Gênero em perspectiva multidisciplinar | Albuquerque | 2021

Drag Queens de Nova York Gênero
Drag Queens de Nova York | Foto: Leland Bobbe

Muito prazer, eu sou a nova Eva

Filha das travas, obra das trevas

Não comi do fruto do que é bom e do que é mal

Mas dichavei suas folhas e fumei a sua erva

Muito prazer, a nova Eva

(Eu quebrei a costela de Adão)

— Linn da Quebrada, quem soul eu.

Nesta edição de albuquerque: revista de história almejamos organizar um debate sobre gênero que trouxesse múltiplos olhares para pensar relações sociais, políticas e culturais a partir da categoria gênero como análise. Partindo disso, convidamos autoras e autores de diversas áreas do conhecimento para escrever sobre temas contemporâneos que privilegiasse a interdisciplinaridade na tessitura de seus artigos, evidenciando o caráter em trânsito de pensar relações de gênero descentrando olhares apenas para o foco feminino cisgênero.

Desse ponto de vista, partiu a organização do presente dossiê que atravessa variados objetos e sujeitos de estudo, mas tendo como âncora a categoria gênero. O/a leitor/a verá que não há apenas uma área privilegiada, tampouco há um escopo temático que circunscreva todos a uma noção de feixe documental e, portanto, metodológico, comum. O que conecta as análises e reflexões presentes nesta seção é gênero como categoria fundamental para se debater. A tarefa de organizar um dossiê nesses parâmetros nos colocou diante de um caleidoscópio de ideias novas e protocolos de leitura, como também de conceitos-chaves e metodologias das mais variadas que, acreditamos, somam-se para as brilhantes discussões de cada texto.

A ideia para esta discussão surgiu da urgência em linkar debates e estudos que versassem sobre as variadas experiências amargas que o mundo tem passado. No caso brasileiro, o combate ao “moinho de vento” da “ideologia de gênero” tem feito estrago nas conquistas de décadas dos feminismos, dos movimentos LGBTs e das lutas anti-opressões. Nesse caminho, o foco foi tornar possível, mais uma vez, o conjunto de vozes, escritas, pesquisas, escutas e ações contra os infortúnios políticos reacionários e ameaçadores pelo qual temos passado e convivido.

O ponto fulcral, contudo, está em também transbordar os limites disciplinares. Muitas áreas ainda veem estudos de gênero e teorias de gênero alocadas em determinadas caixas seletivas. Isso torna o esforço coletivo em avançar nas discussões um pouco mais lento. Pensar queer, por exemplo, poderia ser atrelado a qual área do saber? Estudos feministas pressupõe reflexões interseccionadas com vários pressupostos de saberes plurais.

A metáfora do nó de Heleieth Saffioti, na confluência de três marcadores sociais, como gênero, raça/etnia e classe social, fundamenta a noção intrínseca a se pensar a realidade vivida e o combate as opressões. No ponto de vista da autora, “não se trata do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes” (SAFFIOTI, 2015, p. 133). Os marcadores de diferenças, pensados nessa ligação emaranhada das camadas que compõe a complexa sociedade brasileira também perpassam “[…] a geração, sexualidade, religiosidade, nacionalidade. Além disso, a ideia do nó auxilia a entender os processos sociais em suas dimensões micro e macro, pois aponta o emaranhado dos processos macrossociais, nas estruturas históricas nas quais elas se criaram e se consolidaram (MOTTA, 2018, p. 157-158).

A proposta é multidisciplinar porque lida com variadas formas de falar acerca de gênero: sejam métodos e metodologias; conceitos e ideias-chaves. Cada disciplina contribui com a sua maneira de pensar, enriquecendo o debate pelas reflexões de pesquisas sob o prisma das questões de identidade, memória, regulações, relações de gênero e, principalmente, o direito da plena existência.

A ordem dos artigos no sumário foi pensada por proximidade de temas. Todavia, não é uma ordem que se fecha em si mesma. Como proposto pelo dossiê, a multiplicidade do debate e os olhares de cada contribuição das autorias inspiram a expandir as fronteiras entre as áreas de conhecimento, em um diálogo repleto de torções e borrões dos limites disciplinares. Com isso, propomos apenas um enquadramento apresentável no nível estático em que um sumário é dado.

