Dentre tais grupos podemos citar os árabes, e é justamente sobre a representação desta etnia que trata o livro intitulado Reel Bad Arabs: how Hollywood vilifies a people, de Jack G. Shaheen. Leia Mais

Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas – GHINS (FU)

GHINS, M. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2013. Resenha de: CID2, Rodrigo Reis Lastra. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.233-243, mai./ago., 2016´.

O livro de Michel Ghins (2013), Uma introdução à metafísica da natureza, é uma interessante tentativa de produção de uma metafísica das ciências. Esse é um projeto relevante, pois, se as nossas teorias científicas têm alguma relação com o mundo, gostaríamos de saber qual é. Uma metafísica das ciências nos diria o que fundamentalmente há no mundo e como isso se relaciona com os objetos teóricos das ciências. Este livro pretende justamente isso a partir de quatro capítulos. No primeiro, o autor introduz o problema da objetividade das nossas teorias científicas, vistas como modelos e leis para explicar fenômenos. No segundo capítulo, explora o debate entre realismo e antirrealismo em filosofia das ciências, defendendo que o mundo pode fazer as nossas teorias aproximadamente verdadeiras. No terceiro, mostra duas das principais concepções em metafísica das leis da natureza, as quais considera inadequadas para fundamentar a regularidade e a contrafactualidade, expondo, posteriormente, sua própria concepção das leis como sustentadas em propriedades disposicionais. Finalmente, no quarto capítulo, apresenta o debate sobre quais são as propriedades fundamentais, as categóricas ou as disposicionais, defendendo um realismo científico moderado com uma metafísica mista, tendo propriedades irredutíveis de ambos os tipos, sendo as leis científicas fundadas nos poderes causais existentes no nosso mundo, o que legitimaria que sejam chamadas de leis da natureza. Embora não tenhamos encontrado problemas em sua concepção de teoria científica, temos algumas críticas à sua adoção de uma metafísica dos poderes.

Ghins começa dizendo que a motivação principal da pesquisa científica é explicar e prever fenômenos. Para isso, os cientistas precisam ter uma atitude objetificante (chamada de “abstração primária”), na qual tomam o objeto do estudo separado de seu contexto holístico e tentam realizar observações independentes de suas subjetividades individuais. Com essa finalidade, eles abstraem algumas propriedades dos fenômenos dignas de interesse (o que se chama de “abstração secundária”) – apreensíveis por outras pessoas nas mesmas condições – e as organizam por meio de relações, formando um sistema. De modo mais específico, um modelo teórico é uma estrutura que satisfaz certas proposições, e ele é construído da seguinte forma, segundo Ghins: (i) estrutura perceptiva – primeiro selecionam-se as propriedades relevantes do fenômeno; (ii) modelo de dados – depois, são feitas medições particulares dessas propriedades com os instrumentos apropriados e esses dados são coletados, sendo os modelos de dados homomórficos à estrutura perceptiva; (iii) (sub)estruturas empíricas (também teóricas) – as informações obtidas nos modelos de dados são generalizadas e relacionadas numa subestrutura teórica de um modelo, de modo a permitir a previsibilidade; (iv) modelo teórico – relaciona as subestruturas empíricas com condições específicas (ceteris paribus); (v) teoria – uma classe de vários modelos que visam a dar conta de todo um domínio abrangente de tipos de objetos. “Por exemplo, a estrutura das medidas dos períodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecânica clássica de partículas” (Ghins, 2013, p.22). Vejamos as Figuras 1 e 2 apresentadas por Ghins.

Para ser científica, além de empiricamente adequada, uma teoria precisa respeitar as condições de universalidade, simplicidade e poder explicativo (Ghins, 2013, p.24). O que será privilegiado depende de critérios pragmáticos, dados os objetivos da teoria, mas ainda assim uma teoria será mais empiricamente adequada quanto mais suas previsões forem precisas em relação às mensurações3. Uma teoria é empiricamente adequada “quando, para qualquer modelo de dados relevante, ela contém subestruturas empíricas homomórficas adequadas” (Ghins, 2013, p.22); é por isso que ela permite a previsibilidade. E ela não é empiricamente adequada “se as predições da teoria não forem conformes às observações nem for possível construir, com base na teoria, uma estrutura empírica homomórfica aos novos resultados” (Ghins, 2013, p.23).

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Figura 1. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas. Figure 1. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.23).

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Figura 2. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas.

Figure 2. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.27).

Sobre a universalidade, para Ghins (2013, p.25), quanto mais geral a teoria, mais preferível. Por exemplo,

a mecânica de Newton unifica a mecânica celeste de Kepler e a mecânica terrestre de Galileu […] A teoria unificadora, além de aumentar em muitas vezes a exatidão das predições, permite também predizer novas observações e, com isso, aumentar o poder preditivo, ou seja, em última instância, construir teorias empiricamente adequadas a um maior número de observações.

Com relação à simplicidade, ao poder explicativo e sua relação, eles geralmente são pensados como opostos, pois, quanto mais poder explicativo uma teoria possui, mais complexa ela se torna; no entanto, a complexidade dificulta o trabalho teórico, de modo que mais simplicidade seria preferível. Todavia, simplicidade demais – como uma teoria que apenas descreve os fatos do mundo – é inadequado, pois nada seria explicado.

Mesmo tendo a relação entre simplicidade e poder explicativo em vista, esta última noção não é facilmente caracterizável, dadas as distinções nas concepções sobre o que é uma teoria. “Hempel e Oppenheim identificam justamente o poder explicativo de uma teoria à sua capacidade de efetuar predições a partir de leis gerais” (Ghins, 2013, p.25); contudo, eles possuem uma concepção sintática de teoria, isto é, pensam uma teoria como um conjunto de proposições, dentre as quais contam as leis como proposições mais gerais. Há também uma outra visão, chamada de “concepção semântica” das teorias, que subestima o papel das leis e toma as teorias como classes de modelos. A alternativa desenvolvida por Ghins, chamada por ele de “teoria sintética”, é híbrida, no sentido de que uma teoria científica é vista como “um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins, 2013, p.26)4. Em sua abordagem, uma teoria só é explicativa quando descreve mecanismos causais. Mas o que é um mecanismo causal?

Para Galileu e Descartes, um mecanismo é um conjunto de partes dotadas de formas geométricas cujas posições e velocidades estão relacionadas entre si. […] Para a ciência matematizada, um mecanismo nada mais é que um conjunto de grandezas – posições, velocidades, acelerações, formas geométricas, massas etc. – que mantêm entre si relações matemáticas. […] De modo bastante amplo, um mecanismo é um modelo, uma estrutura de elementos quantificáveis organizados por relações matemáticas, isto é, leis – e, agora acrescento, leis causais (Ghins, 2013, p.30).

O que são leis causais e o que são leis não causais? Um dos exemplos de lei trabalhado no livro de Ghins é a lei geral dos gases (PV=KT), fundamentada na teoria cinética dos gases. Ela é considerada uma lei de coexistência, por não ser temporal; portanto, ela não seria uma lei causal. Segundo Ghins, uma lei causal deve ser uma equação diferencial com uma derivada em relação ao tempo, já que

um mecanismo explicativo no sentido geral é um sistema cujo domínio, isto é, o conjunto das grandezas que são seus elementos, satisfaz leis de natureza causal. […] [Um] mecanismo não é mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evolução dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo. (Ghins, 2013, p.31).

Mesmo assim, a teoria cinética dos gases é explicativa, porque, ainda que a lei dos gases ideais não seja causal e, consequentemente, não descreva mecanismo algum, a teoria cinética explica como a variação nômica indicada na fórmula ocorre, a saber:

[…] a pressão resulta dos choques das moléculas com a parede do recipiente e a temperatura é proporcional à energia cinética média das moléculas do gás. […] A explicação da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis5 fundamentais e causais que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extensão (Ghins, 2013, p.28).

Segundo Ghins, “a lei de Boyle-Mariotte não descreve um processo causal. Ela descreve uma situação num estado de equilíbrio. Para obter uma explicação, é necessário se referir às leis causais que descrevem os processos microscópicos” (2013, p.44). Por outro lado, as leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzman, sobre a qual a explicação da lei de Boyle-Mariotte se apoia, são leis causais, já que são proposições que descrevem processos causais possíveis. As leis dessa teoria cinética são leis causais, porque as leis da mecânica são temporais, porque elas permitem explicar as variações temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao reportá-las a causas definidas e porque “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos. As variações de velocidade – as acelerações – são efeitos cujas causas são as forças pelas quais são produzidas as acelerações” (Ghins, 2013, p.43).

Mas em que medida pode-se aceitar que os modelos de nossas teorias representam corretamente a realidade? Em que medida pode-se acreditar que as leis científicas são verdadeiras? Essas são tanto questões ontológicas sobre a realidade dos objetos teóricos quanto questões epistemológicas sobre os limites do conhecimento científico. Construímos estruturas teóricas para dar conta de fenômenos, que, na realidade, são holisticamente apreendidos, e não isoladamente como o objeto científico. A dúvida, tal como expôs Bas van Fraassen, segundo Ghins, é “como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemática, pode representar uma coisa que não é abstrata, uma coisa na natureza?” (2013, p.34). Essa objeção é conhecida pelo nome de “objeção da perda da realidade”.

A resposta de Ghins é dizer que ela se funda na ideia equivocada de que o cientista representa a realidade em seu modelo de dados e, consequentemente, nas subestruturas teóricas, nos modelos e nas teorias. “Quando um cientista afirma que o volume de um gás é igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas entidades fenomênicas. Asserções desse tipo não são representações” (Ghins, 2013, p. 35), mas são antes tentativas de descrição de certos aspectos da realidade. Para haver qualquer representação possível de uma entidade, tem de haver uma descrição anterior de suas propriedades. Tomar essas descrições de propriedades como se fossem representações implica criar uma distinção difícil de ser sustentada entre a contemplação do fenômeno do ponto de vista de lugar nenhum e as próprias construções representacionais. Toda contemplação de fenômeno é a partir de um ponto de vista, por mais que o ponto de vista seja intersubjetivo. As estruturas perceptivas, embora abstraídas dos objetos, não são estruturas abstratas, mas antes concretas, já que são apreendidas de situações particulares. Por exemplo, observamos uma bola de bilhar e vemos que ela tem a propriedade volume; não estamos representando a propriedade presente na bola como volume, mas estamos abstraindo uma propriedade da bola, a qual chamamos de “volume”, e depois medindo sua quantidade de acordo com uma medida convencionada. O que promove a objetividade, nessa concepção, é o acordo intersubjetivo com relação às estruturas perceptivas e aos modelos de dados (Ghins, 2013, p.38). E a posição metafísica defendida sobre a verdade, em Ghins, é a correspondentista (uma proposição é feita verdadeira – ou aproximadamente verdadeira – por algo do mundo), ainda que se assuma que nenhuma teoria da verdade como correspondência atualmente é satisfatória.

Poder-se-ia contra-argumentar a Ghins dizendo que não são apenas as propriedades abstraídas que têm de ser remetidas ao mundo, mas também as operações matemáticas. Sabemos que “volume” diz respeito a uma certa propriedade observável de um objeto, mas ao que diz respeito o termo “+”? Certamente, não significa “juntar”, pois podemos somar sem juntar coisas. Pode significar “reunir num conjunto”; mas conjunto é também um objeto matemático, que ainda não está se relacionando com a realidade. A objeção da perda da realidade, quando entra no domínio dos operadores matemáticos, leva a difíceis problemas… Não temos uma solução satisfatória para eles, mas cremos que Ghins também não. Talvez ninguém tenha. Se for o caso que ninguém tenha, então a melhor solução é deixarmos o nosso juízo em suspenso enquanto não obtivermos uma resposta satisfatória e continuarmos utilizando as operações matemáticas até lá.

Uma outra objeção que poderia ser feita, expressa pelo próprio Ghins, é que, embora não haja representação na estrutura perceptiva, nem no modelo de dados, nem na subestrutura teórica, existe representação quando começamos a criar modelos teóricos e teorias nas quais falamos sobre entidades inobserváveis.

No caso dos gases, é fácil verificar, por observações imediatas, que aquilo que está contido dentro de um recipiente tem de fato um volume, uma pressão e também o que podemos chamar de grau de calor. […] Por outro lado, a identificação de um gás com um conjunto de partículas que se movem e são dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade é muito mais problemática. […] As partículas constitutivas de um gás não são visíveis e suas velocidades médias não são nem observáveis nem individualmente mensuráveis (Ghins, 2013, p.40-41).

Veja que a objeção aqui não é contra as observações imediatas, mas antes contra a explicação com inobserváveis que a teoria fornece para o fenômeno.

A resposta do autor é que, na medida em que a teoria tem adequação empírica, além das condições já descritas, isso é um forte indício, embora não uma razão suficiente, em favor de sua interpretação realista moderada, na qual as leis científicas podem ser aproximadamente verdadeiras. E não é razão suficiente por causa de uma objeção conhecida pelo nome de “argumento da subdeterminação da teoria” pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados: “[…] visto que, em princípio, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, não temos nenhuma razão para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas” (Ghins, 2013, p.41).

A resposta de Ghins (2013, p.41) é dizer que não basta indicar que pode haver teorias alternativas, mas deve-se fornecer alguma ou mostrar que uma já está sendo construída. Ele aceita que as teorias são realmente subdeterminadas pelos dados e, por isso, acaba aceitando que apenas a adequação empírica não garante a verdade de uma teoria. Ainda que se coloque a capacidade explicativa na história, haverá as dificuldades de dizer o que é uma boa explicação e como o fato de algo ser uma boa explicação, que é algo patentemente epistêmico, se relaciona com a verdade, que é algo metafísico. Pode-se dizer que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas e inobserváveis. E isso pode ser feito, sem muita dificuldade, segundo Ghins, ao aceitarmos a verdade das leis causais e uma noção de explicação baseada em mecanismos descritos por leis causais. O que Ghins defende é que (2013, p.45)

Nossas crenças na existência de objetos inobserváveis, tais como as moléculas, as partículas elementares, o campo gravitacional, os vírus, os genes, as placas tectônicas etc., encontram sua justificação a partir de considerações análogas àquelas que justificam nossas crenças na existência de entidades observáveis […] Da mesma forma, nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades de carga, spin e massa por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes.

A possibilidade do erro existe nessa concepção, e ela é remetida à própria possibilidade do erro no que diz respeito a entidades observáveis pelos nossos sentidos. Porém nós conseguimos diminuí-la ao repetirmos as observações, utilizando também outros sentidos além da visão e verificando se nossas observações são concordantes – o que, no caso do objeto científico, pode ser pensado como os instrumentos de mensuração. Por exemplo, no caso das moléculas (Ghins, 2013, p.44),

temos que dispor de métodos de mensuração que permitam determinar o valor da velocidade média, da massa e do número de moléculas. Além disso, é preciso que esses processos de medida da velocidade média e do número de moléculas sejam independentes dos métodos de mensuração da temperatura e da pressão.

Isso já ocorre, dado que podemos medir o mol de um gás por métodos independentes que fornecem resultados que convergem com um alto grau de precisão.

Outro argumento avaliado pelo autor é o conhecido “argumento do milagre” (ou no-miracle argument). Este nos diz que o realismo é a melhor explicação do sucesso empírico (previsões de mensurações bem-sucedidas) de nossas teorias, pois, se nossas teorias não são ao menos aproximadamente verdadeiras, então seu sucesso empírico é um milagre. Assim, ou aceitamos que as propriedades inobserváveis postuladas por uma teoria bem-sucedida seriam de entidades reais cuja existência é independente de nossos desejos, de nossas medidas e da nossa linguagem, ou aceitamos o sucesso, por milagre, da teoria.

Segundo Ghins, pode-se objetar a esse argumento que ele não é um argumento decisivo a favor do realismo e tem um caráter científico contestável, já que não tem a forma da explicação científica, baseada em leis causais, para dar conta da relação entre a verdade e o sucesso empírico. A solução de Ghins (2013, p.47) é dizer que a concordância entre as mensurações é mais exigente que o sucesso empírico, de modo que pode fundamentar melhor a verdade – ao menos a verdade aproximada – de uma teoria. Além disso, ele não pretende “explicar – e, certamente, não de modo científico – a concordância entre as mensurações de uma propriedade pela existência de uma entidade que a possui” (p. 47). O objetivo de Ghins, com o argumento do milagre, não é contrastar uma pseudoexplicação milagrosa com uma explicação de fato, mas fazer uma analogia entre razões para crer na existência de, por exemplo, um abacaxi, com diversas propriedades observáveis, e de um objeto, como um elétron, que só tem propriedades inobserváveis.

É possível, no entanto, objetar ainda que, na medida em que não conhecemos o mecanismo causal operante nos nossos instrumentos de mensuração, não podemos conhecer os mecanismos causais que viemos a conhecer a partir dos instrumentos de mensuração. Entretanto, isso não leva em consideração que, na experiência sensível ordinária, os mecanismos causais dos nossos sentidos (nossos instrumentos sensíveis de medição) não nos são totalmente conhecidos. Na experiência científica, diz-nos Ghins, os mecanismos causais dos instrumentos científicos de medição são bem conhecidos e descritos por meio de leis causais fundamentais. Ainda que isso não seja bem o caso e que não conheçamos perfeitamente o mecanismo causal dos nossos instrumentos de medida, conhecê-lo perfeitamente não é necessário para coletarmos dados com precisão; por exemplo, Galileu conseguiu dados precisos sobre os corpos celestes, mesmo sem conhecer as leis óticas envolvidas no telescópio.

O objetivo de Ghins até aqui é defender uma versão moderada – dado permitir a falsificação de teorias – de realismo cientifico, a qual ele pensa dar conta das objeções da perda da realidade e da subdeterminação da teoria, “argumentando [sobre entidades observáveis] que o êxito de nossas construções representacionais sustenta-se na verdade de proposições predicativas acerca dessas entidades” (2013, p.49-50). E sobre as entidades inobserváveis, Ghins crê que a razão pela qual as teorias têm poder explicativo permite-lhe falar verdadeiramente (aproximadamente) sobre elas. No entanto, o poder explicativo é uma exigência epistêmica, que o mundo não precisa cumprir, de modo que aquele não forneceria razões suficientes para crermos nas entidades inobserváveis das teorias. Por isso, Ghins critica o argumento do milagre como uma razão para crermos nas entidades inobserváveis postuladas pelas teorias. Embora esse argumento favoreça sua analogia entre razões para crer na existência de entidades observáveis e de não observáveis, ele não é aceito como conclusivo pelo autor. Sua razão principal a favor do realismo dessas entidades teóricas é que “estabelecemos nossas crenças na existência de entidades observáveis por observações repetidas e variadas, [e] defendemos a existência de entidades inobserváveis por meio de métodos de mensuração que sejam diversos e que proporcionem resultados concordantes” (Ghins, 2013, p.50). Seja qual for o caso, Ghins nos diz que, para crer na existência de certas entidades, seja um abacaxi ou um elétron, realizamos observações rigorosas e concordantes. Em nossas teorias científicas, segundo Ghins, expressamos, além de certas propriedades de certas entidades, também leis gerais que são satisfeitas pelos modelos teóricos de nossas teorias. Mas há uma grande divergência filosófica sobre a existência dessas leis científicas como leis da natureza. Por exemplo, segundo Ghins, Bas van Fraassen e Ronald Giere, seguidores da abordagem semântica das teorias científicas, defendem que o conceito de lei, além de ser problemático, é simplesmente inútil para compreender a natureza das teorias e da prática científica, que se utilizaria apenas de modelos. Outros filósofos, como Hempel e Oppenheim, defendem uma concepção sintática, na qual uma teoria é apenas um conjunto de proposições, das quais algumas são leis. Ghins discorda de ambos, por pensar que eles empobrecem as teorias científicas, já que não as representam adequadamente; por isso, ele constrói uma teoria híbrida, chamada por ele de “teoria sintética”, que aceita que as teorias são constituídas de modelos (teoria semântica) com leis (teoria sintática) satisfatíveis por tais modelos.

