Guerra Fria: História e Historiografia | Sidnei José Munhoz (R)

Bilros 5 Guerra Fria: História e Historiografia
Sidnei José Munhoz | Foto: Jornal da UEM |

Critica Historiografica capas 10 Guerra Fria: História e HistoriografiaA obra Guerra Fria: História e Historiografia, de Sidnei Munhoz, foi lançada em 2020 pela Appris Editora com o objetivo de apresentar não somente os principais eventos desse conflito que marcou o século XX (1947-1991), mas também um balanço historiográfico sobre o tema. O objetivo desse trabalho é resenhar esse livro, fruto de anos de pesquisa do autor, que se tornou um dos maiores especialistas sobre o assunto no Brasil.

Munhoz é pós-doutor pela Brown University e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em História Contemporânea e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. É professor visitante sênior do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e professor voluntário do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Foi research student da The London School of Economics and Political Science (1995-1996). Dentre suas obras podemos citar Cidade ao avesso: desordem e progresso em São Paulo no limiar do século XX (2015), além de atuar como um dos organizadores da Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX (2004) e do livro Impérios na História (2009). Por fim, atua como coordenador do Opening Archives Project em uma parceria com James Green e a Brown University.

Sidnei Munhoz dividiu sua obra Guerra Fria: História e Historiografia em três partes. A primeira é intitulada “EUA, Grã-Bretanha e União Soviética: Da grande aliança às origens do novo conflito global”. Nesse momento inicial o autor discute sobre a política externa dos três grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para demonstrar como a eminente derrota alemã levantou debates e preocupações entre os governantes dos respectivos países sobre a nova ordem mundial pós-conflito. Assim, observamos como a presença de um inimigo comum, a Alemanha, fez com que Estados com políticas e ideologias antagônicas se unissem para derrotá-lo. Contudo, quando esse personagem foi vencido, as antigas oposições ganharam novamente destaque no cenário internacional.

O que evidencia esses atritos foi a própria abertura de uma Segunda Frente no lado ocidental pelos EUA e pela Grã-Bretanha para aliviar o ataque que a URSS estava recebendo no front Oriental. Munhoz levanta a hipótese que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, colocou obstáculos para essa abertura com o objetivo de favorecer o império britânico no Norte da África. Essa estratégia aumentou as suspeitas de Josef Stalin de que os Aliados Ocidentais tinham como objetivo levar a URSS e a Alemanha ao máximo de desgaste para que ao final da guerra os soviéticos estivessem enfraquecidos e não questionassem uma hegemonia global.

Com o atraso na abertura da Segunda Frente, que ocorreu em 1944 – três anos após a solicitação de Stalin –, os soviéticos conseguiram ocupar a Europa Oriental e Central. Tal cenário tornou a URSS a grande potência militar na região. Ao final do conflito, o presidente norte-americano, Franklin D. Roosevelt, tinha ciência que precisava estabelecer um acordo com os soviéticos para evitar novos atritos, pois a conquista do leste europeu foi cara à URSS. Entretanto, com a sua morte em abril de 1945, Henry Truman assumiu o governo norte- americano. A partir desse momento a política externa dos EUA seguiu um caminho de choque e muitos acordos com Stalin, até então em andamento, não foram aceitos pelo novo presidente.

Em adição, houve a Operation Unthinkable elaborada pelo governo britânico contra a URSS. Com a vitória soviética, Churchill solicitou um planejamento de um possível conflito com o Exército Vermelho para impedir sua ocupação na Polônia. Apesar da desistência, as suspeitas de Stalin com os Aliados Ocidentais aumentaram ao ter aceso a essa informação por meio de um agente infiltrado. Diante desse cenário, a URSS adotou uma política mais rígida para garantir sua zona de segurança na Europa, pois temia ser alvo de novos ataques.

Sendo assim, Munhoz defende que ao final da Segunda Guerra Mundial verificamos as origens da Guerra Fria. Primeiro por conta do atraso na abertura da Segunda Frente que levou Stalin a intensificar suas suspeitas em relação aos EUA e à Grã-Bretanha. Segundo pela Operation Unthinkable que tornou o clima de apreensão maior e contribuiu para que o ditador soviético adotasse um posicionamento mais firme a fim de garantir sua posição na Europa Oriental e Central, pois esses territórios eram vistos como uma zona de segurança. O terceiro fator foi a morte de Roosevelt e a posse de Truman que adotou uma posição ofensiva contra os soviéticos de modo a garantir os interesses norte-americanos na região que era sensível à URSS, a Europa.

O autor chega a essa conclusão através de um debate historiográfico demonstrando as diferentes perspectivas teóricas sobre o tema. A ortodoxia estadunidense e a pós-revisionista atribuem à URSS a responsabilidade pela Guerra Fria, afirmando que essa potência teria adotado uma postura ofensiva na Europa e os EUA foram obrigados a reagir para garantir sua segurança e dos aliados. Com um caminho semelhante, mas invertendo o posicionamento dos personagens, é a ortodoxia soviética, ou seja, os norte-americanos teriam atacado primeiro. Fazendo forte crítica a esses posicionamentos, Munhoz se aproxima em seu trabalho das teorias revisionistas, em maior grau, e corporativistas, em menor instância.