Em Uma crítica à compreensão parafílica da sexualidade de mulheres transexuais: os problemas com a teoria da “autoginefilia” de Ray Blanchard, Beatriz Pagliarini Bagagli discute sobre os conceitos do sexólogo Ray Blanchard que tem sido reapropriado e influenciado movimentos contemporâneos de feministas ditas radicais, que atuam em movimentos anti-transgêneros e trans-excludentes. A autora demostra, pelo debate bibliográfico das teorias de Ray Blanchard, de militantes trans que mostram as fragilidades dos argumentos da pesquisa dele, como estas ideias aparecem na violência virtual contra pessoas trans. Deste ponto de vista, o artigo contribui para a compreensão de teorias pautadas em um pensamento cisheteronormativo que tenta agir contra as experiências de pessoas trans sobre seu gênero e sexualidade, além de tocar em aspectos do desejo de outras identidades de gênero. A proposta objetiva a atuar contra a confusão provocada por teorias e debates antiquados sobre teoria de gênero e sexualidade.

Dayane Nayara Conceição de Assis em Contra o Racismo, Sexismo e pelo Bem-Viver! Mulheres contra hegemônicas pensando uma nova forma de ser e existir apresenta sua reflexão a partir do conceito de Bem Viver que fora “adotado desde 2015 pelos movimentos de mulheres negras e indígenas” que propõe a “transformação do campo teórico dos estudos de gênero, aliando-se as produções desde os feminismos comunitários, decoloniais com um compromisso em ser antirracista e sexista”. A autora debate sobre a contribuição do conceito para se pensar acerca da condição de mulheres brasileiras a partir do nó gênero, raça/etnia e classe contra a precarização de vidas subjugadas a um sistema patriarcal colonial cisheterocentrado. Partindo de seu próprio local de fala, Dayne Nayara Conceição de Assis busca compreender as apropriações dos conceitos para a transformação da realidade em debates de várias outras autoras latino-americanas.

Em Mulheres francesas do século XIX: trajetórias de lutas, Vanessa Pastorini discorre sobre o processo de busca por direitos civis de mulheres após a Revolução Francesa, com vistas a problematizar a incursão dos embates de ideias entre progressistas e conservadores sobre a mulher na sociedade francesa, acompanhando as grandes mudanças políticas que ocorreram durante o século XIX. Por esse viés, a autora destaca os enfretamentos intelectuais de sujeitas contra a disseminação de teorias misóginas que angariavam combater a igualdade de direitos civis e liberdades individuais para mulheres francesas. Interessante notar que o pensamento conservador sexista era disseminado por intelectuais ligados a produção filosófica pertinente a manutenção do status quo, contudo as antíteses a esses pensamentos, provindas de mulheres sobretudo, circulavam com intensidade naquele território, construído entre redes de grupos feministas.

No artigo Olhares entrecruzados: pesquisa-ação com agentes do atendimento à mulher em situação de violência da cidade de Bauru- SP, as autoras Tamara de Souza Brandão Guaraldo, Daniele Mendes de Melo, Celia Retz Godoy dos Santos, Andresa de Souza Ugaya sistematizam os dados obtidos pela execução de uma oficina multidisciplinar realizada em parceria entre a UNESP-Bauru, o Ministério Público Federal de Bauru, o Anexo da Violência Familiar e Doméstica contra a Mulher e o Conselho Municipal de Políticas para as Mulheres (CMPM). As autoras além de apresentarem dados globais sobre a violência de gênero contra as mulheres, apontam para a melhoria no atendimento e estrutura dos órgãos que atendem mulheres vítimas de violência doméstica, e as formas como asseguram sua proteção e integridades física e psicológica.

O mapa demonstrado no estudo indica dados alarmantes, tanto em nível global, quanto regional. Sobremaneira, tais índices sofreram aumento considerável de violência contra mulheres durante o período pandêmico de COVID-19. Elas consideram que não há aprimoramento dos órgãos de atendimento e apoio, bem como o combate efetivo a este tipo de violência sem uma melhora significava e estrutural na rede institucional.