Mas o que seriam, na realidade, essas leis? Para responder essa pergunta, o caminho de Ghins é o seguinte: (i) avaliar a teoria regularista das leis; (ii) avaliar o necessitarismo contingencialista das leis; (iii) defender sua teoria necessitarista das leis metafisicamente necessárias como (Ghins, 2013, p.51, sic.)

proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas, [e (…)] consideradas como sendo aproximada e parcialmente verdadeiras a propósito de sistemas reais. Uma teoria científica é composta de um conjunto de modelos e de proposições [d]entre as quais algumas alcançam o estatuto de leis.

Uma lei científica poderia ser considerada também uma lei da natureza, “se for possível elaborar argumentos em favor da existência de entidades metafísicas, tais como, por exemplo, disposições naturais ou poderes causais, que a tornassem aproximadamente verdadeira” (Ghins, 2013, p.52), e Ghins tenta fazer isso, mostrando que a regularidade e a contrafactualidade das leis se fundamentam nas propriedades disposicionais.

O regularismo (pelo menos na sua forma ingênua) toma as leis como proposições condicionais materiais, quantificadas universalmente, que são feitas verdadeiras pelos estados de coisas particulares, ou seja, toma-as como regularidades. Nessa concepção, as leis são verdadeiras, porém não necessárias. O primeiro problema que surge para o regularista é o chamado “problema da identificação”, que é a conjunção de dois problemas, a saber, (i) o problema (epistêmico) de saber como distinguir leis de regularidades meramente acidentais e (ii) o problema (ontológico) de indicar qual é o fato acerca do mundo que confere a uma regularidade seu estatuto nomológico. Por exemplo, seria dizer o que faz ser uma lei a regularidade de que toda pedra de urânio tem menos de 1 km3 e que não está presente na regularidade de que toda pedra de ouro tem menos de 1 km3 (já que consideramos este último como um mero fato contingente), e dizer quais critérios utilizaremos para distinguir um tipo de generalização de outro.

O regularismo sofisticado de Mill-Ramsey-Lewis, para responder 1, o problema epistêmico, diz-nos que uma lei é uma proposição universal que figura “como teorema (ou axioma) em todos os sistemas dedutivos verdadeiros que combinam simplicidade e força da melhor maneira” (Ghins, 2013, p. 54). Como simplicidade e força explicativa são opostos, seria adequado que mantivéssemos a melhor combinação entre eles. E ser um teorema ou axioma faz as leis serem algo mais que meras regularidades, a saber, elas são regularidades que estão presentes em todos os sistemas dedutivos verdadeiros equilibrados. Leis vácuas, como a lei newtoniana, que não são satisfeitas por nenhum sistema real, seriam leis na medida em que contribuem para maior simplicidade da totalidade da construção axiomática. Essa resposta certamente alivia um pouco o problema da identificação para o regularista, ao menos em sua parte epistêmica; porém, com relação à parte ontológica, “Lewis permanece silencioso sobre o que, na realidade do mundo, torna um sistema axiomático mais satisfatório que outro segundo seu critério de ‘melhor equilíbrio de simplicidade e força’” (Ghins, 2013, p.55). Outros problemas dessa forma de regularismo são que: (a) poucas teorias são axiomatizadas no sentido de Lewis e algumas não são nem axiomatizáveis, (b) o equilíbrio entre os critérios de simplicidade e força não foi precisado adequadamente, (c) e esses critérios são subjetivos, já que são epistêmicos e que não há necessidade alguma de a realidade os respeitar.

O neorregularismo de Psillos (2002, p.154 in Ghins, 2013, p.57), por sua vez, “defende uma posição realista segundo a qual a simplicidade de um sistema axiomático reflete a simplicidade objetiva da organização das regularidades fatuais”. Isso salva o regularismo do problema ontológico, mas, supostamente, segundo Ghins, o deixa à mercê do problema epistêmico, pois, ainda que identifique as leis com um tipo de regularidade e atribua simplicidade e uma estrutura nomológica para o próprio mundo, a contrapartida objetiva da lei não é acessível à observação direta, tal como desejaria que fosse o espírito empirista do regularista, e, consequentemente, não seria possível para o regularista distinguir as leis das regularidades que não são leis.

Não sabemos se esse argumento é bom, pois, se já aceitamos que o regularista pode distinguir leis de acidentes pelo fato de as leis possuírem uma posição especial nos melhores sistemas dedutivos, então o fato de ele atribuir a simplicidade desses sistemas dedutivos à existência de simplicidade no mundo não o impede de manter a distinção que resolveria o problema epistêmico. Ele não precisa de uma contraparte empiricamente acessível da lei; precisa somente de uma distinção, que, a princípio, poderia ser mantida, ao manter-se o espírito lewisiano, pela distinção de a lei ser um teorema ou axioma dentro de todos os melhores sistemas dedutivos para os fatos do mundo.

Um outro problema sério e persistente para qualquer forma de regularismo – na verdade, para qualquer forma de contingencialismo com relação às leis – é o problema da contrafactualidade. Se as leis do regularista são contingentes, elas não podem garantir a verdade de condicionais contrafactuais – condicionais cujo valor de verdade do antecedente é o falso. Tais condicionais são considerados trivialmente verdadeiros segundo a lógica de predicados de primeira ordem, se vistos como condicionais materiais comuns, já que um condicional material só é falso no caso de a antecedente ser verdadeira e a consequente ser falsa, e verdadeira em qualquer outra situação. Mas, na literatura filosófica, há muito trabalho sobre as condições de verdade dos contrafactuais que não os trivializariam. O fato de as leis regularistas não garantirem a verdade não trivial dos contrafactuais as deixa mais afastadas das leis científicas, já que estas garantiriam a contrafactualidade, diz-nos Ghins.

No entanto, pensamos nós, há uma objeção realizável por Lewis (1973), que tem uma teoria na qual ele tenta dar condições de verdade para os contrafactuais em termos de o que é o caso no mundo possível mais próximo. Um dos critérios para a proximidade entre os mundos é a semelhança de leis. Assim, no regularismo lewisiano, um contrafactual tal como “se Fa fosse o caso, Ga teria sido o caso” seria verdadeiro, se no mundo possível mais próximo Fa e Ga são o caso. Esse mundo possível é aquele com as mesmas leis que o nosso, mas com a antecedente do contrafactual sendo verdadeira. Uma objeção ao pensamento de Lewis é que seu contrafactual seria verdadeiro em muito menos situações do que as que esperaríamos. Um contrafactual cuja verdade surge a partir da verdade em todos os mundos possíveis relevantes, em vez de apenas no mais próximo, garante essa abrangência da verdade contrafactual, que não está presente na garantia da verdade contrafactual de Lewis. A abrangência científica da verdade dos contrafactuais chega a casos em que até algumas das leis não se mantêm (i.e., no caso de alguns contrafactuais contralegais), enquanto o mesmo não podemos dizer da teoria de Lewis.

O necessitarismo de Dretske-Armstrong-Tooley também não escapa das críticas do autor. Aquele nos diz que uma lei da natureza é uma relação universal contingente de necessitação entre universais imanentes, que garante (mais que a total contingência) a verdade no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. E a relação de necessidade que opera ao nível dos universais implica também uma relação de necessidade ao nível dos indivíduos particulares que os exemplificam: N(F,G) → (x) N(Fx,Gx). Mas, a partir dessa definição, temos um problema, conhecido pelo nome de “problema da inferência”, de explicar a conexão entre a necessidade armstronguiana (necessitação) no nível dos universais e a do nível dos particulares6. A resposta de Armstrong é que a relação causal do domínio dos particulares e a necessitação são uma e a mesma relação, dado que os universais estão presentes nos particulares – o que tornaria a inferência acima, em algum sentido, analítica. Diferentemente do regularismo, o necessitarismo de Armstrong permitiria que a necessitação fosse observável, já que ele diz que observamos a necessitação, isto é, a causalidade, quando, por exemplo, sentimos o peso do nosso corpo. Um governista ante rem (teórico das leis como relações universais entre propriedades universais transcendentes), pensamos nós, também poderia dar conta desse problema ao dizer que a causalidade singular é instância da necessitação e que observamos, indiretamente, a necessitação por meio da observação da causalidade singular, tal como observamos, indiretamente, o azul universal ao observarmos uma instância sua em algo particular. De todo modo, observar os poderes das coisas também não é algo tão incontroverso assim.

Além de tomar essa observabilidade como bastante controversa, Ghins julga que há um problema não resolvido por necessitaristas (problema esse também para regularistas), a saber, distinguir propriedades naturais de não naturais. O problema é que, se não houver distinção e as propriedades de Goodman (propriedades como verzul) forem avaliadas pelos cientistas, teremos leis mutáveis no nosso sentido, embora imutáveis no de Goodman.7 Outros problemas, ainda, para o necessitarismo de Armstrong é que ele não dá conta de leis probabilísticas adequadamente – segundo Ghins, van Fraassen, em Laws and symmetries (1989, p.109-116), mostrou que a solução armstronguiana não era adequada – e nem de leis não causais (como as leis de conservação), além de não mostrar que a necessitação e a causalidade singular são a mesma relação.

Pensamos que é possível, tanto para teorias aristotélicas como a de Armstrong quanto para as teorias platônicas como a de Tooley, dar conta de leis de conservação como deriváveis de outras leis; por exemplo, se toda lei diz como uma forma de energia se transforma em outra, mas não há leis que determinem como a energia se extingue ou aumenta, então, por lógica apenas, chegamos à conclusão de que a quantidade total de energia deve ser sempre a mesma. Há proposições necessárias (se as leis forem necessárias) implicadas por leis que não são elas próprias leis, pois não são relações de necessitação entre universais. As leis probabilísticas, no entanto, são problemáticas; mas acreditamos que são problemáticas para qualquer teórico que seja: regularista, conectivista (metafísico dos poderes), governista in rebus (leis como universais imanentes) ou governista ante rem (leis como universais transcendentes).

Dados os problemas que Ghins (2013, p.64) aponta nessas concepções, sua proposta é

identificar epistemicamente as leis científicas como sendo proposições de forma lógica universal e (aproximadamente) verdadeiras, empregadas para construir teorias científicas explicativas empiricamente bem sucedidas. […] Segundo essa proposta, proposições universais podem ser chamadas de leis somente no contexto de uma teoria, como na concepção de Mill-Ramsey-Lewis. […] [Sua ideia é que] não se resolve o problema da identificação determinando o fundamento da necessidade das leis, mas estabelecendo sua verdade no contexto de uma teoria científica.

Assim, uma proposição é uma lei científica se ela fizer parte, como um teorema ou axioma, de uma teoria científica, interpretada realisticamente, que contém, entre outras coisas, proposições gerais com o status de lei. E essas leis científicas seriam leis da natureza na medida em que a verdade aproximativa das leis científicas é sustentada em poderes universais realmente existentes, que se expressam nas disposições essenciais das entidades naturais. Acreditamos que a proposta de identificar a lei científica com um teorema/axioma de alguma teoria científica é interessante, pois captura nossas intuições sobre a lei científica, mas identificar as leis científicas com poderes, e não com leis da natureza, essa proposta já é um tanto debatível.

A ideia de uma metafísica dos poderes é justamente apresentar qual é o fundamento modal que as leis científicas teriam, já que, a princípio, se elas são proposições descritivas, não podem logicamente implicar proposições que contenham modalidades, como os contrafactuais. Portanto, se há algo que conecta leis e proposições contrafactuais, temos de saber o que é. E, além disso, temos de explicar a existência de regularidades na natureza. As teorias anteriormente apresentadas têm problemas com a contrafactualidade, por causa da contingência; o regularismo, mais especificamente, têm problemas também com explicar a existência de regularidades na natureza, pois, se o que torna as leis verdadeiras são meras regularidades, aquelas apenas descrevem estas e não explicam por que estas acontecem; e o necessitarismo de Armstrong, embora dê conta da explicação da regularidade, tem os problemas indicados anteriormente, acredita Ghins. Se tivermos conseguido fugir dos problemas que afetam também a concepção conectivista de Ghins, então a posição governista seria, pelo menos, equivalente, em poder explicativo, àquela.8

A concepção de Ghins é de que o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei,’ fundamentando assim a força modal de p, é a existência de poderes causais irredutíveis e essenciais às entidades que os têm (constituem necessariamente suas identidades). Mas o que é ter um poder causal, isto é, uma propriedade disposicional? Diz-nos Ghins (2013, p.69-70):

Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M. Formalmente, temos (Bird, 2007, p.36-37):

D A,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx      (a)

Esse último enunciado pode ser considerado uma definição da propriedade disposicional D A,T,M . Então, é analiticamente verdadeiro e necessário que □DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx     (b)

Por exemplo, os copos de certos tipos de vidro têm a capacidade de se quebrar em certos tipos de circunstâncias (como quando sofrem certa quantidade de impacto e estão ausentes circunstâncias que agiriam como “antídotos” do processo causal). É em virtude dessa capacidade, poder ou propriedade disposicional que é necessário que o copo se quebre quando submetido a uma tal circunstância. E a relação entre essas disposições e a identidade de certos objetos é necessária; elas fazem parte da essência de tais objetos. Assim, seria parte da essência dos corpos frágeis que eles tenham uma disposição para se quebrar em certas circunstâncias. Se algo não tem esse poder de se quebrar, simplesmente não é um corpo frágil.

Um primeiro problema que vemos nessa concepção é a imaterialidade de um poder. Um copo de vidro tem o poder de se quebrar. Onde está esse poder? Você pega o vidro, leva para o microscópio e tudo que você vê são moléculas, uma junto à outra. Não vê poder algum de se quebrar; na verdade, não vê poder algum. Se há poderes nas coisas, eles são imateriais, estão presentes de algum modo estranho nas coisas. O teórico dos poderes tem de explicar como as coisas têm poderes. O teórico das leis, se for também categoricalista, dirá que a capacidade dos objetos advém de suas propriedades categóricas estarem submetidas a leis da natureza, e não que há capacidades ocultas em cada um dos objetos. É contra-argumentável que a imaterialidade das leis também atesta contra elas. Duas respostas são possíveis. Se defendemos o substantivismo armstronguiano, as leis podem ser cridas como materiais, pelo fato de os universais estarem presentes nas coisas particulares, e, se defendemos o substantivismo ante rem, ao estilo de Tooley (1977), podemos dizer que a imaterialidade das leis é menos problemática que a imaterialidade dos poderes, pois os poderes se movem junto com seus hospedeiros, enquanto as leis não se movem, e o movimento de algo imaterial é algo que, patentemente, precisa de explicação.

Uma objeção que consideramos ainda mais poderosa contra o teórico dos poderes é que ele não consegue descrever algo que um teórico categoricalista conseguiria, como, por exemplo, o resultado do contato de duas partículas como um resultado do contato das capacidades ou potencialidades ou poderes dessas partículas. Veja a seguir (Cid, 2011, p.40).

O conectivista poderia tentar dizer que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo Y9 e que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo X, e que não há nada mais para a lei de que XY manifesta F do que esses poderes de X e de Y. O problema de dizer tal coisa é que a manifestação de F estaria sobredeterminada, já que ambas as partículas fariam F ser manifestado. Uma forma de tentar solucionar tal problema é dizendo que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F1 quando interagem com as partículas do tipo Y, que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F2 quando interagem com as partículas do tipo X, e que (F1˄F2)→F. Poderíamos objetar a essa resposta dizendo que teríamos que explicar, então, como (F1˄F2)→F; e o conectivista não é capaz de explicar isso sem cair novamente no problema da sobredeterminação ou num regresso ao infinito. Pois se (F1˄F2)→F, então: (i) ou F1 está disposto a manifestar F quando estimulado por F2, e F2 está disposto a manifestar F quando estimulado por F1, (ii) ou F1 está disposto a manifestar F3 quando estimulado por F2, F2 está disposto a manifestar F4 quando estimulado por F1, e (F3˄F4)→F. O caso (i) faria F estar sobredeterminado. E com relação ao caso (ii), o problema seria ter que explicar a implicação de F3˄F4 para F, que só seria possível criando um caso como (i), que sobredeterminaria F, ou criando um outro caso como (ii) ad infinitum.

Ainda uma objeção, esta apontada por Ghins, contra uma teoria das disposições é chamada de “objeção da virtude dormitiva”: explicar a capacidade do vidro de se quebrar recorrendo a uma disposição para se quebrar (fragilidade) não nos explica nada sobre a capacidade de se quebrar; é apenas nomear a capacidade que já sabíamos que lá estava. A resposta de Ghins é dizer que, embora atribuir uma disposição não explique o fenômeno, ela nos fornece uma informação importante, de modo que permite que, por exemplo, nos previnamos da manifestação da disposição (protegendo o copo, talvez), além de constituir um convite a buscar o processo físico, químico, psicológico, etc. subjacente à manifestação das disposições. Com essa atribuição de propriedade disposicional, “acrescentamos um elemento suplementar, a saber, que a base desse comportamento regular é uma propriedade disposicional enraizada numa entidade. Ao afirmar tal coisa, operamos uma transição do nível puramente descritivo para o nível modal” (Ghins, 2013, p.73, grifo meu). Como pensamos ter mostrado, um teórico categoricalista, que não aceita a existência de disposições, descreveria a atribuição de propriedade disposicional de uma outra forma, com propriedades categóricas e leis (embora, em seu discurso superficial, possa achar conveniente apenas falar como se houvesse disposições, mas mantendo, em seu discurso profundo, que não há).

Contudo, Ghins sabe o quão debatível é falar de propriedades disposicionais irredutíveis e ele acaba adentrando na discussão sobre se, fundamentalmente, o que há na realidade são propriedades disposicionais irredutíveis ou se são propriedades categóricas irredutíveis. As propriedades categóricas seriam as propriedades primárias das coisas sobre as quais estariam fundamentadas todas as outras propriedades. Por exemplo, Armstrong (1983) pensa que as propriedades primárias são a forma, o tamanho e a organização interna, e que cores, sabores e disposições em geral são qualidades secundárias fundadas nas primárias. A ideia é que “as qualidades primárias, conforme se supõem, são definíveis independentemente de qualquer disposição das entidades que as possuem […] as qualidades primárias tornam possível a ação dos corpos uns sobre os outros e, em particular, a ação deles sobre os nossos órgãos sensoriais” (Ghins, 2013, p.75); elas seriam propriedades espaçotemporais.

