Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585-1630) – GONÇALVES (S-RH)

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585-1630). Bauru: Edusc, 2007, 329 p. Resenha de: MELO, Josemir Camilo de. Conquista da Paraíba sob foice, espada e cruz. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [21] jul./ dez. 2009.

Sob o título de Guerras e açúcares, a historiadora paulista radicada na Paraíba, Regina Célia Gonçalves, estudou um pequeno recorte da colonização da Paraíba em sua tese de doutorado, pela USP, defendida em 2004, sob a orientação da Dra.

Vera Lúcia Amaral Ferlini, prefaciadora da obra. Trata-se de um belo livro da Editora da Universidade do Sagrado Coração. Apesar de seu recorte ser de apenas 45 anos (1585-1630) procura desvendar as tramas políticas para dizimar os Potiguara e obter suas terras para o açúcar, principalmente a partir do acordo de paz firmado com os Tabajara em 1585. Gonçalves fez um excelente trabalho sobre esse período incipiente da construção da Paraíba, mas o mais importante é sua premissa, a de que se criou na mentalidade local uma paraibanidade tabajarina, fruto da representação que o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano tem feito desde sua criação, em 1905.

A autora tenta também desmontar este favoritismo historiográfico que deixou de lado exatamente um dos expoentes mais forte da resistência à invasão das terras indígenas, o povo Potiguara.

A historiografia paraibana contextualizada, e não mais a triunfalista que buscava uma identidade paraibana, tem, nas últimas duas décadas, mudado para uma historiografia regional acadêmica, seja de matriz da École des Annales, seja pelo viés marxista, bem como de forte influência de pesquisadores lusitanos, como António Manuel Hespanha, Pierre Cardim e outros2. Trata-se de uma revisão na História da Paraíba Colonial, tanto em nível teórico sobre o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), como faz Margarida Maria Santos Dias3, em sua sintética obra, como em nível de pesquisa empírico-documental e analítica, em que também se destaca Elza Régis de Oliveira4 com seu estudo sobre a subordinação da Capitania da Paraíba à de Pernambuco (já em segunda edição). Portanto, essas obras encontrarão complemento historiográfico na obra de Regina Célia Gonçalves.

Esta revisão historiográfica se aprofunda, mais recentemente, graças à coleção de manuscritos do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, em que novos autores como Serioja Mariano e Mozart Vergetti Menezes5 têm dado grande contribuição aos estudos de História Colonial(ista).

Gonçalves, em apenas três capítulos, se prende ao seu recorte histórico para provar como a política suja dos colonialistas foi usada para afastar os Potiguara de suas terras. Se entendemos que o conhecimento histórico é pós-gnóstico e retrodicção, como asseveram Reis e Veyne6, veríamos que a traição dos portugueses ao chefe Zorobabé poderia ser ilustrada com outra ocorrida no século XVIII, como fizeram ao capitão dos índios, Antônio Camarão. Ou quando a autora mostra as manobras de alguns senhores de engenho para não pagar impostos e ainda fazer aliança temporária com os holandeses; usando-se do mesmo argumento, poderíamos comparar com o caso, quase sempre escondido pela historiografia regional, do senhor de engenho em Pernambuco, João Fernandes Vieira. Mas a autora coloca claro como o conflito ideológico entre os indígenas (ficar a favor ou contra os portugueses) não foi uma coisa fácil como se mostra em certos livros locais: Potiguara, a favor dos franceses, contra Tabajara, aliado dos portugueses. As tramas são complicadas e a autora resgata um momento interessante de nossa História o debate entre dois líderes Potiguara em que um defende a religião protestante (Pedro Poty, aliado aos holandeses) e outro defende os católicos (Poty Camarão, aliado aos portugueses, o celebrado das guerras contras os holandeses,cuja descendência recebeu o título de Governador dos Índios). Vai mais além, a autora, ao buscar explicar, no caso da resistência potiguara, o complexo guerra-vingança-antropofagia o comportamento deste grupo étnico em relação à aliança com os franceses e guerra aos portugueses, aliados do Tabajara, inimigos dos Potiguara.

Neste último aspecto, a autora segue um caminho vislumbrado no terceiro capítulo em que se refere a uma “verdadeira viragem teórica que caracterizou essas novas abordagens” e, que, segundo ela, foi “suscitada pela incorporação das análise de juristas, linguistas e antropólogos, que resultaram numa mudança no olhar dos historiadores (…) passaram a se preocupar, centralmente, com a reconstrução ‘por dentro’ da realidade investigada” (p. 157). Nesta vertente, Gonçalves dá a preferência às teorizações de Hespanha, embora reconheça valor na abordagem que via a colônia como acumulação primitiva de capital.