Em 2018, no VI Congresso Internacional de História, Tamsin Spargo proferiu a conferência de abertura e apresentou o ensaio intitulado The Kim Kardashian’s bunda: thoughts on sexual politics traduzido para o português na coletânea História & outras eróticas (2019). Tornamos público agora a versão original em inglês de seu ensaio em que debate sobre corpo, gênero e identidade a partir das ideias-chaves trabalhadas no seu célebre ensaio Foucault e a teoria queer, publicado no Brasil, em segunda edição, pela editora Autêntica, em 2017. A autora recapitula suas discussões originais do final dos anos 1990 para trabalhar as atuais políticas sexuais pela exposição do corpo nas novas mídias sociais.

Rafael França Gonçalves dos Santos e Natanael de Freitas Silva mergulham na história do Brasil recente e trazem o emblemático caso da mais nova face da censura no Brasil, ocorrido no governo Temer, em 2017, com a exposição Queermuseu, no artigo “Criança viada, travesti da lambada”: infâncias queers em imagens incômodas. O início das conturbações desse governo demonstrava o campo de batalha que se instaurava no país após o golpe contra Dilma Roussef, entre 2015/16: de um lado um Brasil que se mostrava completamente intolerante, violento e notadamente obsceno; do outro vários espectros das lutas sociais encaradas como um brado pela manutenção da democracia brasileira e a vontade de lutar por um país menos opressivo e menos desigual.

Os autores partem de noções teóricas queer para evidenciar os aspectos transgressores na arte brasileira, notadamente após o gole de 1964 e as variadas criações artísticas voltadas a experenciar o corpo e o corporal na tensão com normas e limites político-sociais. O debate sobre os percursos da censura no Brasil e uma face conservadora destrutiva atual que tenta reviver pressupostos da “moral e dos bons costumes” tornam o artigo embebido na história do tempo presente, pois tratam de “[…] um passado atual ou em permanente processo de atualização” (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 25), refletindo sobre problemas contemporâneos nas disputas pela memória em que apontam para um dever ético em relação as infâncias desviantes da cisheteronormatividade.

A arte, a ambiguidade e o trabalho artístico nos palcos de teatros cariocas no início dos anos 1960 é o mote do artigo escrito pelo pesquisador Luiz Morando, que trata em Les Girls é ter charme, touché! sobre a arte das montações da virada da metade do século passado em que grupos de artistas até então transformistas ganharam destaque com comédias musicais baseadas no teatro de revista. Sob este prisma, o espetáculo Le Girls é privilegiado pelo pesquisador para ser trabalhado pelos vestígios de seu acontecimento presente na imprensa da época. Considerado muito relevante para o teatro musical nacional, principalmente no que se refere aos aspectos da profissionalidade das artes da montação, como o transformismo (chamado também, no período, de “fazer o travesti”), Les Girls ainda carece de estudos mais substanciais que pensem tanto sua dramaturgia, quanto os aspectos sociais sobre sua montagem — como frisa Morando — com performers in drag, já no período da ditadura militar brasileira. O trabalho de Morando, assim, contribui muito para esta lacuna na historiografia cultural do Brasil.

A convite dos editores para compor esta edição como parte, ainda, do tema do dossiê proposto a artista multiplataforma Linn da Quebrada criou o ensaio corporATIVISMO, em que tensiona conceitos, palavras e frases criando uma instigante reflexão sobre artivismo numa composição textual que subverte a estrutura acadêmica: “não venho da academia. de nenhuma delas./mas passeio por entre seus pensamentos pra formar e deformar os meus”. Sua reflexão passa pelo uso do corpo não-conforme diante da cisheteronorma no “terrorismo de gênero” do qual descortina e faz desmoronar noções que se querem arraigadas de centramento de sujeitos (lidos por essa ótica) como “naturalmente” dados.

Este número de albuquerque: revista de história conta com duas traduções que fazem parte do tema desse dossiê. O artigo de Teresa de Laurentis, Gênero e Teoria Queer, traduzido por Gabriel Bosco Vaz da Silva e revisado por Leonardo Lemos de Souza, aborda a trajetória dos estudos de gênero sob a perspectiva das diferenciações, como tomou corpo várias teorias que convergiram para estudos que ganharam lugar no “guarda-chuva” queer. Esse debate de Laurentis perpassa as últimas décadas e faz crítica sobre como as reflexões sobre o gênero no âmbito marcado das diferenças — tanto de orientações sexuais quanto de identidade — viram queer ganhar um espaço dentro do leque de identificações de gênero. Sob esse ponto de vista, a autora critica a cooptação do conceito — que nascera como adjetivo, substantivo e muitas vezes usado como verbo — como uma definição identitária.