Algumas objeções a essa ideia, feitas por Ghins, são que quantidades, tais como a carga ou a constante de Coulomb, não poderiam ser reduzidas a propriedades espaçotemporais e que é duvidoso que a estrutura do elétron, se ela existir, seja espacial. Para sanar esse problema, ele sugere que, na classe das propriedades categóricas, devemos incluir as propriedades e relações correspondentes aos símbolos matemáticos empregados na formulação das teorias científicas. Isso permitiria ainda a distinção entre propriedades categóricas e disposicionais, já que um elétron possuiria uma massa e uma carga, independentemente da possibilidade de interagir com outras massas e cargas. A dificuldade que prevemos com essa concepção é explicar o que seriam cargas, por exemplo, sem reduzi-las a algo que contenha uma disposição para atrair/repelir. Certamente o categoricalismo estrito não poderia aceitar cargas como propriedades categóricas. Ele teria de reduzir essas capacidades de atrair/repelir a propriedades categóricas governadas por leis. Sobre os símbolos matemáticos, a dificuldade é explicar o que, ontologicamente, são eles; mas essa é uma dificuldade, inserida no seio da filosofia da matemática, que todos os teóricos, das leis e dos poderes, enfrentam.

A teoria de Ghins, diferentemente de teorias estritamente categoricalistas (como o regularismo e o necessitarismo armstronguiano), é mista, por aceitar a existência tanto de propriedades categóricas, pensadas de modo abrangente, quanto de propriedades disposicionais – em vez de tentar reduzir estas últimas a propriedades categóricas. Ele pensa assim, porque, por exemplo, “ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, as leis de Maxwell” (Ghins, 2013, p.84).

A razão para essa concepção mista é que, embora seja razoável supor o categoricalismo e, consequentemente, que as propriedades A, T e M – de DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx – possam ser caracterizadas exclusivamente por propriedades categóricas, ainda seria preciso que a definição não recorra a modalidades, já que as propriedades categóricas não seriam propriedades modais. O categoricalismo toma as propriedades como tendo uma natureza passiva; nele, “as propriedades modais não são inerentes às entidades que exemplificam as propriedades F e G, mas lhe são externamente impostas. Se o sal possui a disposição a dissolver-se em água, é porque existe uma relação de necessitação que liga a propriedade de ser sal à propriedade – complexa – de dissolver-se em água” (Ghins, 2013, p.81-82). Assim, o categoricalista deveria dar conta da implicação modal □→, à direita da bicondicional, sem usar, no lado esquerdo, propriedades modais. Isso parece uma tarefa impossível de realizar, segundo Ghins. Ele nos diz que isso é o “suficiente para fazer fracassar toda tentativa de reduzir inteiramente o significado de uma propriedade disposicional àquele de propriedades categóricas” (Ghins, 2013, p.81) e para fornecer razões para a crença em poderes irredutíveis a propriedades categóricas.

O que poderíamos responder a isso é que, em primeiro lugar, a tentativa de redução não é semântica, mas ontológica. Os categoricalistas estritos querem reduzir toda disposição a propriedades categóricas governadas por leis, e não o significado desses termos. Eles têm do lado esquerdo a necessitação conectando as propriedades, constituindo assim a lei. A lei, junto com as instâncias das propriedades governadas pela lei, fazem as coisas terem de acontecer em conformidade com a lei. A disposição do vidro de se quebrar é reduzida à lei sobre como se quebram conexões físicas entre certos tipos de moléculas junto com as instâncias das propriedades da lei presentes no copo de vidro. Nenhum dos universais da lei é ele mesmo modal, nem a necessitação e nem as propriedades relacionadas. As razões para uma lei ser necessária não estão na forma da lei, mas em outros argumentos (alguns deles apresentados em Cid, 2016). Assim, o substantivismo também pode respeitar o requisito de mostrar como algo naturalmente não modal implica frases modais. De todo modo, é ainda possível de se responder que não há necessidade alguma de redução das modalidades, que elas são um aspecto primitivo. Não acreditamos que este seja o melhor caminho de resposta – preferimos o primeiro –, mas também é viável.

As disposições, diz-nos Ghins, por conectarem necessariamente certos tipos de ocorrências com certos tipos de manifestações, dão conta da contrafactualidade. Elas também fornecem uma explicação das regularidades descritas pelas leis científicas. De fato, as leis científicas são suscetíveis de nos informar sobre a natureza interna das coisas de certos tipos de um modo preciso. Além disso, as disposições também podem dar conta das leis probabilísticas de modo elegante, diz-nos o autor, pois podemos identificar as tendências das coisas com as disposições probabilísticas.

Mas todas as entidades têm disposições irredutíveis? Precisamos postular a existência de poderes causais? Ghins pensa que sim, por causa de três argumentos (2013, p.89), os quais apresento a seguir.

  • Argumento I:

Se somos dotados de poderes causais, então temos a capacidade de agir sobre sistemas que são prima facie “inanimados” e “inertes”, isto é, sistemas que são à primeira vista passivos e desprovidos de poderes internos. […] Visto que reagem de modo diferenciado e previsível a determinadas ações nossas, parece razoável supor que os sistemas externos sejam dotados de uma capacidade interna de reagir de uma maneira específica.

Diríamos aqui que, se somos dotados de poderes causais, nada se segue sobre se os objetos também são dotados de poderes causais. Pode ser o caso que poderes causais venham apenas do livre-arbítrio e que apenas seres com livre-arbítrio os tenham (já que os exemplos paradigmáticos de capacidades que temos envolvem situações com opções, como a capacidade de se levantar, quando se está sentado). Além disso, se esse for um argumento a favor de adotar poderes causais irredutíveis, ele assume que somos dotados de poderes causais. Mas um categoricalista estrito nunca aceitaria isso. O que temos são propriedades categóricas, e sua subsunção a leis torna existente a ilusão de que temos capacidades. O modo diferenciável e previsível em que as coisas reagem pode igualmente ser explicado por propriedades categóricas governadas por leis.

  • Argumento II:

Poucas pessoas duvidam que um elétron submetido a um campo eletromagnético se comportará em conformidade com as equações de Maxwell. Se admitirmos que tais contrafactuais sejam verdadeiros, seremos conduzidos a postular a existência de disposições internas, poderes ou potências, que obrigam os sistemas que as possuem a comportarem-se de certa maneira precisamente porque esse comportamento corresponde à sua natureza ou essência.

Tal como argumentamos no parágrafo anterior, não há razões para postular a existência de disposições internas para as coisas; só precisamos de leis da natureza (obrigando os sistemas) e as propriedades categóricas (constituindo os sistemas). Além disso, se postulamos disposições, postulamos infinitas disposições para cada objeto existente, pois são infinitas as situações nas quais podem ocorrer diferentes coisas com os objetos. Costumamos pensar que os objetos particulares têm um número finito de propriedades, e não um número infinito de propriedades disposicionais.

  • Argumento III:

Se postularmos a existência de poderes causais que se manifestam nos processos descritos pelas leis científicas, alcançaremos uma imagem geral e coerente da realidade cujo comportamento tem como base as essências das substâncias.

Isso pode até ser verdade. A imagem geral numa metafísica dos poderes é coerente; no entanto, de modo mais preciso, ela tem certos problemas com a noção de poder que têm de ser solucionados, para que essa coerência se mantenha nas perspectivas menos gerais. De todo modo, é argumentável que uma concepção que não se utilize de poderes e fique apenas nas propriedades categóricas é, além de coerente, mais simples e mais intuitiva. Não estou argumentando em favor disso aqui, neste texto, mas apenas dizendo que isso é argumentável, já que uma concepção governista pode dar conta dos problemas apresentados por Ghins.

Em resumo, a concepção de Ghins (2013, p.85-86) nos diz que

As propriedades categóricas são as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas. […] [As] disposicionais, em circunstâncias favoráveis, lhes permitem comportar-se em conformidade com leis. […] A modelização restringe-se às propriedades categóricas. O que torna as leis verdadeiras são, antes de tudo, os modelos, os quais são estruturas matemáticas. Somente quando consideramos a aplicação desses modelos a sistemas reais é que entram em jogo as propriedades modais de tais sistemas. […] As leis científicas são proposições universalmente verdadeiras que integram teorias científicas bem estabelecidas e que descrevem regularidades existentes na natureza. As regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos. De acordo com essa interpretação metafísica, o problema ontológico da identificação está solucionado, e as leis científicas também adquirem o estatuto de leis necessárias da natureza. Se as leis fossem outras, um campo eletromagnético ou um elétron não poderia continuar sendo a entidade que é pela simples razão de que uma mudança nas leis se traduziria ipso facto numa mudança nas essências das coisas.

No entanto, ainda que fosse possível mostrar que a existência de poderes causais na natureza nos oferece a melhor explicação possível das regularidades observadas e da verdade dos contrafactuais, isso não justificaria a crença na existência de poderes causais, simplesmente porque não há qualquer garantia a priori de que a realidade respeite nossos critérios de inteligibilidade. Por isso, diz-nos Ghins, para validar qualquer afirmação de existência, a evidência empírica é imprescindível. E, de fato, nós temos uma experiência pessoal dos poderes causais: enquanto sentado, por exemplo, estou consciente da minha capacidade de me levantar e caminhar. Ainda que os fundamentos metafísicos das leis sejam os poderes universais, o nosso acesso epistêmico a elas e às demais propriedades naturais depende exclusivamente do sucesso dos modelos científicos e da observação de regularidades recorrentes. Se há disposições irredutíveis, que fundamentam a verdade aproximada dos modelos teóricos, ao sustentar as leis científicas que seriam satisfeitas por esses mesmos modelos, que, por sua vez, foram criados a partir da abstração da realidade nas estruturas perceptivas e nos modelos de dados, então o objetivo de Ghins de criar uma teoria sintética, realista moderada e que fundamente metafisicamente as ciências terá sido cumprido. De modo geral, o que Ghins pretende com esse livro é mostrar que não é irracional acreditar nas disposições essenciais das entidades naturais como fundamentos da verdade aproximativa das leis científicas. E nós concordamos que irracional não é, embora a ideia de poder esteja cercada de mistérios e dificuldades; pensamos, ainda, que, mesmo que não existam poderes irredutíveis, toda a perspectiva de ciência de Ghins pode ser mantida, pois leis da natureza realmente existentes poderiam fundamentar a verdade aproximada das leis científicas, por sustentarem os mecanismos que as leis e os modelos científicos tentam descrever.

Notas

1 Agradeço à CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche, na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Belgique), com a qual foi possível obter a orientação do Dr. Alexandre Guay e ter conversas pessoais com o Dr. Michel Ghins.

2 Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Av. Serra da Piedade, 299, Morada da Serra, Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

3 Aqui vale uma nota, a saber, que uma teoria “mística” – como a previsão do futuro por meio dos búzios – pode acabar sendo empiricamente adequada, no sentido de Ghins, se ela obtém previsões bem-sucedidas e se mede algo no mundo para isso; no entanto, na medida em que essas teorias místicas não costumam ser estatisticamente bem-sucedidas em suas previsões, elas não são empiricamente adequadas. O fato de que elas poderiam ser bem-sucedidas e, assim, empiricamente adequadas nos mostra que ou o conceito de empiricamente adequado não é adequado para restringir o domínio das ciências e para justificar suas práticas ou, no caso de uma teoria mística ser bem-sucedida, teríamos que aceitá-la como empiricamente adequada (tão empiricamente adequada quanto as ciências). Mas o que justifica a prática científica, distinguindo-a de teorias místicas, acredito que nos diria Ghins, é a intersubjetividade da estrutura perceptiva e do modelo de dados.

4 Há um conflito aparente entre a ideia de que as leis são tornadas verdadeiras por modelos e a ideia de que os poderes causais são o fundamento das leis. Se os poderes causais fundam as leis, então são eles, e não os modelos, que as fazem verdadeiras. Além disso, se modelos e proposições têm o mesmo estatuto ontológico de serem entidades representacionais, portadores de valor de verdade (truth bearers) ou de algum outro valor (como adequação/inadequação), um não pode ser o veridador do outro, já que veridadores não são entidades representacionais. Mas é argumentável que um modelo é justamente o modelo de um poder causal. Se esse for o caso, então, se for o poder ou se for o modelo do poder que tornam a lei verdadeira, isso não fará diferença. O ponto, talvez, aqui, seja apenas um preciosismo terminológico, no qual diríamos que um modelo é feito verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro), tal como uma lei científica, por um poder causal, embora o modelo satisfaça sempre a lei científica. Embora uma lei científica e um modelo teórico só sejam aproximadamente verdadeiros, dada a distância entre a teoria e a realidade, a relação de satisfação entre o modelo e a lei não é aproximada. Se um modelo não satisfaz a lei, ele tem de ser mudado ou a lei tem de ser mudada. A escolha entre mudar o modelo ou a lei é pragmática.

5 Leis mais gerais da mecânica estatística de partículas.

6 O problema da inferência também pode ser expresso em outros termos, com menos compromissos ontológicos, se pensarmos que o que devemos explicar é a condicional: N(F,G) → (x)(Fx→Gx). Esta formulação é preferível, se quisermos tratar do problema sem a pressuposição de que há também o universal da necessitação no domínio dos particulares (o autor usa sua própria formulação, pois se direciona contra a concepção armstronguiana, que, de fato, pensa que a necessitação é idêntica à causalidade singular e, por isso, age também nos particulares). Um universalista transcendentalista crente da necessitação, por exemplo, poderia querer dizer que a necessitação, como universal, transcende os particulares, mas que a causalidade singular entre estados de coisas é apenas uma instância da necessitação. No entanto “(x)(Fx→Gx)” é neutro o suficiente para não pressupor nem a instanciação da necessitação. A condicional nos diz que a necessitação N, relacionando as propriedades universais F e G, implica que tudo que é um F é também um G. Como explicar essa implicação?

7 Michel Ghins, numa conversa privada, disse-me que tem plena noção de que esse problema também se aplica à sua metafísica dos poderes. Sua solução é dizer que ele identifica as propriedades naturais com as propriedades definidas pelas teorias científicas; no entanto, essa solução não é exclusiva ao metafísico dos poderes, mas logicamente possível também a qualquer teórico das leis. Por exemplo, Armstrong (1983), como defensor da necessitação contingente das leis, e Cid (2011), como defensor da necessidade metafísica das leis, sustentam, ambos, que devemos pensar as propriedades naturais como as propriedades indicadas pelas ciências.

8 De fato, eu acredito que o poder explicativo do conectivismo é menor que o do substantivismo, principalmente do substantivismo ante rem. Podem-se encontrar argumentos em Cid (2011). Vou apresentar alguns a seguir.

9 Ou, alternativamente, no caso do defensor dos átomos metafísicos, quando duas partículas do tipo X (do tipo átomo metafísico) interagem do modo Y, elas produzem F.

Referências

ARMSTRONG, D. 1983. What is a law of nature? Cambridge, Cambridge University Press, 180 p.

BIRD, A. 2007. Nature’s Metaphysics. Laws and Properties. Oxford, Clarendon Press, 246 p.

CID, R. 2011. O que é uma lei da natureza? Rio de Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 114 p.

CID, R. 2016. São as leis da natureza metafisicamente necessárias? Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 184 p.

LEWIS, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge, Harvard University Press, 168 p.

PSILLOS, S. 2002. Causation and Explanation. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 336 p.

TOOLEY, M. 1977. The Nature of Laws. Canadian Journal of Philosophy, 7(4):667-698. https://doi.org/10.1080/00455091.1977.10716190

VAN FRAASSEN, B. 1989. Laws and Symmetry. Oxford, Oxford University Press, 416 p.

Rodrigo Reis Lastra Cid – Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Sabará, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx – MORFINO (RFMC)

MORFINO, Vittorio. Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2016. Resenha de: LANCIATE, Diego. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 116-119, n.2, 2016.

Publicado pela Georg Olms Verlag em 2016, Genealogia di um pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx [Genealogia de um preconceito. A imagem de Spinoza na Alemanha de Leibniz a Marx] de Vittorio Morfino é resultado de um estimulante e rigoroso trabalho de fôlego em que a articulação entre Spinoza e spinozismo se faz pela efetividade de sua recepção, sua Wirkungsgeschichte, em terras germânicas. Assim, três grandes momentos são divididos: a refutação do spinozismo clandestino, o renascimento spinozano e, por fim, o Spinoza do Idealismo. Filósofos como Leibniz, Wachter, Bayle, Mendelssohn, Lessing, Jacobi, Kant, Herder, Goethe, Schelling, Hegel, Heidegger, Feuerbach, Marx, Engels até Plekhanov, Althusser, Pascucci, Negri, Fischbach et alii são mobilizados, porém, longe de um procedimento genético e historicista de apreensão do par significante spinoza/spinozismo, Morfino investiga genealogicamente, ou seja, é tal articulação que é posta em exame em seus efeitos. E, para tanto, podemos dizer que seu centro geométrico é localizado em Marx, cujo olhar míope sobre Spinoza é, em certa medida, efeito do spinozismo germânico. Assim, a questão posta por Morfino assume traços e contornos ímpares: Marx lê Spinoza, todavia, tal leitura, não é caracterizada por uma inadequação no sentido em que se diz do inadequado enquanto erro – um pressuposto de um sujeito empírico de conhecimento – tampouco que seja uma leitura cujo pressuposto seria um sujeito tout-court como epicentro, mas que se trata, antes do mais, de um efeito sujeito que a historialidade efetiva do spinozismo provoca na leitura de Marx. Como efeito de um discurso, Marx é atravessado em seu ver. Uma efetividade post festum que retroage certos sentidos do spinozismo e de Spinoza construindo uma narrativa linear capaz de evidenciar-se na contemporaneidade de Marx leitor. E é em tal narrativa evidente que se instaura a opacidade mesma de Spinoza, então, que a contemporaneidade da evidência, que se faz narrativa da historialidade efetiva da articulação spinoza/spinozismo, é o que permite Morfino rearticular o jogo complexo entre tais significantes pelo ato de ler como efeito desta narrativa. Marx viu através dessa narrativa límpida e linear e, por isto mesmo, não viu em Spinoza uma teoria da História e da Política. Como Marx não pôde ver, o não-visto de Marx é o início da trajetória genealógica de Morfino, por aí ele propõe-se a abrir os pontos de sutura do discurso que interpela Marx e que compõe a imagem de Spinoza através da contemporaneidade de certo sentido que faz seu não-visto, porém, que reintroduzida em sua não-contemporaneidade, i.e.¸ em seu Kampfplatz, abre-se a complexa trama de operações discursivas em sua pluralidade mesma. Ou seja, o sentido é atingido em sua equivocidade pela abertura das suturas que compõem a narrativa da imagem de Spinoza/spinozismo, então, tudo se passa como se a estratificação de conflitos discursivos, deslocamentos de sentidos e defasagens articuladas em temporalidades diferenciais nas quais se desvelam os níveis em ritmos entremeados produzissem certo efeito-imagem de Spinoza, cuja estruturação não seria outra que a produção de sua opacidade pela lógica de poder característica da ideologia/imaginário. A leitura que faz Marx, assim, é o “efeito da complexa história da presença e ausência de Spinoza em terra germânica”.