O livro apresenta dois níveis diferentes em que os dois primeiros capítulos assumem um caráter de narrativa que é de ‘recontar’ esta história, como aponta a própria prefaciadora/orientadora Vera Lúcia Amaral Ferlini (p. 16), e como se depreende dos próprios títulos. Se o o primeiro capítulo se chama “Lutas e sangue ab origine”, (em itálico, no original) e o segundo “Sob o signo da violência, a construção da nova ordem”, o terceiro capítulo se intitula “Terras e engenhos, as malhas do poder”. Ou seja, narrativa de tramas e análise de estruturas. o mesmo gênero narrativo a autora aplica neste capítulo, optando talvez por uma ‘leitura’ muito mais da Nova História (Nouvelle Histoire) do que para a segunda geração dos Annales, em que pesaria mais a análise serial, embora, como nos mostra à página 182, busque ver tendências de preço do açúcar. Gonçalves opta, então, por um equilíbrio entre esta última e a narrativa da trama. Melhor, não é simples narrativa que Gonçalves executa, mas sim explicar a trama, pois como diz o historiador francês: “(…) explicar, da parte do historiador, quer dizer ‘mostrar o desenvolvimento da trama, fazer compreendêlo” 7.

Isto quer dizer que a autora circula na cartografia da École des Annales. Aliás tem sido esta vertente a sintetizadora dos trabalhos produzidos sobre Colônia em várias universidades do Nordeste do Brasil. Parece ter sido também esta compreensão de Romeiro8.

Não é à toa que se criou o fértil Encontro Internacional de História Colonial (já partindo em 2010 para sua terceira versão em seis anos), herdeiro do I Encontro Nordestino de História Colonial, que teve sua sede exatamente na Universidade Federal da Paraíba, em 2006. Portanto a vertente de Annales, que Guerras e Açúcares representa, nos vem mais diretamente de Portugal, do trabalho incansável que foi o Projeto Resgate Barão do Rio Branco9, e que tem tido continuidade através do intercâmbio com as universidades portuguesas e com o Encontro Internacional acima citado.

Muitas contradições emperraram a administração colonialista no que diz respeito à superposição de leis e de jurisdição conflitante, bem como superposições de hierarquias, devido, principalmente à peculiaridade de a Capitania da Paraíba, ter nascido Real, e não donatária, e tardiamente (1585) em relação à divisão de capitanias hereditárias de Dom João III, na década de 1530. Tratava-se de uma capitania do rei em meio às donatárias do Rio Grande, ao norte e, ao sul, a de Itamaracá. Abaixo da de Itamaracá ficava a de Pernambuco, que de fato prosperava e expandia a conquista material portuguesa, dizimando os nativos e expulsando-os para o sertão. O território da Capitania da Paraíba, como demonstra Gonçalves, resultou da incorporação, pela Coroa, em 1585, de 16 léguas da Capitania de Itamaracá devido a não ocupação da terra pelo donatário, terras estas que se alongavam até a Baía da Traição. Assim, Itamaracá, de suas 23 léguas originais, ficou com apenas sete léguas, entre a Ilha de Itamaracá e a foz do rio Goiana.

A indefinição quanto a limites e juridições colonialistas adentraram o Império, como a jurisdição religiosa sobre a Freguesia de Taquara, no território da Paraíba, que só foi incorporada à Paraíba em 1867. Portanto, no clima de guerras para o açúcar, não se trata só de conflitos de administração e jurisprudência da e para a Capitania da Paraíba, mas de um caos de mandos e desmandos, de uma territorialidade fugidia, empiricamente amorfa, mas coesa quando se tratava de exterminar os donos da terra, principalmente, os resistentes potiguaras, que, por volta de 1735, ainda se sublevarão contra os brancos, conclamando negros a matarem seus senhores e se juntarem a eles, guerreiros.

A autora também enfatiza a formação dos troncos familiares locais e suas ramificações a partir de troncos pernambucanos – Albuquerque, Cavalcanti e Hollanda – que controlaram, em seu período, a concentração de terras e impuseram ao índio uma política de terra arrasada. No entanto, é sobre este ‘espaço colonial único’ (p. 100) a matriz cartográfica deste ‘revival’ historiográfico nordestino, que Gonçalves depõe contra as interpretações freireanas que têm gerado uma consciência de pernambucanidade e que, no fundo, têm provocado historiadores tradicionais a buscar uma paraibanidade. Não foi simplesmente uma elite pernambucana.

Este tipo de consciência seria impossível à época. O que há é um corredor canavieiro (econômico), a tentativa de erigir e ou manter três ou quatro capitanias (administração) – Pernambuco-Itamaracá-Paraíba e Rio Grande do Norte, sistema que desafia a natureza: a floresta tropical substituída pelo ‘lençol monotonamente verde da manufatura açucareira’ (p. 155) (antropologia) incluindo-se nesta leitura, obviamente, as sociedades indígenas. Portanto, Gonçalves desconstrói, assim, parte desta falsa liderança/ consciência oligárquica pernambuco-freyreana.

Para o leitor leigo, ou não paraibano, por exemplo, mapas que mostrassem os territórios das aldeias tribais bem como os engenhos seriam necessários para uma maior compreensão do estudo de Gonçalves. No entanto, em anexo, a autora fornece excelentes quadros sobre sesmarias e engenhos, além de ricas informações estatísticas sobre produção e exportação açucareira.