Meu projeto de “teoria queer” consistia em iniciar um diálogo entre lésbicas e homens gays acerca da sexualidade e nossas respectivas histórias sexuais. Esperara que, juntos, quebrássemos os silêncios que se haviam construídos nos estudos lésbicos/gay em torno da sexualidade e sua relação com o sexo/raça (por exemplo, o silêncio em torno das relações interraciais ou interétnicas). As duas palavras, teoria e queer reuniam a crítica social, o trabalho conceitual e especulativo que implica a produção do discurso. Contava com esse trabalho coletivo para poder “construir outro horizonte discursivo, outra maneira de pensar o sexual” (LAURETIS, 1991, p. 11). Embora não fosse um projeto utópico, naquele momento eu ainda imaginava que as práticas teóricas e as práticas políticas eram compatíveis. Pensando na evolução subsequente da teoria queer, já não tenho mais certeza.

Já Joan Scott, em Gênero: ainda é uma categoria útil de análise?, traduzido por Graziela Schneider Urso, retoma sua ideia de “gênero” ser uma categoria de análise tomando o espectro dialógico que se ganha nas relações entre homens e mulheres, rompendo com essencialismos sobre “gênero” estar ligado a “mulher”, e não as profundas constituições, regramentos, construções em que se operaram sobre todos os corpos de pessoas nas relações sociais. Por esse caminho, seu artigo revê algumas discussões dos anos 1990 e 2000 no debate acerca do uso de gênero associado a determinados corpos, em que a autora, mais uma vez, demonstra como pensar sobre os gêneros ainda é muito útil. Em suas palavras, “porque requer que historicizemos as maneiras como o sexo e a diferença sexual foram concebidos”.

Para fechar o temático desenvolvido nesse número, convidamos Jaqueline Gomes de Jesus para uma entrevista sobre sua trajetória pessoal e intelectual. Em mais de duas décadas de trabalhos na área da Psicologia, a intelectual tem sido uma expoente no combate às opressões e seu nome é constantemente ligado a renovação dos feminismos, principalmente no ativismo trans. Sua produção de conhecimento dentro e fora das instituições acadêmicas é de suma importância para pensar e agir na transformação da realidade e num Brasil menos desigual, mais tolerante e com mais equidade.

Desejamos que os textos aqui reunidos ganhem novos sentidos, individual ou coletivamente, para estudos, leituras, reflexões, debates e novas criações frutíferas. Agradecemos a cada autora e autor pela contribuição, assim como as autoras que concederam permissão para as traduções de seus artigos ao português. Boa leitura!

Referências

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente e ensino de História. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, p. 19-34, jul./dez. 2013. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/90 Acesso em: 08 ago. 2021.

MOTTA, Daniele Cordeiro. Desvendando Heleieth Saffioti. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 40, p. 149-160, jan./jun. 2018. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/46662. Acesso em: 30 nov. 2021.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

SANTOS, Martha S.; MENEZES, Marcos Antonio de; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba, Brazil: Appris, 2019.

SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares. Posfácio de Richard Miskolci. Tradução: Heci Regina Candiani. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 96 p. (Coleção Argos, 2).


Organizadores

Antonio Ricardo Calori de Lion – Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso — Câmpus de Rondonópolis, Brasil. Mestre em História pela UNESP/Assis, Brasil, onde atualmente cursa seu doutoramento em História. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). É membro do LEDLin – Laboratório de Estudos em Diferenças e Linguagens (UFMS/Aquidauana). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8651248987276573. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0001-6746-2240

Graziela Schneider Urso – Possui graduação em Russo e Português (2004), mestrado em Literatura e Cultura Russa (2010) e doutorado na mesma área pela Universidade de São Paulo (2016), Brasil. Suas principais áreas de atuação são línguas, literaturas e culturas estrangeiras modernas, com ênfase em estudos russos e gregos modernos; Estudos da Tradução; Literatura Comparada e Teoria Literária; Linguística; Estudos Culturais; História das Mulheres; Gênero; estudos autobiográficos. Membro de Azimute: Laboratório de Estudos Orientais, Brasil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1124080708548291. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-9933-2886


Referências desta apresentação

LION, Antonio Ricardo Calori de; URSO, Graziela Schneider. Albuquerque. Campo Grande, v. 13, n. 26, p.11-16, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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