Não-contemporâneo que se faz contemporâneo, a opacidade do real dada pela narrativa linear, pela sucessividade cumulativa de sedimentos discursivos, é submetida à desconstrução materialista por Morfino. Cada contexto pontual de disputa que se produz uma imagem sedimentada compondo a linearidade ideológico-discursiva do par significante Spinoza/spinozismo, sua trama interrelacional que produz o sentido desta narrativa, é submetida, então, ao exame e recontrução das interpretações que foram feitas de Spinoza nos três momentos principais. E, para tal reconstrução, Morfino suspende o juízo sobre a adequação dos objetos interpretados, i.e., não se trata de trazer um Spinoza como régua da adequação ou inadequação das interpretações que lhe são dadas, mas sim de examinar precisamente como tais interpretações se fazem e exercem um efeito na recepção de Spinoza e no spinozismo. Morfino analisa cada intérprete através da problemática que lhe é própria e não através da problemática do próprio Spinoza, e disto se pode dizer que cada problemática, cada estrutura de pensamento analisada, provoca significativas modificações e reafirma certas permanências da imagem mesma de Spinoza e do spinozismo. Mais ainda, trata-se de problemáticas não só de cada intérprete, mas também de sua dimensão conflitiva com problemáticas de intérpretes entre si, seu diálogo plural, tanto no que diz respeito à estrutura de pensamento de cada intérprete modificando a imagem de Spinoza e do spinozismo quanto no que diz respeito também ao ambiente de produção interpretativa. A tensão e conflitualidade entre problemáticas, os encontros entre os ritmos defasados, impõem-se na tarefa genealógica. Tal trama de problemáticas defasadas, que podemos chamar de sobreproblemática, é a interpenetração mesma das tramas problemáticas singulares, as quais configuram o presente de uma instabilidade discursiva de algo que, em sua posteridade, é tido como acabado, como ponto pacífico e suturado, ou seja, que se lê o presente passado pelo futuro já passado projetando-o teleologicamente – i.e.¸ pelos seus resultados sedimentados – num esquema genético de uma temporalidade histórica de sucessão, esquema cumulativo em sua opaca transparência, pois, em suma, também tais problemáticas sempre-já são interpenetradas por certo e determinado futuro anterior.

Daí que Morfino ausculta a materialidade textual em seu tecido através dos sintomas, da ausência e presença, os quais, por sua vez, são detectados em suas diversas roupagens. É, com efeito, a espectralidade mesma que faz dos significados sintomáticos procedimentos textuais no jogo entre as problemáticas e a sobreproblemática em sua historicidade tomada não mais geneticamente, mas sim genealogicamente, a saber, em sua historialidade efetiva. Sintomas tais que, em seu campo semântico, fazem-se como desvios de sentido, os quais são operados por mecanismos marcados, como a redefinição de conceitos, inversão de conceitos, os efeitos de tradução como sintoma da resistência de um campo problemático ao estranhamento de uma filosofia alheia em sua economia teórica o que força a “tradução criativa”, ou seja, força a tradução entre significantes tendo em vista a problemática de recepção, as remoções inusitadas como tecidos invisibilizados na própria materialidade textual de Spinoza e, sobretudo, dos efeitos destes movimentos de escritura que condensam a espectralidade em sua posteridade próxima como “imagemlimite”, como sentido retroagido capaz de transmitir-se como tal sob uma problemática de um intérprete futuro, um intérprete, de certo modo, do futuro anterior.

Morfino perquire a “imagem-limite”, ou a imagem de Spinoza/spinozismo, referindose a ela como pregiudizio, que podemos traduzir por preconceito, desde que considerando que aí se condensa o juízo dado pela inadequação de sua anterioridade temporal que se faz presente no ato de julgar – tenhamos em mente que preconceito está submerso no sentido propriamente spinozano de imagem, pelo que se remete aos mecanismos de superstição capaz de suscitar afetos e dominação.

Por trás da desconstrução materialista, são as teses de Althusser que Morfino não só mobiliza, mas que as aprimora consideravelmente em estado prático em sua genealogia. Assim, é à revolução teórica inaudita de Spinoza, segundo Althusser, que Morfino dá consequências: a história não se lê na evidência de seu discurso como um logos manifestando-se como a voz uníssona de uma estrutura sedimentada, contudo, que nesta presença mesma uníssona do logos a dissonância se faz pela sua ausência, pelo inaudível e ilegível. O ler, o escrever, o ouvir etc não são de modo algum indiferentes e atos neutros, e é a opacidade ela mesma em sua imediatidade ou, para utilizar-me de um oximoro, a translucidez turva do discurso uníssono manifesto, que exerce o efeito de modificação dos atos de ler, escrever, ouvir etc. Uníssono composto pela plural dissonância de uma contemporâneo não-contemporâneo, pelos ritmos diversos que compõe conflitantes os sentidos. Notável é que a revolução de Spinoza indicada por Althusser pela posição do problema do ler e do escrever tornou-se apreensível a partir da problemática do próprio Marx, pela sua estrutura de pensamento que mobilizou a articulação entre ideologia e política. É por isto que Morfino pôde escavar o subterrâneo dissonante suturado pela presença de uma narrativa de um preconceito, então, que ele pôde voltar Spinoza contra sua imagem que, com toda sua potência explicativa, fez da miopia de Marx o reconhecimento/ desconhecimento de Spinoza em sua problemática.

É o “trabalho spinozano sobre a linguagem da tradição” em sua conjuntura de produção e seu horizonte semântico que intervém como uma máquina filosófica combatente em seu Kampfplatz. Uma máquina de guerra filosófica que Spinoza opera pela posição do problema da Histórica e da memória, ou seja, é sua teoria da imaginação e sua teoria da História que são confrontadas com a imagem do spinozismo alemão em seus três momentos. Não é que a memória, para Spinoza, seja mero conhecimento inadequado, mas que ela é, simultaneamente, hábito, o que implica a eficiência de suas formas discursivas, de sua “história sacra”, como diz Morfino, na história real. São, por isto, os ritmos dos ritos, dos gestos e comportamentos, em suma, dos corpos que são materializados e efetivados na atualidade de um presente, de sorte que a pluralidade dos hábitos, a defasagem de seus ritmos todos, permitem a Spinoza desconstruir a temporalidade linear, simples e contínua de uma narrativa teológico-política. Daí a articulação entre a causalidade imanente e a opacidade do real (teoria da imaginação) permitir conceber a história “como construção conceitual que mostre o estatuto imaginário de cada autobiografia dando relevo ao complexo intrincamento de causas naturais e sociais que produzem a simplicidade de uma história.”

Aparente circularidade, Spinoza contra o spinozismo em terras alemãs, põe em questão a adequação deste Spinoza que permite abrir as suturas da narrativa do preconceito. De fato, o Spinoza que Morfino lança sobre o percurso genealógico seria a imagem de certo Spinoza? Seria a imagem de Spinoza composta pelo que podemos chamar de “segundo renascimento spinozano” datado, mais ou menos, dos meados do século XX na França até os nossos dias? A lição deste Spinoza materialista a que o século XX foi capaz de começar a dar outra voz através de Cavaillès, Guéroult, Deleuze, Chauí etc e, mais próximos de Morfino, de Althusser, Macherey e Balibar, é a de que justamente os ritmos plurais da história, suas defasagens e deslocamentos, em suma, a pluralização das temporalidades da história também produzem e são produtos de uma intervenção política em filosofia, ou seja, que a genealogia de Morfino não só nos presenteia com uma obra imprescindível de erudição e aprendizado de sua laboriosa empresa teórica, mas também e, sobretudo, que ela é a posição política que o materialismo do século XXI apenas começa a colocar em nosso atual Kampfplatz. Ademais, o trabalho de Morfino nos instiga à possibilidade de confrontar a desconstrução materialista com a tradição anglo-saxônica que hoje se faz presente e potente em nosso Kampfplatz, ou melhor, de desconstruir a posição das formas dominantes de interpretação idealista de Spinoza que repercutem com força em nossa conjuntura.

Genealogia di um pregiudizio é um acerto de contas do materialismo em geral e do materialismo de Spinoza em particular com a história que, simultaneamente, deixa seu rastro da vitalidade e força na impura conflitualidade constitutiva da filosofia entre materialismo e idealismo. Mas não só um acerto de contas. O trabalho de Morfino abre positivamente a articulação teórica imprescindível e demarcatória do próprio materialismo hodierno: trata-se de pensar a “fábrica Spinoza-Marx”, como escreve, visando construir uma ontologia da relação sob o primado das indicações do materialismo aleatório de Althusser e, ainda, pensá-lo sob o primado da teoria das temporalidades plurais. O problema fundamental aqui é pensar o compor-se e decompor-se de toda e qualquer estrutura em termos relacionais, de toda e qualquer história, o que implica diretamente a inteligibilidade do campo de ação política. Não só inteligibilidade, mas a intervenção teórica de Morfino é ela mesma política, pois, como dizia Althusser, filosofia é, em última instância, luta de classes em teoria, ou seja, filosofia e política são de certo e determinado modo – não idênticas – mas coextensivas. O êxito e rigor de Genealogia di um pregiudizio é um convite para a desconstrução materialista, para a posição materialista em filosofia e, também, um convite para enfrentar sob este prisma o desafiante e imprescindível problema da articulação entre História e Política.

Diego Lanciate – Doutorando Universidade Estadual de Campinas.

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O mundo como vontade e representação. Tomo II – SCHOPENHAUER (RFA)

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tomo II. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. da UFPR, 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.27, n.42, p.941-946, set./dez, 2015.

A obra de Arthur Schopenhauer foi tradicionalmente recepcionada fragmentariamente, não apenas na contemporaneidade, mas também em seu tempo. A publicação do primeiro tomo de sua obra-prima, O Mundo como vontade e representação, em 1818, não foi um grande acontecimento, tampouco abalou as estruturas da filosofia alemã de sua época — filosofia essa que conhecia nas figuras de gigantes como Hegel, Schelling e Fichte a manifestação de certa tendência pós-kantiana. Essa mesma tendência de distância dos holofotes acadêmicos manteve-se quando da publicação do segundo tomo, em 1844, conjuntamente com uma reedição do primeiro tomo, de tal modo que Schopenhauer teve de apelar a seu editor, justificando-se em considerações que afirmavam ser possível ler os capítulos do segundo sem uma necessária referência ao primeiro. Essa artimanha negocial de Schopenhauer não expressava, no entanto, sua verdadeira intenção, já que, para o filósofo alemão, a leitura séria deveria ser realizada para com o todo da obra, sendo que o segundo tomo não serviria como uma complementariedade alienada do primeiro, mas, antes, uma verdadeira conjunção de unidade.

A pretensão do filósofo, no entanto, não parece ter alcançado a realidade efetiva na Alemanha de sua época, uma vez que Schopenhauer passa a ser lido apenas em seus últimos anos de vida e, além disso, ocorreu certa tendência fragmentária na recepção de sua obra em outros países, entre eles o Brasil. Apenas no início dos anos 2000 o Brasil recebeu uma efetiva tradução do primeiro tomo de O mundo como vontade e representação, realizada por Jair Barboza, e, finalmente, em 2014, recebeu a tradução do segundo tomo, realizada por Eduardo Ribeiro da Fonseca. Desde uma perspectiva inicial, o feito que representa a tradução desse segundo tomo, obra tão volumosa, já merece destaque, não por seu aspecto quantitativo, porém por seu destaque qualitativo.

Desempenhada com verdadeiro esmero, a tradução recobre o árduo labor de ter de verter para uma língua latina uma língua germânica, o que, desde o princípio, é sempre um entrave e um convite ao trabalho rigoroso. Ademais, não se pode negar o fato de que Schopenhauer está inserido em uma tradição da filosofia alemã que não apenas remonta a Kant, mas que estabelece vivo diálogo com a filosofia clássica alemã, isto é, com o idealismo alemão, de tal maneira que, ao realizar a tradução, Eduardo Ribeiro da Fonseca teve de atentar para o uso técnico-filosófico das palavras, ação na qual foi plenamente satisfatório. O cuidado em apresentar a grafia de termos em alemão — tais como Wirklichkeit, Witz ou Erfahrung — não é mero preciosismo acadêmico, mas denota o cuidado para com a tradição na qual se encontrava o autor traduzido. De igual maneira, o tradutor empenhou-se em apresentar a grafia original de termos empregados por Schopenhauer em línguas diversas ao alemão, tais como grego e latim, o que representa um respeito ao autor e permite com que o leitor se aperceba da erudição do filósofo alemão.

O maior mérito da tradução, no entanto, diz respeito ao cuidado do tradutor em produzir uma vasta gama de notas que servem não só como um auxílio ao texto de Schopenhauer, mas também como fomento da pesquisa sobre o autor em solo brasileiro. A publicação desse segundo tomo, assim, é duplamente valorosa para a pesquisa filosófica brasileira, já que serve aos estudiosos o texto completo da principal obra de Schopenhauer, além de ser acompanhado de um minucioso trabalho de análise e sopesamento da relação de Schopenhauer com outros pensadores, sobretudo com Nietzsche e Freud.

Sobre esse ponto há que se tecer um breve comentário. O tradutor, Eduardo Ribeiro da Fonseca, apresenta profunda honestidade intelectual ao declarar, em seu texto introdutório à tradução, as veredas e os caminhos que trilhou, tanto para chegar a Schopenhauer quanto para partir de Schopenhauer. Ter se aproximado do filósofo alemão pelas vias do dramaturgo sueco August Strindberg revela muito não apenas sobre o tradutor, mas sobre certa tendência de “descoberta” de Schopenhauer.

É inegável o fato de que o filósofo alemão foi muitas vezes salvaguardado e mesmo “mantido avivado” pelas forças literárias. Assim como Nietzsche encontrou primeiramente leitores de verve não estritamente necessária — com Hermann Hesse ou Robert Musil —, Schopenhauer encontrou em diversos autores de literatura sua primeira recepção fora da Alemanha. É o caso de Pío Baroja, na Espanha, de Augusto dos Anjos e Machado de Assis, no Brasil, e, é claro, de August Strindberg. Assim, quando o tradutor designa sua origem, o faz de maneira a inscrever-se em uma sólida tradição.

Por outro lado, ao partir de Schopenhauer, Eduardo Ribeiro da Fonseca passa — quase que necessariamente — por Nietzsche, mas encontra-se, por fim, com Freud. É esse o encontro que rende maior impacto sobre a tradução e, mais precisamente, sobre as notas ali inseridas. O tradutor faz referência a seu trajeto acadêmico e confessa ter realizado pesquisa sobre a relação existente entre Schopenhauer, Nietzsche e Freud1 . Dessa forma, boa parte das notas que a tradução insere com referência ao texto tem por intenção evidenciar essa relação entre os três mencionados autores, sobretudo entre Schopenhauer e Freud. As muitas notas que complementam a tradução, é certo, não se restringem à relação existente entre Schopenhauer e Freud, havendo uma série de referências pertinentes ao auxílio da leitura. Contudo, é considerável o número de vezes em que é suscitada a possibilidade de relação entre o filósofo alemão e o psicanalista vienense.

Mais do que orientar a leitura, a presença de tantas menções à possível relação entre Schopenhauer e Freud acaba delimitando uma espécie de sentido, não apenas para a tradução, mas para o próprio texto de Schopenhauer. Isso quer dizer que, em uma leitura acurada dessa tradução do segundo tomo do Mundo como vontade e representação, é quase impossível sair ileso a essa tendência relacional que o tradutor se esforça para marcar. Em determinado momento, sentese que há quase indubitavelmente uma pré-existência de certas teses freudianas no pensamento de Schopenhauer, principalmente no que diz respeito à questão do conceito de Trieb.

Essa força, advinda da leitura conjunta de tradução e notas, configura importante fator para a pesquisa de um autor que, como apontado anteriormente, havia sido recepcionado de maneira fragmentária. Por meio do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, a leitura de Schopenhauer é animada, não pela simples existência de uma tradução, mas pela concomitante abertura de uma possibilidade de leitura e de análise, ou seja, aproximando o filósofo alemão de certa tendência psicanalítica.

No sentido de uma análise crítica, ou seja, ao se tecer ponderações que em nada apontam uma negatividade, mas apenas uma possível vacância do trabalho realizado na tradução, o traço mais marcante que se pode apresentar é quiçá uma determinação demasiado pesarosa. Tamanha é a tendência que impõe o tradutor na relação entre Schopenhauer e Freud, que acaba não demarcando outros aspectos da obra do filósofo alemão, sobretudo quando essa pode ser pensada em relação a sua própria tradição.

Schopenhauer não é apenas um autor influenciado pela filosofia de Kant. É um kantiano, que, por sua vez, travou um embate com outros kantianos. São muitas as relações e indicações presentes no segundo tomo de O Mundo como vontade e representação que colocam Schopenhauer em franco debate com a filosofia de seu tempo. Se o solo onde se trava o embate é demarcado pela filosofia kantiana, é certo que há mais personagens que Kant. Dessa maneira, quando Schopenhauer abriu o segundo tomo de sua obra-prima com um capítulo denominado “Sobre a visão fundamental do Idealismo”, estava, de alguma maneira, apontando quais eram seus principais alvos. Alvo ainda mais evidente quando se considera, por exemplo, o capítulo XII, “Sobre a Doutrina da Ciência”, já que esse termo, famoso pelo uso dado por Fichte — Wissenschaftslehre —, está presente em outros autores, entre eles Schelling e Hegel, a quem Schopenhauer visa opôr-se em seu pensamento.

De igual maneira, seria possível estabelecer, pelo uso das notas — que tão belamente o tradutor faz no caso de Freud —, a relação, ainda que de crítica e oposição, entre Schopenhauer e os românticos alemães. O capítulo XXXI, “Sobre o gênio”, talvez seja o ponto mais evidente em que certas considerações são feitas tendo em vista não só a Crítica do Juízo de Kant, mas também todo o escopo de teorias sobre o gênio no pensamento de Friedrich Schlegel, de Novalis, Jean Paul, e, novamente, Fichte, Schelling e Hegel.

Como já se afirmou, a intenção não é produzir uma ressalva, sequer uma crítica, mas uma mera consideração acerca dos níveis que poderiam ser dados na tradução. Se foi possível realizar um trabalho para com uma relação — Schopenhauer e Freud —, seria possível, igualmente, ter ressalvado esse trabalho histórico, inserindo o filósofo em seu tempo. Para além disso, por se tratar de uma primeira tradução do texto na tradição brasileira, é sobremaneira importante que sirva como uma verdadeira abertura, um convite para possíveis sentidos, e não como um direcionamento para um sentido mais preponderante.

Pouco foi considerado nos estudos brasileiros, é certo, sobre as influências mais eminentes que tiveram os pensadores posteriores a Schopenhauer — com exceção, é claro, de Nietzsche —, de modo que esse campo, já que Freud é certamente um autor posterior, também estaria aberto e passível de um tratamento. Há, por exemplo, acertada menção de Jorge Luis Borges, em Otras inquisiciones, sobre a influência de Schopenhauer em Philipp Batz2 , mas de igual maneira poderia ser considerada a influência sobre Eduard von Hartmann.