Infelizmente, ao falar em passant da ‘guerra dos bárbaros’ (p.40) a autora não recorreu a Ireneo Joffily10 para descrever e situar o tapuia cariri. O leitor poderia perguntar sobre o resto da Paraíba de como teria sido a conquista à foice, espada e cruz. Isto não compete à autora, que se manteve fiel a seu recorte não só temporal, mas principalmente geográfico, à zona da mata diretamente ligada ao açúcar.

É claro que o recorte temporal do livro é outro, mas volto a insistir no caráter do conhecimento histórico ser pós-gnóstico, portanto passível a outros níveis de retrodicção. Ou como diz Reis: “É o fim já conhecido a priori (em itálico, no original) que organiza a trama”11.

Nesta sequência de estilo, evita o período da dominação holandesa (1630-1654) mesmo que comece uma narrativa como crônica: “Corria o ano de 1644…”. O que quer mostrar é a política colonialista luso-espanhola, até 1630, embora não complete os dez anos a mais da administração espanhola (até 1640). É claro que a dominação holandesa, outra experiência colonialista, daria outra tese.

Através de seus três capítulos, seu estilo é agradável, prende o leitor ente, porque persegue os fios de uma densa trama, fruto também do seu ‘lugar’, uma paulista que tenta compreender um passado ‘exótico’, um seu não-passado, um seu não-lugar.

Daí, uma narrativa atraente. Embora a temática pareça se repetir, está mais para um rondó onde cada nível de surgimento dos sujeitos históricos e ou da trama aparece em um novo patamar, complementando-o ou estendendo-o. Deixa para teorizar no terceiro capítulo, sobre a economia açucareira, reproduzindo não só excelentes estatísticas, mas incluindo seu tema na perspectiva do geral – a economia mercantil, o açúcar para a exportação. É através desta base material, a produção açucareira, que se forma realmente o que se pode chamar de ‘colônia’. E, aí, a autora recorre a um conceito polêmico, o patrimonialismo, na vertente de Eduardo d’Oliveira França, para compreender a centralização da monarquia, a Paraíba no contexto do Império português.

A autora se beneficiou do contato direto com as fontes a partir do Programa Resgate Barão do Rio Branco e Arquivo Histórico Ultramarino, feito por Portugal e Brasil, através de uma rica coleção de CD-ROMs e um excelente Catálogo desses manuscritos produzido por professores da UFPB. No entanto, deu crédito ao esforço pessoal do historiador Lyra Tavares em sua copilação das sesmarias da Paraíba.

Interpretando cronistas, viajantes e padres da época, Gonçalves consegue uma síntese importante sobre a identidade indígena, dividida em sangue (soldado para as escaramuças contra estrangeiros e outros índios), substância de povoamento e sustentáculo (transformado em) da economia agrícola tanto a camponesa como a latifundiária, quando da falta de africanos seqüestrados e escravizados.

Muito importante é a Introdução onde a autora traz grande contribuição para a Historiografia ao demonstrar como o IHGP privilegiou, ideologicamente, os antigos aliados dos portugueses em detrimento dos Potiguara. É quase como uma reconstituição desta lacuna historiográfica em que a elite se perpetuou através de imagens sustentadas pelos historiadores tradicionais. Contesta ainda, a autora, a historiografia tradicional, e principalmente certo setor contemporâneo de historiadores que se digladiam em torno da fundação da capitania da Paraíba (1574, 1580?) após o massacre de Tracunhaém, cuja trama é descrita com minúcias.

A partir da leitura de Regina Célia Gonçalves, não acredito que se possa estudar a História da Paraíba como uma sucessão de fatos produzidos pela elite histórica e pela elite historiográfica para seu auto-regojizo.

Notas

2 Cf. BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no império português – séculos XVI-XIX. São Paulo: Almeida, 2005.

3 DIAS, Margarida Maria Santos. Intrépida ab Origene: o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e a produção da história local. João Pessoa: Almeida, 1996.

4 OLIVEIRA, Elza Régis de. A Paraíba na Crise do Século XVIII (1755-1799). 2. ed. João Pessoa:Editora Universitária/ UFPB, 2007.

5 MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro. Família e Relações de Poder na Capitania da Paraíba: o Governo de Jerônimo de Melo e Castro (1764-1797). Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2005; MENEZES, Mozart Vergetti de. Sonhar o céu, padecer no inferno: governo e sociedade na Paraíba do século XVIII. In: BICALHO & FERLINI, Modos de Governar…, p. 327-340; 6 REIS, José Carlos. História e Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro, FGV, 2003; VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília, UNB, 1998.

7 VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasília: editora da UnB, 1998, p.82.

8 ROMEIRO, Adriana. Prefácio. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart Vergetti de & GONÇALVES, Regina Célia (orgs.). Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2009, p. 9-21.

9 OLIVEIRA, Elza Régis de; MENEZES, Mozart Vergetti de & LIMA, Maria da Vitória Barbosa de (orgs.) Catálogo dos documentos manuscritos avulsos referentes à Capitania da Paraíba existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2002.

10 JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1892.

11 REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 40.

Josemir Camilo de Melo – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor aposentado da Universidade Federal de Campina Grande.

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