A perspectiva revisionista demonstra como a URSS pretendia manter sua zona de segurança na Europa diante dos reverses que sofreu na Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos estavam arrasados com as perdas sofridas na guerra e seu maior objetivo era a reconstrução do país, e, para isso, adotaram uma posição defensiva para se salvaguardar de futuros ataques. Entretanto, houve uma incompreensão desse cenário por parte do governo Truman que aderiu uma ofensiva contra Moscou, que por sua vez reagiu. Já o corporativismo defende a continuidade da política doméstica norte-americana, baseada em um sistema econômico integrado por coordenações institucionais e mecanismos de mercados, na política externa. Logo, o controle de recursos era fundamental para a economia estadunidense, mas se chocava com as intensões soviéticas de criar uma zona de segurança.

Munhoz explica os principais eventos da Guerra Fria apresentando as diferentes perspectivas historiográficas conforme essas teorias. O autor demonstra em quais pontos concorda ou não com as ideias dos autores mencionados e defende a tese de que “a Guerra Fria, em larga medida, foi resultando de questões mal resolvidas ou encaminhadas de forma dúbia durante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial [2]. Ainda acrescenta que “os diferentes projetos de reordenamento do mundo e da ordem global vislumbrados pelos principais líderes aliados possuíam pontos de divergência, muitos deles irreconciliáveis” [3].

Sem o “inimigo em comum”, os projetos vitoriosos entraram em choque e foram levados para outras áreas do globo. Esse é o tema da segunda parte da obra intitulada “As diferentes perspectivas de poder das novas potências globais e a emergência da Guerra Fria”. Nessa etapa, o autor nos apresenta como os blocos de poder se arquitetaram, mas problematiza essa formação ao demonstrar que cada campo não era homogêneo e estático. Havia tensões regionais e certa autonomia dos países “satélites” frente as grandes potências, apesar delas controlarem a situação para que esses conflitos não abrangessem uma escala global.

Embora o autor defenda que a URSS manteve um posicionamento defensivo, ele deixa evidente que a política externa soviética não fora concebida somente com esse viés. Tanto Washington como Moscou procuraram expandir suas áreas de influência, apesar do primeiro se apresentar de maneira mais ofensiva, principalmente no início da Guerra Fria. Segundo o autor,

o projeto estadunidense de uma nova ordem capitalista global, lastreada em suas instituições domésticas, confrontava diretamente os objetivos soviéticos e, como o Kremlin não podia renunciar aos seus interesses de Estado, reagiu. Essa reação foi interpretada no Ocidente como hostilidade, e isso elevou o tom das desavenças que desembocaram na Guerra Fria. Dessa perspectiva, a ação soviética foi muito mais defensiva do que ofensiva, mas isso não implica acreditar que, na estratégia do Kremlin, em termos de longa duração, não houvesse uma perspectiva de expansão da influência soviética [4].

A partir desse posicionamento, Munhoz apresenta os principais conflitos pelo globo que marcaram a Guerra Fria, como a Guerra da Coreia (1950-1953), do Vietnã (1955-1975) e do Afeganistão (1979-1989), por exemplo. Conflitos regionais que tiveram a interferência das duas grandes potências para angariar áreas de influência e lastrear seus modelos de capitalismo estadunidense e socialismo stalinista. Além da política de financiar golpes, ditaduras e contrarrevoluções, principalmente no Terceiro Mundo. Portanto, verificamos nessa segunda parte da obra as bases de estruturação dos dois blocos, seus tentáculos, suas instabilidades e suas consequências.

Por fim, na terceira parte do livro, “O crepúsculo da Guerra Fria”, Munhoz descreve a política de Détente entre a Casa Branca e o Kremlin, ou seja, uma relação de estabilização; o retorno das hostilidades na chamada “Segunda Guerra Fria”, apesar do autor problematizar o termo; e o fim do império soviético. O historiador destaca os principais motivos que levaram à mudança de posicionamento dos EUA de estabilidade para hostilidade e as questões internas que ocasionaram no desmembramento da URSS. Assim, observamos como debates na política doméstica de ambos os países ocasionaram em transformações na política externa. Em outras palavras, os projetos políticos internos vencedores reverberaram no cenário internacional.

Observamos, desta forma, como Munhoz consegue nos apresentar um manual sobre Guerra Fria. Baseado em uma profunda revisão bibliográfica, o autor destaca os principais eventos nessas quatro décadas de conflito, a forma como se estruturou a política externa dos EUA e da URSS e as diferentes perspectivas teóricas sobre os temas abordados. Em um trabalho de pesquisa apurado, o autor levanta suas hipóteses através de argumentações estruturadas, mas também seus limites. Além de conhecer a história desse período, o leitor é introduzido a um arsenal historiográfico sobre o assunto que o possibilita aprofundar seus estudos. Por meio de uma leitura agradável, fluida e analítica, a obra pode ajudar tanto pesquisadores, professores e estudantes como leitores curiosos sobre a história do século XX. Portanto, uma leitura obrigatória em pesquisas e cursos de história.

Notas

1. MUNHOZ, Sidnei José. Guerra Fria História e Historiografia. Curitiba: Appris, 2020, p. 266.

2. Ibidem.

3. Idem, p. 275.

Resenhista

Raquel Anne Lima de Assis – Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC). Integrante do Grupo de Estudo do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq). Foi professora substituta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DH/IM). E-mail: [email protected]. Orientador: Dr. Dilton Cândido S. Maynard (UFS/DHI).


Referências desta resenha

MUNHOZ, Sidnei José. Guerra Fria: História e Historiografia. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: ASSIS, Raquel Anne Lima de. Diálogos sobre a Guerra Fria. Boletim do Tempo Presente. São Cristóvão, v.10, n.04. p.59-62, abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

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