Essas considerações, no entanto, não passam de um desejo impulsionado tanto pela obra quanto pelo trabalho realizado pelo tradutor. Almeja-se mais justamente porque se vê a possibilidade para tanto, impulso esse que não seria possível por força de um trabalho parcial ou insuficiente. É pela magnitude de empreitadas como essa, da tradução, que Schopenhauer não é só revalorizado, mas também restituído de sentido valorativo dentro da filosofia.

Notas

1 Nesse sentido, é válida a menção à tese de doutorado de Eduardo Ribeiro da Fonseca, que foi posteriormente publicada em formato de livro: FONSECA, E. R. Psiquismo e vida: sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba: Ed. da UFPR, 2012.

2 De forma poética, Borges considera: “pienso en aquel trágico Philipp Batz, que se llama en la historia de la filosofía Philipp Mainländer. Fue, como yo, lector apasionado de Schopenhauer. Bajo su influjo (y quizá bajo el de los gnósticos) imaginó que somos fragmentos de un Dios, que en el principio de los tiempos se destruyó, ávido de no ser. La historia universal es la oscura agonía de esos fragmentos. Mainländer nació en 1841; en 1876 publicó su libro, Filosofía de la redención.” (BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, p.58).

Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Constructing the world – CHALMERS (SS)

CHALMERS, David J. Constructing the world. Oxford:  University Press Oxford, 2012. Resenha de: BARAVALLE, Lorenzo. O demônio de Carnap. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 1, p. 223-32, 2015.

Não é fácil apresentar o último livro de David Chalmers para seu potencial leitor, já que nele, na verdade, escondem-se muitos livros, muitos caminhos alternativos de leitura e, acima de tudo, muitos estímulos para diferentes reflexões filosóficas. De acordo com as intenções do autor, Constructing the world é um texto de “epistemologia metafísica (ou deveria ser metafísica epistemológica?): grosso modo, epistemologia a serviço de uma imagem global do mundo e de nossa concepção deste” (Chalmers, 2012, p. XX).

Pode-se ver o presente livro como procurando realizar uma versão do projeto de Carnap no Aufbau: aproximadamente, construir um plano (blueprint) do mundo ou, ao menos, construir um plano para um plano, providenciando um vocabulário no qual tal plano pode ser dado (p. XVIII).

Ao longo dos oito capítulos que compõem o livro e dos numerosos excursus, que ampliam o alcance da argumentação principal para a elucidação das mais diversas problemáticas conceituais, Chalmers trata temas que vão desde a metafísica da modalidade até a filosofia da mente, desde a semântica até a filosofia da ciência, e desde a interpretação do empirismo lógico até a epistemologia formal. Dada a vastidão e a profundidade do texto, e tendo em conta que o próprio autor (p. XXV-XXVI) reconhece a importância de privilegiar um caminho de leitura por vez, eu seguirei aqui aquilo que, provavelmente, mais pode interessar ao leitor de Scientiae Studia, isto é, o caminho que, partindo de uma original recolocação do problema do conhecimento e passando por uma reconsideração do legado de Carnap, conduz a uma reflexão sobre a unidade das ciências e a estrutura do mundo. Paralelamente, prestarei atenção às qualidades que a análise de Chalmers possui como ferramenta metateórica.

1 CARNAP ENCONTRA LAPLACE

O titulo do livro de Chalmers é uma clara referência, e homenagem, ao Estrutura lógica do mundo (Aufbau) de Rudolf Carnap (cf. 1967 [1928]). Porém, Carnap não é seu único “herói”. Já nas primeiras páginas, o autor introduz a noção central de toda a obra, a saber, a de escrutabilidade, inspirada em Pierre-Simon Laplace.1 Este último autor, em seu célebre tratado sobre probabilidade, apresenta a conhecida imagem de um intelecto – comumente chamado de “demônio de Laplace” – capaz de determinar, a partir de um certo número de informações sobre a realidade física e potência de raciocínio suficiente, a verdade de qualquer acontecimento passado, presente ou futuro (Laplace, 2010 [1814], p. 42-3). Para o demônio de Laplace, diz Chalmers, “todas as verdades sobre o mundo são escrutáveis a partir de algumas verdades básicas” (p. XIII). A noção de escrutabilidade pode ser entendida, em uma primeira aproximação, como a ideia de que “o mundo é em certo sentido compreensível, ao menos dada uma certa classe de verdades básicas sobre o mundo” (p. XIII). Obviamente, a escolha dessa classe de verdades é tudo menos trivial e, a esse propósito, é geralmente aceito que ela é, em Laplace, tendenciosa, já que pressupõe o determinismo, ou ao menos incompleta, dado que o demônio não tem acesso a verdades fenomênicas, matemáticas ou morais, entre outras.

Chalmers (p. XIV, ss; cap. 1) defende que a noção de escrutabilidade, independentemente dos problemas relacionados com a perspectiva laplaceana, possui um grande valor filosófico. Essa noção denota, muito em geral, uma relação entre a classe de verdades básicas e qualquer outra proposição verdadeira p. Ela foi, ao longo da tradição empirista e, em particular, por Carnap, considerada como uma relação de definibilidade entre conceitos. No Aufbau, a definibilidade é, mais especificamente, associada com a possibilidade de construir – isto é, de mostrar a estrutura lógica de – os conceitos mais complexos (das ciências, por exemplo) a partir de uma relação simples e primitiva, a saber, a da similaridade fenomênica entre as experiências. Ao resgatar a inspiração construcionista carnapiana, Chalmers alinha-se – mais ou menos explicitamente – àqueles autores que, como Richardson (1998) ou Friedman (1999), rejeitam a interpretação clássica do Aufbau em termos fundacionalistas e fenomenalistas (cf. Ayer, 1946; Quine, 1951). A escolha da base fenomênica, entendida como coleção de dados dos sentidos (sense-data), para a construção dos conceitos mais complexos, não é essencial na realização do projeto carnapiano. Carnap mesmo, além de admitir explicitamente a possibilidade de partir de outro tipo de base, fisicalista (Carnap, 1967 [1928], §59), para realizar a mesma tarefa, acaba tentando construir a estrutura conceitual do mundo inteira a partir de uma base puramente lógica (§153-5); desfazendo-se, portanto, dos pressupostos fenomenalistas.

Essa flexibilidade na hora de escolher os elementos básicos da construção, porém, não ajuda Carnap frente a outro tipo de crítica. O problema principal do Aufbau, de acordo com Chalmers, é a identificação da escrutabilidade com uma relação de definibilidade puramente extensional. A maioria dos conceitos – ou, em outros termos, a maioria das verdades não básicas – não podem ser reduzidas a outros conceitos (ou verdades) mais básicos de maneira que estes últimos constituam suas condições necessárias e suficientes (cf. Wittgenstein, 1953; Kripke, 1980). Prova disso é que, para quase qualquer definição, é possível encontrar contraexemplos. Carnap, mais uma vez, reconhece esse problema, e tenta resolvê-lo por meio de critérios intencionais (cf. Carnap, 1947; 1955), vale dizer, regras semânticas que identificam apenas contextualmente o valor de verdade de uma determinada expressão. Inspirando-se nessa solução, Chalmers (p. 12-9) nega que a relação de escrutabilidade seja propriamente definicional. Para que sentenças não básicas sejam escrutáveis a partir de sentenças básicas, não é necessário que sejam disponíveis definições extensionais – as quais, quando presentes, são fundadas na relação de escrutabilidade, e não vice-versa –, mas apenas intenções, as quais permitem, por si só, determinar seu valor de verdade com suficiente exatidão, dado um certo cenário epistêmico (p. 204-11; excurso 10). Por exemplo, embora não possuamos nenhuma definição extensional do conceito de “conhecimento” que seja totalmente imune aos contraexemplos de tipo Gettier, ela não parece necessária para que possamos reconhecer que, de fato, os contraexemplos de tipo Gettier não constituem conhecimento: é suficiente uma “definição aproximada” e implícita (cf. p. 204-11; 381-5) do conceito.

Ora, embora Chalmers admita vários tipos de escrutabilidade não definicional,2 para os presentes fins, é suficiente que nos concentremos naquilo que ele considera o mais importante: a escrutabilidade a priori. A noção de escrutabilidade configura-se, nessa interpretação, como uma relação entre uma classe ou “família” (p. 20) de sentenças C, uma sentença S e um sujeito s tal que “S é escrutável a priori desde C por s se e somente se s está na posição de conhecer a priori que se C, então S” (p. 40). A partir dessa relação, Chalmers enuncia a seguinte tese.

Escrutabilidade a priori: existe uma classe compacta de verdades tal que para qualquer proposição p, um intelecto laplaceano estaria na posição de saber a priori que, se as verdades contidas nessa classe são o caso, então p (p. XVI).3

O termo “compacto” define um atributo da classe de verdades básicas, que deve conter sentenças limitadas e evitar trivializações, tais como uma “supersentença” matemática que inclui todos os estados do mundo (cf. p. 20 ss.).4 A característica fundamental da tese é que ela se compromete com a existência de uma base compacta que é suficiente para que um hipotético sujeito (a) tenha acesso a ela, (b) seja capaz de certa potência de raciocínio e (c) possa comprovar que as verdades empíricas contidas nela refletem estados de coisas de nosso mundo ou de algum outro mundo possível, possa escrutar, a priori (isto é, sem precisar recorrer ulteriormente à experiência) a verdade de qualquer sentença. Dessa maneira, o problema de identificar tal base volta a ser central e, para reduzir a complexidade desse problema, Chalmers recorre, nos terceiro e quarto capítulos, a uma idealização análoga ao demônio de Laplace, a saber, o que denomina “cosmocópio”.

2 O PROBLEMA DA BASE: AVENTURAS COM O COSMOCÓPIO

Já no primeiro capítulo, Chalmers introduz ao que, para ele, deveria ser a base a partir da qual “todas as verdades macroscópicas ordinárias são implicadas a priori”.5 Embora, como veremos, seja admitida certa liberdade com respeito à escolha das famílias de sentenças que a compõem, para Chalmers, ela é um conjunto de verdades da física (tanto macroscópicas quanto microscópicas), verdades fenomênicas (referentes a qualia), verdades indexicais (“eu-sou-de-tal-e-tal-maneira”, “agora-é-de-tal-e-tal-maneira”) e uma sentença “isso-é-tudo”, que certifica que não há nada mais (em um determinado mundo possível, ou cenário epistêmico) do que é expressado nas sentenças básicas ou nas sentenças escrutadas a partir delas (p. 111; excurso 5). Para fazer referência a tal base, Chalmers usa o acrônimo PQTI (physics, qualia, that’s all, indexicals). Como antecipei há pouco, para justificar a escolha de PQTI, Chalmers recorre, nos terceiro e quarto capítulos, a uma idealização, o cosmocópio, que se revela muito útil na hora de compreender melhor os problemas filosóficos em jogo e, a meu ver, também como instrumento analítico em geral.

O cosmocópio é um dispositivo imaginário – mas epistemicamente possível – que permite a um determinado usuário, s, estabelecer o valor de verdade de qualquer sentença ordinária M. Ele

armazena todas as informações contidas em PQ[T]I e as torna utilizáveis. Em particular, ele contém (1) um supercomputador que armazena a informação e realiza todos os cálculos necessários; (2) ferramentas que usam P para ampliar uma região qualquer do mundo e para fornecer informações sobre a distribuição da matéria nessas regiões; (3) um dispositivo de realidade virtual que produz conhecimento direto de qualquer estado fenomênico descrito em Q; (4) um marcador “tu estás aqui” que carrega a informação contida em I; e (5) dispositivos de simulação que proporcionam informações sobre contrafáticos, exibindo os estados físicos e fenomênicos que se produziriam sob as várias circunstâncias contrafactuais especificadas por PQ[T]I (p. 114).

Um exemplo ajudará a tornar mais claro o funcionamento do cosmocópio. Imagine-se que queira aferir o valor de verdade da seguinte sentença M: “no dia 10 de outubro de 1820, às 11 horas, Napoleão Bonaparte estava observando uma garrafa de vinho na mesa da sala de sua residência na ilha de Santa Helena”. Ao entrar no cosmocópio, terão acesso a todas as informações relevantes para identificar, sem possibilidade de erro, as características físicas da sala de Napoleão em Santa Helena em 1820. Em particular, poderão conferir que a composição molecular do líquido contido na garrafa na frente de Napoleão corresponde, efetivamente, a, digamos, um Châteauneufdu-Pape de 1812 e não a água colorida, ou a uma ficção produzida por um gênio maligno. Ao mesmo tempo, experimentarão as sensações de Napoleão naquele momento, podendo assim comprovar que ele estava realmente observando (e acreditando estar observando) essa garrafa e não, por exemplo, uma mosca voando na frente dele ou uma alucinação provocada pelo envenenamento por arsênico. Também poderão pedir para o cosmocópio mudar algumas das verdades básicas, de modo a aceder a um mundo possível no qual a garrafa na frente de Napoleão não contém vinho, mas água colorida, e comprovar, assim, se ele continuaria acreditando estar observando uma garrafa de vinho. Novos cenários epistêmicos podem ser obtidos simplesmente inserindo condicionais hipotéticos no cosmocópio, o qual se encarregará de produzir as modificações relevante em PQTI.

A função dessa idealização é mostrar como a base PQTI é suficiente para escrutar qualquer outra verdade, real ou meramente possível. Para isso, é importante notar que o cosmocópio não produz, propriamente, conhecimentos. Ele se limita a fornecer certas informações físicas e representações fenomênicas a partir de PQTI. É o usuário s quem determina o valor de verdade de uma sentença M, à luz das evidências, completas, disponíveis no cosmocópio. Embora amplie impressionantemente os conhecimentos básicos de s e proporcione uma capacidade de raciocínio praticamente ilimitada, o cosmocópio não é nada mais que uma “extensão” de s. Em outras palavras, não é o cosmocópio o demônio de Laplace, mas a união do usuário e do cosmocópio, a qual constitui, em última instância, o sujeito epistêmico ideal. Se aceitamos que o usuário no cosmocópio é efetivamente capaz de determinar o valor de verdade de qualquer sentença ordinária, então aceitamos, ipso facto, que PQTI é a base própria da relação de escrutabilidade. Para quem não estiver convencido, Chalmers mostra, em primeiro lugar – e contra possíveis objeções céticas –, que não é possível que PQTI seja verdadeiro e M falso, que ele chama de “argumento da eliminação” (p. 120-5) e, em segundo lugar, que não há verdades ordinárias que fiquem fora do alcance do cosmocópio, que corresponde ao “argumento da cognoscibilidade” (cf. p. 125-34). Contudo, tudo isso não é suficiente para justificar a tese da escrutabilidade a priori. Para esse fim, Chalmers deve mostrar que, uma vez que s entra no cosmocópio, ele aceita que PQTI→M é verdadeiro independentemente de qualquer experiência, isto é, confiando apenas na relação de escrutabilidade a partir de PQTI.

No quarto capítulo, Chalmers apresenta três argumentos definitivos para aceitar a tese da escrutabilidade a priori com base PQTI. O primeiro é o argumento da suspensão do juízo (p. 159-60). Se nos imaginamos, antes de entrar no cosmocópio, em um cenário cético análogo ao das Meditações metafísicas de Descartes, não é claro em que sentido a experiência jogaria um papel qualquer na aceitação de PQTI→M. Sendo que o cosmocópio, durante o processamento da informação, não é influenciado por nenhuma nova evidência empírica, resulta ao menos plausível que também o usuário que previamente suspendeu o juízo chegue a saber PQTI→M sem recorrer à experiência. O segundo argumento é o da antecipação (cf. p. 160-7). Poder-se-ia pensar que, até depois de uma suspensão do juízo, as evidências empíricas continuem jogando algum papel na posterior aceitação de verdades. Poder-se-ia, então, pensar que s, uma vez entrado no cosmocópio, não sabe realmente PQTI→M, mas PQTI & E→M, onde E é uma evidência empírica. Porém, Chalmers nota que, sendo PQTI suficiente para derivar M, E deve necessariamente estar já incluído em PQTI e, portanto, PQTI & E→M é escrutável a priori. Agora, se somamos todas as evidências empíricas F e tentamos mostrar que elas jogam algum papel na aceitação de PQTI→M, encontrar-nos-emos, analogamente, na situação em que PQTI & F→M é escrutável a priori. Finalmente, com o argumento que poderíamos chamar de “o papel justificativo” (cf. p. 167-9), Chalmers mostra que qualquer referência à experiência durante o uso do cosmocópio (pensem no nosso exemplo acerca de nossas percepções “napoleônicas”) não joga realmente um papel justificativo em PQTI→M, mas apenas causal ou de intermediação.

3 A UNIDADE DA CIÊNCIA E A ESTRUTURA DO MUNDO

Mas afinal quais são exatamente as sentenças que compõem PQTI? Em realidade, mais do que uma base determinada, ele representa, para Chalmers, um ponto de partida para definir, em claro espírito carnapiano, classes de verdades básicas mais fundamentais, isto é, subconjuntos mínimos dotados de alguma prioridade conceitual (cf. cap. 6-7), as quais, por sua vez, permitem formular novas versões de escrutabilidade (cf. cap. 8) – todas rigorosamente a priori –, com as mais diversas finalidades filosóficas. Diferentes bases mínimas servem para defender teses epistemológicas, semânticas ou metafísicas distintas, e é justamente nisso que reside a versatilidade da proposta de Chalmers. Embora, ao longo do livro, o autor expresse suas opiniões pessoais com respeito a várias temáticas, a tese da escrutabilidade a priori é, principalmente, um instrumento metafilosófico que pode ser empregado por pensadores das mais díspares tendências. Para dar um exemplo disso, apresentarei, na última parte desta resenha, a relação entre a escolha de bases restritas e a estrutura científica do mundo, a partir do que, para Chalmers, é uma consequência necessária da tese da escrutabilidade a priori, a saber, a unidade da ciência (cf. excurso 10).

A conexão entre a tese da escrutabilidade a priori e a unidade da ciência é bastante evidente quando pensamos que, conforme a primeira, todas as verdades e, portanto, todas as verdades científicas são escrutáveis a partir de uma certa base. Dado que, intuitivamente, as verdades científicas contidas em PQTI são principalmente verdades da física, resulta quase espontâneo considerar o reducionismo como uma consequência da tese da escrutabilidade a priori; o que é, de acordo com Chalmers (p. 302), admissível, mas deve ser tomado com cuidado. Como já vimos, a relação de escrutabilidade não é uma relação de definibilidade e, portanto, o reducionismo sugerido por ela é muito mais fraco que o reducionismo tradicional, fundado sobre critérios de significado dos empiristas lógicos (cf. Hempel, 1965, cap. 4). A escrutabilidade com base PQTI é compatível com o pluralismo e com diferentes enfoques metateóricos (p. 309). Por exemplo, ela não implica – embora tampouco exclua – o fisicalismo. O fisicalista é alguém que aceita, como verdades básicas, algo como PQTI (p. 290-8), isto é, uma versão de PQTI na qual as verdades contidas em P são apenas verdades microfísicas ou, em um caso mais extremo, apenas PTI ou P, isto é, famílias de sentenças puramente físicas (para este último tipo de fisicalista, as qualidades (qualia) seriam totalmente escrutáveis a partir de estados físicos). Contudo, o fisicalismo não é a única (e, segundo Chalmers, nem a melhor) opção de “redução”.

Os metafísicos discutem se o universo inteiro é mais fundamental do que as simples partes: os monistas sustentam que o todo funda as partes, enquanto os pluralistas sustentam que as partes fundam o todo. Analogamente, os fisicalistas sustentam que o físico é fundamental e funda o mental, enquanto os idealistas sustentam que o mental é fundamental e funda o físico, e os dualistas sustentam que tanto o físico quanto o mental são fundamentais (…). PQTI não resolve essas questões: ele é compatível tanto com a perspectiva monista como com a pluralista, e com as perspectivas fisicalista e dualista e, talvez, com a idealista (p. 270).

Novamente, a inspiração é o próprio Aufbau carnapiano, o qual, além de oferecer bases alternativas (fenomênica, fisicalista ou lógica), mostra indiferença ou, melhor dito, “tolerância” com respeito a várias posições filosóficas (cf. Carnap, 1967 [1928], §75, §177-8; Friedman, 1999, p. 132 ss.). Para Chalmers, todos os conceitos candidatos para formar parte de PQTI podem constituir alternativamente, dependendo de como sejam interpretados, elementos básicos ou derivados da relação de escrutabilidade (exceto T e I, os quais parecem formar necessariamente parte da base). Como demonstração disso, no sétimo capítulo, são explicitadas as principais opções na escolha da classe mínima de conceitos básicos. Com relação a P, por exemplo, é igualmente aceitável definir os conceitos microfísicos como básicos (fisicalismo) ou como escrutáveis, por “ramseyficação” de conceitos macrofísicos e observacionais (p. 319-21). Quanto a Q, podemos considerar as qualidades secundárias (como cores, sons etc.) como primitivas, ou escrutáveis de interações fenomênicas entre sujeitos e objetos (funcionalismo conceitual) (cf. p. 321-4). Há, depois, outros conceitos básicos de difícil classificação, cujo status epistemológico e metafísico é objeto de disputa. Os conceitos de espaço e tempo e todas as expressões nômicas, por exemplo, podem ser considerados primitivos com respeito às entidades físicas e aos estados fenomênicos, mas também escrutáveis, idealisticamente, de conceitos fenomênicos ou, alternativamente, de certas distribuições (micro ou macro) físicas (cf. p. 325-40). É possível ainda que as verdades mais básicas da física sejam escrutáveis, em realidade, de verdades metafísicas mais primitivas (quidditas) (cf. p. 347-53). Tomando certas verdades metafísicas como, por exemplo, a irredutibilidade dos estados psíquicos, isto é, o pampsiquismo, que é uma posição cara a Chalmers (cf. 1996, p. 293-301; 2012, p. 359-61) – como básicas, é possível redefinir inteiramente a ordem das outras verdades escrutadas.

Como consequência dessa liberalidade filosófica, no oitavo capítulo, várias combinações compactas de conceitos básicos são apresentadas explicitando a estrutura do mundo, a qual é, a partir delas, escrutável (p. 406-22). Assim, caracterizar a base como uma classe de sentenças sobre coordenadas espaço-temporais conduz a conceber o mundo como uma estrutura quase matemática; escolher regularidades nômicas implica caracterizar a estrutura do mundo como fundamentalmente legiforme; uma base fenomênica pode definir uma estrutura análoga à do Aufbau ou, se nela são introduzidas certas verdade metafísicas, pampsiquista; finalmente, se a base é metafísica, a estrutura resultante será caracterizada pelas propriedades das quidditas aceitas. Bases híbridas e estruturas intermédias podem satisfazer outras sensibilidades metateóricas. Trata-se, contudo, apenas de esboços, já que (além do fato de não ser esta lista exaustiva), em cada caso, haveria – como Chalmers mesmo reconhece – que dedicar muito mais detalhe ao vocabulário, à forma das verdades básicas e às modalidades de construção das outras verdades. Chalmers declara, no final de sua obra, que

eu não escrevi nenhum desses Aufbaus aqui (…), [mas] na medida em que a tese da escrutabilidade a priori é verdadeira, algum desses Aufbaus será possível. Haverá um vocabulário básico limitado no qual expressar as verdades básicas. Outras verdades serão deriváveis a partir dessas, ou por inferência a priori ou por uma definição aproximada. A estrutura geral dependerá da visão filosófica de cada um sobre a fenomenologia, o espaço-tempo, as leis da natureza, a quidditas, a normatividade, a intencionalidade, a ontologia, e assim por diante. Os detalhes dependerão de questões empíricas sobre física, fenomenologia e outros domínios. Mas temos razão de crer que um Aufbau bem-sucedido existe, em algum lugar do espaço filosófico (p. 429-30).

Estudar o livro de Chalmers, e empregar suas sofisticadas ferramentas analíticas, sem dúvida, aproxima-nos desse lugar.

Notas

1 Há, ainda, um terceiro “herói” no livro de Chalmers, Frege, do qual o autor pretende resgatar, por meio de certas aplicações da noção de escrutabilidade, a teoria do significado e a distinção entre sentido e referência.

2 Estes, além de constituírem-se a partir de bases distintas, podem ser, principalmente, inferenciais ou condicionais. A distinção remete às modalidades de conhecimento próprias de, respectivamente, um demônio laplaceano real ou meramente possível. Com o fim de evitar uma série de consequências paradoxais – in primis, o paradoxo de Fitch sobre a cognoscibilidade (cf. Fitch, 1963; Chalmers, 2012, p. 29 ss.) –, Chalmers expressa uma clara preferência para o segundo tipo de escrutabilidade, mas não precisamos aqui entrar nos detalhes. Para isso, ver Chalmers (2012, cap. 2).

3 Chalmers distingue, no texto, “escrutabilidade” (com caixa baixa), para se referir a uma relação de escrutabilidade, de “Escrutabilidade” (com caixa alta), para introduzir uma tese sobre escrutabilidade (p. 39).

4 Note-se certa ambivalência, por parte de Chalmers, na caracterização das verdades como “sentenças” ou “proposições” verdadeiras, na apresentação de diferentes relações ou teses de escrutabilidade. Em geral, eu não diferenciarei aqui entre os dois termos, mas empregarei de preferência “sentenças”, conforme as recomendações de Chalmers (cf. p. 42-7; excurso 3).

5 São excluídas, das “verdades macroscópicas ordinárias”, as verdades sobre a matemática, a moralidade, a ontologia, a intencionalidade, a modalidade e algumas outras, as quais são tratadas como casos especiais no sexto capítulo. Não apresentarei o conteúdo desse capítulo no corpo da resenha, mas vale a pena precisar duas questões. A primeira, terminológica, é que o atributo “macroscópico”, com relação às verdades escrutáveis, não se opõe necessariamente a “microscópico”. Verdades relacionadas com a estrutura da matéria, por exemplo, são escrutáveis. Apenas algumas verdades no domínio quântico são excluídas pelas verdades macroscópicas ordinárias e representam casos especiais. Em segundo lugar, é importante ressaltar que inclusive essas verdades especiais são escrutáveis, uma vez que sejam aportados certos ajustes na base (discutidos nos sexto e sétimo capítulos).

Referências

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_____. The logical structure of the world. Oakland: University of California Press, 1967 [1928]. Chalmers, D. J. The conscious mind. Oxford: Oxford University Press, 1996.

_____. Constructing the world. Oxford: Oxford University Press, 2012.

FITCH, F. B. A logical analysis of some value concepts. Journal of Symbolic Logic, 51, p. 135-42, 1963.

FRIEDMAN, M. Reconsidering logical positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

HEMPEL, C. G. Aspects of scientific explanation and other essays in the philosophy of science. New York: The Free Press, 1965.

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QUINE, W. van O. Two dogmas of empiricism. Philosophical Review, 60, p. 20-43, 1951.

RICHARDSON, A. Carnap’s construction of the world: the Aufbau and the emergence of logical empiricism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

WITTGENSTEIN, L. Philosophical investigations. London: Macmillan, 1953.

Lorenzo Baravalle – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, Brasil. E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

Atmosfera, ambiência, stimmung – GUMBRECHT (Topoi)

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre o potencial oculto da literatura. Tradução Ana Isabel Soares, Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014. Resenha de: VIEIRA, Thaís Leão. Para além do paradigma da representação: o passado-feito-presente por meio de obras literárias. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Desconstrutivismo e estudos culturais são duas perspectivas teóricas e metodológicas bastante conhecidas para quem trabalha com linguagens. De um lado, a presença de um campo que defende a inexistência de qualquer contato entre a linguagem e a realidade e, por outro lado, os estudos culturais, tributários do marxismo, que por sua vez, ao creditarem maior ênfase na dimensão empírica das obras, se despreocupariam com a questão epistemológica. A saída para essas duplas abordagens é proposta por Hans Ulrich Gumbrecht, para quem a leitura das obras literárias deve retomar a vivacidade da literatura. Para que essas leituras se deem para além das representações, o autor propõe encontrar a atmosfera e o ambiente e posteriormente devolvê-las em um novo presente.

“É correto que o ensaísta busque a verdade”, escreveu [Lukács], “mas deve fazê-lo à maneira de Saul. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um reino; assim será com o ensaísta – aquele que é de fato capaz de procurar a verdade -; encontrar, no final de sua busca, aquilo que não procurava: a própria vida” (p. 29). Dessa forma, Gumbrecht apresenta sua perspectiva que não intenta o alcance da verdade, mas sugere que, ao se concentrar nas atmosferas e ambientes, os estudos literários se dirigem às obras “como parte da vida no presente”. A questão das atmosferas e ambientes, entretanto, deve aparecer mais do que os níveis de representação das obras, no sentido de Gumbrecht. A leitura do stimmung, que não distingue a experiência estética da experiência histórica, permitirá reter a vitalidade da literatura. Ao fazê-lo, o foco incide não apenas na experiência histórica vivenciada pela obra literária no momento de sua produção, ou seja, a obra não torna presente apenas um momento do passado, porém, na perspectiva de Gumbrecht, a análise da obra revela muito da nossa imediatez histórica. Em outras palavras, por que em determinados momentos os ecos de determinadas obras são maiores do que em outros períodos?

A relação entre o olhar voltado ao stimmung e o efeito de presença como um objeto de pesquisa é nítida em Atmosfera, ambiência, stimmung, lançado em 2014 no Brasil. Grumbrecht recupera os sentidos de stimmung em quatro momentos fundamentais: a era moderna, o romantismo, o século XIX na pintura histórica e na arquitetura historicizante e pós-segunda Guerra Mundial. Mais importante para Gumbrecht é a virada na história do conceito, quando stimmung deixa de exercer o papel de harmonia e mediação, pois é justamente aí que se transforma em uma categoria universal – essa dimensão permite ao autor buscar a atmosfera e o ambiente “característico de cada situação, obra ou texto”.

A questão do observador e da “crise da representação”, identificada por Michel de Foucault em As palavras e as coisas, interessa especialmente em dois momentos do livro, ambos no contexto do século XIX. O ato de observar o mundo e se colocar nesse processo de observação coloca o artista ­Caspar ­David Friedrich e o escritor ­Machado de Assis em posição de suma importância para Gumbrecht. Os observadores que se apresentam nas obras de Friedrich, em sua maioria ocupando lugar central no espaço pictórico, são partícipes de certa atmosfera, colocada pelo autor alemão radicado nos Estados Unidos por meio de dois problemas. O primeiro é a relação entre a experiência e a percepção. Contrariamente à tradição herdada dos séculos XVII e XVIII do pensamento racionalista, o observador de segunda ordem deu forma à epistemologia do século XIX ao redescobrir “como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consciência, mas implica também os sentidos” (p. 86). Outra consequência da função do observador é a referência ao ângulo específico da observação – para cada objeto potencial de referência, uma infinidade de descrições, o que resulta na perda da estabilidade dos objetos de referência. Pelas leituras das obras pictóricas, algo se produz de forma disseminada no final do século XVIII, quando grandes pensadores citados por Gumbrecht, como Goethe e Kant, buscavam a harmonia entre a existência e as coisas do mundo. As imagens que os quadros apresentam remetem ao sublime incompatível com a harmonia, dando ao observador uma sensação de desprazer.

A ideia de temporalidade como elemento constitutivo das atmosferas e ambientes surge no texto sobre Memorial de Aires, de Machado de Assis, que Gumbrecht associa com a dimensão do tempo posta na obra Ser e tempo, de Martin Heidegger. Para ­Gumbrecht, Memorial de Aires não é um livro apenas sobre tristeza, mas a obra nos diz de que modo a tristeza pode adquirir substância no tempo “entre um futuro existencial sem ‘conteúdo’, um presente vazio e um passado que não desaparece, o tempo tem necessariamente de se mover com lentidão – como que se aproximando do ponto de imobilidade absoluta” (p. 120). Se, no presente, o autor (o conselheiro Aires) encontra um vazio, há algo dessa escrita que ­Gumbrecht nos revela: que ao dizer sobre nada, ela dá forma a determinada existência, talvez a do mundo colonial e das ilusões perdidas. O diário do autor ficcional Aires é, nesse sentido, um livro sobre nada, que Flaubert objetava como projeto estético. Aires escreve quando não há nada que mereça registro em sua vida. Assim como seus amigos, os Aguiar, são sozinhos, Aires também o é, e ambos possuíam no passado uma felicidade perdida para sempre, combinada com a consciência da perda do presente e do futuro. Outro aspecto trazido por Gumbrecht da obra de Machado é que o autor do memorial, o conselheiro Aires, é um observador de segunda ordem, aquilo que Foucault considerou como a crise da representação, uma vez que o sujeito do conhecimento se torna ele mesmo objeto. E ao serem colocadas dessa forma, “as conquistas do observador de segunda ordem incluem a descoberta de que cada representação do mundo depende da perspectiva” (p. 118), ou seja, da tomada de consciência do observador de que o ponto de onde ele observa define a representação de determinado objeto, no caso específico, o reconhecimento de Aires sobre “a saudade de si mesmos” dos Aguiar, que implica um vazio no presente e uma falta de projeção para o futuro.

Morte em Veneza, de Thomas Mann, marca o encontro da morte em vida do personagem Aschenbach. O clima atmosférico e as condições meteorológicas na narrativa, bem como as mudanças de tempo verbal, apresentam as transições, a impressão do “tempo parado” e o peso da vida à medida que Tadzio não corresponde ao amor de Aschenbach até a partida desse amor idealizado. O alerta de Gumbrecht no começo do livro, na referência à Lukács, faz com que o autor se preocupe mais em encontrar a vivacidade da obra do que suas possíveis verdades. Nesse ponto, “a morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida, mais do que sua verdade” (p. 105). A presença dessa atmosfera e desse ambiente teria preparado as possibili­dades da filosofia existencial.

A atmosfera dos anos 1960 é discutida no capítulo dedicado à Janis Joplin, especialmente à canção Me and Bobby McGee. Com grande eloquência, talvez esse seja o texto de todos os demais na obra em que o sentido do presente esteja mais forte em Gumbrecht: “só hoje, quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis {…} conseguimos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses {…} na voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado” (p. 127). Ao discutir a narrativa da canção, Gumbrecht encontra no casal Joplin e Bobby a ambiência de sua geração, a metáfora para sua juventude. Ao som do verso “liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder'”, Gumbrecht exemplifica que, ao conhecer Bobby, Joplin perde para sempre a liberdade de quem nada tem a perder, pois ela trocaria todos os dias do seu futuro por um único de seu passado, numa perspectiva de que a felicidade é oposta à liberdade. Porém, não é só o conhecimento dos versos da canção que faz dela pertencente à substância e torna possível recuperarmos o stimmung dessa juventude de outrora, mas nas variações e modulações da voz de Joplin, no registro e nas gravações de canções que mantêm vivo o stimmung daquela geração que pode ser condensada pela voz delicada, sedutora, desesperada de Joplin de Me and Bobby McGee, que não precisa unicamente dos sentidos das palavras para recuperar as atmosferas e estados de espírito que a voz de Joplin evoca.

Na última parte do livro, com referência à filosofia, especialmente à situação após a Primeira Guerra Mundial, Gumbrecht se volta para o que foi considerado como os “loucos anos 20” e o clima posterior à Grande Guerra. Nesse contexto, o autor indica que esses foram os anos que levaram à morte do sujeito moderno e ao fim do papel do herói, que deveria ter dado leveza ao peso da existência humana, porém, não o fez. O clima desse período foi retratado numa metáfora que deduz, dessa atmosfera de incertezas e profunda desorientação, que “o chão fugira sob nossos pés”. Gumbrecht reconhece na filosofia de Martin Heidegger uma experiência que dá sentido àquela situação histórica, devolvendo à “existência individual humana o ‘chão que havia desaparecido sob os pés'” (p. 151). Identificar a dinâmica que constitui a existência poderia, para Gumbrecht, naquele contexto, apontar o que impedia tais dinâmicas; em outras palavras, poderia indicar o que levaria à incompletude das vidas individuais.

Claramente, Grumbrecht observa uma tensão entre vitalismo e razão nos anos 1920 e o exílio de felicidade como um emblema e sintoma desse tempo. Assim como na filosofia existencial de Heidegger, na obra de Unamuno sobre o sentimento trágico da vida, as possibilidades positivas eram vistas como ilhas dentro do sentido trágico da vida. É nesse ponto que Gumbrecht dá aos leitores a expressão daquilo que ele considera como uma estetização da vida, como parte dessa visão trágica, a partir da tensão entre o que ele chama de “sobriedade” e “êxtase”. Um dos gestos de sobriedade era a busca por experienciar as coisas do mundo na sua coisidade pré-conceitual, que está presente em Heidgger, em artistas da Bauhaus, Paul Klee, em registros do surrealismo e em designers do período. Essa visão busca a sensação pela dimensão corpórea e espacial da nossa existência, voltando-se para posições mais modestas e menos monumentais. Isso justificaria a suposta excitação pela arte primitiva. De outro modo, a década de 1920 também comportou, nas possibilidades de se alcançar a felicidade pela intensidade, perigo e excitação e a alegria de viver poderia ser encontrada nos “topos das montanhas ou dos arranha-céus” (p. 155).

A sensibilidade-chave de Gumbrecht demonstra, aos nossos olhos, uma abordagem interpretativa do passado em que, nesse complexo contexto de exílio da felicidade, experiências históricas como o socialismo, que adiava para o futuro um tempo melhor, e o cristianismo, que deixara para a vida no além a esperança da felicidade, não tiveram o êxito do fascismo, que, com a promessa de satisfação imediata, pode ter se constituído em uma atmosfera e ambiência da busca pela felicidade, no aqui e agora, como a atração fatal dos anos 1920.

Atmosfera, ambiência, stimmung sobre o potencial oculto da literatura é um livro edificante, no sentido de que constrói, por meio do sensível, várias presenças. Erige em nós temporalidades que se transformam continuamente, lendo em busca de stimmung, revelando seu potencial dinâmico. O conceito diz, para além da leitura das obras feitas por Gumbrecht, da própria leitura de Atmosfera… pois esta afeta a nós leitores, dadas a disposição, a sensibilidade e a acuracidade com as quais o autor nos revela múltiplas ambiências e vivifica a literatura em/para nós.

Thaís Leão Vieira – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: [email protected].

Consciousness – HILL (M)

HILL, C. S. Consciousness. Nova York: Cambridge University Press, 2009. Resenha de: JUCÁ, Gabriel. Manuscrito, Campinas, v.32, n.2, July/Dec. 2011.

The view that conscious experiences are baffling phenomena of a metaphysically peculiar nature dies hard. Although scientific models of conscious awareness have in recent years been receiving more and more attention, such theories have yet to find room in the imagination of intellectuals. So the fact that scientists have already developed rigorous explanations of phenomena ranging from intentional action to visual perception has, unfortunately for those of physicalist inclinations, failed to capture public imagination. Can philosophers help the physicalist cause?

It is ironic that, in contemporary philosophy of mind, much important work on consciousness shows no distinct philosophical character, at least in the following sense: the positive theoretical contributions could just as well have been made by scientists. The refutations of dualist arguments involving qualia naturally require a firm grasp of contemporary philosophy, but they are evidently not what I mean by “positive theoretical contributions”, that is, actually explaining the data. Think, for example, of Daniel C. Dennett’s (1991, pp. 101-170) ingenious reinterpretations of the color phi experiment and Libet’s “timing of consciousness” puzzle, or of Paul Churchland’s ( 2002) work in praise of recurrent networks. Fascinating as they are, such ideas are hardly convincing to those skeptical about a major role for philosophy in the development of a naturalistic/physicalist perspective on the mind that is both comprehensive and rigorous.

What would such a philosophical view look like? One might try to develop a theory that, in addition to the mandatory tapping into recent empirical research, incorporates careful introspective and philosophical argument in figuring out just what the objects of experience are. Christopher S. Hill, a professor of philosophy at Brown University and a logician of distinction (he is the author of Thought and world: an austere portrayal of truth, reference and semantic correspondence) has set out to do just that. Initially a proponent of type materialism and conceptual dualism, a combo defended on his 1991 book Sensations, he evolved into a representationalist about conscious phenomena. The latter is the view defended on his latest book, Consciousness.

A key idea on Hill’s theory is approaching qualitative states as states of the external objects of perception or properties of bodily states. Following Gilbert Harman’s lead, Hill argues that awareness of qualia is not awareness of characteristics belonging to mental objects per se; instead, awareness of qualia is awareness of properties of intentional objects. Perceptual experience typically involves representing these properties in a transparent way, that is, the properties of the representations themselves are not readily available, unlike the properties of objects that we perceive. This can be justified by an appeal to introspection. As Hill says “It is introspection that shows that our awareness of external objects is not mediated by awareness of internal phenomena, and it is introspection which shows that introspection reveals only the representational properties of experiences” (pp.58-59). When we focus our attention on our visual experience of a given object, for example, we get better detailing of a feature belonging to the object – the brightness of its colors, its mereological relations, and so on. Thus, the most promising approach is a focus on the conscious mind as a representational engine. Moreover, the success of contemporary cognitive science demands just such an approach (p. 70). Indeed, scientific work in both “high level cognitive phenomena” and “lower level perceptual phenomena” presuppose this; Hill is thus led to affirm that scientific developments are the primary argument for the representationalist thesis (ibid.).

Unfortunately for proponents of such a view, there seem to be features of subjective experiences that just can’t be intrinsic to the discriminated objects. When a huge object such as The Moon is seen, for example, we have something that (from the viewpoint of average earthlings) looks rather small, even though it is perception of something enormous. So it appears that in conscious perception we are aware of at least some properties that are tied to a subjective situation, and this subjectivity might very well imply an “internal” character. This is what Hill calls “the problem of appearances” (pp.59-62).

How could those sympathetic to Harman’s view cope with the problem of appearances? Hill believes that such appearances, which he calls “A-properties” (p. 144) are indeed possessed exclusively by the objects of experience, but have a viewpoint-dependent nature. Thus, A-properties are relative to “such contextual factors as distance, angle of view, and lighting” (think of objects with the same light-reflecting properties all over but partially covered in shade: again, we have a grasp of something of a certain color all over but looking different here and there). These considerations set the stage for a Hill’s theory of visual qualia, which are to be identified with A-properties. The qualia involved in bodily sensations differ from the visual ones in not being viewpoint-dependent in this sense, but nevertheless share the crucial feature of not being mental in character. They are properties represented in awareness, not properties of awareness. This representational view extends to all qualia; indeed, even awareness of emotions is such a perceptual phenomenon.

An interesting consequence is the possibility of us being wrong even about our own experiences. In other words, incorrigibility about one’s own sensations gets discarded.  Since in perception there is always an appearance/reality distinction, one could be thinking they’re outraged when actually experiencing a different emotion, such as jealousy. Likewise, you might think you are in pain when you are in fact hallucinating pain (p. 181). But Consciousness‘ main strength is not the demolition of old intuitions of incorrigibility. It is rather the extension of Harman’s introspective insights into a theory of consciousness that is both comprehensive and detailed. The representational perspective allows Hill to tackle the seemingly ineffable realms of pain and emotion as deeply as it has ever been done in philosophy.

Indeed, as surprising as it may sound to those who see awareness of pain as awareness of an intrinsically subjective mental property, pains fit rather smoothly in the representational picture defended by Hill. Here are his arguments: awareness of pain closely resembles straightforward examples of perception. We are able to attend to pains and thus to intensify the contrast between pains and what is in “the background”. We can assign spatial characteristics to pains, such as location. We can assign “parts” to pains, and we also have particularized access to them (as Hill puts it, “if I am aware of the existence of a trio of pains in my arm, I must be aware of each individual member of the trio”). These facts, coupled with the assumptions that experiencing pain also involves subconceptual representations, a priori norms of grouping into wholes and a proprietary phenomenology, strongly suggest that awareness of pain is a form of perception. The objects perceived turn out to be bodily disturbances that involve actual or potential tissue damage (p.177). This means that being aware of pain qualia means representing bodily disturbances. In Hill’s theory, pains are to be identified with such disturbances. A-properties are not mental after all, and neither are pains. And since representation involves the possibility of misrepresenting, we can hallucinate pains. That is the case in cases of phantom limb pain. Patients who present this condition don’t really have pain (p.182).

In the case of emotions, Hill explores the somatic view first proposed by William James in 1884. In a nutshell, the somatic approach says that emotions consist entirely of awareness of bodily changes triggered by biologically significant events. When one’s relative is hurt, for example, their body is guided by instinct to react in a certain way, often with crying, the usual modifications in body language, gesturing and a peculiar pace in the flow of thoughts. The agent’s emotional sensations are nothing more than awareness of these changes. Indeed, as James argued, it is difficult to conceive of emotions in the absence of such awareness. A point in favor of the somatic theory is its predictive power: researchers have verified that involuntary grimacing modifies mood. Another point in favor of the somatic approach is its refutable character. Should one find out that spinal patients (whose awareness of bodily changes is impaired) have the exact same emotional profile (given the same background conditions) of those without spinal injuries, the theory would be in serious trouble. Fortunately for Hill and other proponents of the somatic approach (Portuguese neuroscientist Antonio Damasio is an example), it seems spinal patients do have somewhat different emotional profiles (p. 199). For these reasons, it seems reasonable to conceive of emotional sensations as representations of bodily reactions.

But how can such a theory account for the fact that emotions don’t seem to be about bodily events, but about whatever triggers the events in the first place?  If I grieve, it appears to me that the grief is “directed” at the loss I have had, and not about my somatic reactions to the event. Hill’s contribution here is to complement the previous somatic theories with loops of perceptual imagery “that provides an emotion with its intentional object” (p. 207). Thus, a major obstacle to the somatic approach can be negotiated smoothly.

Sympathetic though this review is, it must be said that the way Hill uses the term “qualia” can be misleading. Hill is faithful to the idea that perceptual qualia are, as Jaegwon Kim says, “the ways that things look, seem, and appear to conscious observers” (p.145). This is perfectly compatible with the account described above, but there is more to it than just that. The term “qualia” carries a deeper significance in philosophical discourse; “the way things look, seem and appear to conscious observers” is usually seen as characterizing mental states. Moreover, this characterization is said to be irreducible. “Qualia” is then used as a crucial theoretical term that states one’s position concerning reduction/elimination. The very deflated qualia mentioned by Hill, on the other hand, could just as well be accepted by qualia eliminativists. After all, who would deny that there are ways things look and appear to those who are conscious?  Eliminativists have basically been saying that there is nothing irreducibly mental in consciousness. In other words, there is no felt quality that is immune to physicalist theorizing/reduction. For this reason, I feel Hill ought to stick to a more neutral term such as “appearances”, and assume a qualia-eliminativist position. His very bland definition of qualia has no theoretical bite.

Another minor flaw on Consciousness is Hill’s confusing treatment of the folk concept of pain. He alleges that the bodily disturbance theory of pain cannot do justice to the incorrigible and intrinsically experiential character of the folk concept. Unfortunately, the latter simply cannot be abandoned, for the folk concept is used to keep track of painful experiences, and this matters a great deal. As a result, we ought to say pain is either the sort of experience we have when certain somatosensory representations are activated (the folk concept) or a bodily disturbance we can be aware of (the representational theory). But is this warranted? Everything in folk psychology is used to keep track of important things, but it would be naïve to expect all of its concepts to be preserved by advanced theorizing. The concept of images seen in one’s mind’s eye, for example, appears to be bankrupt even if it is used to keep track of something quite relevant, namely, visual imagination. Likewise, we shouldn’t expect a philosophical theory of pain to fully honor the folk conception of pain.

Minor complaints aside, Consciousness helps to clarify the issues like few other books in the field. It stands out for comprehensiveness – key concepts are employed in unifying aspects of consciousness that appear very dissimilar. More importantly, though, it incorporates scientific insight without letting scientists do all the relevant work. Philosophy still has important things to say about the human mind.

References

BROOK, A., ROSS, D. Daniel Dennett. Nova York: Cambridge University Press, 2002.         [ Links ]

CHURCHLAND, P. “Catching consciousness in a recurrent net”. In: A. Brooke and D. Ross (eds.) (2002), pp. 64-80.         [ Links ]

DENNETT, D. C. Consciousness explained. Boston: Little, Brown, 1991.         [ Links ]

HILL, C. S. Consciousness. Nova York: Cambridge University Press, 2009.         [ Links ]

Gabriel Jucá – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, Rua Marquês de São Vicente, 225, Rio de Janeiro, RJ, CEP 22453-900, BRASIL, [email protected]

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A história nos filmes, os filmes na história – ROSENSTONE (HH)

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010, 262 p. Resenha de: NICOLAZZI, Fernando. Algumas reflexões sobre história e cinema. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.190-198, março 2011.

A afirmação de que o cinema mantém com o real uma relação, ao mesmo tempo, direta e complexa parece não demandar um esforço argumentativo mais detalhado, mesmo que as características de tal relação não sejam por si só evidentes. Desde que, em 1895, Louis e Auguste Lumière realizaram, no Salon Indien do Grand Café, em Paris, as primeiras exibições públicas de filmes de que se têm notícia, o cinema incorporou para si a função de se constituir como uma forma discursiva, entre tantas outras já existentes, ocupada em representar dimensões variadas da realidade. As cenas filmadas pelos irmãos franceses, na estação de La Ciotat (L’arrivée d’un train en gare à La Ciotat, 1895), exibidas em 1836, apareceram, aos olhos dos espectadores parisienses do final do século XIX, como a reapresentação concreta do movimento da locomotiva, a ponto de, segundo consta, o público correr surpreendido, imaginando que o trem encontrava-se, de fato, a sua frente.

Entre todas as instâncias possíveis do real de que se tem ocupado o cinema desde os seus primórdios, o passado constitui-se, para os historiadores, como uma das mais constantes e mais ricas em consequências. Como indicou Robert A. Rosenstone, em A história nos filmes, os filmes na história, já na primeira década do século XX, foram realizados filmes cujo enredo passavase em algum lugar do passado, para citar o título (traduzido) de um filme que, embora não tenha sido mencionado por Rosenstone, trabalha com a ideia que lhe é cara: a de se experimentar, novamente, os tempos de outrora, desde que cumpridas algumas regras fundamentais, dentre as quais, o desapego a todo e a qualquer vestígio da contemporaneidade (Somewhere in time, 1980).

Com base nessa constatação, a intenção declarada do historiador, que vem, há algum tempo, se dedicando à reflexão sobre a relação do cinema com a prática historiográfica – tendo publicado Visions of the past: the challenge of film to our idea of history, em 1998 –, é “entender como o cinema apresenta o mundo do passado” (ROSENSTONE, 2010, p.13). Mais do que isso, o livro, elaborado para a série didática History: concepts, theories and practice, da editora inglesa Pearson Education, traz a indagação sobre as formas pelas quais os historiadores, acostumados com o discurso escrito, podem oferecer uma compreensão renovada do mundo histórico através da experiência cinematográfica.

A primeira dificuldade, salientada pelo autor, de forma irônica, é, justamente, o fato de os historiadores, para falarem sobre cinema, não conseguirem encontrar outra forma senão a linguagem escrita. O capítulo inicial da obra começa, exatamente, com essa provocação: “isso não deveria ser um livro. São necessárias mais do que palavras impressas em uma página para entender como o cinema apresenta o mundo do passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 13). No entanto, eis aqui um livro sobre a visão histórica do cinema.

Eis aqui, também, um desafio para os historiadores, uma vez que a história, nos livros, e a história, no cinema, apesar de manter algumas semelhanças importantes, constituem-se como dois meios, radicalmente, diferentes para a representação do passado. No caso das semelhanças, elas se consistem, no entendimento do autor, no fato de que as duas modalidades discursivas “referemse a acontecimentos, momentos e movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e do ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de convenções que desenvolvemos para falar de onde nós, seres humanos, viemos” (ROSENSTONE, 2010, p. 14). Já para as profundas divergências entre escrita e filme, o autor ampara-se em uma perspectiva conhecida, desde meados do século XX, que considera que o meio tem implicações profundas na informação transmitida ou, para falar como um dos estudiosos que subsidiam a abordagem de Rosenstone, “o brilhante teórico Hayden White” (ROSENSTONE, 2010, p. 16), em suas palavras, que a forma e o conteúdo devem ser encarados de modo concomitante, no limite, a primeira determinando, fortemente, o segundo. Ou seja, a trasposição do livro para o filme implica, por si mesma, uma mudança considerável, “pois mudar a mídia da história significa mudar igualmente a sua mensagem” (ROSENSTONE, 2010, p. 19).

Para dar conta dessa complexa relação entre história e cinema, o professor de história do California Institute of Technology oferece aos leitores dez capítulos nos quais são contempladas dimensões variadas de tal relação, além de um “guia de leituras essenciais”, ao final do volume, para aqueles leitores dispostos a se enveredarem por estes caminhos. O primeiro deles, A história nos filmes, insere o leitor na discussão, ao mesmo tempo em que demonstra a pretensão do autor, qual seja, a de sugerir que a história pode e deve ser representada por outras modalidades discursivas e mesmo por outros meios (medium), além da forma escrita canônica. Nas suas palavras, trata-se de “quebrar uma prática antiga que passou a ser considerada imutável – a noção de que um passado verídico só pode ser contado por palavras impressas em uma página” (ROSENSTONE, 2010, p. 19). Através de um breve registro biográfico, no qual Rosenstone indica como e quando começou a se interessar pelo tema, ele salienta o impacto que o conhecimento da obra de teóricos como Hayden White e Frank Ankersmit teve na sua forma de compreender a prática historiográfica. Ambos ofereceram ao autor a noção de que todo discurso que toma o passado como objeto é, por natureza, um discurso metafórico. Ou seja, que ele não pode ser nunca uma representação transparente do real, mas que funciona por meio de uma inovação semântica na qual a linguagem tem um papel constituinte importante. Nesse sentido, os filmes constituem-se, para ele, como modalidades legítimas de discurso sobre o passado. Assim, afirma que alguns cineastas podem, inclusive, ser considerados como historiadores.

O segundo capítulo, intitulado Ver o passado, trata, de forma mais direta, do problema analisado pelo autor, ou seja, o das particularidades da representação histórica realizada nos filmes. Rosenstone sugere que os avanços tecnológicos ocorridos, no cinema, ao longo do século XX, não afetaram, decisivamente, a qualidade histórica, isto é, a historicidade dos ditos “filmes históricos”. Além disso, oferece três categorias através das quais é possível perceber diferenças na forma pela qual o passado é tratado em imagens cinematográficas: o “longa-metragem dramático”, o “documentário” e, por fim, o “filme histórico inovador ou de oposição”. Cada uma dessas categorias é tratada nos três capítulos subsequentes.

Na continuação do capítulo, o autor realiza uma espécie de retrospecto das produções dos historiadores voltadas para as relações entre cinema e história. Dentre todas, é dado destaque para o livro Slaves on screen (2000), da historiadora Natalie Zemon Davis, autora de The return of Martin Guerre (1ª. edição em inglês 1983), cuja história também serviu de base para o filme francês Le retour of Martin Guerre (1982), de Daniel Vigne, no qual a própria autora trabalhou como consultora durante a pesquisa para a elaboração de seu livro. Na obra discutida por Rosenstone, Davis procurou refletir sobre as diferentes maneiras pelas quais a experiência histórica da escravidão, desde o mundo antigo até os contextos coloniais modernos, foi representada pelo cinema. Embora reconheça a importância e a relevância dessa perspectiva, toda a crítica à abordagem da autora, que ressalta, em diversos filmes, o descompasso entre a representação e a realidade histórica representada, reside no fato de que, para Rosenstone, ela se baseia em uma cultura livresca para a avaliação das obras de cinema. Assim, o historiador sustenta que “às vezes, parece que a sua [de Davis] resposta às deficiências dos filmes seria torná-los mais parecidos com livros – ou pelo menos fazer com que eles seguissem mais de perto as regras da história tradicional” (ROSENSTONE, 2010, p. 53).

Nesse sentido, à reivindicação da historiadora para que “os filmes históricos [deixem] que o passado seja o passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 53), o autor contrapõe o seu pleito: “deixe que os filmes históricos sejam filmes” (ROSENSTONE, 2010, p. 53). Para ele, portanto, é preciso encontrar outras formas de avaliação dos filmes históricos, que não seja as mesmas utilizadas para o que considera como a história tradicional da academia.

Em Drama comercial, terceiro capítulo do livro, Rosenstone aborda a primeira das categorias, anteriormente, mencionadas: os filmes de caráter, declaradamente, mercadológico e de maior apelo ao público. Novamente aqui, evidencia-se a necessidade do estabelecimento de padrões próprios para se julgar o caráter histórico de um filme. O autor menciona uma série de críticas elaboradas por historiadores a esse tipo específico de filmografia, salientando suas próprias divergências com relação a elas, sobretudo à forma como as obras cinematográficas são ali encaradas. Então, faz um questionamento: “ao avaliarmos filmes históricos, é fácil criticar o que vemos. Mas pergunte o que esperamos que um filme seja ou faça e, basicamente, nós, historiadores, não sabemos o que responder. Só insistimos que o filme deve aderir ‘aos fatos’” (ROSENSTONE, 2010, p. 59). No seu entendimento, “a nossa reação básica é pensar que um filme na verdade é um livro transposto para a tela, o que significa que ele deveria fazer a mesma coisa que esperamos de um livro: acertar os fatos” (ROSENSTONE, 2010, p. 60). Entretanto, o objeto “filme histórico” não se presta apenas a isso, uma vez que trata-se de um drama, uma interpretação, uma obra que encena e constrói um passado em imagens e sons. O poder da história na tela emana das qualidades singulares da mídia, da sua capacidade de comunicar algo não apenas de maneira literal (como se alguma comunicação histórica fosse totalmente literal) e realista (como se pudéssemos definir realisticamente o realismo), mas também, nas palavras de [Gerda] Lerner, de ‘maneira poética e metafórica’ (ROSENSTONE, 2010, p. 60).

Para Rosenstone, é preciso levar em consideração que os filmes históricos são formas particulares e “tentativas sérias de dar sentido ao passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 62). Daí sua demanda, que atravessa todo o seu livro: “está na hora de parar de esperar que os filmes façam o que (na nossa imaginação) os livros fazem” (ROSENSTONE, 2010, p. 62). Por exemplo, mesmo que as duas mídias discutidas possam ser consideradas como formas metafóricas de representação do real, os mecanismos ficcionais dos filmes são distintos daqueles encontrados nos livros. No cinema, segundo o autor, é possível trabalhar fatos históricos por meio de “compressão ou condensação” (quando muitos eventos passam a se concentrar em apenas um), “deslocamentos” cronológicos (como consequência direta da condensação), “alterações” (atribuição de sentidos que, talvez, não fossem condizentes com o fato representado), além da “invenção de diálogos e personagens” (ROSENSTONE, 2010, p. 64) não existentes, de forma a auxiliar na construção do significado histórico mais geral do filme. Para Rosenstone, este é o ponto mais fundamental da questão. Ou seja, a aderência ao real não é nem deve ser o critério primordial para a avaliação do papel do cinema diante da história. Segundo o autor, são tais elementos fictícios “que criam a contribuição do filme histórico, que reside exatamente no nível do argumento e da metáfora, especialmente quando há uma interação com o discurso histórico mais amplo” (ROSENSTONE, 2010, p.65). Dessa maneira, “o filme estabelece uma relação, um reflexo, um comentário e/ou uma crítica com o corpo já existente de dados, argumentos e debates sobre o tópico em questão” (ROSENSTONE, 2010, p. 65).

No capítulo seguinte, Drama inovador, o autor analisa o que ele define, de forma discutível, como “filme histórico experimental ou inovador”. Trata-se, de modo geral, de filmes com uma abordagem considerada, politicamente, crítica pelo historiador. Através da análise do filme Outubro (1927), realizado pelo cineasta russo Sergei Eisenstein, e da sua comparação com cinco relatos escritos, entre 1919 e 1996, sobre os eventos da revolução de outubro na Rússia, Rosenstone busca testar as afirmações e os procedimentos sugeridos, nos capítulos anteriores, e, sobretudo, pensar de que forma o filme histórico “ao mesmo tempo estabelece uma relação e acrescenta algo ao discurso histórico do qual nasce e ao qual necessariamente se refere” (ROSENSTONE, 2010, p. 82). Dessa maneira, defende que, mais do que registrar fatos tal como eles, efetivamente, aconteceram, o filme de Eisenstein transmite significados que dizem respeito à “importância dos acontecimentos sociais e políticos em Petrogrado no outono de 1917” (ROSENSTONE, 2010, p. 105), situando-o no entremeio que separa, segundo Aristóteles, a poesia da história. Outubro é, na concepção de Rosenstone, a conjunção, na tela, entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido.

No quinto capítulo, intitulado Documentário, é, justamente, esse formato cinematográfico que, no senso comum, mais se aproxima do trabalho dos historiadores, o que é examinado. Filmes tais como Le chagrin et la pitiè (1969), de Marcel Ophüls, e o polêmico filme-testemunho de Claude Lanzmann, Shoah (1985), entram nessa categoria. Contudo, novamente, o autor estabelece um recorte mais específico para suas reflexões. No caso, o tópico escolhido é a guerra civil espanhola tal como foi registrada em alguns filmes. A tese de Rosenstone, que não é nenhuma novidade, é a de que mesmo essa modalidade fílmica, cuja definição pode conduzir ao equívoco de se tomá-la como simples documento do real (e acaso algum documento é, de fato, simples?), não se constitui como registro mais ou menos verdadeiro da história, mas sim emerge como apenas outra forma, elaborada segundo critérios diversos, de discurso sobre fatos do passado. Todo documentário oferece uma argumentação sobre o real, pautada por escolhas que são, conscientemente, determinadas. O valor de crença que é possível imputar aos documentários, no limite, não é mais forte do que, por exemplo, aquele voltado para os chamados “dramas comerciais”. Em última instância, compete ao espectador acatar ou não o argumento oferecido pelos autores de filmes documentários.

No sexto capítulo, Contando vidas, o autor trata do gênero das cinebiografias, argumentando, entre outras coisas, que essa é uma modalidade em que, à semelhança das biografias escritas, a presença do fictício manifestase de forma clara e contundente. Para ele, a ficção imposta por um enredo, o uso criativo dos fatos, a tradução necessária para tornar a vida compreensível e interessante – todos esses elementos que fazem parte da escrita biográfica tradicional (e do romance histórico) também marcam a cinebiografia (no qual parte da tradução envolve o uso da mídia visual e do som) (ROSENSTONE, 2010, p. 139).

Novamente, aqui, para tratar do tema mais geral escolhido, um recorte preciso é efetivado. Rosenstone analisa três longas-metragens que trataram da vida de John Reed, escritor norte-americano autor de The ten days that shook the world (1919), escrito com base no seu próprio testemunho da revolução bolchevique. Os filmes são Reed, México insurgente (1973), do mexicano Paul Leduc, Krasnye Kolokola (1982), do diretor soviético Sergei Bondarchuk, e Reds (1981), dirigido por Warren Beatty. O próprio autor esclarece os motivos da escolha desse tema. Além de ter escrito uma biografia sobre o personagem (Romantic revolutionary: a biography of John Reed, 1975), atuou, durante oito anos, como consultor histórico para a produção de Warren Beatty.

Coerente com todos os pressupostos salientados ao longo do livro, Rosenstone sugere, nessa análise, que “as cinebiografias, como todas as obras que lidam com o passado, são entidades com significados instáveis que mudam ao longo dos anos, obras que são interpretadas e entendidas de acordo com plateias e indivíduos específicos” (ROSENSTONE, 2010, p. 162). Em seguida, no capítulo Cineasta/historiador, Robert Rosenstone chega ao ponto que talvez incomode mais seus pares da academia, pois defende a ideia de que um cineasta pode ser, legitimamente, encarado como um historiador.

Dessa vez, é a obra cinematográfica de Oliver Stone ou, pelo menos, a parte histórica dela que lhe serve como objeto para sua discussão. A escolha devese ao fato de que, para o autor, “nenhum cineasta americano nos últimos cinquenta anos esteve mais obcecado por questões históricas ou gerou mais polêmica pública do que o diretor Oliver Stone” (ROSENSTONE, 2010, p. 166).

Relacionada a essa consideração, que torna o cineasta um objeto privilegiado para a reflexão, está a ideia de que, tomando sua obra como história, fruto de uma prática, propriamente, historiográfica, é possível oferecer uma definição ampliada do que pode ser considerado o gênero histórico. Para Rosenstone, alguns dos cineastas que se interessam pelo passado têm o mérito de o tornar significativo por três razões inter-relacionadas: seus filmes permitem visualizar, contestar e revisar a história.

No caso de Oliver Stone, filmes como Platoon (1986), Born on the fourth of july (1989), JFK (1991), Nixon (1995), entre outros, ocasionaram fortes discussões na história recente dos Estados Unidos. Entretanto, é justamente a forma dos cineastas narrarem os fatos históricos o que chama a atenção de Rosenstone, como quando, talvez com um impressionismo exagerado, considera que “Stone sempre parte para a jugular, usando todos os efeitos à sua disposição para intensificar a experiência da plateia, como que para se certificar de que você sentirá tanto quanto os personagens a dor (há pouca alegria em seus filmes) da história” (ROSENSTONE, 2010, p. 187). Muito desse tipo de formulação pode ser encarado como eco das ideias de Frank Ankersmit apresentadas no livro Sublime historical experience (2005) ainda que o título não faça parte da bibliografia trabalhada por Rosenstone. Ankersmit sugere, por meio de uma reflexão que não deixa de ser polêmica, a possibilidade da experiência efetiva de um mundo de outrora, efetivamente passado. A posição de Rosenstone em relação ao cinema parece ser, exatamente, esta: o filme permite estabelecer com a história uma relação talvez mais intensa do que aquela propiciada apenas pela leitura das palavras impressas no papel.

Dando continuidade a essa ideia, ao indagar “que tipo de mundo histórico um filme dramático propõe?” (ROSENSTONE, 2010, p. 197) o autor inicia o oitavo capítulo, Interagindo com o discurso. O tema escolhido não deixa de ser problemático, pois diz respeito aos filmes que tratam do holocausto. Após discutir alguns desses filmes, pautado na concepção defendida ao longo do livro, de que o passado é sempre mais ou menos “violado” (o termo é do autor) sempre que se procura representá-lo, não importando os recursos discursivos, Rosenstone afirma que a polêmica em torno das representações oferecidas, nos filmes analisados (ou da leitura que ele faz delas), deve-se ao fato de que “eles fazem isso explorando as grandes potencialidades de sua mídia – dando-nos a ilusão de que, por um curto período, testemunhamos, ou até mesmo vivenciamos, os problemas, iras, medos, alegrias e dores de outras vidas ambientadas em outras épocas” (ROSENSTONE, 2010, p. 223). Talvez, a noção de que se possa, de fato, vivenciar experiências traumáticas como a do holocausto, através dos recursos oferecidos pelo cinema, fira a sensibilidade daqueles que consideram esse tipo de experiência única em sua integralidade, impossível de ser experimentada por quem não a viveu ou, sequer, de ser transmitida em sua completude. Não obstante, a posição do autor é mantida, ao longo do livro, como se percebe no nono e último capítulo, Os filmes na história. Mesmo nos casos dos filmes sobre o holocausto, o cinema oferece algo, na forma de um pensamento histórico, para que os espectadores utilizem como acharem melhor.

Robert Rosenstone defende o caráter experimentalista que o cinema pode oferecer para a representação do passado, sugerindo que as diferenças entre essa forma discursiva e a história escrita permitem “especular se a mídia visual representa uma grande mudança na consciência de como pensamos sobre o nosso [sic] passado. Se isso for verdade, talvez os nossos historiadores cineastas estejam sondando as possibilidades do futuro do nosso passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 234). Dessa maneira, sua conclusão é direta: o filme histórico não apenas desafia a História tradicional, mas nos ajuda a voltar para uma espécie de estaca zero, uma sensação de que nunca podemos conhecer realmente o passado, mas apenas brincar constantemente com ele, reconfigurá-lo e tentar dar significado aos vestígios que ele deixou (ROSENSTONE, 2010, p. 239).

Muitas dessas afirmativas carregam, em si mesmas, os elementos da sua crítica. Afinal, considerando a última citação, não seria viável considerar como conhecimento do passado, justamente, o ato de reconfigurá-lo e de dotá-lo de significados através dos indícios possíveis para tanto? Nesse sentido, falar sobre a impossibilidade de “conhecer realmente o passado” não é, por si mesmo, um equívoco? O tom didático do livro, condizente com a coleção editorial na qual está inserido, não esconde, portanto, algumas facilidades teóricas assumidas pelo autor. A primeira delas é a contraposição, por demais caricatural, entre a história da academia e a história realizada por cineastas.

Tem-se a impressão de que a história profissional, se assim se pode falar, é uma modalidade antiquada e retrógrada, afeita a resguardar seus canteiros com base em preconceitos e em um corporativismo voltado a excluir formas de representação que possam colocar em risco seu (suposto) monopólio sobre o passado. O cinema seria, naturalmente, o antídoto para isso.

Outra facilidade que salta aos olhos do leitor é o fato de que, mesmo fazendo menção a alguns teóricos ocupados em pensar o estatuto ficcional dos discursos sobre o passado, não há no livro nenhuma discussão mais substanciada sobre o que, realmente, se quer dizer quando se discorre sobre a ficção dos discursos históricos (sejam eles escritos ou fílmicos). O autor, simplesmente, recusa situar o leitor nesse tipo de problema epistemológico.

Ou seja, em sua pretensão didática, ele abdica, paradoxalmente, de tornar certas discussões mais claras para o leitor não especializado, colocando em risco aquela mesma pretensão que, por sua vez, caracteriza a coleção editorial na qual se insere o livro. Além disso, apesar de ter falado tanto em filme histórico, não fica claro o que define, especificamente, um determinado tipo de filme como “histórico” ou, nas palavras de Rosenstone, o que caracteriza, realmente, como históricas as “premissas históricas” das obras cinematográficas. Que se trata do filme com enredos ambientados no passado, é óbvio, mas, em um contexto no qual o tempo presente desponta com tamanha evidência aos olhos dos historiadores, tal definição não é ainda um tanto quanto restritiva? Da mesma forma, já que se trata de pensar a história nos filmes e os filmes na história, uma dimensão incontornável da questão não foi abordada de forma mais direta: como se valer dos filmes como fontes históricas? O ponto forte do livro é a insistência com a qual Rosenstone convida os historiadores a pensar formas renovadas e experimentalistas de discurso histórico ou modalidades distintas de representação do passado. Como fundador e editor do periódico Rethinking History: the journal of theory and practice, (tem essa vírgula?) que, nas suas, talvez exageradas, palavras, acredita ser “a única publicação desse meio que incentiva formas experimentais de escrita histórica”, o autor defende a ampliação dos recursos representativos de que se valem os historiadores. Evidentemente, isso não competiria apenas ao trabalho dos historiadores, mas envolveria repensar os próprios procedimentos pelos quais a história é ensinada. Fica a sugestão.

Fernando Nicolazzi – Professor Adjunto II Universidade Federal de Ouro Preto [email protected] Rua do Seminário s/n 35420-000 – Mariana – MG Brasil.

Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman – Du GAY et al (CSS)

Du GAY, Paul; HALL, Stuart; JANES, Linda; MACKAY, Hugh Mackay; NEGUS, Keith. Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman. London: Sage Publications, 1997. 151p. EGNAL, Marc. Divergent Paths: How Culture and Institutions Have Shaped North American Growth. New York: Oxford University Press Canada, 1996. 300p. Resenha de: EASTON, Lee. Canadian Social Studies, v.35, n.2, 2001.

Now that cultural studies has settled nicely into academe, cultural analyses are appearing on a regular basis. Right on cue, here is Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman, a recent addition to Stuart Hall’s Culture, Media and Identities series. I give this book special note, however, because a text on doing cultural studies is slightly different than one that thinks about doing cultural studies. While several excellent anthologies currently talk about cultural studies, these are often heavy on theory with little in the way of sustained application. In contrast, Doing Cultural Studies shows not only how to think about cultural studies, but how to do it too. Using the Sony Walkman as a case study, du Gay and his co-authors provide a much-needed text showing cultural studies in action.

Focusing on the circuit of culture, the authors use key concepts in cultural studies such as representation, identity, production, and consumption to analyze the Walkman as a cultural artifact. Educators will appreciate that this case study is structured so that its approach can be refined, expanded theoretically and applied to new objects of cultural study (11). Overall, the text clarifies without reducing complex terms. Also, although the segment on globalization is a bit thin, the section dealing with production, along with the one connecting design to consumption and production, easily offsets that criticism. Indeed, these two sections, in my view, illustrate cultural studies at its best. Drawing on a variety of sources, du Gay, et al. show, in Section II, how the Walkman’s success emerged not just from clever marketing, but also from Sony’s particular hybrid culture, its corporate structure and its production techniques. Section III neatly links consumers and their responses to the product’s ultimate design and image.

Although the book is text heavy, it includes a significant number of photographs, sample advertisements and even statistical data for readers to consider. The text also contains an appendix of selected readings, including challenging theoretical works such as excerpts from Walter Benjamin’s The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, as well as more accessible articles from popular media such as Shu Ueyama’s The Selling of the ‘Walkman from Advertising Age. Given their orientation to British cultural studies the authors, perhaps not surprisingly, include two selections from Raymond Williams. Better yet, the authors have integrated the readings into the main text’s structure so that readers can move in and out of the selections in relevant ways.

Although this text could benefit by augmenting its approach with more focus on gender, Doing Cultural Studies is a great introductory text for instructors who want to teach cultural studies in a post secondary setting. I would caution though, that despite its reader-friendly approach, many secondary students might find the work overwhelming. It would, however, be a fine resource for teachers wanting a concrete example of doing cultural studies.

In a more academic vein, Divergent Paths, Marc Egnal’s erudite comparative analysis of economic growth in French Canada and the American North and South, offers another sustained example of cultural analysis. Starting with representative accounts of life in the three regions, Egnal notes all three were roughly economically equal in the 1700s. Then, moving beyond accounts that focus on physical resources, access to capital or government policy, Egnal argues that culture and institutions shaped the divergent paths followed by the North, on the one hand, and the South and French Canada, on the other (viii). According to this account, both French Canada and the American South developed hierarchical, conservative cultures that were slow to adopt change while the American North, from the outset, developed a more open approach to change, especially around industrialization. These cultural values and attitudes then shaped each region’s development during the late 19th and early 20th century.

Interestingly, Egnal contends that these values were evident in, and produced by, the early approaches to the land and the institutions which developed in each region: the seigneurial system in French Canada, slavery in the American South, and independent farmers in the American North. He follows this argument with a close comparative analysis of the three regions in terms of education and mobility, religion and labour, and entrepreneurial spirit and intellectual life. In Part II, he shows how these values shaped growth until the later 20th century when these older values were challenged and ultimately replaced. Readers will find his analysis of the Quiet Revolution, the emergence of the Rustbelt, and the Sunbelt’s growth in the 1970s fascinating reading.

I do have two reservations. Despite Egnal’s wonderful documentation and his demarcation of controversial points, my more postmodern tendencies wonder whether culture becomes too large an explanatory force, even when contained at the regional level. I also suspect that, although Egnal certainly attends to women and their roles in these cultures, a more gendered story may yet be told here. These caveats notwithstanding, Egnal’s work shows how culture is a powerful analytical tool.

Although these books employ culture differently, they provide readers with strong evidence that although doing cultural studies might take divergent paths, the product is always intriguing. Both are worth reading.

Lee Easton – Mount Royal College, Calgary.

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As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado – BANN (RBH)

BANN, Stephen. As invenções da História. Ensaios sobre a representação do passado. Tradução de Flávia Villas-Boas. São Paulo: Editora da Unesp, 1994. 292p. Resenha de: SCHAPOCHNIK, Nelson. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.16, n.31/32, p.367-369, 1996.

Nelson Shapochnik – Universidade Estadual Paulista – Franca.

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